sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 2, 7ª parte


Aquele otimismo constante de Nuno não era compatível com os polícias que ela conhecia dos livros, e questionou-se se ele seria assim tão bom profissional. Afinal, um homem que convivia diariamente com a pior das facetas do ser humano, e esmiuçava crimes com poças de sangue, deveria estar já abalado o suficiente para se render ao alcoolismo. Mas Nuno era jovial e irradiava um entusiasmo que ela não compreendia. A sua análise "esotérica" estava a ser testada ao máximo, e aceitou a cerveja fora de horas somente por questões científicas, ou assim queria convencer-se.

O bar era escuro, fazendo lembrar os Pubs ingleses que ela adorava, e sentiu-se instantaneamente confortável, retirando o casaco. Nuno sentou-se educadamente à sua frente, mantendo a distância física própria de quem estava ali a trabalho e não em diversão. Muito bem, pensou ela.
Os olhos ardiam-lhe das lentes de contacto que já usara horas demais, e pediu licença para se retirar à casa de banho, levando a sua carteira com o kit salva olhos. Retirou as lentes, que guardou cuidadosamente na caixinha, e colocou os óculos, transformando a "cabra excêntrica" numa intelectual simplesmente mal vestida. Bocejou longamente e percebeu que precisava de dormir, teria de despachar o brinde para recuperar da última noite de insónias.
Nuno aproveitou para telefonar à sobrinha que tinha deixado em casa sozinha, para a tranquilizar por ainda não ter regressado. Iria demorar-se um pouco… se tudo corresse bem!
Quando Margarida regressou à pequena mesa no fundo do bar, já estavam dois baldes de cerveja, e um gigante animado à sua espera. Tentou não sorrir, mas a cena era demasiado cómica para aguentar, e ao se instalar no canto fofo, não pôde deixar de perguntar,
- Estás à espera que consiga beber isto tudo?
- Não me digas que nunca bebeste um litro de cerveja!? - disse, divertido com a situação - Não te preocupes, o que não conseguires terminar, eu arrumo.
- Posso tentar, mas estou bastante cansada e com sono, e duvido que consiga manter-me consciente com esta quantidade de álcool, para além de que irei passar a noite na casa de banho... - e aquela última informação era absolutamente escusada, pensou ela envergonhada. Ninguém tinha de saber que as bebidas alcoólicas a transformavam numa incontinente, muito menos o gozão sentado à sua frente.
- Ficas bem de óculos! - confessou ele descontraidamente - e fingindo não notar o embaraço momentâneo de Margarida, iniciou uma conversa informal sobre música, carros, comida... querendo saber um pouco demais da conta. Margarida surpreendeu-se a si própria quando deu por si a dada altura a rir descontroladamente com as cenas cómicas em que Nuno se envolvia no seu trabalho emocionante de prender mauzões. Aquilo só poderia ser consequência do meio litro de cerveja que ela já conseguira ingerir...

Era tarde, e os dois deram por encerrada a segunda reunião de trabalho, combinando que no dia seguinte de manhã Nuno levaria todo o material de que dispunha para o escritório dela.
Margarida entrou no seu carro sem dar hipóteses para despedidas calorosas, sorriu e acenou “adeus” ao novo colega, apressando-se para chegar a casa e dormir.

Chegou ao seu apartamento às quatro da manhã e não teve tempo sequer de pensar em ladrões, caindo redonda na cama, exausta.

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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 2, 6ª parte


- Carros velhos, é preciso conhecer as suas manias! - disse ele, piscando o olho. E não fosse estar em desvantagem física, teria esmurrado aquele olho atrevido que, macacos a mordessem se não tinha acabado de a comparar com um jipe ferrugento.
- Gostava de lhe pedir um favor – continuou ele descontraído.
Mais um? Bolas… perguntava-se Margarida.
- Podemos tratar-nos por tu? "Você" é demasiado formal, e somos praticamente da mesma idade, certo? - questionou ele brincando.
- Por mim... - grunhiu Margarida - como quiser...res - corrigiu automaticamente. - Vamos? – estar fechada num espaço tão pequeno com um homem era enervante, quanto mais depressa chegasse ao seu carro, melhor, pensava.
- Aproveitando que temos alguns minutos, queria dizer-te que se aceitares ajudar-me na minha investigação, temos de reunir com regularidade - merda, pensou ela - porque tenho toneladas de material para tu analisares, vídeos, fotos, relatórios e é mais rápido entenderes o caso se eu te for contextualizando e dando as minhas dicas. - resumiu ele rapidamente.
- Já suspeitava - rematou ela.
- E então? - questionou ele sem tirar os olhos da estrada.
- Então o quê? - bufou Margarida.
- Trabalhamos ou não? - questionou ele com naturalidade.
- Acho que não tenho outra hipótese, a minha chefe pareceu bastante intimidada com o assunto e quem sou eu para a contrariar? Para além de que, umas férias dos livros até me vão fazer bem, estava mesmo a precisar de descontrair e perseguir um psicopata. - ironizou ela.
Nuno esticou a mão e sorriu genuinamente feliz,
- Bem-vinda ao mundo do crime! - e deram um aperto de mão - Agora temos de brindar ao nosso sucesso, conheço um bar aqui perto que tem a melhor cerveja da cidade! - acrescentou ele alegremente.
Cerveja? Pensou ela... De todas as bebidas alcoólicas, era a que menos gostava. Margarida passara parte da infância no trabalho do pai, a extinta Central de Cervejas, e ainda não tinha recuperado totalmente do cheiro da "sala azul", que adorava visitar para olhar o gigante "penico de cobre", onde a fermentação dos cereais empestava o local.

Nuno conduziu até ao local enumerando os benefícios da cerveja, alguns cientificamente corretos, constatava ela, outros apenas parvoíces que não entendia de onde lhe saíam. Era difícil acompanhar aqueles raciocínios masculinos, só podiam ser efeito das suas calças justas, pensava satisfeita, apreciando o trajeto noturno até ao Bar.

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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 2, 5ª parte



- Ora viva! - exclamou ele com uma familiaridade despropositada - então já deixou de fumar? - que raio de pergunta parva era aquela, perguntava-se Margarida, que ainda não se tinha habituado ao estilo apalhaçado das conversas do sr "Tó Nuno".
- Boa noite! Não, ainda fumo, se faz tanta questão em saber. - respondeu ela calmamente - Prazer em revê-lo. Adeus! - e apressou-se a desembaraçar-se dos obstáculos do caminho para fugir dali, bufando.
- Margarida!, deixe-me apresentar-lhe a Sofia, a minha sobrinha. - interrompeu ele colocando-se à sua frente, barrando-lhe o caminho. Ah! Afinal era a sobrinha, pensou Margarida. Foi obrigada a parar e a encarar a adolescente demasiado bonita, que não se esforçou em sorrir. Sofia tinha 15 anos, relembrou Margarida da sua conversa matinal com Nuno, era bela e possessiva da atenção do tio. Agarrou-se ao seu braço forte, marcando o terreno daquela forma tão feminina e infantil.
- Prazer, Margarida, uma conhecida e não interessada no seu tio - e olhou o abraço dos dois com um sorriso, voltando os seus olhos intensos para a miúda, que baixou o olhar, desiludida com a derrota pessoal.

- Uau, temos botas iguais! - recuperou Sofia a animação própria da idade - Que fixe! - e Margarida enrubesceu ao perceber o sorriso irónico na cara de Nuno, motivado pela triste realidade de naquele dia ela se ter vestido como uma adolescente.
- Bem, está a fazer-se tarde, tenho de ir, prazer em revê-lo. Adeus Sofia! - e encaminhou-se para a porta de acesso à rua principal.
- Mora aqui na zona? - perguntou Nuno, prolongando aquele encontro acidental.
- Ham? Não, não moro, vim a pé de casa da minha mãe. - respondeu ela.
- Ah, ok, então dou-lhe boleia até ao seu carro, está tarde e pode ser perigoso para uma mulher sozinha. - informou-a autoritariamente.
- Não há necessidade, obrigada! Sou uma mulher sozinha - e entoou propositadamente o facto de ser só – e de botas de biqueira de aço, o mais provável é que todos mudem de passeio quando virem uma punk a estas horas. - esclareceu ela.
- Deixe-me levá-la até ao carro, preciso mesmo de falar consigo, só tenho de ir deixar a Sofia a casa, que amanhã tem aulas e já devia estar a dormir. O prédio é já aqui ao lado, faça favor. - e abriu a porta do centro comercial indicando o caminho óbvio. Margarida cedeu, saindo obedientemente. Não lhe parecia má ideia fazer o caminho de volta com companhia, assim evitaria as preocupações habituais de se encontrar sozinha no escuro.
Sofia entrou no prédio, amuada, por ter de partilhar a atenção do tio com uma tipa qualquer. Os dois dirigiram-se para o carro de Nuno e Margarida ficou entusiasmada ao perceber que era um jipe Land Rover, branco, daqueles antigos, quadradões e de ferro, bem parecido com a sua personalidade, feios mas eficazes!
Visivelmente mais animada, entrou no veículo e analisou curiosa o todo o terreno. Lutou com a ferrugem do cinto de segurança, que teimava em não prender, enquanto Nuno esperava divertido, com o jipe em ponto morto. Depois do que lhe pareceu tempo suficiente para se vingar dos modos arrogantes da menina, sentiu-se mauzinho e pedindo-lhe licença, encaixou o cinto com aparente facilidade, o que arranhou o orgulho feminino da passageira do lado.

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sábado, 13 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 2, 4ª parte




Enterrou-se o mais que pôde na cadeira e colocou os cabelos à frente da cara para ficar camuflada quando lhe pareceu que ele a detetara e que por segundos cruzara o olhar com o dela. Amaldiçoou a hora em que lhe parecera que ver um filme "estúpido" seria boa ideia, e passou o tempo todo a mirar a nuca do casalinho, tentado perceber o grau de intimidade dos dois. Deveria ser considerada pedofilia aquela relação, remoía ela. Se ele a perturbasse mais do que o aceitável, iria denunciar aquele sacana às autoridades, pensou.
De repente, veio o intervalo e Margarida surpreendeu-se com a rapidez com que passara a primeira parte do filme que ela não tinha sequer percebido do que tratava. As luzes acenderam-se e Nuno levantou-se, tirou o maço de tabaco do bolso do casaco e virou-se para Margarida acenando-o, convidando-a a fumar. Pateticamente ela fingiu não ter visto, e virou a cara, fixando a parede, corada até às orelhas. Ele dirigiu-se à zona exterior de fumadores, divertido com aquela reação.
Margarida passou o restante tempo de filme a estudar uma forma de evitar cruzar-se com o casal à saída, e decidiu que a melhor estratégia era esperar que a sala esvaziasse, dando tempo para o polícia e a sua playmate irem alegremente à sua vidinha, enquanto ela ficava consigo própria, sossegada e livre para se ir embora.

Quando lhe pareceu estar em "segurança", saiu da sala, mantendo todos os sentidos em alerta, não fosse o dueto estar ainda por ali, e caminhou para as escadas rolantes. Descia lentamente naquele corredor automático quando o viu a conversar com a loira, à espera não sabia bem do quê. O homem parecia uma assombração, inspirou fundo e mentalizou-se de que teria de o enfrentar e ignorar a miúda, pois não tinha intenção de dar dois beijinhos a uma loira inquieta e saltitante.

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 2, 3ª parte


Comera demais e precisava de caminhar porque estava enfartada. Deixou o carro estacionado e foi sem destino, perdida nos seus pensamentos, tentando ignorar os transeuntes com quem se cruzava, que lhe deitavam olhares de suspeita. Por mais que Coimbra fosse uma cidade grande, as pessoas ainda se comportavam como aldeões alcoviteiros, que rotulavam automaticamente quem usasse botas «fixes» e vestisse preto. Margarida sabia que já não tinha idade para andar mascarada de punk, mas certamente que em Londres ou Nova Iorque, se saísse à rua de robe e chinelos, não seria tão observada...
Farta de chamar a atenção, teve um súbito desejo de pipocas e comédias, e como se tinha aproximado do Dolce Vita, decidiu ir ao cinema ver um filme parvo qualquer que a dispusesse positivamente para a hora de dormir.
Comprou o menu grande, com pipocas que chegariam para quatro pessoas, e escolheu o lugar mais longe da tela, para observar tudo e todos com a devida distância.
Afundou-se no banco, e enquanto esperava pelo início da sessão, tirou o som ao telemóvel, reparando que tinha um email do "Tó Nuno". Contrariada, abriu a mensagem:

"Boa tarde Margarida!
Gostava muito de me desculpar pela forma como me apresentei hoje de manhã.
Talvez tenha exagerado na atitude, mas se me deixar explicar os meus motivos vai ver que não sou louco!
Temos de combinar uma nova reunião, talvez com comida, mas atrevo-me a sugerir fast food, que não inclui talheres nem pauzinhos. Já vi coisas bem feias com armas improvisadas! :)
Diga-me qualquer coisa entretanto para eu ver a minha disponibilidade à noite.
Bjs Nuno S."


O sangue subiu-lhe à cara, o descaramento do homem era desconcertante. Mas quem é que Ele pensava que Ela era? Alguma bimba necessitada de atenção que iria a correr jantar fora? Já tinha idade suficiente para não se deixar abalar com paixonetas fatelas, e neste caso em particular, os modos descontraídos do tipo e as suas intenções macabras de a envolver com criminosos não a entusiasmavam por aí além. Desligou o telefone e tentou concentrar-se nos anúncios que passavam antes do filme quando se engasgou com uma pipoca ao ver "Tó Nuno" entrar sorridente na sala de cinema com o braço por cima de uma loira demasiado nova para um trintão. O estupor era comprometido e queria jantar batatas fritas com ela com a desculpa de trabalho!

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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 2, 2ª parte


De todos os autores, Eça de Queirós era o seu preferido, talvez por se recordar das gargalhadas de barítono que Dinis soltava ao ler a "Relíquia", uma sátira mordaz aos falsos beatos da sociedade portuguesa do século XIX. Margarida poderia ficar horas sentada no pequeno sofá de pele gasta a admirar aquele homem grande e alegre, inspirando o cheiro da sua cigarrilha aromática que aos catorze anos experimentou fumar às escondidas. Estava sozinha em casa naquela tarde, ganhou coragem e decidiu tentar perceber o prazer daquele vício. Deu duas passas exageradamente longas na cigarrilha e só se recordava de acordar esticada no sofá com os lamentos histéricos da mãe, que lhe colocava água fresca na cara pálida, enquanto o pai gozava aquela cena queirosiana sufocando o riso, afastando-se da mulher que repreendia ferozmente o seu sentido de humor macabro.
Eram uma família feliz, e Margarida e Isabel tinham ficado sozinhas cedo demais.

- Estás doente querida? - perguntou Isabel, preocupada - Não me lembro de alguma vez teres faltado ao trabalho. Queres um chazinho? - Para Isabel tudo se curava com uma xícara de chá quente. Dores, más disposições, tristezas, desgostos e uma tisana mágica era a solução!
- Não, mãe, estou apenas chateada. Hoje tive uma manhã difícil e precisava de desanuviar a cabeça, nada mais. - e Isabel percebeu que não era necessário mais conversa. A filha tinha uma forma muito própria de se resolver internamente, e a ela cabia o papel de a auxiliar nesse processo com comida feita com bastante amor. Levantou-se e deixou a filha sorumbática na sala de estar, dirigindo-se animadamente para a sua sala de poções, pronta a desempenhar o seu papel de enfermeira holística.
Margarida enfardou dois pratos cheios da mistela estranha, mais uma das experiências vegans que a mãe cozinhava como ninguém, e recuperou parte do seu ânimo, rematando com um chazinho estimulante.
Conversaram sobre as novidades do prédio de Isabel, riram com as maluqueiras da vizinha do 3º esquerdo e Margarida lamentou-se uma vez mais das porcarias que tinha de ler na próxima semana. Para ela a maioria dos escritores eram uma perfeita chachada. Isabel fazia de advogada de defesa dos clientes da editora, como habitualmente, e tentava em vão que a filha compreendesse que não havia Eças de Queirós em todas as gerações. A compaixão que Isabel sentia pelos escritores que nas suas carreiras esbarravam com Margarida era cada vez maior, a filha piorava de feitio de ano para ano, pensava preocupada.

Perto das 20h00, despediram-se e Margarida agradeceu o almoço e a companhia, não sem antes prometer que voltaria ainda naquela semana para continuarem as fofocas. Um pequeno esforço para agradar aquela mulher bondosa a quem tentaria não desiludir.

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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante", Capítulo 2, 1ª parte






Capítulo II


Depois da conversa com a Diretora da empresa, Margarida tinha envelhecido alguns anos, e embora fosse livre para não colaborar naquele plano que lhe parecia imbecil, a sua curiosidade macabra iria vencer, e sabia que a aguardavam noites angustiantes de insónias assim que aceitasse trabalhar com o "Tó Nuno"! Apelidara assim secretamente o polícia, depois de ter sido comparada por este com uma miúda de 15 anos. Era o seu lado vingativo a deitar as unhas de fora.
Decidiu tirar o resto do dia para deprimir longe do local do crime, e pela primeira vez em muitos anos, não ficou com remorsos por deixar toneladas de trabalho em cima da secretária. Mas antes de sair ainda precisava de fazer algo muito importante que não poderia esperar pelo dia seguinte, voltou à secretária, agarrou no manuscrito perfumado e lançou-o violentamente para o caixote do lixo, materializando a sua frustração.

Conduziu vagarosamente até ao único local onde lhe apetecia estar naquele momento, a casa da mãe. Desejou que esta adivinhasse a sua iminente chegada e tivesse cozinhado um dos seus pratos favoritos, necessitava de comer urgentemente e não seria uma sandes que a iria consolar.

Isabel ficou espantada com aquela visita surpresa a meio de um dia de trabalho. A aparência da filha deixou-a um pouco chocada, fazendo-a reviver por momentos a ansiedade e impotência perante uma adolescente inconformada e solitária, mas como qualquer mãe galinha, ficou feliz por poder enfardá-la com comida caseira.
Margarida era filha única, e a mãe o seu único familiar vivo. Durante toda a infância tinha suplicado para os pais lhe darem irmãos, mas só na juventude lhe fora explicado que a mãe não poderia ter mais filhos, e ela era um milagre, pois contrariara todas as certezas dos médicos ao nascer. Esta inevitabilidade do destino fez dela uma criança solitária, obrigada a adaptar-se ao comportamento adulto, passando horas sentada em frente ao pai, cada um com o seu livro, perdidos nos seus pensamentos. Quando Dinis inesperadamente morreu, Margarida tinha dezasseis anos, ficando apenas com a mãe e os grandes clássicos espalhados na mesa de centro da sala de estar, que seriam o seu refúgio nos anos seguintes, e um consolo emocional que a manteria ligada à memória do pai. 

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 1, 7ª parte



Passaram-se certamente mais de dois minutos e Nuno já não aguentava mais aquele scan visual quando finalmente ganhou coragem e falou:
- Está em transe, ou é mais grave que isso e eu já devia ter chamado o INEM? Se pensa que só porque sou polícia, tenho a obrigação de saber reanimação, está enganada! Também chumbei nessa cadeira! - gracejou.
- Vou pensar no assunto e assim que me decidir aviso-o. - disse Margarida rispidamente, levantando-se e estendendo a mão, num gesto que dava por terminada a sessão, e convidava Nuno a sair.
Meio aparvalhado, mas sem perder a compostura, o desafiador de um metro e noventa levantou-se e despediu-se, acrescentando de forma educada:
- Espero sinceramente que me responda positivamente e o mais depressa possível. - disse, virando-se calmamente em direção à porta e caminhando com aquela segurança de quem possui uma arma debaixo do casaco e nada teme.
Antes de sair, Nuno hesitou. Voltou-se, e olhando para os pés dela, não resistiu a brincar um pouco com aquela freak mal disposta e difícil, terrivelmente difícil, - As botas são giras! A minha sobrinha de quinze anos comprou agora umas iguais para o inverno, parecem-me bastante robustas e quentes! Boa escolha! Então adeus e até breve! - rematou ele, saindo do escritório.
 Margarida tinha a certeza de que o parvalhão levava um sorriso na cara.

Furiosa, humilhada e com fome, dirigiu-se como um furacão à sala da Direção. Cabeças iam rolar ao final daquela que tinha sido uma das piores manhãs da sua vida profissional.
Bateu à porta, e num acesso de lucidez, respirou fundo para não cuspir fogo diretamente nos cabelos alourados e impregnados de materiais inflamáveis que a Dra. Ana usava. Seria uma crueldade destruir o centro de gravidade do seu Ego... se bem que naquele momento era mais que merecido.
-Entra Margarida! - ouviu a voz de falsete cantarolar, e aquela melodia soou-lhe particularmente irritante.
Deu um safanão na maçaneta da porta e marchou em direção à cadeira das visitas à espera que a chefe desligasse o telefonema e lhe desse a devida atenção, porque tinha várias perguntas que necessitavam de respostas claras e não se contentaria com linguagem gestual, como normalmente acontecia nas breves "reuniões" entre as duas.

A diretora vivia obcecada com o agregado familiar, com quem parecia estar eternamente ao telefone, filhos, marido, irmãos, pais e ainda um avô, dominavam por completo aquela mulher pequena, gorda, com um cabelo demasiado armado para o tamanho da cabeça, mas que nunca duvidara dos instintos profissionais de Margarida. Ana raramente a contrariara, até chegar um polícia gigante e ela ter conversado com ele de pé. Só poderia ser essa a explicação para aquela maldição que tinha surgido na sua vida, a chefe tinha ficado amedrontada com o investigador e com medo que lhe prendessem um dos filhos malucos, decidira ajudar naquela cruzada lunática de caça ao psicopata fantasma... E o mais grave de tudo aquilo, Margarida, que não desligava a luz de noite, era a melhor hipótese de sucesso aos olhos da polícia. Estavam tramados, pensou, engolindo em seco, e ela acabaria aos pedaços dentro de um saco do lixo preto de tamanho industrial. Decidiu que antes de ir para casa compraria o soporífero.

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"Margarida, o Bom e Mau Gigante" - Capítulo 1, 6ª parte



Margarida assumiu novamente o discurso, reagindo da única forma que sabia, o cinismo como mecanismo de defesa,
- E já que estamos aqui os dois a partilhar características pessoais, mas até agora só me disse o que descobriu sobre mim, quer que use os meus super poderes para o descrever, ou tem medo do que pode ouvir? É que hoje estou particularmente generosa, e os meus honorários estão com desconto de 50%, por isso é de aproveitar! – disse friamente.
Tomás chegou-se para a frente, ganhando terreno naquele confronto inesperado, e mostrando que ali era ele o Alfa. Margarida recostou-se instintivamente, o que lhe pareceu agradar ao testerónico invasor da sua paz de espírito.
- Não pense que é fácil para mim vir aqui tentar convencê-la a ajudar-me, nem sei bem como, mas garantiram-me que o conseguirá fazer. Devia começar a ouvir e confiar nas outras pessoas, aprende-se bastante quando não conversamos apenas com as vozinhas da nossa cabeça! - gozou ele, retomando a descontração física de quem dominou qualquer coisa. -  É preciso coragem para pedir favores a estranhos, mas na minha profissão não há lugar para maricas. – e continuou sem dar tempo de resposta - O meu nome é Nuno, obviamente que já tinha desconfiado que não tinha utilizado o nome verdadeiro. Se bem a conheço - e parecia mesmo conhecer, pensou ela - teria feito uma investigação informática com base nessa informação, e eu precisava mesmo de a apanhar desprevenida, para não comprometer o resultado dos nossos trabalhos - e reforçou os "nossos" o que pôs Margarida desconfortável, já que não tinha intenções de ter nada em comum com aquele parvo convencido.
- E agora que me "apanhou" desprevenida, e já percebeu que não tenho paciência nem tempo para rodeios, quer ser homenzinho e explicar quem é de facto e o que pretende fazer comigo? - aquilo tinha soado mal, mas a essência estava lá, e ele não parecia burro, nem corajoso o suficiente para fazer trocadilhos idiotas com as suas palavras, pelo menos não naquele momento, em que estava visivelmente colérica.
Nuno obedeceu,
- Sou inspetor da polícia judiciária e luto com um caso que, tenho que admitir, me transcende, e irá enlouquecer se não solucionar! Para além de que sou pago para prender mauzões, e este em particular, parece não existir - confessou descontraidamente, o que a fez mais uma vez questionar-se sobre as suas capacidades de análise, afinal o parvo poderia não ser parvo de todo. - Mas antes de acrescentar seja o que for às informações específicas deste caso, preciso de saber se posso contar com a sua ajuda. - e recostou-se na cadeira que parecia bem mais pequena que o normal com aqueles noventa e muitos quilos de músculos.

Margarida deixou o silêncio alongar-se mais do que o aceitável, e percebeu que o seu novo amiguinho começava a ficar desconfortável. Não lhe olhava diretamente nos olhos para não se desconcentrar, havia neles qualquer coisa de demasiado profunda e que a incomodava, mas analisava pacientemente todas as suas reações faciais numa tentativa de o deixar enervado. Não poderia nunca dar uma resposta daquelas no momento, primeiro porque estava demasiado chateada com as graçolas feitas às suas custas, e depois porque simplesmente ela não funcionava assim.

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sábado, 6 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante", Capítulo 1, 5ª parte



- É impossível ter lido duas páginas do meu manuscrito, porque simplesmente não há lá nada para ler. Não sou escritor, investigo crimes. A sua chefe é uma pessoa astuta, e quando lhe pedi ajuda para a minha... missão, digamos, ela previu que esta seria a forma mais fácil de conseguir chegar a reunir consigo, já que tem a fama de se recusar a ceder "tempo de antena" a qualquer tipo de conversa que não diga respeito a trabalho. Assim, combinámos que lhe enviaria um "manuscrito" fantasma, que obviamente não iria ler porque despreza, deixe que lhe diga, de forma injusta, os desgraçados dos elitistas com nomes pomposos. - observou com entusiasmo, continuando o seu discurso bem estudado fruto de todos aqueles meses de espera. - E aqui estou eu, finalmente sentado no escritório da melhor editora, segundo os especialistas. - disse enfaticamente - Resumindo, preciso que me ajude a solucionar um caso que me tem tirado o sono, e para isso, pretendo utilizar a sua experiência profissional e os seus famosos dotes de mentalista! - disse sorrindo de forma franca.
- Não percebo. - confessou Margarida - Mentalista?! Mas onde foi buscar essa ideia estapafúrdia? - Será que toda a gente sabia dos seus poderes de análise? Não havia nada de extraordinário naquilo, dizia a si mesma ansiosa, era apenas um conjunto de sensações e ideias que tinha ao olhar para alguém, e certamente que ninguém bom da cabeça levaria esses devaneios a sério! O gajo só podia ser um tarado qualquer, com muito bom aspeto, mas tolinho de todo.
Queria acabar rapidamente com aquela conversa surreal, e levantou-se da cadeira, dirigindo-se energicamente à porta do escritório pronta a terminar aquela loucura em que a sua querida chefe a tinha envolvido, facto que não lhe iria perdoar tão cedo.
- Conheço variados profissionais que poderão ajudá-lo na sua missão - disse ela enfatizando o tom irónico na última palavra - mas não disponho no meu consultório de divã com capacidade para o seu tamanho! – era mesmo grande, o raio do homem, percebeu ao analisar melhor o comprimento das suas pernas - Gostaria muito de o poder ajudar, mas chumbei a "ciências esotéricas" na faculdade! - regozijava por dentro, satisfeita por ter retomado o discurso fácil e letal que tanto a caracterizava.

- Ah, ah! - soltou ele descontroladamente - Esperava alguma resistência da sua parte, é claro, mas não me tinham prevenido para o seu sentido de humor! Maravilhoso! - abriu um sorriso compreensivo e fez-lhe sinal para que retomasse o seu lugar em frente na secretária, gesto que ela obedeceu maquinalmente, resmungando resmungando de forma inaudível. 
- Não venho à procura de bruxas, nem de curandeiras, apenas sei de fontes fidedignas que sabe reconhecer, ou melhor, analisar a fibra das pessoas. A Dra. Ana acha que tem um sexto sentido, e eu acredito nela.  - Margarida surpreendeu-se com aquela expressão que era tão sua, “fibra das pessoas”, mas que aquele tipo tinha definido de forma natural - E essa sua estranha mas, tão preciosa qualidade, pode ser a chave para a resolução de um problema que não consigo decifrar sozinho, por muito competente que eu seja. - rematou com sinceridade, silenciando-se estrategicamente à espera que ela reagisse à sua frontalidade.


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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 1, 4ª parte


- Tomás, um seu criado! - respondeu ele de forma teatral e irritantemente divertida, dando-lhe a impressão de que este sabia o quanto os salamaleques a enervavam.
- Li com muita atenção o seu manuscrito - mentiu Margarida ao se sentar rígida na cadeira - e quero que me explique, resumidamente, o que o levou a escrever, e o que espera atingir com este trabalho - esta merda que nem penses que vou ler, concluiu ela mentalmente.
- Leu? - perguntou ele surpreso, ficando calado à espera de uma resposta.
Ali era ela quem fazia as perguntas, eles respondiam e espalhavam-se ao comprido perante o olhar fixo da megera.
- Está a brincar comigo? - vociferou quase descontrolada - Já lhe disse que li, e agora responda às minhas perguntas que não tenho a existência toda para o entrevistar! - estava gradualmente a perder a paciência e teria de fumar outro cigarro se o homem não colaborasse.
- Desculpe, mas não posso deixar de ficar indignado com a facilidade com que uma profissional do seu gabarito mente - explicou, semicerrando os olhos num tom provocador que a fez corar - mas assim vamos diretos ao assunto que realmente me trouxe cá, e esclarecemos tudo. – concluiu, calmamente.
Abençoou o facto de ter abusado na maquilhagem e de ele parecer não ter notado que se sentia envergonhada com aquela exposição crua da sua mentira, mas a experiência que adquirira naquele tipo de entrevistas era grande, e teria de encontrar uma forma elegante de sair vitoriosa.
- Como deve compreender, - começou Margarida a explicar - na minha profissão aparecem diariamente dezenas de candidatos ao prémio Nobel da literatura, só que, surpreendentemente, a maioria não sabe sequer escrever o nome, quanto mais expor ideias no papel! Confesso que li duas páginas apenas. Para a minha análise, chega!- disse num tom irónico. Ficou pouco convencida dos seus argumentos, e teve a certeza de que não estava nos seus melhores dias quando Tomás a fitou silenciosamente com ar de gozo, de braços cruzados.
- Mais uma vez estou pasmado com a sua capacidade de mentir, mas não posso permitir que se continue a humilhar, já que sou um cavalheiro, e o que me trouxe até si é sério e estamos a desperdiçar tempo precioso nesta conversa, que por muito que me divirta, já devia ter tido lugar há meses, não fosse a sua resistência. - rematou.
Margarida queria saltar por cima da secretária e "esfrangalhar" aquele tipo, e por breves segundos imaginou a cena deliciosa de se ver a esmurrar aquele idiota, e foi com grande esforço que limitou os seus desejos a um:          
- Queira então dar-me o prazer de explicar o que estamos aqui a fazer, e poupe-me aos seus pseudo enigmas, senhor Tomás. A sua entrevista já demorou mais do que devia. - terminou de forma conclusiva e direta.

Ele endireitou-se na cadeira e modificou a postura, sendo possível a Margarida perceber que a brincadeira tinha terminado, e sim, aquele homem não era oco. Havia qualquer coisa naquela cena que não batia certo, Tomás não era nome de macho.

(direitos reservados, afsr)

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 1, 3ª parte



Entrou desenfreada na editora, correndo escada acima até chegar ao seu local privado de tortura de criancinhas mimadas, e por breves instantes pareceu-lhe ouvir alguns gritos abafados dos colegas surpreendidos pela sua figura matinal. Afinal sabia mesmo como provocar escândalo!
Com a barriga a resmungar de fome, e passados quinze minutos da hora marcada, obrigou-se a ir buscar umas bolachas e um café às máquinas de vending do corredor, voltando apressadamente para o seu palco improvisado, e engolindo o pequeno-almoço para ter tempo de retocar o batom antes que o fulano aparecesse. Recostou-se na cadeira, passou ligeiramente pelas brasas, quando olhou o relógio e se deu conta de que o "menino" estava quarenta e cinco minutos atrasado! Era demais para um dia só, ser obrigada a fazer aquela entrevista, e ainda por cima ter de esperar por Sua Excelência...
Saiu para a varanda do seu escritório. Acendeu um cigarro, fechou os olhos como numa oração, saboreando aquele sacro-momento em que todas as células do corpo reconhecem a nicotina como um velho amigo tão esperado, e rezou para não ter um ataque de asma e ter de recorrer à bomba que a acompanhava desde os dezasseis anos.
Esfumaçava sem pressas, resmungando ocasionalmente em surdina os seus lamentos matinais, quando lhe saiu um pouco mais alto que devia - Sacana arrogante!
- Presente! - ouviu uma voz divertida que vinha de dentro do escritório, e a surpresa de não estar sozinha fê-la deixar cair o cigarro que ainda ia a meio, voltando-se rapidamente para encarar, da forma menos humilhante possível, o descarado que certamente não tinha relógios em casa nem nunca tinha sido ensinado a bater à porta.
Questionou-se há quanto tempo estaria a ser observada, o que a fez odiar ainda mais o senhor perito em cunhas, que em vez de se dedicar aos cavalos ou ao golfe, insistia por birra que queria ser escritor.
- Peço desculpa se a assustei, mas a porta estava aberta e não resisti a analisar o terreno antes de ser bombardeado com perguntas... vícios de profissão! - desculpou-se ele com um sorriso demasiado aberto para o seu gosto.
- De facto não é a forma mais correta de se apresentar a quem tem a faca - naquele momento desejava literalmente - e o queijo na mão, mas, feitas as apresentações de forma tão sui géneris, passemos ao trabalho, que já leva quase uma hora de atraso! - acrescentou de forma dura, recompondo-se e tomando as rédeas da situação.

- Margarida, prazer! - estendeu a mão formalmente, recebendo um cumprimento firme e confiante, que a fez pensar que talvez o betinho não tivesse tido coragem de se apresentar pessoalmente, mandando o empregado das cavalariças em representação. Este era de facto um homem grande e robusto, um pouco mais velho do que imaginara, na casa dos trinta, daqueles que o tempo e o trabalho de força enrijecem, com mãos fortes, peito largo, e um pescoço másculo que noutras ocasiões mais descontraídas a fariam perder as estribeiras. Mas estava perante o inimigo, e isso era o bastante para a concentrar!   

(direitos reservados, afsr)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 1, 2ª parte



Mais uma vez o telemóvel acabou por cair da mesa-de-cabeceira de tanto vibrar e tocar. Passavam já vinte minutos da hora certa para acordar, quando Margarida se permitiu abrir os olhos e amaldiçoar a luz matinal que irradiava um novo dia e uma estranha esperança para os pássaros que alegremente cantavam na rua. Arrastou-se para a casa de banho e dormitou mais tempo do que devia no chuveiro, quando se lembrou que naquela manhã tinha marcada uma reunião com um “chato do caraças” que nos últimos meses lhe enviava emails, requisitando a sua atenção para um manuscrito que, tinha de confessar, nem sequer tirara da mala...
Uma das suas mil e uma exigências profissionais era ler em papel, recusava a ideia de se limitar a um ecrã de computador porque adorava rabiscar e fazer anotações técnicas. Como habitualmente, recebera um envelope pesado, e parecera-lhe logo, só pelas folhas imaculadas e o cheiro agoniante a perfume, que o tal Tomás "qualquer coisa" deveria ser um insuportável menino da mamã, rico e sem conteúdo. Daqueles nojentos das camisas tom pastel com quem nunca desejara conviver nos seus tempos de liceu. Agora teria de olhar Aquele, recebê-lo no seu escritório e fingir que estava interessada nos devaneios literários do saloio... A vida às vezes era madrasta, lamentava Margarida, e não fosse o seu brio profissional e as constantes chantagens da sua chefe, ter-se-ia recusado a conhecer o betinho que a queria obrigar a queimar as pestanas com aquele calhamaço a cheirar a frutas! Com Ana Santos, essa sociopata mandona, teria de se entender noutra altura. O seu comportamento autoritário e insano estava a começar a dar-lhe comichões e não fazia tenção de ganhar nenhum eczema à conta dela. Mas, por ora o "pequeno" Tomás ocuparia todos os seus pensamentos e esforços.
Já tinha traçado um plano genial, e mesmo estando tão atrasada naquela manhã, seria cumprido à risca! Inspirou profundamente frente ao espelho da casa de banho, e optou por sair de casa sem comer, dedicando-se apenas ao fabrico meticuloso da sua personagem favorita, a «cabra excêntrica»! Cabelo negro esticado, lentes de contacto, maquilhagem a puxar o gótico, roupa preta e justa, botas de cano alto biqueira de aço vermelhas, que guardara religiosamente dos tempos de liceu, sem esquecer o seu pequeno pecado dos dias stressantes, o maço de tabaco.
Olhou-se uma vez mais ao espelho e lamentou ter tão mau feitio, pois quando queria, conseguia ser mesmo uma brasa! Qualquer homem se ajoelharia a seus pés, se à personagem do espelho lhe colocassem um stick nas mãos!
Saiu de casa divertida com o choque que o palerma levaria quando se deparasse com a melhor editora das redondezas mascarada de adolescente problemática com problemas de álcool, senão pior!

(Direitos Reservados, afsr)


"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 1, 1ª parte



capítulo 1

01:07

O silêncio do quarto nunca lhe parecera tão difícil de suportar. Mais uma vez estava sozinha. Teria de obrigar o seu corpo a adormecer e, mentalmente, repetia «aquelas» frases já gravadas no seu inconsciente...
- Já só vais dormir 6 horas!
- Sim! Trancaste a porta, fechaste as janelas e os ladrões não trepam três andares para te vir roubar o cotão dos bolsos!
- Deixa de ser parva, fecha os olhos e Dorme!!!

Quem a conhecia, e contavam-se pelos dedos de uma mão, sabia que era uma mulher acima do comum. Com grandes defeitos de personalidade e pouca confiança no seu aspeto físico, era extremamente exigente, com os outros, claro! Tinha pouca paciência para o óbvio mas, um coração capaz de aquecer um iceberg se… lhe caíssem em graça. Não havia melhor ser humano a quem confiar uma amizade… o problema era ser-lhe "engraçado".
Desde pequena que naturalmente selecionava quem interessava manter por perto e quem não valia a pena aturar. Era um dom, uma bênção, saber em poucos segundos de que fibra era feita aquela pessoa que insistia em socializar, qualidade que lhe tinha permitido vencer profissionalmente e fazia dela uma editora de sucesso. Sabendo de antemão quem se lhe atravessava no caminho, como poderia comportar-se como todos os outros no dia-a-dia, deixando-se ingenuamente envolver em laços sentimentais que mais tarde ou mais cedo seriam rasgados pela cruel realidade? E a partir de dada altura, aplicava a técnica de olhar por cima do ombro das pessoas que tentavam, em vão, meter conversa consigo, acenando a um estranho qualquer de costas ou distraído, porque para si era uma tortura cultivar amizades fúteis. Simplesmente não tinha de o fazer.
Um dom, uma bênção, uma estranha capacidade de ler corações que a tornara numa mulher de vinte e sete anos, sozinha e com falta de sono.

Margarida tinha chegado a uma idade em que deveria apagar a luz do quarto sem receios, mas o máximo que tinha conseguido atingir até à data, era o controlo mental de se obrigar a desligar o pequeno candeeiro ao lado da cama, ficando com o corredor iluminado para uma eventualidade qualquer... As séries e os livros policiais que tanto adorava não ajudavam, e não raras vezes, imaginava filmes inteiros dentro da sua cabeça, estudando saídas estratégicas, reações dramáticas e corajosas perante um «psicopata perseguidor» que a tinha seguido desde o hipermercado, e que agora, em plena madrugada, subia pelas janelas do prédio e silenciosamente encontrava forma de as abrir... Tudo aquilo para a matar! Para si, era natural que fosse a vítima perfeita! Por que carga de água não seria apetecível para um assassino depravado? Tinha tudo o que nos filmes chamava a atenção a um louco, jovem, solitária, feminina e com a mania da superioridade. Essas cabras convencidas "com a cona na testa", como "gentilmente" a apelidara um sujeito no início da adolescência, eram perfeitas para esquartejar e guardar num armário.
Nesses momentos de pânico desejava ter alguém com quem partilhar a cama, gostaria de aguentar aquelas relações mornas e desgastantes, só para ter um homem qualquer a ressonar ao seu lado... Mas logo divagava nos prós e contras dessa ideia e a folha de cálculo mental em Excel, sem sombra de dúvidas que justificava a sua longa solidão.

Quando finalmente o cansaço físico vencia, adormecia, sendo perturbada com sonhos ainda mais angustiantes e grotescos que os pensamentos que a assolavam enquanto tentava adormecer. Acordava à força depois do despertador do telemóvel insistir em tocar a melodia pela quinta vez, e não percebia como podia sonhar tanto, porque não tinha simplesmente uma bela noite de sono em branco?! Como era secretamente apavorada pela ideia de que se tomasse um soporífero poderia não acordar na manhã seguinte, teimava em disciplinar a cabeça e, noite após noite, adiava essa importante decisão de se render aos comprimidos dos "velhos malucos". Sempre que passava pela farmácia para comprar o seu arsenal para asmáticos, analisava os clientes que estavam à sua frente e tinha chegado à conclusão de que a terceira idade portuguesa dormia, acordava, caminhava, respirava, e resistia à depressão com diversas caixas tamanho familiar. Era percorrida por um calafrio quando se imaginava com setenta e muitos, descaída, quase careca, desdentada, amarelenta e de senha na mão à espera que o "doutor" da farmácia chamasse pelo número cento e qualquer coisa para finalmente adquirir as drogas que a manteriam de pé.

(todos os direitos reservados, afsr)

Desabafar na escrita




Desabafar na escrita é algo libertador, que nos esvazia momentaneamente, trazendo uma paz subtil, junto com um toque de realização pessoal. Longe de cada um de nós pensar que nos iremos tornar num sucesso literário mundial como Dan Brown, ou J.K. Rowling, mas porque não deixar de lado os medos e inseguranças e partilhar com quem estiver interessado, algumas estórias e ideias que nos vão enchendo a cabeça e o coração no nosso dia-a-dia?... Escrever em português é também um grande desafio, que a muito boa gente paralisa e amedronta, e pessoalmente já me causou alguma ansiedade. "Será que é correto dizer-se isto assim? Aquela vírgula tem de sair, Mas afinal como é que se escreve agora isto ou aquilo?"
Mas acima de tudo, escrever é expor a alma, mostrar o que pensamos, consciente ou inconscientemente, e acreditar que alguém perceberá e se identificará connosco. Haverá algo mais íntimo? Penso que não.