Não
entendia porque a chuva tinha de estar presente em todos os funerais a que
tinha assistido. Quando Dinis se foi, ficara horas encharcada a olhar o monte
de terra revolvida que sepultava o seu primeiro grande amor. A água lavara as
lágrimas do seu rosto, mas nunca conseguiu tirar a mágoa profunda do peito.
Nuno fitava a última morada de
Álvaro sem emoção, dividido entre o alívio de ver um louco assassino enterrado,
e a dor de ter descoberto que o chefe era o seu pai verdadeiro, e não Afonso.
Havia algo de muito irónico naquilo tudo. Vivera desde os cinco anos sem pais,
sentindo-se abandonado, quando descobre que afinal não era órfão, tem de o
matar.
- Nuno, vamos? – Margarida
suspeitava que ele se revolvia com pensamentos tristes, e estava na hora de
colocar uma pedra em cima daquilo tudo.
- Sim, vamos. – disse conformado.
Encaminharam-se calmamente para o
carro, que Nuno odiava conduzir. Desde que destruíra o jipe tinham de se deslocar
no carro dela, e os joelhos mal cabiam entre o banco e o volante, provocando
risos em Margarida que suplicava que ele a deixasse conduzir.
- Então? Como te sentes? – perguntou
Margarida preocupada.
- Com vontade de dar um passeio. –
respondeu enigmaticamente.
- Ok, posso guiar eu? – ainda tinha
esperança que ele cedesse uma vez que fosse.
- Podes, desde que não confundas
mais uma vez a primeira com a marcha-atrás! – gozou ele com a pouca aptidão de
Margarida em utilizar a caixa de velocidades.
- Engraçadinho… - esforçava-se por
não rir alto, um cemitério era um local pouco próprio para risadas, pensava
ela.
Margarida acordou com uma forte dor
abdominal que a fez soar o alerta vermelho e despertar imediatamente.
- Acorda!! – berrou, provocando um
salto automático em Nuno que estava ferrado, abraçado a ela.
- É agora? – esperava há meses por
aquele momento, ansioso por ver a carinha dele ou dela… Durante toda a gravidez Margarida não quis saber se era menina ou menino, por um motivo misterioso que ninguém
compreendia.
- Ai meu Deus, é bom que tenhas
tirado muitas fotos minhas para depois mostrares ao bebé! Se isto for mais
doloroso ainda vou pedir aos céus que me levem!! – gritava ela descontrolada,
aterrorizada com o momento do parto.
- Ah ah, medricas! – Nuno adorava
aquele sentido de humor, mas pelo sim pelo não, benzeu-se de costas para ela,
Deus não podia levá-la a sério, aquilo era só medo!
Entraram apressados pelas urgências
da maternidade, e Margarida fizera toda a viagem zangada com ele, enumerando
todas as ocasiões em que lhe tentara explicar que a mãe Natureza também cometia
enganos, ela não era fisicamente apta para parir, tinha a certeza absoluta!
Nuno conduzia sorridente, como se não a ouvisse e dava-lhe beijos ocasionais na
mão que gesticulava nervosa.
- Vou ter contigo à sala de partos!
Amo-te! – Nuno acenou adeus e correu em direção à entrada dos pais, que já
tinham visitado, numa das últimas consultas com a obstetra que teimara em
mostrar a sala da “tortura” (como Margarida definira) como passeio pedagógico.
- É bom que sim! Era só o que
faltava, abandonares-me agora! – berrou ela furiosa, levando as enfermeiras a
um ataque de riso.
- Anda lá! Está quase! – Nuno
induzia Margarida a esforçar-se mais um pouco, agora que já via a cabeça do
bebé a aparecer. Espreitou mais uma vez e aquela imagem ensanguentada
revolveu-lhe o estômago. Precisava vomitar, via tudo branco, e quando deu por
si, estava deitado numa maca num quarto ao lado que se encontrava vazio.
- Porra! Nunca mais me perdoa… -
temeu, recompondo-se e procurando pela sala de partos onde Margarida tinha
ficado sozinha.
- É aqui senhor inspetor! – uma
enfermeira chamava-o sorridente.
- Querida? – disse receoso antes de
entrar, colocando apenas a cabeça dentro da sala.
- Já estás melhorzinho? – rosnou
ela, olhando-o com ironia.
- Desculpa, senti-me mal… -
confessou. – Então? Onde está o bebé? – a ansiedade saía-lhe por todos os
poros.
- Aqui está! – a enfermeira
dirigia-se ao casal com um pequeno embrulho.
Nuno esticou os braços, nervoso,
chegara o momento. Um filho.
- Não! – gritou Margarida – Não lhe
dê a bebé! Ele vai torcer-lhe o pescoço! – soltou, esperara vários meses por
aquela vingança!
- Credo! – a enfermeira estacou, sem
perceber se aquilo era a sério ou se apenas uma brincadeira, de muito mau
gosto.
- É uma menina? – disse ele exultante.
- Sim, mas livra-te de a magoares! –
respondeu Margarida, satisfeita.
A enfermeira olhava-a assustada, sem
saber o que fazer, esperando uma ordem da mãe.
- Ó por favor, dê-me lá a miúda! Não
vê que a mãe está a brincar? – Nuno queria pegar-lhe e cheirá-la.
- Tem a certeza? – perguntou a
enfermeira a Margarida, segurando firmemente a bebé.
- Margarida! Diz-lhe que estavas a
brincar! – Nuno suplicava para que ela acabasse com a sua ansiedade. Até num
momento daqueles a mulher era difícil!
- Tudo bem, senhora enfermeira. – já
tinha prolongado a piada tempo suficiente.
Nuno pegou gentilmente na bebé,
ficando extraordinariamente grande com aquele pequeno embrulho no colo.
- Acho que se devia chamar Manuela.
– disse Margarida.
- Sim, acho que tem cara disso. –
baixou-se, colocando a bebé junto da mãe, e beijou as duas.
FIM
Verão 2014
(direitos reservados, afsr)
(imagem internet)