segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Cap 4 (3ª parte)



Às 20h00 em ponto ele já estava estacionado em frente ao prédio dela. Margarida tinha pensado várias vezes em cancelar o jantar, ainda estava furiosa com aquela insinuação despropositada de que tinha ciúmes! Em vez disso, decidiu atacar o adversário e lançou-se num trabalho cuidado de se aperaltar convenientemente. Ele ia lamentar a hora em que julgou estar em vantagem emocional. Agora ela ia esfregar-lhe a cara no chão e pisá-la com o pé elegante de salto alto! Vestiu as calças que a tornavam mais magra, uma blusa caríssima que só usara duas vezes, com botões pequeninos a terminar um belo decote, ligeiramente transparente e sexy, uma básica de alças por baixo, pois considerava rasco andar de soutien à mostra, sapatos de salto alto para alongar as pernas, cabelo esticado, maquilhagem insinuante e, visto que ele preferia as caixa de óculos, manteve esse pormenor. Olhou-se ao espelho uma última vez para garantir que não se esquecia de nada e ficou agradada com aquela visão. Ali estava uma mulher a sério, das que não precisavam de fingir tropeçar para que um homem olhe para elas!

Assim que saiu do prédio caminhou decidida para o gigante encostado ao jipe, e regozijou ao ver o seu queixo cair ligeiramente, tinha corrido melhor do que ela imaginara.
- Então, passa-se alguma coisa? - questionou ela poderosa.
- Não, claro que não, estás diferente, só isso. - e desencostou-se atrapalhadamente para a deixar entrar no jipe.
Nuno ajudou-a mais uma vez a colocar o cinto ferrugento e ela estava decidida a permitir-se apenas aquela fraqueza feminina.
- Trouxe o pãozinho, como pediste. - e ergueu um pequeno saco cheio de restos de pão duro. - Espero que os teus amiguinhos não se engasguem, é que este tem pelo menos duas semanas!

Nuno soltou uma gargalhada e estremeceu ao sentir-se pequeno diante daquela mulher. A cunhada podia tê-lo prevenido para aquela eventualidade, Margarida era demasiado maravilhosa.


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sábado, 25 de fevereiro de 2017

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Cap 4 (2ª parte)


Nuno fumava um cigarro na varanda, de costas para o seu pesadelo constante, a falar ao telefone com Sofia que fazia uma birra para conseguir que o tio a autorizasse a dormir em casa da melhor amiga. O instinto protetor do tio limitava a adolescente a saídas monitorizadas e agora Sofia, com 15 anos, começava a exigir liberdade, o que o perturbava. Margarida sorria divertida com a conversa vinda do exterior, gozando a falta de experiência de Nuno no que dizia respeito a miúdas com as hormonas aos saltos. A menina que idolatrava o tio jeitoso começava a olhar para outros marmanjos, e ele tinha de aceitar isso, era inevitável. Quando tivesse oportunidade iria dar-lhe umas dicas sobre o assunto, pensou, distraindo a mente dos raciocínios mais sérios que estivera a fazer nas últimas horas. A vida era assim, divagava ela, mesmo perante a tragédia que nos paralisa por momentos, a natureza exige a continuidade, e as meninas ficam doidas com os meninos, e vice-versa, e Nuno tinha de se pôr a pau e abrir os olhos!
- Bem, parece que para algumas mulheres a minha companhia é perfeitamente dispensável - lamentou ele frustrado - a Sofia vai dormir a casa da sua BFF, citando a própria - esclareceu - e eu fiquei com a noite livre! Podíamos ir jantar qualquer coisa junto ao rio, adoro a comida no Itália! - convidou ele animado.
- Mas tu não tens mais amigos? - questionou ela em voz alta, e lembrou-se que tinha de se acautelar para não verbalizar tudo o que lhe vinha à cabeça - Não precisas de te sentir obrigado a fazer-me companhia, eu estou habituada a estar sozinha, e até gosto. - justificou ela.
- Tenho muitos amigos, obrigado. Sou uma pessoa adorável e de quem é fácil se gostar. - escarneceu ele - Mas se preferes ficar sozinha em casa a olhar as paredes do quarto, em vez de comer pizza e dar migalhas de pão aos patinhos do rio, o problema é teu! - gozou ele.
- Ok, vamos lá engordar esses parasitas do Mondego! - e fingiu não perceber a alegria dele, mantendo o seu estilo “enfadada de quem está a fazer um frete”. Saíram do escritório e Margarida trancou a porta guardando a chave na carteira. Dirigiam-se ao exterior do prédio e ao passarem pelos corredores das pequenas secretárias, Margarida começou a perceber que os olhares dos colegas estavam carregados de insinuações sobre ela e o gigante, e pensou que talvez fosse bom assim, pensarem que eram um casal, isso distrairia a multidão da investigação que corria na sala do fundo. Iria conversar com Nuno sobre essa possibilidade.
Ao virar a esquina do corredor, Catarina surgiu distraída e demasiado apressada, embatendo contra a parede de músculos que educadamente se apressou em amparar-lhe a queda, e Margarida ficou com a suspeita de que esta tinha sido uma cena teatral estudada pela nova funcionária. A tipa era esperta! E estava definitivamente na lista das que se voluntariavam para se "colocarem debaixo dele", como lhe tinha sido explicado anteriormente.
- Peço desculpa, magoei-o? - disse ela desgrenhada e com um ar pouco convincente de inocência. Margarida revirou os olhos de nojo e não fez qualquer esforço em disfarçar a sua repugnância pelos modos assanhados da rapariga.
- Não há problema, mas para a próxima tem de ter mais cuidado, se tivesse ido contra a minha colega não lhe garanto que saísse inteira! - e riu satisfeito ao ver a expressão de dúvida e receio que provocou na pequena desmiolada, que se endireitava e compunha os cabelos.
Margarida avançou para a porta furiosa com vontade de lhe mostrar ali mesmo como poderia ser bruta se a provocassem.
Ele seguiu-a apressando o passo para a alcançar.
- Ei, espera aí! Estava só a brincar com ela! – confessou divertido - Tens de ser sempre tão séria? - lamentou frustrado, agarrando-lhe um braço com dificuldade.
- Para a próxima limita-te a apanhar as parvinhas do chão e não me incluas nos teus jogos de sedução. Esclarecido? - aquilo era demais para Margarida, odiava aquelas fulanas dissimuladas que usavam todas as mesmas técnicas patéticas para chamar a atenção de um macho. Bahhh

- Vou-te buscar às 20h00, e não te esqueças do saquinho com os restos de pão. - gracejou ele - Os pobres animais indefesos não têm culpa dos teus ciúmes! - e antes que ela pudesse reagir, enfiou-se no jipe, deixando-a colérica e abandonada no meio da rua.

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Cap 4 (1ª parte)



O interior do café estava apinhado de gente, e os dois escolheram uma mesa na esplanada para almoçarem. O outono já começava a aparecer, mas aquela tarde soalheira convidava ao ar livre. A conversa girava ainda nos conhecimentos musicais de cada um, entre garfadas de salada mediterrânica e goles de cerveja, bebida a que Margarida começava a habituar-se, agora que era uma detetive em estágio, e partilhavam, entusiasmados, da mesma convicção de que na atualidade já não se fazia nada de novo na música.
Pediram café e Margarida acendia um cigarro quando teve a estranha sensação de estarem a ser observados. Já havia reparado que aquele homem de meia-idade continuava indeciso sobre qual o autocarro a apanhar, pois continuava sentado no banco da paragem e não pôde deixar de notar que mantinha um livro aberto sem nunca mudar de página, mas não partilhou a sua suspeita com Nuno. Simplesmente não queria estragar aquele momento denunciando as suas paranóias constantes.

Voltaram ao escritório perto das 16h00, e Nuno voltou a encarnar no polícia, bem como a tensão muscular do seu pescoço e o olhar sem brilho. Margarida começava a odiar aquela sala, o que nunca imaginou que acontecesse um dia. Aquele era o seu santuário, onde esquecia a realidade e mergulhava nas histórias dos outros, umas boas, outras nem por isso.
            Nuno tinha feito um trabalho minucioso nos últimos anos, recolhendo informações detalhadas dos passos de cada uma das vítimas no último mês das suas vidas. Era de facto espantoso como ele conseguira reunir tanta informação de um passado tão longínquo. Os seus familiares tinham falecido há vários anos, e os pais em particular, há 25, assassinados de forma violenta.
            Começaram por improvisar na única parede vazia da sala um esquema das vítimas com a foto, nome, idade à altura da morte, profissão e último local onde foram vistos.
   Margarida começava a ganhar intimidade com aqueles familiares desaparecidos, e conseguia perceber onde Nuno fora buscar os genes abençoados que o transformaram naquele homem alto, robusto e tinha de confessar, atraente.
            Manuela, a mãe deste era uma mulher de 34 anos, extremamente bonita, de cabelos loiros lisos, olhos verdes e uma elegância de fazer inveja para quem já tinha tido 3 filhos. Era médica nos HUC, dermatologista na unidade de queimados, uma profissão que Margarida dispensaria de bom grado. O marido, Afonso, tinha 40 anos e tinha sido inspetor da polícia judiciária desde os 23. Alto, robusto, embora estivesse visivelmente mais acabado que Nuno naquela foto. Tinha um olhar cansado e intenso, como se carregasse com ele um peso mórbido de um segredo. Margarida sentiu por ele uma forte curiosidade que mais tarde procuraria satisfazer. A irmã de Nuno, Sara era a junção perfeita do primeiro casal, alta, loira, atraente, com os olhos envelhecidos do pai e o sorriso bondoso da mãe, tinha 37 anos. Paulo, o marido, fazia lembrar um viking, com cabelo desgrenhado arruivado, barba e cara alegre. Parecia deslocado daquela família amaldiçoada que Margarida observava nas fotos. Algo de estranho pairava por cima de pai, mãe e filha, mas Paulo não parecia notar.
         Eram muitas as sensações e teorias que passavam na cabeça de Margarida, que se sentara no chão de pernas cruzadas a olhar para o quadro amador. 

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Cap 3 (2ª parte)




De volta ao escritório de Margarida, Nuno retirou o seu portátil da mochila Camel coçada mas cheia de estilo e ela não pôde deixar de fazer uma comparação entre ele e o objeto, pareciam-lhe bastante idênticos, não sabia explicar bem porquê. Nuno adotou uma postura diferente, calada e concentrada, como se estivesse a preparar-se para um exame na faculdade.
Margarida observava curiosa aqueles passos metódicos, na expectativa de começar a "ler" a trama policial onde era ela quem escreveria o capítulo final.
- Quero que fiques ciente de que nada do que te disse até agora foi mentira - iniciou ele em forma de introdução - apenas tive que omitir algumas informações que não podia revelar sem estar absolutamente certo de que irias trabalhar comigo. Os crimes ocorreram em 1985 e 2001. São quatro homicídios, mas tenho quase a certeza de que estão relacionados, e isso é o que pretendo descobrir, com a tua ajuda, claro. - Margarida começou a anotar no seu caderno os tópicos do que ia ouvindo e não interrompeu Nuno para não quebrar o seu raciocínio. - Diz respeito à minha família, e por esse motivo, fui automaticamente afastado de toda a investigação, o que significa que o que estamos aqui hoje a iniciar é secreto. O nosso segredo. - Margarida levantou o olhar do caderno e somando dois mais três surgiram-lhe algumas dúvidas.
- Desculpa interromper, mas se isto que estamos a fazer é segredo, todas essas provas e material que aí trazes na mochila são roubados? Como pode a Dra. Ana ter permitido esta nossa parceria, ela paga-me para ler livros, não para investigar crimes, que pelos vistos nem eu nem tu temos autoridade para fazer...
Nuno já esperava ter de dar todas aquelas satisfações a Margarida, e naturalmente que o iria fazer se queria o total empenho dela na investigação clandestina.
- A Dra Ana é minha cunhada e tia da Sofia, é casada com o meu irmão mais velho, Jorge. Os meus pais, Afonso e Manuela e os pais de Sofia, Sara e Paulo, minha irmã e cunhado, foram as vítimas dos crimes… - uma sombra negra passou pelo olhar do polícia, que continuou a explicação - A Ana é que sugeriu o teu nome para me ajudar na investigação. - parecia embaraçado, mas continuou firme a argumentação - Margarida, ela conhece-te muito bem, e como tem testemunhado o meu sofrimento e angústia ao longo destes anos, decidiu falar-me de ti e sugeriu dispensar-te do teu trabalho para te dedicares à minha... obsessão particular... - parou o discurso momentaneamente, e ficou apreensivo com a reação que Margarida teria a todas aquelas revelações - A princípio não queria que mais ninguém se envolvesse neste assunto, mas a Ana começou a falar-me de ti, da tua personalidade, defeitos, qualidades, e conseguiu convencer-me de que serias a pessoa perfeita para completar as minhas características de investigador. - concluiu.
Margarida não sabia bem o que pensar, anotava tudo no caderno, "perfeita para o completar", "minhas qualidades, defeitos, personalidade", "Ana é cunhada de Nuno e tia de Sofia", “sugeriu o meu nome” e no final, pousou o lápis de carvão ao lado dos seus apontamentos, endireitando-o nervosamente antes de falar.
- Se compreendi bem, tu conheces-me ao ponto de achares que vou descobrir o que aconteceu com os teus pais, e os pais de Sofia, certo?
- Sim... penso que é isso. - respondeu ele sem certeza.
Margarida sentiu o estômago contorcer-se, e queria vomitar o pão de cereais e a meia de leite do pequeno almoço. Como poderia ela aceitar uma responsabilidade daquele tamanho, criando esperanças... O sofrimento que aquele assunto provocava no polícia era visível na mudança de brilho dos seus olhos, em toda a tensão que se acumulava nos músculos do pescoço e ombros, e na vibração que ela "sentia" vinda diretamente do seu coração. Aquele homem sentia dor física ao falar sobre os pais e a família, e queria que ela o curasse. Merda, pensou ela engolindo em seco. A chefe só podia querer castiga-la…
- Nuno, o que me estás a pedir não é simples, eu pensava que íamos brincar aos polícias e ladrões - e homem que é homem, mesmo numa situação séria daquelas, arquearia a sobrancelha e sorriria com malícia à expressão pouco feliz de Margarida, Nuno não era exceção - Ó bolas, podes parar com isso? Eu estou a falar a sério. É demasiado difícil para mim aceitar esta responsabilidade, estamos a falar dos teus pais, não de um desconhecido qualquer. - Margarida tentava a todo o custo sair daquela situação, o seu fracasso na resolução daqueles crimes seria letal para o polícia gigante, e esse pensamento desconcertava-a de um modo físico, provocando-lhe calafrios, suores nas mãos e cólicas, muitas cólicas.
Ele remexeu-se na cadeira ansioso e ripostou.
- Não posso aceitar um não como resposta, não agora. Desde que consegui marcar a entrevista contigo que recuperei a esperança de resolver isto tudo e enterrar de vez os meus pais e os meus tios, e de preferência, enterrar também quem os matou. Ontem diverti-me imenso, e não gostei da tua companhia só porque me ias ajudar no caso. - Nuno corou ligeiramente mas recuperou no segundo a seguir - És inteligente, com um sentido de humor espetacular e até agora não tentaste meter-te debaixo de mim, e acredita!, é a primeira vez que isto acontece com uma mulher! – disse com um ar fingidamente ofendido - Perfeita para uma colega de trabalho. - rematou.
Margarida tentou ignorar a insinuação dissimulada de que seria anormal, ou fufa, e decidiu não o esclarecer sobre o assunto, mantendo-se concentrada no tema principal da conversa.

- Hum... queres portanto que seja a tua palhaça pessoal, correto? Faço-te rir, divirto-te e ainda te ajudo a resolver o caso. Se é só isso que pretendes... Acho que vou aceitar. Mas fica ciente de que não há bónus nesta nossa parceria! - Margarida sorriu ao seu novo parceiro, mas interiormente temeu ter tomado a decisão errada. Tinha um daqueles pressentimentos fortes de angústia que lhe invadia o peito e a garganta, e isso raramente era um bom sinal. A cabeça dizia-lhe para o expulsar imediatamente da sala, o coração fazia-a acenar positivamente com a cabeça. Margarida foi traída pelo músculo vermelho e nervoso do seu peito.
Nuno relaxou ou músculos do tronco e da face ficando de novo animado, levantou-se e deu início a uma elaborada classificação de factos, datas e provas por ordem cronológica, que levaria o resto da manhã e princípio da tarde. Margarida engoliu a angústia o melhor que pôde e disponibilizou as suas qualidades de organização ajudando naquela tarefa administrativa. Quando terminaram, passava já bastante da hora do almoço e o ronco na barriga de Margarida fechou os trabalhos. Havia necessidades biológicas prementes e a fome era um dos instintos que ela ainda não dominava completamente. Saíram para comer deixando o escritório devidamente trancado e, ao chegarem à porta da empresa, Nuno ofereceu o braço a Margarida. Ela aceitou e caminharam juntos em direção ao café conversando sobre música, bandas favoritas, ficando assim o crime restrito às paredes da sala do escritório de Margarida. Ela tinha encontrado uma forma de arrancar dos ombros do gigante o peso das mortes dos seus familiares, trancando-os na sua sala e Nuno percebeu, aceitando essa nova regra de bom grado. A partir daí ele viveria mais leve durante algumas horas do dia.

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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Cap 3 (1ª parte)



O telemóvel tocou ruidosamente em cima da almofada do lado direito vazio da cama de Margarida. Estremunhada, alcançou-o com dificuldade e praguejou asneiras cabeludas antes de atender:
- Sim??
- Bom dia dorminhoca! Ainda estás na cama? - e aquela voz que lhe começava a ser familiar fê-la içar o tronco rápido demais, dando-lhe uma dor aguda na cabeça. Maldita cerveja artesanal...
- Claro que não! - mentiu ela - Que disparate, estava mesmo a sair de casa. Estás no meu escritório? - falou da forma mais natural possível, tentando disfarçar a rouquidão da garganta de quem acordara naquele exato momento.
- Sim, já estou a adiantar trabalho, e enquanto não chegas dou uma ajuda à Catarina a levar as tuas tralhas de cima da secretária. - disse.
- Catarina? Mas quem é essa tipa?  E porque é que anda a mexericar nas minhas coisas? - a lucidez mental voltara-lhe rapidamente, bem como a dor de cabeça que se lhe afundara mais internamente com os nervos.
- A funcionária que contrataram para te substituir enquanto estás ocupada comigo! - explicou ele bem disposto. - É bastante simpática, não te preocupes. - mais valia ter calado a matraca, pois agora havia uma Catarina a folhear os seus manuscritos e ainda por cima "era bastante simpática", característica que, vinda da boca de um homem, só poderia significar ser uma top model! Não percebia porque as qualidades físicas da fulana a estavam a enfurecer... mas a verdade é que Margarida sentia-se uma bomba pronta a explodir.
- Substituir? Mas desde quando? Que palermice vem a ser esta? - e desligou o telefonema sem notar que deixara pendurado o polícia, que certamente se encontrava a tentar perceber o que é que tinha dito de tão grave.
Era urgente chegar o mais rápido possível à empresa e pôr os pontos nos is com a sua chefe, que ultimamente andava déspota demais e colocava Margarida em situações humilhantes de ignorância e impotência. A sua paciência esgotava-se e uma Catarina qualquer estava aos risinhos afetados sentada na sua cadeira, partilhando um café com o seu gigante simpático! Não... não podia ter pensado aquilo... com UM gigante que até nem era assim TÃO simpático, corrigiu-se ela de forma autoritária. A questão ali não era ele, mas ela, Catarina, a usurpadora de carreiras.

Tal como havia imaginado, de dentro do seu escritório vinham gargalhadas sonoras, e foi com bastante esforço que Margarida não pontapeou a porta para as silenciar. Estalou os dedos por cima da sua cabeça, como que a repelir o seu mau génio, respirou fundo e entrou decidida.
- Bom dia! Desculpem interromper a fanfarronice, posso entrar? - lançou ela de forma mordaz.
-Ah, ainda bem que já chegaste! - Nuno fingiu não perceber o tom e avançou para ela cumprimentando-a alegremente com dois beijos, envolvendo a sua cintura com o braço, o que a fez estacar na agressão que tinha preparada para liquidar de vez com a intrometida. Aquilo era uma novidade… - Catarina, esta é a Margarida de quem lhe falava, a melhor editora da empresa! - acrescentou ele inteligentemente, colocando um balde de água fria no clima escaldante que subitamente tinha invadido o escritório.
A nova funcionária detetou uma energia cúmplice entre os dois e, desiludida lamentou interiormente ter estado quase uma hora a fazer-se descaradamente ao polícia, sentindo-se envergonhada e ligeiramente chateada por este não ter sugerido em nenhuma altura que era comprometido. Homens!
- Olá, sou a Catarina, fui contratada para a ajudar a manter o seu trabalho em dia. - e estendeu a mão de modo submisso, o que agradou visivelmente a Margarida, que não teve outra hipótese senão retribuir o cumprimento. - Já levei todos os manuscritos mais urgentes para a minha sala e vou deixá-los trabalhar. Até mais logo! - saiu do escritório deixando um cheiro agoniante a coco que iria ficar impregnado no ar durante semanas, lamentou Margarida.
- Simpática a rapariga, hein? - gracejou Nuno divertido, mantendo-se sorridente, mas não de um modo provocador. Umas horas com Margarida já tinham sido o suficiente para compreender em que momentos poderia brincar ou não.
- Sim, talvez, - desprezou ela o comentário. - não tem culpa de ter sido contratada, eu é que podia ter sido avisada primeiro. - confessou frustrada.

- Já tomaste o pequeno almoço? – perguntou Nuno e o clima da sala mudou, como se Catarina não tivesse existido - A mim caía-me bem um café e um cigarro antes de nos debruçarmos em coisas tristes. - referiu-se assim pela primeira vez, num tom sentimental, ao seu caso policial sem aparente resolução, o que a intrigou e deixou com as antenas no ar e dirigiram-se ao café do outro lado da rua para recompor o estômago e descontrair por meia hora antes de iniciar os trabalhos.

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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Peralta, uma Lenda reinventada

(Esta história surgiu-me em 2012, depois de ler sobre a Lenda da Princesa Peralta da Lousã. Uma versão minha dos factos, com muita magia à mistura. Esta história aqui apresentada é o original da história que deu origem a uma versão adaptada e mais resumida e que foi utilizada num bailado.)



No alto de uma torre escondida, no sopé de uma Serra cheia de grandiosos castanheiros, vivia Peralta, a mais misteriosa e bela Princesa alguma vez conhecida. Seu pai, o Emir Arunce, valente e destemido, receava apenas uma coisa na vida, perder a sua pequena jóia árabe, tantas vezes ameaçada nos sucessivos combates em que este poderoso homem lutava. Desde bebé que a pequena Peralta acompanhava seu pai nas conquistas e aventuras, ao colo de aias dedicadas, que por debaixo de véus e colares, escondiam as suas verdadeiras identidades. O Rei Emir, obrigado a fugir do seu reino quente e dourado, foi encaminhado por estas fantásticas ajudantes para um pequeno Castelo escondido num recanto encantado de uma Serra Beirã, de uma beleza simples, mas profunda, o local perfeito para uma menina tão preciosa crescer em segurança.
Os inimigos do Emir eram vários e terríveis, gentes de outras terras, mágicos invejosos, reis e cavaleiros, mas as principais ameaças vinham de uma família de dez irmãs, muito feias e desajeitadas, que cobiçavam o Palácio Real e que, aliadas ao génio Cáifas, tinham expulso a família Arunce do seu Reino, era ainda Peralta um bebé. Ao Rei, não tinha restado outra hipótese senão pegar na sua pequena jóia secreta e fugir para um local seguro, tão seguro, que todos na terra dourada se esqueceram de que um dia tinha existido um Rei valente e bom e a sua pequena filha.
Passados 16 anos, na Serra da Lousã, a vida corria leve e harmoniosa para a comitiva que acompanhara o Rei na sua fuga a Caífas. A Princesa era bela, gentil e doce, como seu pai. Passava os dias a caminhar pelos trilhos da floresta, convivendo com animais curiosos e deliciando seu pai com castanhas doces e framboesas selvagens que colhia durante os passeios. Sentia no entanto vontade de conhecer outros locais, parecia-lhe que o verde da paisagem lhe era estranho e pouco natural. Nos seus sonhos, corria por uma imensidão de quentes dunas, de areia fina e delicada.
Um dia, contou os seus sonhos às confidentes Aias, e estas, assustadas pelas visões tão reais da sua terra natal, correram a avisar o Rei: Peralta era um ser do deserto, sonhava com as suas paisagens. O Emir, destroçado pela hipótese de ver Peralta morrer às mãos de Cáifas e das irmãs feiosas, decidiu casar a filha, trazendo um Príncipe de terras vizinhas, na esperança de ocupar a mente da bela árabe sonhadora.
Caifás, o génio do mal, que ocupara o poder desde a fuga do Emir Arunce, ao saber que Peralta começara a descobrir a verdade e seu pai a tentava distrair com um casamento, decidiu enviar para a terra verde um jovem tão belo, quanto terrível, disfarçado de Príncipe. O seu plano era enganar o Emir e fazer com que Peralta fosse raptada e trazida pelo jovem, para o deserto, onde a esperaria o seu trágico fim, a morte.
Peralta revoltou-se contra as intenções de seu pai. Não queria saber de casamento, o seu sonho era partir à aventura, ver novos locais e encontrar uma terra dourada e quente. Estava decidida, fingiria que concordava com as intenções do pai, e no dia antes do casamento, fugiria pelos trilhos que tão bem conhecia, iria viver o seu sonho dourado.
Ao chegar a véspera do casamento, o belo jovem enviado por Caifás chegou ao Castelo, rodeado de presentes e empregados, numa comitiva impressionante de cores e magia hipnotizante. A Princesa temeu por momentos que o seu coração vacilasse perante aquele Príncipe tão belo. Ele era na realidade um feitiço, uma visão enganadora, feita para conquistar tudo e todos…

Nessa noite, perturbada e confusa, Peralta saiu do Castelo, levando apenas um manto e uma espada, alguma coisa forte a fazia fugir dali, e ela queria saber o quê! Correu durante horas, na escuridão, ajudada pelos animais e pelo seu coração, que sempre a levara para caminhos estranhos, mas acertados. Já tinha caminhado vários quilómetros quando de repente, ouviu um barulho que se tornava cada vez mais forte e familiar. As Aias surgiram no escuro da noite, vindas de lado nenhum, fazendo a Princesa estremecer de excitação, pois estava agora desfeita a suspeita que sempre lhe tinha assombrado os pensamentos: vivia rodeada de fadas verdadeiras!! Mas no meio de toda aquela alegria momentânea, adivinhavam-se acontecimentos trágicos, os semblantes das suas confidentes eram pesados e não conseguiam esconder o medo. Peralta ficou a saber de toda a história secreta que envolvia a sua infância, do local dourado e quente de onde tinha vindo, das viagens perigosas que seu pai tinha ingressado para a proteger de um velho inimigo, Caifás. Ouviu tudo em silêncio, pensativa, com aquela expressão tão própria de quem sabe já o que deve ser feito, e acabado o discurso das Aias pegou na espada e percebeu porque a tinha trazido: estava chegada a hora de acabar com sombras antigas e libertar a sua família das perseguições que a atormentavam.
De regresso ao Castelo da Lousã, Peralta correu como se asas tivesse, o fogo da coragem que sentia era bem conhecido das Aias, pois tinha herdado de seu pai, o Rei Arunce, e nada a iria parar, não fosse uma sensação de estranheza e surpresa ao ver um castanheiro carregado de castanhas, e logo naquela altura do ano, em que aquela espécie ficava totalmente despida de folhagem e de frutos…. Parou de repente, deu várias voltas ao fenómeno e quando se aproximava da árvore para a observar melhor, ouviu claramente a voz de alguém a pedir socorro, como se por detrás do rijo tronco se encontrasse um prisioneiro. Como poderia ser? Estaria louca? Não tinha ainda dormido nada nessa noite, mas estava convicta de que não era um sonho, beliscou-se várias vezes, esfregou os olhos e aproximou-se uma vez mais, agora com o coração a bater bem forte de emoção! A voz era nítida, alguém sabia que ela ali estava e pedia-lhe ajuda. Sem saber o que fazer, Peralta pensava em voz alta, tentava comunicar com a voz, obter respostas, mas não conseguia descobrir uma forma de ajudar quem quer que fosse que ali estava. Sentou-se aos pés da árvore, desanimada com o seu fracasso, já cansada, pois era já quase de dia, ouviam-se os primeiros pássaros e sons da manhã…. Os raios de sol começavam agora a invadir as clareiras da floresta, quando de repente, uma luz incidiu na espada brilhante, ofuscando o olhar da Princesa, que percebeu nesse instante que a Espada que trazia com ela poderia ser a solução para salvar o prisioneiro. Com toda a força que tinha, começou a desferir golpes no tronco, e a cada tentativa, a voz ficava mais nítida e clara, era o som de um homem. Quase exausta, depois de algum tempo a tentar partir o tronco, finalmente se começavam a ver as vestes da pessoa encarcerada, que pareciam tão bonitas como as dela, de tecidos ricos e cores reais. De dentro do tronco saíram braços, pés, pernas, e todo o resto de madeira foi caindo aos poucos de cima de um jovem sorridente e belo! Ainda bastante abalada com aquele salvamento fantástico, a Princesa não tinha reacção para fazer perguntas, ficara a olhar, sem emitir qualquer som, para o “renascido” rapaz. Ele, porém, tinha muito para contar, procurava o Castelo da Lousã há várias semanas, perdera-se na floresta e estava desesperado pois vinha para conhecer a Princesa Peralta com quem se iria casar. Esta ficou em choque, sem revelar a sua identidade, ainda confusa com tudo aquilo, sem saber se aquele homem era ou não de confiança ou algum inimigo prestes a acabar com a sua vida. O Princípe do Norte, era assim que se apresentara, contou ainda que no meio da sua jornada, fora atacado por um ser estranho, de vestes estrangeiras, um homem meio Humano, meio génio, que o prendeu naquele castanheiro, de onde receou nunca mais sair vivo… Cheio de raiva pelo fracasso da sua missão em busca da Princesa e do Castelo, mas bastante agradecido à estranha que o salvara, o Príncipe perguntou a Peralta se podia ajudá-la em alguma coisa, como recompensa pela sua coragem e determinação em tirá-lo da árvore. Peralta sorriu, cheia de esperança e disse que sim, precisava que ele a acompanhasse ao Castelo, onde se encontravam o Rei Arunce, seu pai e uma comitiva de inimigos que tinham vindo no seu alcance, para a matar.
O Príncipe aceitou, confuso, chamou o seu cavalo fiel com um assobio e montaram os dois, atravessando a floresta que acordava naquela manhã de Verão. A meio do caminho, o cavalo parou bruscamente, o jovem voltou-se para Peralta, com um ar incrédulo de quem tinha finalmente percebido o que acontecera… Era ela, a rapariga que o salvara era a Princesa Peralta, filha do Rei Arunce, que vivia no Castelo da Serra da Lousã, destino que o esperava há algum tempo. Olharam-se durante algum tempo, admirando a força do destino que os juntara, e sentindo um Amor crescer dentro dos seus corações. Estavam agora certos de que juntos, unidos naquela força maior, conseguiriam salvar o Rei e vencer o inimigo Caifás e as suas ajudantes maléficas.
Ao avistar o Castelo, o Príncipe ficou maravilhado com aquela paisagem verde e mágica onde Peralta vivera durante dezasseis anos… um local digno da sua beleza exótica e real.
Entraram em silêncio nas muralhas de xisto, receosos do que iriam encontrar lá dentro. Sabiam que aquele génio era muito poderoso, mas não havia outra hipótese, tinham de o enfrentar! Ao entrar no Salão Nobre, de mãos dadas, o Rei almoçava com a comitiva estrangeira de perigosos traidores disfarçados de aliados do Norte. A Princesa contou ao pai quem vinha com ela, o que tinha visto na floresta, quem eram os convidados inesperados e declarou guerra aos visitantes surpreendidos. Caídas as máscaras, já não havia necessidade de continuar a fingir, soltaram-se uivos e sons macabros, imagens medonhas surgiram nos corpos anteriormente presentes. O Rei Arunce reconhecia-os a todos, pegou na sua espada e convocou as forças do Bem, chamando as fadas para a batalha. Estava na hora de terminar com décadas de medos e fugas, a luta inevitável tinha começado e só a vitória poderia ser o desfecho! Surpreendentemente, Peralta desferiu o golpe mortal a Caifás, no momento em que este se preparava para acabar com a vida do Rei Arunce. O génio gritou de dor e todos cessaram de lutar, ficando espantados a admirar o brilho que a espada da princesa emitia, como que uma força mágica a penetrar o peito do carrasco. As dez irmãs que vinham em auxílio de Caifás, ficaram cegas com a luz forte que a arma emitia, ficando desorientadas e deixando-se prender, enquanto gritavam de dor ao sentir os olhos queimar. Estava terminada a batalha. O Bem vencera o Mal, acabava de eliminar a maldição de um Reino dourado nas mãos de uma improvável heroína, Peralta, a doce jovem herdeira desse trono.

Passados alguns dias, o Castelo da Lousã era enfeitado de flores e bandeirinhas coloridas, ouvia-se música e risos, e uma grande festa era preparada dentro das suas muralhas. O Casamento real de Peralta e o Príncipe do Norte tinha início nessa manhã, num dia de muito sol e calor, bem ao gosto da princesa. Foi uma festa lindíssima, com muita alegria e quando já todos os convidados tinham regressado às suas casas, o Rei Arunce decidiu revelar o seu Presente de Casamento: iria oferecer a Peralta o trono da terra dourada. Lá, iria viver com o Príncipe no local dos seus sonhos, reinar com justiça, bondade e coragem, tal como seu pai um dia tinha feito. Partiram no dia seguinte, com toda a comitiva real, deixando para trás um pedaço dos seus corações num Castelo pequenino, situado num local mágico, de uma beleza pura e simples, para sempre relembrado como o Castelo do Rei Arunce e de sua filha Peralta!

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