A bala
entrou e saiu pelo antebraço de Álvaro, que não esperava um desfecho tão decepcionante
naquela noite. Tinha planeado tudo de forma tão perfeita, a sorte parecia
sorrir-lhe quando viu Isabel vinda das compras e a precisar de um vizinho que a
ajudasse. O seu charme funcionara às mil maravilhas, a mãe de Margarida era um
alvo demasiado fácil. Doce, crente e agradecida, ofereceu-lhe um chá e salvou a
sua vida com aquele gesto cristão. Teria sido difícil para Álvaro arrancar-lhe
o telemóvel à força. Para além do facto de ser mãe da intrometida, Isabel não
tinha necessidade de sair magoada, recordava ele.
De
pé em frente ao espelho do quarto de banho do pequeno apartamento que alugara
semanas antes, tratava das feridas que começavam a sarar com facilidade. Era
ainda um homem robusto, mesmo para a sua idade, e as horríveis cicatrizes da
explosão da casa dos seus pais, contrastavam com a sua figura
surpreendentemente atraente. Já se tinham passado vinte e cinco anos, mas nunca
esqueceria o momento em que Deus o abandonara, permitindo que a única família
que tinha explodisse ironicamente à sua frente. Dedicava os seus dias a salvar
pessoas, a tornar o pequeno mundo à sua volta num local melhor, e era assim que
era recompensado, rosnava ele.
Manuela tinha sido a pequena
esperança que por algum tempo lhe devolvera alguma paz, deitado imóvel numa
cama de hospital, cheio de dores, o seu consolo era saber que ela cuidava dele.
Amara-a
desde o primeiro momento em que a vira entrar no escritório de Afonso,
sorridente e bela. Álvaro tinha sido transferido para Coimbra dias antes e
nunca mais foi o mesmo, depois de Manuela. A amizade por Afonso fora, durante
alguns anos, o único impedimento na sua consciência reta para demonstrar o que
sentia por ela. Mas o amigo não comungava dos mesmos valores que ele, e no dia
em que encontrou Manuela desfeita com mais uma das traições do marido, Álvaro
seduziu-a, permitindo-se um pecado mortal, do qual nunca iria recuperar
totalmente.
Naquela
noite de sofrimento em que Álvaro pensou que chegara o seu fim, Manuela
contara-lhe o segredo que a atormentava, devolvendo-lhe a força anímica suficiente
para lutar pela vida, salvando-o.
Depois
disso, Álvaro morreu, e um outro homem ressuscitou. Esse, queria o que era seu
por direito.
Vestiu-se
e sentou-se em frente ao PC, Deus ainda lhe devia uma, e dessa, não abriria
mão.
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