- Vamos sair hoje à noite? -
perguntou João a tentar desanuviar o clima tenso e pesado que se
sentia naquela casa depois dos dois terem feito amor. Nem a conseguia
encarar, como iriam ali ficar os dois sozinhos a jantar e a ver as
horas passar até um deles ter sono?
- Pode ser. - finalmente uma boa
ideia, pensou aliviada. - Também podíamos jantar fora... não há
aqui nada para comer. - explicou, olhando com desprezo o interior do
frigorífico.
- Excelente! Vou-me arranjar, estou
habituado a jantar cedo, por causa dos horários da clínica. - fugiu
do campo de visão dela e encaminhou-se ao quarto, fechando a porta.
Passou as mãos pelo cabelo e sentiu a pequena cicatriz da orelha a
raspar na sua mão, o que o fez sorrir ao recordar o acidente com a
tesoura e a enfermeira. Apanhou o livro do "Sexo Tântrico"
do chão, de onde caiu um pequeno pedaço de papel que voou para
debaixo da cama, obrigando-o a colocar-se de gatas para o apanhar.
Pegou nele curioso e sentou-se na cama, "Marta... professora de
Yoga...e um número de telefone fixo...". Marta, disse a si
mesmo, matutando, novamente aquele nome, sexo tântrico, ganesha,
yoga...aquilo não podia ser coincidência, concluiu excitado. Pegou
no telemóvel para marcar o número do cartão de visita mistério e
reparou com desconfiança que tinha feito uma chamada para o contacto
"ganesha", durante alguns minutos. Talvez o tenha feito sem
querer, pensou a sentir-se culpado e confuso. Só esperava que não
tivesse sido na hora do sexo desconfortável... Só lhe faltava mais
essa. Pôs esse pensamento de lado e marcou o número fixo, ficando
ligeiramente nervoso com aquele compasso de espera a ouvir os toques
do outro lado da linha.
- Estou?... Estou sim?.... Quem fala?
João ficou mudo, sem reação,
conhecia aquela voz, sem sombra de dúvidas. Desligou automaticamente
o telefonema e deixou-se ficar estático sem saber bem o que fazer a
seguir. Que raio de confusão era aquela... perguntava-se ansioso. A
voz que ouvira era a da enfermeira de CasteloBranco, que se chamava
Marta e lhe dissera a dada altura na conversa que também era
professora de yoga. Mas porque fingira na altura que não o conhecia? Se tinha
um livro dela em casa e um cartão pessoal deveria ter tido contacto
com ela anteriormente... matutava. Precisava descobrir a morada
associada àquele número fixo, talvez fosse a casa dela. Iria lá e
tiraria tudo em pratos limpos, decidiu, guardando o livro e o cartão
na gaveta da mesa de cabeceira. Agora era hora de ir sair com a sua
namorada... disse a si mesmo, mais para se encorajar que outra coisa
qualquer. Precisava urgentemente de recuperar a intimidade com ela,
aquela convivência não estava a ser nada fácil. Pareciam não ter
tema de conversa, e para além dos seus atributos físicos, não vira
nada nela que o pudesse cativar. Seria ele um homem fútil antes do
acidente?
Elisabete poisou as compras no tapete
de entrada para procurar a chave de casa e estacou surpreendida ao
ouvir vozes masculinas do outro lado da porta. Não estavam à espera
de visitas, só lhe faltava mais essa, o dia já estava a correr mal
desde que chegara à aula de yoga e Isabel não aparecera. Não lhe
atendera o telefone, e estava genuinamente preocupada com aquele
desaparecimento súbito da professora. Sabia que a vida de Isabel não
tinha sido fácil nos últimos tempos, mas não gostara nada da
sensação de ignorância e espanto que teve de comungar com as
outras colegas. Algo de grave teria de ter acontecido, Elisabete só
queria era já ter conhecimento prévio, para não ser apanhada de
surpresa. Para não interromper o marido continuou à procura da
chave, mas teve de desistir, a neura atrapalhava-a e pressionou a
campainha com força, já a descarregar a fúria no botão, sem dó
nem piedade. A menopausa devia estar eminente, pensou derrotada,
encostando-se à parede, cansada e afogueada. A porta abriu passado
uns momentos e Elisabete estava prestes a soltar em cima de César o
desagrado pelo enorme tempo de espera, doíam-lhe as mãos do peso
dos sacos e estava atrasada para começar a fazer o jantar. Deu-lhe o
beijo da praxe e espreitou por cima do ombro do marido, para ver quem
estava sentado na sala. O segurança enorme levantou-se e sorriu-lhe
amigavelmente, desarmando-a automaticamente, o que deixou César
divertido. Adorava ver a libido da mulher a dominá-la e as suas
lutas internas por reprimir os seus pensamentos mais atrevidos. Ela
pensava que conseguia disfarçar, mas era tão genuíno que não
podia ficar ciumento sequer. Apenas achava graça, e não raras as
vezes Elisabete usava-o para se redimir dos seus ímpetos mais
animalescos, o que no final era positivo para os dois. Sabia que já
não era o homem de antigamente, e a mulher mantinha-se em forma,
saudável, e se a queria acompanhar fisicamente sem ginástica ou
outra atividade, tinha de dar a mão à palmatória. Estava gordo e
barrigudo, flácido e velho, mas amava-a e ela a ele. Disso não
havia dúvidas. Fechou a porta a sorrir e imaginou como seria a sua
noite, doce e sensual, quando ela lhe pedisse aquela massagem nos
pés...
- Boa noite. Peço desculpa vir
incomodar a esta hora... - explicou-se Janota meio envergonhado com
aquela invasão.
- Não incomoda nada. - cumprimentou-o
com dois beijos – Passou-se alguma coisa com a Isabel? Ela hoje não
apareceu na aula...
- Bem, foi precisamente por causa dela
que aqui vim falar com o Dr César. - confessou gravemente – Ela
ficou muito abalada com uma situação hoje de tarde... bem... eu já
contei ao Dr o que foi... - sentia-se ligeiramente encavacado com o
tema ao falar dele com uma senhora tão distinta. Não tinha coragem
de dizer tudo aquilo novamente em frente a Elisabete.
- Sim, querida, senta-te. O Janota
veio conversar comigo porque está muito preocupado com a Isabel... E
com razão. Esta situação está a descontrolar-se, já está a
ganhar contornos sádicos e a miúda não merecia nada disto. -
enumerou, tirando três copos de whisky do armário e enchendo-os
ligeiramente.
- Mau, podem explicar-me o que
aconteceu? - disse frustrada com aquele secretismo todo.
- Resumidamente, o João estabeleceu
contacto com a Isabel através de sms, pelos vistos deram-lhe o
telemóvel lá na clínica e ele deve ter conseguido maneira de o
carregar. Certamente deveria estar a tentar perceber quem era a
pessoa que mantinha contacto com ele pelo telemóvel, antes do
internamento. Isto sou eu a imaginar, claro... - explicava César,
pensativo.
- E...? - resmungou Elisabete
impaciente.
- E... parece que a coisa estava
encaminhada, segundo a Isabel, mas depois, aparentemente ele
telefonou-lhe e quando ela atendeu percebeu que não havia ninguém
do outro lado da linha a falar, apenas ouviu durante uns segundos o
que lhe pareceu ser sexo. - concluiu, dando um gole na bebida.
- Que vaca... - sussurrou –
Desculpem, mas isto está na cara que é coisa da tal Nélia. -
Elisabete detestava cada vez mais aquela vizinha nova. - Não percebo
o que leva aquela rapariga, tão nova, bonita, a prestar-se a um
papel destes... Mas ela não vê que a qualquer momento o João
recupera e vai ser uma bronca de todo o tamanho?
- Eu estou-me a borrifar para os
problemas dessa tipa, - interveio Janota – só não quero a Isabel
exposta a estas cenas. Já chega. Se vissem como ela estava, qualquer
dia faz as malas e pira-se para Castelo Branco.
- Bem, e o que acha que podemos fazer
para a ajudar? - Elisabete sabia que Janota tinha medo que a Isabel
largasse tudo e fugisse para a sua terra natal, ele amava-a, estava
na cara, e era mais um problema para adicionar aos outros tantos da
sua professora de yoga e amiga. - Ó César, não achas que devias
sentar-te com o João e acabar com esta palhaçada toda? - ralhou com
o marido, que no fundo tinha o seu quê de culpa naquela situação.
- Bem... não sei se isso será o
melhor..., não é Dr? - gemeu Janota preocupado.
Elisabete olhou-o duramente, calando-o
automaticamente, e dirigiu o seu olhar recriminador para o marido,
exigindo-lhe uma resposta. - Vocês os homens... Acham certo eles
andarem a sofrer quando podíamos acabar com esta confusão toda
conversando com os dois? César, eu sei que a tua preocupação é a
questão clínica do passado do João, ele pode parecer
restabelecido, mas ainda precisa de tempo para enfrentar problemas,
blá blá blá... - escarneceu – Mas isto está a ficar
descontrolado. Daqui a nada ele engravida esta gaja e acabou-se!
Achas certo? Achas que ele te vai perdoar? - virou-se para o
segurança – E tu Janota, já percebemos que gostas da Isabel, e
muito, mas tens de ter cuidado para não deixares esses sentimentos
toldarem-te o bom senso. - levantou-se, pegou nos sacos das compras e
dirigiu-se à cozinha deixando-os no sofá. – Agora pensem bem no
que querem fazer e depois digam-me, que eu vou fazer sopa.
César teve vontade de beber os outros
copos de whisky ainda intactos, a mulher tinha razão, como sempre.
Tinha de preparar um discurso e uma explicação.
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