terça-feira, 11 de dezembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 24 (1ª parte)





- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...


      Acordou sobressaltado, com a sensação de culpa, como se tivesse cometido um erro. Que raio de sonho... aquele miúdo aparecia-lhe outra vez, mas agora era seu irmão, vira-o quase perfeitamente, e uma família à beira rio a fazer um piquenique, todos alegres, mas demasiado longe para que os conseguisse analisar. Levantou-se e foi tomar banho, pensando naquele pormenor do avô engenheiro agrónomo, seria aquilo uma recordação ou só imaginação? O que teria acontecido à sua família?, ainda era novo, deveria ter pelo menos os pais vivos, ou tios, primos... Aquelas dúvidas assombravam-no, naturalmente, desde que recuperara a consciência e começara a pensar mais claramente. À medida que os remédios do internamento iam sendo mais espaçados e menos fortes, tudo aquilo o perseguia. E mesmo passado bastante tempo desde que tivera alta, ainda não sabia nada sobre si, nem havia resposta em sua casa, álbuns, cartas, postais, nada. Aquele sítio parecia asséptico e alienígena, e isso consumia-o cada vez mais. Precisava de calor, de cores, de um pouco do que o fazia sentir a casa da Ganesha. Acabou o banho e decidiu vestir a roupa mais prática que encontrasse. Ia voltar à jardinagem voluntária, não queria ali ficar nem mais um minuto. Levaria as coisas para fazer o café, pão, fiambre, e algo para almoçar. Tinha visto lá no quintal umas beringelas a passar do ponto, serviriam para assar, só precisava de levar queijo mozzarela e uns orégãos. Tomates maduros também lá havia, e tinha mesmo de os comer, o frio começava a dar cabo de tudo. Depois de muito procurar pelos armários da casa, encontrou um chapéu estranhamente parecido com o do sonho, senão idêntico, com aspecto de ser uma recordação, com bastantes anos e marcas de uso. Colocou-o na cabeça e sentiu-se animado com aquele dia. Reuniu tudo o que precisava para se manter alimentado na quinta e só por prevenção, e porque poderia ficar muito cansado e dar-lhe o sono, colocou a medicação da noite no saco. Voltou atrás e meteu roupa interior e algumas t-shirts também, e se se sujasse? Teria de ter roupa para depois trocar... Mas se ia lá tomar banho teria de levar o seu gel de banho, e escova de dentes... podia ser necessário... Estava quase a sair de casa quando se lembrou de que tinha deixado a "ganesha" no seu antigo quarto, onde agora dormia a namorada sozinha. Entrou pé ante pé, pegou na estatueta e saiu, satisfeito por se ter lembrado daquele objecto. Seria suficiente aquele café?, perguntou-se, imaginando que tinha ali uns bons dias longos de trabalho e precisaria de se manter bem ativo. Pegou em mais dois pacotes ainda fechados, guardou-os e saiu, fechando a porta devagar, suspirando de alívio. Como é que alguma vez podia ter sido feliz ali? Era impossível...


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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (6ª parte)




Subiu os degraus, espreitou pela janela e tentou abrir a porta, que estava obviamente trancada. Uma ideia surgiu-lhe, seria ela daquelas pessoas que tem sempre uma chave de prevenção para o caso de se esquecer da dela? Procurou por cima da moldura de madeira da porta, debaixo do tapete de entrada, e quando levantou o vaso grande com um cacto ali estava ela, a luzir. Rasgou-se-lhe um sorriso pateta, não queria acreditar na sua sorte, abriu a porta e entrou a medo, com uma excitação crescente e irresistível. Havia eletricidade, constatou ao mexer nos interruptores, seria sinal de que voltaria um dia destes?! Caminhou pela casa, admirando tudo com calma e uma certa fascinação. A sala era acolhedora, nem muito vazia nem muito cheia, com uma decoração natural. Uma estante ocupava toda a parede em frente à porta da rua, percorreu-a com os olhos, era tanta literatura diferente, desde os clássicos aos mais esotéricos. Estatuetas daquelas bonecadas hindús decoravam alguns locais fazendo o contraste com as molduras clássicas e antigas de gente com bom ar, e ela. Sempre demasiado enigmática, às vezes até triste. Entrou sem pudores para a zona mais íntima da casa, não teria de se justificar a ninguém por estar a invadir uma casa alheia. Uma sala grande com ar de estúdio de yoga, sem espelhos, e de onde saía uma vibração estranha e incomodativa. Fechou a porta por instinto, não gostava daquilo. Caminhou em busca do quarto dela, aquele santuário feminino onde a sua imaginação iria certamente explodir de tantos estímulos. Não estava enganado, ainda se sentia o cheiro dela ali, uma cama convidativa, macia, pormenores delicados e de bom gosto. Sentou-se nela e imaginou-a ali a dormir, sozinha, o segurança não encaixava naquele ambiente e nem sequer deveria caber na cama, era demasiado alto. A imagem dele ali a violar aquele espaço deu-lhe dor de barriga e estudou o armário para se distrair. Roupas simples, muitas saias, e um vestido preto que se destacava pelo género e textura. Retirou-o e analisou-o, era bonito, de marca, constatou ao ver a etiqueta, devia ser o que usara naquele dia no bar. Ficava-lhe muito bem, relembrou-se, colocando-o no sítio. Tinha voltado para Castelo Branco sem ele, pensou satisfeito, era sinal de que não ia frequentar bares. Aquela sensação de possessividade surpreendia-o, não tinha nenhum desses sentimentos pela namorada. Deu mais uma olhadela geral no quarto e voltou para a sala. Estava cansado e ainda mais dorido, procurou um local para descansar um pouco as pernas e escolheu uma poltrona que se lhe adaptou ao corpo de forma extraordinária, aquilo era uma maravilha, constatou descontraindo. Fechou os olhos relaxado, aquilo sim era vida, onde teria ela comprado aquilo? Uma luz acendeu-se na zona do quarto e João estremeceu, teria voltado? Ouviu um murmúrio de uma música familiar, numa voz de mulher, sim, a Marta tinha voltado, finalmente, pensou suspirando e fechando os olhos. Teria reparado na sua obra do jardim? Esperava que ficasse satisfeita e que o Filipe não lhe fizesse xixi nos crisântemos. Um cheiro a legumes salteados invadiu-lhe as narinas, estava cheio de fome, mas demasiado preguiçoso para se levantar e ajudá-la com o jantar. Estava ansioso para que ela lhe contasse como estava a família lá de Castelo Branco, ainda não os tinha ido conhecer, recriminou-se, se calhar estavam ofendidos com a sua falta de atenção, mas ela não o tinha convidado a ir, fugiu sem dizer nada. Marta aproximou-se dele, trazia o vestido preto debaixo do roupão, iria sair? Pegou numa manta e tapou-o, estava a dormir, constatou. Que pena, queria dizer-lhe que voltasse, mas estava a dormir. Ela saiu e fechou a porta, com demasiado barulho.
João acordou sobressaltado com o frio, tinha adormecido e estava sem a camisola mais grossa, e ao contrário do sonho, ninguém o tinha aconchegado com uma manta. Tinha escurecido, quanto tempo teria dormido? Procurou o telemóvel e viu que era perto da meia noite. Como seria aquilo possível? Dormia sempre tão mal, à base de soporíferos, como se tinha deixado ficar ali tanto tempo? Aquele cadeirão era mágico, só podia. A barriga deu um ronco de fome e João decidiu voltar para sua casa. Trancou a porta e guardou a chave no bolso, não queria mais ninguém ali a entrar sorrateiramente como ele. No dia seguinte voltaria para continuar a jardinagem, tinha adorado mexer na terra, descontraíra-o. Mais uma coisa sobre si que descobria. Certificou-se de que tudo ficava arrumado e despediu-se mentalmente do sítio. Gostava muito de ali estar, agora teria de regressar à sua realidade, à casa fria e solitária que lhe diziam ser a sua. Seria possível a amnésia ter-lhe alterado os gostos? De psiquiatra dandy e mulherengo a homem do campo que gostava de estar na cozinha e a tirar ervas daninhas do quintal... Aquilo era demasiado estranho.


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terça-feira, 27 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (5ª parte)




Conduziu lentamente, percebendo pela primeira vez como seria ter 70 anos e pouca ou nenhuma capacidade de rotação no tronco e pescoço para enfrentar o trânsito de uma cidade. Da próxima vez que um reformado o estivesse a empatar teria mais paciência, decidiu, gemendo com a dor de costas. Era tramada aquela falta de mobilidade, sentia-se um velhote viúvo, a fugir do lar para ir espreitar a antiga casa onde vivera momentos felizes, só que no seu caso tinham sido fugazes minutos de prazer, e não uma vida a dois com milhares de recordações. Encontrou facilmente a rua dela, tão misteriosa como seria de esperar, parou no portão e ergueu-se dificilmente de dentro do carro, resmungando como um idoso rabugento. A dor era uma merda, bufou para si mesmo. Forçou o portão fechado e caminhou arrastando os pés levemente, devagar, aproveitando para apreciar à luz do dia todo o quintal ainda bem arranjado, mas já com sinais de natureza abandonada. Algumas ervas cresciam onde antes ela perdia tempo e energia a cuidar de flores, plantas e vegetais. Pensou que talvez devesse arrancar algumas ervas daninhas, não tinha mesmo nada que fazer. Não conseguiria baixar-se, mas com uma pequena enxada resolveria o problema. Decidiu procurar ferramentas enquanto ia analisando os locais do jardim onde deveria intervir. Talvez houvesse uma garagem na parte de trás da casa, ou arrecadação, onde ela guardasse os materiais de jardinagem. Passou por um tanque, sorriu ao imaginá-la de roupão a lavar roupa, e logo a sua imaginação erótica dominou os seus pensamentos, possuindo-a ali mesmo, em cima de umas roupas ensaboadas, com água a chapinhar por todo o lado e o cãozito dela a saltitar nervoso em volta deles. Deixou o casal apaixonado para trás e continuou a caminhada dolorosa pelo caminho de pedra em volta da habitação. Um grande monte de lenha cortada e  metodicamente arrumada o surpreendeu, aquilo era trabalho de homem, nunca que ela teria capacidade física para aquele serviço, pensou, ciumento. Certamente tinha sido o parvalhão do troglodita, resmungou chateado, continuando sem parar. Uma pequena casota de madeira parecia ser o local ideal para as ferramentas, e tal como imaginava, ali estava ao fundo. Debateu-se com a fechadura, forçou-a e conseguiu retirar uma pequena enxada para começar o seu trabalho. Sim, aquilo era excêntrico, mas não lhe apetecia nada voltar para aquele apartamento cinzento e aturar a Isabel. Um monte de terra desordenado chamou-lhe a atenção e suscitou-lhe a curiosidade. Parecia uma sepultura caseira, daquelas que se faziam aos animais domésticos, aproximou-se e percebeu que ali devia estar o tal cão falecido de que ela lhe tinha falado. Uma tentativa de cruz a marcar o local pendia torta, e João endireitou-a, utilizando a enxada para reorganizar a terra em volta e deixar a sepultura mais digna. Parecia que tinham ali andado animais a esgravatar, até um pouco de osso se denunciava. João tentou tapar os restos mortais, e um tecido colorido surgiu debaixo da terra, comprovando que ali jazia um cão. Era uma coleira, constatou, tirando-a gentilmente. Ajoelhou-se e colocou-a na cruz, tapando e moldando a terra. "Filipe", dizia na coleira, ela tinha dado um nome de pessoa ao cão, pensou curioso. - Bem, Filipe, sempre tiveste mais sorte que eu. Descansa em paz. - levantou-se e começou a sua tarefa auto-imposta de jardineiro voluntário. Não sabia se alguma vez já o tinha feito, mas não deveria ser tão difícil assim, raspar as ervas que não pertenciam à cultura pretendida. Era muito quintal para trabalhar de uma só vez, mas começaria pela frente da casa, a parte mais visível da rua. Parou no tanque e experimentou a torneira, funcionava. Pelo menos se lhe desse a sede não morreria ali. Analisou o jardim e decidiu começar pelas flores, estavam amontoadas com uma certa ordem que lhe conferiam uma beleza que parecia natural e selvagem, mas notava-se que tinham sido plantadas propositadamente. Tirou a camisola mais grossa, mandou-a para o alpendre e lançou-se à velocidade possível por causa das dores nas costelas. Era uma atividade que requeria algum jeito, mas passado uns minutos João já conseguia minimizar o esforço e encontrou formas e técnicas de melhorar os resultados, distraindo-se ao ponto de nem ter percebido há quanto tempo ali estava naquilo. Deu uma olhadela geral ao espaço já limpo e ficou surpreendido com o avanço feito. Ficava de facto muito melhor depois de retiradas as ervas daninhas, pensou orgulhoso de si mesmo. Pôs a mão ao bolso para ver as horas no telemóvel e decidiu que por um dia bastava. A casa estava silenciosa, sem sinais de vida no interior, o que o desiludiu ligeiramente. Para terminar em beleza aquele dia excêntrico só mesmo se ela abrisse a porta e viesse com aquele roupão, sem nada por baixo, obviamente. Como isso não iria acontecer decidiu aventurar-se e tentar espreitar para dentro da casa, só para ter a certeza de que ela tinha abandonado a vida em Coimbra.

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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (4ª parte)




César correu até à urgência da clínica, desesperado por saber o que se passava agora. Ligaram-lhe para o gabinete dizendo que o seu paciente 5 estrelas tornava a entrar nas urgências, mas desta vez com traumatismos vários. Ainda ficava ali estendido um dia, com um enfarte, se o João não parasse de o surpreender, lamentou-se, arfando pesadamente no seu débil passo de corrida. Tinha de se exercitar, decidiu frustrado. Procurou pelo amigo e foi encontrá-lo sentado numa maca, de tronco nu e faixas enroladas a pressionarem as costelas. Mas que raio teria acontecido naquelas poucas horas em que tinha deixado a casa dele?
- Então, o que se passou? Estás bem?
- Andei à porrada. - esclareceu, fazendo um esgar de dor ao tentar levantar-se.
- À porrada?? - exclamou, ajudando-o a erguer-se. - Mas alguém te atacou?
- O Janota foi lá a casa assim que saíste, detesto aquele gajo. - gemeu, aceitando a ajuda do médico para vestir a camisola.
- Aquele segurança enorme? Tu estás mais doido do que eu imaginei. - ralhou paternalmente. - Mas porque é que se chatearam a este ponto? - fez uma careta de preocupação ao ver os hematomas na cara de João a testemunhar a tareia que este tinha levado.
- Ele não gostou do que ouviu. Foi para lá dizer-me que amava a Marta e eu fui o culpado de ela o ter deixado. - bufou, a recomeçar a sentir a raiva a crescer.
- Quando uma pessoa pensa que já viu tudo, os quarentões decidem lutar por uma miúda... - gozou, achando piada à ideia de ver dois homens adultos engalfinhados por causa do amor. Ajudou-o a calçar-se e deu-lhe uma palmadinha leve nas costas, apoiando-o na sua dor.
- César, um homem é um homem. E não é por ele ter 100 kilos de força que pensa que me vou ficar a ouvi-lo falar dela. Ai... - gemeu, apoiando-se no médico enquanto caminhavam para fora do gabinete – Acreditas que a Isabel não me veio trazer? Deixou-me vir sozinho a conduzir até aqui. - lamentou-se.
- Tu és mesmo inocente, ou parvo. Andas à porrada com um homem por causa de outra mulher e queres que a tua namorada te traga ao hospital? Aí estou com ela. - gozou, mesmo não suportando a tipa, era óbvio que tinha razão. Mas também era bem feito para ela, devia ser humilhante saber que o homem com quem vive ama outra pessoa. - Queres que te leve a casa?
- Não. Tenho o carro no estacionamento. Mas obrigado. - Deu-lhe um aperto de mão e respirou fundo caminhando dificilmente até ao carro. Ainda queria passar em casa dela, confirmar que estava mesmo abandonada, matar um pouco as saudades daquele momento que tiveram. Sempre que a recordava, de roupão e chinelos, fechava os olhos e revivia aquele abraço por dentro da roupa, a sensação maravilhosa de sentir o seu corpo junto do seu. Imaginava como seria pele com pele, sedosa, aquele perfume simples do seu cabelo. Era uma tortura doce, que o consolava sempre que se sentia mais desesperado, sozinho naquele quarto de hóspedes para onde tinha fugido.

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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (3ª parte)




- Queria dizer-te meia dúzia de coisas. Já percebi que estás sozinho, ótimo. - avançou com agressividade na sua direção e João afastou-se para o deixar entrar, fechando a porta.
- Então, como vai a Marta? Tudo bem, ou ela já ganhou juízo e já te deixou? - ironizou João que odiava aquele segurança, a ponto de perder o bom senso e provocá-lo.
- A Marta não conheço, mas a Isabel voltou para Castelo Branco. Pensei que soubesses. - sentou-se descontraidamente no sofá, olhando-o com gozo.
João ficou baralhado com aquela resposta, detestava aqueles enigmas parvos que não conseguia entender. - Despacha-te, tenho que sair. Vieste aqui exatamente para quê?
- Quero saber se depois daquele dia em que estiveste de madrugada em casa dela tornaram a falar ou a ver-se.
- Não é da tua conta, mas não. Nunca mais a vi, tentei ligar-lhe, mas o telemóvel está no voice mail e o fixo ninguém atende. De vez em quando ainda tento ligar, confesso. - sentou-se de frente para o homem enorme, com vontade de o esmurrar, mas ligeiramente satisfeito por saber que ela o tinha deixado.
- Sabes João, eu amo-a. - confessou – Acho que nunca gostei tanto de uma mulher.
- Acho que não somos assim tão amigos para me vires confessar essas merdas. - disse com rispidez. Era só o que lhe faltava, ouvir declarações de amor daquele troglodita pela mulher que o perseguia nos sonhos. - Não me interessa nada disso.
- E queres saber quem é que lixou tudo entre mim e ela?
- Não. Estou-me borrifando para ti. - para ela não, acrescentou para si mesmo.
- Pois é, tu, meu merdas. Estava tudo bem, antes de a teres perseguido. - acusou-o, de dedo em riste, já numa posição que qualquer homem entenderia como ameaça.
- O que é que vieste aqui fazer? Bater-me? - perguntou-lhe, enfrentando-o e colocando-se também numa posição agressiva – Levaste uma tampa e agora queres arranjar um bode expiatório. Pois eu acho que ela foi muito inteligente em se pirar. Aquilo não é mulher para ti, amigo. Lamento informar-te... - uma mão alcançou-lhe a cara, esmurrando-o com um pouco mais de força que tinha imaginado, desorientando-o. João recuperou a visão e mediu-o, perdendo a noção do perigo e lançando-se ao segurança, queria matá-lo por ter beijado aquela mulher e sabia lá o que mais tinha feito com ela. Embrulharam-se como dois cães, enraivecidos, rolando pelo chão numa luta passional e crua, como se a vida dos dois dependesse de quem vencesse aquela batalha. João limitava-se a proteger a cara e tentar alcançar alguma zona do corpo de Janota para despejar a sua frustração e ódio. Não sentia nenhum dos murros que o segurança lhe dava, a adrenalina mantinha-o anestesiado e focado na luta, quando a porta de casa abriu e Nélia, que voltara para ir buscar um casaco mais grosso, gritou aflita, chocada com a visão da sala de pantanas e ensanguentada. Os dois homens pararam subitamente e largaram-se ofegantes, com Janota a recuperar mais facilmente, levantando-se meio trémulo do chão, envergonhado com o olhar da namorada de João, que se mantinha no chão a respirar com dificuldade, visivelmente mais ferido.
Janota dirigiu-se à porta e não conseguiu encará-la, saindo rapidamente da casa, tinha dado uma tareia naquele pomposo, mas só lhe souberam bem os primeiros murros, e se soubesse que teriam testemunhas nunca o faria. Não tinha medo de represálias, mas o olhar da mulher incomodara-o, fazendo-o sentir-se culpado. Olhou-se no espelho do elevador e deu graças por estar pouco marcado. O Salvador ia-se passar, se descobrisse.
- Deixa estar, estou bem. - balbuciou João, afastando Isabel de si, não queria ajuda, talvez merecesse aqueles murros, pensou. Uma experiência de que não se recordava, mas certamente que já não seria a primeira vez que andava à porrada. Doíam-lhe as costelas, e o nariz. Colocou-se de joelhos, cuspiu um bocado de sangue para o chão e agarrou-se ao sofá para se levantar.
- Andaram à porrada porquê? - questionou-o, ainda em choque com aquilo tudo – João, responde. Não é melhor irmos ao hospital?
- Não é preciso, estou bem. - Uma dor lancinante nos pulmões obrigou-o a ajoelhar-se novamente. Talvez não estivesse assim tão bem, pensou. - Se calhar é melhor ir às urgências. - deu-lhe um braço para se apoiar e levantou-se o mais devagar que conseguiu, sustendo a respiração. - Acho que tenho alguma costela partida.
- E chamar a polícia? Foste atacado em casa! - exclamou decidida.
- Não, deixa, ele também levou. E não vai voltar... Ai... - gemeu, agarrando na carteira à entrada e nas chaves.
- Mas porque é que ele veio cá? Chatearam-se? O que é que ele queria?
- Tirar satisfações sobre a Marta. - sussurrou com esforço.
- Eu logo vi... - bufou contrariada. - Sempre essa tipa, e tu humilhas-me assim, andando à porrada por causa de outra mulher? - aquilo era demais, pensava, ofendida. - Olha, chama-a para te ir levar ao hospital. - entrou novamente em casa e fechou a porta com força na cara de João, que cambaleava ligeiramente espantado com a sua reação.
- Isabel... - gemeu. Não queria acreditar que o ia deixar sozinho a conduzir até ao hospital. A porta do elevador abriu e uma senhora soltou um grito ao deparar-se com o jovem médico de cara pisada e ensanguentada. - Não se assuste, tive um pequeno acidente em casa, nada de especial. - apressou-se a explicar, enquanto a mulher deslizava para fora da cabine em pânico. - Adeus, bom dia. - disse-lhe, deixando-a fugir. - Ai...

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quinta-feira, 22 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (2ª parte)





Nélia escutou a conversa dos dois homens atrás da porta, como habitualmente, sempre que César aparecia para ver o namorado. Temia que o médico abrisse a bocarra, mas estranhamente não o fazia. Era um mistério para ela o facto do médico continuar a deixar João na ignorância, mas um alívio. A vida a dois era já penosa o suficiente, sem a confrontação com a verdade. A única vantagem que tinha ao estar ali a aturar aquele depressivo era o poder económico que usufruía, mas mesmo isso já a começava a aborrecer. Entusiasmava-se sempre quando percebia que podia comprar fosse o que fosse, mas ainda não tinha saído da loja, já o tédio se instalava, e ao chegar a casa e se deparar com aquele fantasma, mais chateada ficava com a sua vida. Vestiu-se com a roupa de ginástica, como todas as manhãs e rezou para que ele não a quisesse acompanhar. Não o suportava, e isso era cada vez mais notório entre os dois. Felizmente João mudara-se para o quarto de hóspedes, por livre e espontânea vontade, senão, tinha-o feito ela. Era uma situação que começava a pesar-lhe no corpo, parecia que aquele parvo lhe sugava a alegria de viver, sempre de trombas e sorumbático. Calçou as sapatilhas de treino, passou por ele, deu os bons dias e avisou que ia demorar. Só voltava para almoçar, e mesmo isso não sabia se lhe apetecia. Bateu a porta, depois de lhe pedir dinheiro, a derradeira humilhação diária, e uma emoção estranha invadiu-a, trazendo-lhe umas lágrimas de frustração, enquanto premia o botão do elevador. A porta deslizou, e apressou-se a limpar as provas da sua fraqueza, colocando o seu melhor ar, com medo de testemunhas. Um homem enorme saiu do elevador com demasiada pressa e esbarrou nela, e para sua surpresa reconheceu o segurança do bar que frequentava, que a olhou com algum desprezo, como habitualmente acontecia com algumas pessoas. Era invisível, e raramente a olhavam com interesse, a menos que vestisse um decote ou mini saia. Entrou no elevador, sem grande interesse no que faria por ali o homem, carregou no botão do rés do chão e suspirou, quando uma mão estacou a porta de fechar, surpreendendo-a.
- Sente-se bem?
- Como? - perguntou surpreendida.
- Pareceu-me que estava a chorar. Precisa de alguma coisa?
- Ham?... Não, não, é alergia. - apressou-se a explicar, mentindo. Não estava habituada a baixar a guarda, o que a incomodava bastante.
- Ok, desculpe, então. Bom dia. - largou a porta, que começou a fechar, e Nélia carregou no botão de abrir, como reflexo.
- Obrigada, na mesma. - disse, sem jeito, carregando no botão de fechar logo de seguida.
Janota ficou cismado com aquele semblante da tipa que agora vivia com o João. Devia andar triste, as coisas entre os dois não andavam bem. Isso não era favorável, claro, mas tinha ali ido para descarregar a sua frustração pessoal, e tirar satisfações, não ficar preocupado com uma vigarista. Bateu à porta vigorosamente, tentando recuperar o estímulo negativo que o tinha levado até casa do seu rival, esperando sinceramente que ele fosse arrogante e mal educado, apetecia-lhe muito dar-lhe uns safanões e libertar-se daqueles nervos. Isabel tinha-o abandonado fazia já quase duas semanas, precisava tirar a limpo se continuavam a comunicar ou se também se tinha afastado dele. Era uma questão que o consumia. Deu mais dois murros na porta, que abriu de repente e tal como desejara, João olhava-o com desdém.
- Posso saber o que é que queres daqui? - lançou, genuinamente espantado com aquela visita matinal.

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quarta-feira, 21 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (1ª parte)






- Bom dia João, posso entrar?
- Olá bom dia, Dr César, claro, entre. - esforçou-se por sorrir, sentia-se miserável e abatido como nunca tinha sentido, ou pelo menos que se lembrasse.
- Está tudo bem? - questionou-o, desconfiado do semblante carregado. - Estou de saída para ir para a clínica e decidi vir ver-te antes, espero não estar a incomodar assim tão cedo. - Sentou-se familiarmente no sofá, fazendo-lhe sinal para se sentar também.
- Sim, fez bem. Café?
- Se não der muito trabalho, aceito. - sorriu-lhe, mais com vontade de abraçar um filho em sofrimento, que manter aquela conversa de circunstância.
- Não dá trabalho nenhum, acabei agora mesmo de fazer uma chaleira. Descobri que gosto muito de café "brasileiro", daquele que se faz com filtro, sabe? - explicou, enquanto se dirigia à cozinha e preparava duas chávenas e açúcar num tabuleiro. Era estranhamente doméstico, o que não combinava nada com aquela casa tão sofisticada e artificial. Gostava de se distrair na cozinha, ocupava-lhe a cabeça. Tinham passado duas semanas desde que saíra abruptamente de casa da Ganesha e nunca mais tinha conseguido deixar a sua casa, como se estivesse em isolamento. Escondia-se de si mesmo, talvez. Pegou no tabuleiro pronto e foi ocupar o seu lugar junto do psiquiatra que o visitava regularmente e de quem já gostava como figura paterna, a única que até então surgira na sua breve vida.
- Cheira muito bem! A Lisa também adora o café assim de manhã. - disse, apreciando o primor com que João elaborara o tabuleiro, um perfeccionista, quando gostava do que estava a fazer, acrescentou para si mesmo. - Está ótimo! - confessou, depois de provar.
- Estive a ler aqueles livros que me trouxe, sobre psiquiatria, os do curso, e acho fascinante. Mas... não tenho a certeza se é isso que quero fazer na minha vida. Acho que não tenho saúde mental nem para mim, quanto mais para "vender" aos outros. - recostou-se no sofá, levando o café à boca e apreciando o cheiro. - Gosto muito mais de cozinhar. - riu-se.
- Pois, a psiquiatria nunca foi a tua paixão, era o teu trabalho. - confessou, olhando-o hipnoticamente – Gostavas que te pusesse à prova? Gostavas de fazer hoje o psicodrama? Tenho tempo agora de manhã.
- Preferia sinceramente que me dissesse porque me sinto vazio na minha vida. Custa-me aceitar que vivi esta fantochada e gostava disto. - olhou sugestivamente para a zona dos quartos, onde Isabel ainda dormia. - Já concordámos que iria esperar um tempo para que a memória voltasse naturalmente, mas já não tenho mais paciência, César. - poisou a chávena e desviou o olhar do do médico, que parecia entrar-lhe pela cabeça a dentro.
- Como já falámos anteriormente, isto é uma fase, a tua mente encontrou esta forma de sobrevivência, se assim o podemos chamar, fechou-se ao que a estava a colocar em perigo, mas tudo continua aí. Não te preocupes demasiado, só tens de te proteger do que conversámos. - baixou o tom de voz, de forma cúmplice. - Não podes tomar atitudes definitivas nesta tua nova realidade. - olhou para o corredor em frente – Tem calma, aprende a conhecer-te, vai explorando as tuas capacidades e gostos. - apontou para o café – Como vês, tens mais prazer a fazer café que a ser psiquiatra. Isso é muito importante, porque a vida às vezes impõe-nos carreiras que não são o que deveríamos fazer, mas a que acabamos por nos resignar. Eu por exemplo, adoro ser o espertalhão que sabe tudo sobre os outros, gosto de dar conselhos, de me meter nas cabeças alheias, vou trabalhar com gosto todos os dias. Já a fazer café, sou uma nódoa, e nem vamos falar em refeições quentes, nunca tive capacidade. Distraio-me a pensar num paciente qualquer, e lá se vai o estufado. - sorriu, descontraído. - Nesta vida, que é curta e incerta, temos de fazer o que nos dá prazer. Tu tens agora a oportunidade de escolher algo melhor para o teu futuro. Felizmente não tens problemas de dinheiro, o que já é uma sorte. Vai fazer uns cursos, sai de casa. Se continuares aqui fechado não vais sentir-te nem melhor, nem mais realizado, e um homem tem de fazer, criar, suar, senão morre entupido! Dá uma hipótese a ti mesmo, ouve o que o João tem para te dizer, sai, vai caminhar, ver pessoas, comprar ingredientes ao hipermercado e depois convida-me a mim e à Lisa para jantar um dia destes. - levantou-se e estendeu a mão a João, que se levantou e o abraçou comovido.
- Obrigado. Vou fazer isso. - acompanhou-o à porta e deixou-o sair, respirando fundo. Sim, o César tinha nascido para ser psiquiatra, ele não.


terça-feira, 20 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 22 (5ª parte)




- É isto que agora vais ser? Amante deste tipo? - perguntou Janota possuído pelo ciúme de os imaginar intimamente momentos antes de ele chegar.
- Não é da tua conta! - respondeu-lhe furiosa com aquela abordagem.
- Isabel, pensa bem, ele tem uma namorada que vive com ele. Se lhe começas a abrir a porta de casa, antes de esclareceres tudo primeiro, vais ser a "outra"! - argumentou, preocupado com o avanço que João fazia na vida de Isabel.
- Eu sei isso tudo, mas desculpa, são assuntos meus. - apressou-se a explicar. Começava a ficar aborrecida com aquelas opiniões do amigo. Sentia-o demasiado possessivo relativamente a ela e um fantasma de Tiago ameaçava a espreitar, regelando-a.
- Eu sou apenas teu amigo, estou preocupado. Encontrei-o à saída, o que foi que se passou? Ele já aqui estava há muito tempo?
- Janota, eu também tenho uma pergunta para ti. Ou melhor, duas! Porque é que me beijaste no bar? E porque é que estás aqui na minha quinta a espiar quem entra ou sai, às 2h00 da manhã?
- Não estava a espiar. - respondeu ofendido. - E beijei-te para mostrar ao João que não precisas dele.
- Ele nem sabe quem eu sou! - berrou-lhe – Sente-se atraído por mim, pensa que sou a enfermeira que o visitou, nunca o esclareci de nada sobre nós! E quem és tu para achar que te deves meter e mostrar seja o que for ao João? Estou farta! Farta disto tudo, farta de Coimbra, farta desta montanha-russa de emoções e de escândalos! Não gosto de me sentir vigiada, - apontou-lhe o dedo – fugi de Castelo Branco para ser livre! Sabes o que é que eu passei antes de me vir esconder aqui? Deixei de obedecer a um pai, que nunca me bateu, para receber ordens de um namorado e ser espancada por um marido. Consegui libertar-me disso tudo e encontrar-me novamente nesta casa, neste local, mas agora nem aqui me deixam em paz! Eu amo-o, percebes? Ele é o meu homem, disso não tenho dúvidas, e não vou querer mais ninguém! Mete isso na tua cabeça. E desculpa se tinhas esperanças relativamente a nós dois, mas isso nunca vai acontecer. Adoro-te, és um bom amigo, o melhor que já tive, mas estás a piorar tudo. - gemeu, já a sentir-se quase prestes a rebentar em choro. - Estou farta... não quero mais isto. Sai por favor, preciso de descansar. - pediu-lhe, derrotada e exausta com todas aquelas emoções.
- Isabel, por favor, desculpa-me. - tentou abraçá-la, ouvindo um pequeno rosnar vindo da cozinha, a avisá-lo de que não deveria forçá-la a esse gesto. Janota olhou o cão com raiva, voltando-se novamente para ela.
- Sai. Está tarde. Por favor.
Janota saiu e Isabel trancou a porta, aliviada. Pegou no pequeno cão e beijou-lhe a cabeça.
- Obrigada por me defenderes. - sorriu-lhe e levou-o para o quarto. - Amanhã vamos embora daqui, isto está a ficar perigoso e ainda és muito pequeno para andar à luta com um homem tão grande. A mamã adora-te, sabias? - deitou-se e deixou Filipe enfiar-se também dentro dos lençóis junto a ela. - Só hoje, porque mereces.

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quinta-feira, 15 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 22 (4ª parte)




- Isabel, já te pedi desculpa, estávamos só a conversar. - disse pela centésima vez.
- A partir de agora se queres conversar, conversas comigo! - gritou descontrolada batendo a porta com demasiada força e fazendo João encolher-se com medo de que ela lhe espatifasse o motor do vidro do carro.
- Devagar! - ralhou chateado. - E não é preciso a vizinhança toda ouvir a nossa conversa.
- Ai não gostas de escândalos, é? - ironizou, olhando-o provocadora. - Pois talvez comece a fazer umas peixeiradas para vizinhança saber quem tu és!
João deu meia volta e entrou novamente no carro. Mais um bocado e dava-lhe uma galheta. Estava a perder a paciência e não queria ser preso por violência doméstica. Acelerou no carro e deixou-a a esbracejar no meio da rua, colocando o som do rádio bem alto e avançando em direção à liberdade e paz de espírito. Conduziu sem destino, andando sem nexo pela cidade quase vazia, acalmando-se à medida que diminuía a velocidade e aumentava a distância de casa. Parou num semáforo e distraiu-se a explorar o GPS do monitor, ainda não tinha tido tempo para tentar perceber como funcionava aquilo. Procurou o Menu e encontrou Últimos Destinos, carregando curioso. A última morada aparecia-lhe tão clara que não teve qualquer dúvida. Era a morada dela. Carregou em Ir e deixou-se guiar pelas informações do GPS, com as mãos a suar de excitação. Iria só espreitar o local, decidiu, tinha imensa curiosidade por satisfazer. Avançou por ruas que não se recordava de conhecer, uma zona da cidade já afastada, e que parecia demasiado inóspita. Para sua surpresa estava recentemente alcatroada, o que o descansou, aquele carro era pouco prático para caminhos menos recentes. A excitação que crescia dentro de si deixava-o como um miúdo, e não conseguia acreditar na explicação dela de que tinha enviado as fotos por engano. Sentia-se sempre demasiado entusiasmado quando o assunto era Ganesha, ou melhor, Marta. Parou o carro no portão e ficou sem saber o que fazer. Já não eram horas para visitar ninguém, e certamente que ela já estaria a dormir. Uma luz acendeu na casa e João aproveitou a deixa e saiu do carro, trancando-o. Abriu o portão, certificando-se de que não ouvia cão nenhum e encaminhou-se devagar até à porta, respirando cada vez mais dificilmente. Já ali tinha estado, sabia-o, e mesmo sem recordações, sabia que gostava daquele local. Bateu à porta e ficou à espera, respirando profundamente, enquanto aguardava nervoso. Uma fresta abriu e Marta surgiu do outro lado, tão bela e infantil, com um robe e chinelos abonecados e fofos, olhando-o nervosa.
- João?... O que é que fazes aqui?
- Posso entrar? - perguntou, já entrando, sem lhe dar hipótese de responder negativamente.
- Mas.. eu já estava deitada. - gaguejou, a sentir-se amolecer com a energia vinda dele.
- Não me convenceste, eu sei que gostamos um do outro. - agarrou-a, apertando-a, como no poliban, era ela, aquele corpo tão natural, Marta agarrou-lhe nos cabelos possessivamente e beijou-o, cegando-o. Um chiar estridente fê-los soltarem-se abruptamente, e João viu um pequeno cachorro debaixo dos pés deles, aflito. Sorriu-lhe e pegou-lhe, abrançando-a com o braço livre. Continuaram o beijo, mais calmo e Marta tirou-lhe o cachorro da mão, poisando-o na cozinha por trás de uma grade que lhe restringia os movimentos e o condicionava ao espaço. Abriu o robe e deixou-o abraçá-la por dentro do tecido, mais junto ao seu corpo, sentindo-o melhor e mais profundamente. Tinha sonhado tanto com aquele momento... João tirou os sapatos, o casaco e retomou o abraço, beijando-a com mais paixão ainda. Sim, aquele era o seu sítio. Porque aquilo fazia todo o sentido, era o seu sítio, a mulher que desejava nos seus sonhos noturnos e diurnos. Pegou-lhe em peso e libertou-se, amando-a toda naquele beijo, como se precisasse dela para respirar. Marta amolecia vencida nos seus braços, como se também ela esperasse há muito por aquele momento. Só podiam ser amantes, pensou, ligeiramente incomodado. Olhou-a curioso, seria sempre assim tão forte entre os dois? - Porque é que não somos namorados? - perguntou-lhe, abraçando-a com força. Marta não respondeu, ficando em silêncio, pensativa. Algo mudou na energia que os unia e João ficou confuso, olhando-a à espera de uma explicação. - Diz-me, sempre fomos amantes?
Ela libertou-se, fechou o robe e deixou-o sem resposta, o que lhe provocou uma fúria crescente, não entendia porque é que ela se mantinha tão secretista. - Não entendes que estou confuso? Podes explicar-me por favor o que se passa aqui? Quem és tu afinal? - o telemóvel começou a tocar dentro do bolso das suas calças, e João verificou com ansiedade que era Isabel a ligar-lhe. Desligou a chamada e concentrou-se novamente na mulher amargurada e triste que o olhava em silêncio. O telemóvel retomou o som de chamada e João atendeu, nervoso. - Sim? - lançou bruscamente, sempre sem tirar os olhos dela, tão bela e desiludida. Uma dor quente invadiu-lhe o peito, - Já vou. Não se passa nada. - respondeu ao questionário da namorada – Vim dar uma volta, a ver se te acalmavas. - Marta olhava-o sem reagir, virou-lhe as costas e abriu-lhe a porta de casa, convidando-o em silêncio a sair. - Isabel, agora não posso falar. Já conversamos. Até já. - desligou o telefonema e dirigiu-se à porta, fechando-a com estrondo. - Não vou sair assim.
Marta apanhou os seus sapatos e o casaco do chão e devolveu-lhos, abrindo novamente a porta, sempre em silêncio. João fechou-a novamente, sentia-se a perder o norte, desorientado com o que sentia por ela. Como podia gostar tanto de uma pessoa que nem conhecia, ou se recordava...
- Sai. E não voltes. Por favor. - abriu-lhe a porta – Esquece-me.
O telemóvel tornou a tocar no seu bolso, e João saiu, de sapatos na mão, ficando do lado de fora da porta, a olhar para o escuro da noite, a sentir-se miserável e humilhado. Calçou-se quase em andamento, mantendo-se firme na ordem que recebera. Vestiu o casaco, acelerou o passo e pontapeou uma pedra que se lhe atravessou no caminho. Abriu o portão e deu de caras com Janota, dentro do carro estacionado, ao escuro, como se estivesse à espera que ele saísse da casa para entrar. Quis ir partir-lhe a cara, precisava de andar à porrada, pensou, enquanto decidia se entrava no seu próprio carro ou enfrentava o segurança. Ficou uns momentos a medir o homem que saía do carro nas calmas e caminhava na sua direção em desafio. Seria uma luta desigual, lamentou-se, ao comparar os físicos dos dois, mas o que lhe faltava em músculo sobrava-lhe em fúria e ódio. Odiava aquele Janota e o facto de ele ter aquela mulher, que devia ser dele. O segurança parou bem perto de si, e ficaram a olhar-se uns segundos, só a mostrar o quanto se detestavam mutuamente. Janota sorriu provocadoramente, entrou no portão, fechou-o e disse: - Então adeusinho!
João cerrou os punhos com toda a força que tinha, sem se virar para trás, apanhando coragem para desistir e dar-se por vencido. Entrou no carro e acelerou derrapando com o carro ao estilo dos policiais americanos.

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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 22 (3ª parte)




- Olá João, tudo bem? - perguntou a enfermeira estendendo-lhe a mão.
- Olá, como vai? - decidiu naquele instante deixá-la perceber apenas que reconhecia a enfermeira. - Também por aqui?
- Já se conheciam? - perguntou Janota dissimulado. - Não sabia que conhecias o Dr João, querida!
- Sim.... do hospital. - explicou a corar ligeiramente.
João percebeu que ela também não ficava indiferente à sua presença ali, e gostou da sensação de a ter incomodado. Aquele segurança não fazia nada o género dela, tão delicada e com um ar tão fresco. Até o cheiro a sabonete que vinha do cabelo dela o começava a deliciar. Sim, aquela era uma mulher que poderia facilmente ser o seu tipo, concluiu. - Sente-se aqui um pouco, para falarmos, o seu namorado deve ter que voltar para o seu trabalho. - sorriu vitorioso ao segurança que ficou furioso com as manobras educadas com que ele lhe tinha "roubado" a namorada. A enfermeira obedeceu e sentou-se ao seu lado, desconfortável com a altura do banco e a saia tão curta. - Podemos ir para ali, - apontou para o canto dos engates – vamos, se temos de esperar, que seja bem sentados. - conduziu-a até à mesa mais discreta e piscou o olho a Salvador, que sorria bem disposto. Sim, ele sabia que aquilo não estava certo, mas dentro de si estava corretíssimo. Tinha de conseguir perceber que tipo de relações cruzadas ali existiam entre eles todos. - Quer beber alguma coisa? - perguntou-lhe.
- Sim, um chá, por favor. - respondeu quase em surdina.
Deixou-a e apressou-se a fazer o pedido a Salvador. - Faz-me um grande favor, ok? Vai dando vodkas laranja à Isabel, e não lhe digas onde estou.
Voltou rapidamente para o canto discreto e colocou-se de forma a que a namorada não o conseguisse ver. - Marta, não é? - começou, enfrentando-a sem a deixar falar. - Primeiro, desculpa a cena do telemóvel, por favor, não fui eu que telefonei. - confessou corando. - Eu nem sei o que pensar... não entendo nada do que se está a passar aqui. Podes por favor explicar-me quem és, ou melhor, o que é que nós somos um ao outro?
- Desculpa João, devo ter-te dado a impressão errada. Nós não temos nada de íntimo um com o outro, o meu namorado é o Janota, como pudeste ver. - explicou, sorrindo-lhe só com a boca. - Foste meu aluno de yoga, sim, por isso te dei o Ganesha, a estátua do elefante, mas não temos nada um com o outro. - mentiu, colocando açúcar no chá mecanicamente.
- Bem... desculpa, não queria insinuar nada... só me pareceu que... - gaguejou constrangido.
- Não há nada a desculpar. - mentiu novamente – É compreensível que andes baralhado, claro. E a orelha? Ficou boa? - desconversou.
- Sim. - mexeu-lhe instintivamente, sentindo a pequena cicatriz – Desculpa, mas porque é que no hospital não me disseste que eras minha professora de yoga? - voltou à carga – E estas fotos? Que conversas são estas que mantivemos pouco tempo antes de ficar internado? - pegou no telemóvel e percorreu os sms, mostrando-os rapidamente - E o que é que me aconteceu, caramba? Quem é aquela mulher ali? - apontou para a pista – Porque é que estás a chorar? - pegou-lhe nas mãos, nervoso. Nada daquilo fazia sentido. - Por favor, explica-me o que somos um do outro. Se não quiseres mais nada comigo, eu compreendo, mas diz-me o que já tivemos,... quem sou eu? - suplicou-lhe, apertando-lhe mais as mãos.
- João.... - gemeu, tentando soltar-se das suas mãos. O seu orgulho não a deixava escancarar toda a verdade como queria. Aquela mulher ali por perto, com a chave de casa dele na carteira e ar arrogante tirava-lhe a coragem. Não queria tê-lo de volta assim, a ter de pedinchar ou provar quem era. Estava a sentir-se cada vez mais frustrada. - Desculpa, mas estás a confundir tudo. Eu tenho de ir, o Janota está à minha espera, pode não gostar de me ver aqui sozinha contigo. - tentou levantar-se, sempre de mãos dadas, quase a ceder à força que João fazia no sentido contrário.
- Diz-me porque é que me mandaste as fotos das tuas pernas? Achas que eu sou parvo? Eu sei que tínhamos um caso. Porque é que eu traía a minha namorada contigo?
- Achas-me com cara de amante de alguém? - respondeu-lhe enraivecida com aquelas insinuações despropositadas. - Larga-me já as mãos. - ordenou. - Não temos nada um com o outro. Mandei-te as fotos por engano, pensava que estava a mandá-las para o Janota. Pronto, está explicado. - mentiu, quase a explodir de raiva e tristeza.
- Não foi isso que eu quis dizer! Ninguém me diz nada! - gritou de volta, enfurecido consigo mesmo ao perceber a tristeza dela.
- É preciso ter muita lata! - berrou Isabel de pé, olhando-os furiosa, e interrompendo o momento dos dois.
- Ainda bem que chegou, o seu namorado precisa de respostas! - enfrentou-a levantando-se e colocando-se bem perto de Nélia. - Talvez esteja na hora de se sentarem e conversarem sobre quem são, como se conheceram, etc. - escarneceu – Boa noite. Pegou na carteira e saiu disparada. Péssima ideia, péssima ideia, recriminou-se, nunca aqui devia ter vindo. E aquele Janota, atrevido, a beijar-me assim em público sem me ter pedido autorização... Parvalhão... Passou pela porta sem sequer abrandar o passo. - Parvalhão! - berrou-lhe, sem lhe dar hipótese de conversa e dirigindo-se ao carro, recuperando aos poucos o oxigénio à medida que se afastava de tudo aquilo.

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terça-feira, 13 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 22 (2ª parte)




Raios partissem naquilo tudo, pensou João furioso ao perceber que a tal Ganesha devia estar chateada... Não queria ser injusto com a namorada, mas tinha quase a certeza de que ela tinha percebido os seus contactos secretos com outra mulher e tinha feito de propósito ao telefonar no exato momento em que estavam na cama. Não se sentia com autoridade para lhe pedir satisfações, afinal ele tinha culpa também, mas parecia-lhe extremamente ordinária aquela abordagem. Já tinha tentado mandar sms, telefonado, e nada. A sua deusa hindú não lhe respondia nem dava cavaco. Terminava ali o seu breve affair com alguém que lhe parecera mais interessante que a loira sentada ao seu lado no carro. A parva mantinha-se com um sorriso vitorioso e cínico, rosnou para si mesmo em pensamento. Como é que algum dia podia ter convidado uma tipa daquelas a viver consigo...? lamentava-se, procurando estacionamento perto do bar onde ela sugerira ir depois de jantar.
- Vais ver que vais gostar! - disse-lhe animada com o ar frustrado dele.
- Não posso beber nada. - respondeu sem vontade nenhuma de ali estar com ela.
- Pois, eu bebo por ti. - gracejou, rindo-se mais do ar de chateado dele que de outra coisa.
Saíram do carro mantendo sempre distância física, e encaminharam-se para a entrada do bar, onde estava Janota à porta, com cara de poucos amigos ao perceber quem eles eram.
- Boa noite. Tudo bem? - perguntou João estendendo a mão ao segurança. Sabia que eram amigos, fora uma das visitas que recebera no hospital, e estranhou o desprezo dele sem explicação. Talvez fosse uma exigência profissional, pensou, deixando de lado essa preocupação. Entrou depois de Isabel e procurou com o olhar o outro amigo, Salvador, que lhe sorriu de forma bem mais entusiasmada e franca. Várias pessoas o cumprimentaram, certamente velhos conhecidos, pensou, e João cumprimentou-os de volta, sem reconhecer ninguém.
- Olá João! Seja bem-vindo ao mundo dos vivos! - gracejou Salvador genuinamente feliz com aquela visita.
- Olá Salvador. Obrigado. - apertou-lhe a mão com vigor – Deixa-me apresentar-te a minha namorada, a Isabel. - disse, depois de uma leve cotovelada da companhia feminina. - Gosto deste espaço, está bem decorado.
- Sim, por acaso quando comprei isto tu ajudaste-me a arranjar o bar. Estás a ver aquele canto ali? - apontou para uma zona de estar mais íntima, com cadeirões, pufs e mesas baixas – Foste tu que deste a ideia! Querias um espaço mais sossegado para as tuas amigas! - piscou-lhe o olho, divertido, como que insinuando que João era mulherengo. - Mas isso foi antes de assentares, claro. - corrigiu.
- Ah.. pois. - conseguia imaginar-se ali com a Ganesha, a ter uma conversa de pé de orelha que o pusesse louco. Era mais o seu estilo, concluiu. Isabel pegou num vodka laranja e foi dançar, deixando-os sozinhos e João sentou-se ao balcão e pediu um sumo. Aquilo ia ser a maior seca de sempre, mas pelo menos a namorada não parecia precisar dele para se divertir.
-É muito enérgica ela, não? - perguntou Salvador, a perceber claramente que João não tinha nada a ver com aquela companhia.
- É... parece que gosta de dançar... - respondeu, dando um gole no sumo que lhe soube a fel.
Salvador olhou repentinamente para o telemóvel e pareceu bem preocupado com algo que lia, olhando para a porta ansioso.
- Bem João, isto hoje parece que vai animar! - soltou, afastando-se e dirigindo-se a outros clientes sem explicar o que queria dizer com aquilo.
Isabel fazia caras e gestos ao som da música, centralizando todas as atenções masculinas sobre si. Não era uma mulher discreta e sabia utilizar bem os seus atributos físicos para captar atenções. Não, não era o seu género de mulher. Para si a beleza tinha de estar presente, claro, mas aquele tipo de beleza que não precisa de se expor, que não invade o espaço de ninguém, que simplesmente é. Talvez Isabel lhe fosse tão desagradável aos olhos porque no fundo não tinha substrato, pensava. Era fútil e não tinham quase nada em comum que o interessasse. Olhava em volta, a tentar identificar alguém com as características que gostava na mulher, quando uma silhueta se destacou à entrada do bar. Janota colocou-se no seu campo de visão, tapando a mulher e João voltou-se de novo para Salvador, resignado. Pediu outro sumo e tornou a olhar a pista, sorrindo a contragosto a Isabel, que lhe acenava e lançava beijos animada. Um breve instante de luzes mais psicadélicas cegou-o momentaneamente, e quando conseguiu voltar a observar a pista viu Janota a beijar possessivamente a tal mulher bem feita. Ficou a olhá-los, tão apaixonados, e sentiu uma leve inveja daqueles sentimentos fortes que arrebatam as pessoas. O casal voltou-se na sua dança erótica e João viu-a, ali, a balouçar no ombro da mulher, a mala vermelha de Isabel. A boca secou-lhe, poisou o copo com a mão frouxa, e apoiou-se no balcão, sentindo uma dormência na cara que o deixou ligeiramente aflito. Isabel... mas qual Isabel? Perguntava-se desesperado, a namorada? Não... não era dela que se tinha lembrado... O casal soltou-se e João cruzou o olhar lunático com a namorada do segurança. Era a enfermeira, disse a si mesmo quase sem conseguir respirar. Abriu o colarinho do pólo e tentou disfarçar o seu espanto, sorrindo-lhe envergonhado. Janota e a enfermeira aproximaram-se dele, com o segurança mais determinado que a companhia feminina, que parecia contrariada. A mala balouçava batendo-lhe na anca suavemente, João percorreu-a com o olhar, desceu para as suas pernas, maravilhosas, constatou, as da foto da mensagem. Sim, era ela, a Ganesha, tinha a certeza. Mas onde é que entrava a mala de Isabel naquilo tudo?

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segunda-feira, 12 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 22 (1ª parte)





- Vamos sair hoje à noite? - perguntou João a tentar desanuviar o clima tenso e pesado que se sentia naquela casa depois dos dois terem feito amor. Nem a conseguia encarar, como iriam ali ficar os dois sozinhos a jantar e a ver as horas passar até um deles ter sono?
- Pode ser. - finalmente uma boa ideia, pensou aliviada. - Também podíamos jantar fora... não há aqui nada para comer. - explicou, olhando com desprezo o interior do frigorífico.
- Excelente! Vou-me arranjar, estou habituado a jantar cedo, por causa dos horários da clínica. - fugiu do campo de visão dela e encaminhou-se ao quarto, fechando a porta. Passou as mãos pelo cabelo e sentiu a pequena cicatriz da orelha a raspar na sua mão, o que o fez sorrir ao recordar o acidente com a tesoura e a enfermeira. Apanhou o livro do "Sexo Tântrico" do chão, de onde caiu um pequeno pedaço de papel que voou para debaixo da cama, obrigando-o a colocar-se de gatas para o apanhar. Pegou nele curioso e sentou-se na cama, "Marta... professora de Yoga...e um número de telefone fixo...". Marta, disse a si mesmo, matutando, novamente aquele nome, sexo tântrico, ganesha, yoga...aquilo não podia ser coincidência, concluiu excitado. Pegou no telemóvel para marcar o número do cartão de visita mistério e reparou com desconfiança que tinha feito uma chamada para o contacto "ganesha", durante alguns minutos. Talvez o tenha feito sem querer, pensou a sentir-se culpado e confuso. Só esperava que não tivesse sido na hora do sexo desconfortável... Só lhe faltava mais essa. Pôs esse pensamento de lado e marcou o número fixo, ficando ligeiramente nervoso com aquele compasso de espera a ouvir os toques do outro lado da linha.
- Estou?... Estou sim?.... Quem fala?
João ficou mudo, sem reação, conhecia aquela voz, sem sombra de dúvidas. Desligou automaticamente o telefonema e deixou-se ficar estático sem saber bem o que fazer a seguir. Que raio de confusão era aquela... perguntava-se ansioso. A voz que ouvira era a da enfermeira de CasteloBranco, que se chamava Marta e lhe dissera a dada altura na conversa que também era professora de yoga. Mas porque fingira na altura que não o conhecia? Se tinha um livro dela em casa e um cartão pessoal deveria ter tido contacto com ela anteriormente... matutava. Precisava descobrir a morada associada àquele número fixo, talvez fosse a casa dela. Iria lá e tiraria tudo em pratos limpos, decidiu, guardando o livro e o cartão na gaveta da mesa de cabeceira. Agora era hora de ir sair com a sua namorada... disse a si mesmo, mais para se encorajar que outra coisa qualquer. Precisava urgentemente de recuperar a intimidade com ela, aquela convivência não estava a ser nada fácil. Pareciam não ter tema de conversa, e para além dos seus atributos físicos, não vira nada nela que o pudesse cativar. Seria ele um homem fútil antes do acidente?

Elisabete poisou as compras no tapete de entrada para procurar a chave de casa e estacou surpreendida ao ouvir vozes masculinas do outro lado da porta. Não estavam à espera de visitas, só lhe faltava mais essa, o dia já estava a correr mal desde que chegara à aula de yoga e Isabel não aparecera. Não lhe atendera o telefone, e estava genuinamente preocupada com aquele desaparecimento súbito da professora. Sabia que a vida de Isabel não tinha sido fácil nos últimos tempos, mas não gostara nada da sensação de ignorância e espanto que teve de comungar com as outras colegas. Algo de grave teria de ter acontecido, Elisabete só queria era já ter conhecimento prévio, para não ser apanhada de surpresa. Para não interromper o marido continuou à procura da chave, mas teve de desistir, a neura atrapalhava-a e pressionou a campainha com força, já a descarregar a fúria no botão, sem dó nem piedade. A menopausa devia estar eminente, pensou derrotada, encostando-se à parede, cansada e afogueada. A porta abriu passado uns momentos e Elisabete estava prestes a soltar em cima de César o desagrado pelo enorme tempo de espera, doíam-lhe as mãos do peso dos sacos e estava atrasada para começar a fazer o jantar. Deu-lhe o beijo da praxe e espreitou por cima do ombro do marido, para ver quem estava sentado na sala. O segurança enorme levantou-se e sorriu-lhe amigavelmente, desarmando-a automaticamente, o que deixou César divertido. Adorava ver a libido da mulher a dominá-la e as suas lutas internas por reprimir os seus pensamentos mais atrevidos. Ela pensava que conseguia disfarçar, mas era tão genuíno que não podia ficar ciumento sequer. Apenas achava graça, e não raras as vezes Elisabete usava-o para se redimir dos seus ímpetos mais animalescos, o que no final era positivo para os dois. Sabia que já não era o homem de antigamente, e a mulher mantinha-se em forma, saudável, e se a queria acompanhar fisicamente sem ginástica ou outra atividade, tinha de dar a mão à palmatória. Estava gordo e barrigudo, flácido e velho, mas amava-a e ela a ele. Disso não havia dúvidas. Fechou a porta a sorrir e imaginou como seria a sua noite, doce e sensual, quando ela lhe pedisse aquela massagem nos pés...
- Boa noite. Peço desculpa vir incomodar a esta hora... - explicou-se Janota meio envergonhado com aquela invasão.
- Não incomoda nada. - cumprimentou-o com dois beijos – Passou-se alguma coisa com a Isabel? Ela hoje não apareceu na aula...
- Bem, foi precisamente por causa dela que aqui vim falar com o Dr César. - confessou gravemente – Ela ficou muito abalada com uma situação hoje de tarde... bem... eu já contei ao Dr o que foi... - sentia-se ligeiramente encavacado com o tema ao falar dele com uma senhora tão distinta. Não tinha coragem de dizer tudo aquilo novamente em frente a Elisabete.
- Sim, querida, senta-te. O Janota veio conversar comigo porque está muito preocupado com a Isabel... E com razão. Esta situação está a descontrolar-se, já está a ganhar contornos sádicos e a miúda não merecia nada disto. - enumerou, tirando três copos de whisky do armário e enchendo-os ligeiramente.
- Mau, podem explicar-me o que aconteceu? - disse frustrada com aquele secretismo todo.
- Resumidamente, o João estabeleceu contacto com a Isabel através de sms, pelos vistos deram-lhe o telemóvel lá na clínica e ele deve ter conseguido maneira de o carregar. Certamente deveria estar a tentar perceber quem era a pessoa que mantinha contacto com ele pelo telemóvel, antes do internamento. Isto sou eu a imaginar, claro... - explicava César, pensativo.
- E...? - resmungou Elisabete impaciente.
- E... parece que a coisa estava encaminhada, segundo a Isabel, mas depois, aparentemente ele telefonou-lhe e quando ela atendeu percebeu que não havia ninguém do outro lado da linha a falar, apenas ouviu durante uns segundos o que lhe pareceu ser sexo. - concluiu, dando um gole na bebida.
- Que vaca... - sussurrou – Desculpem, mas isto está na cara que é coisa da tal Nélia. - Elisabete detestava cada vez mais aquela vizinha nova. - Não percebo o que leva aquela rapariga, tão nova, bonita, a prestar-se a um papel destes... Mas ela não vê que a qualquer momento o João recupera e vai ser uma bronca de todo o tamanho?
- Eu estou-me a borrifar para os problemas dessa tipa, - interveio Janota – só não quero a Isabel exposta a estas cenas. Já chega. Se vissem como ela estava, qualquer dia faz as malas e pira-se para Castelo Branco.
- Bem, e o que acha que podemos fazer para a ajudar? - Elisabete sabia que Janota tinha medo que a Isabel largasse tudo e fugisse para a sua terra natal, ele amava-a, estava na cara, e era mais um problema para adicionar aos outros tantos da sua professora de yoga e amiga. - Ó César, não achas que devias sentar-te com o João e acabar com esta palhaçada toda? - ralhou com o marido, que no fundo tinha o seu quê de culpa naquela situação.
- Bem... não sei se isso será o melhor..., não é Dr? - gemeu Janota preocupado.
Elisabete olhou-o duramente, calando-o automaticamente, e dirigiu o seu olhar recriminador para o marido, exigindo-lhe uma resposta. - Vocês os homens... Acham certo eles andarem a sofrer quando podíamos acabar com esta confusão toda conversando com os dois? César, eu sei que a tua preocupação é a questão clínica do passado do João, ele pode parecer restabelecido, mas ainda precisa de tempo para enfrentar problemas, blá blá blá... - escarneceu – Mas isto está a ficar descontrolado. Daqui a nada ele engravida esta gaja e acabou-se! Achas certo? Achas que ele te vai perdoar? - virou-se para o segurança – E tu Janota, já percebemos que gostas da Isabel, e muito, mas tens de ter cuidado para não deixares esses sentimentos toldarem-te o bom senso. - levantou-se, pegou nos sacos das compras e dirigiu-se à cozinha deixando-os no sofá. – Agora pensem bem no que querem fazer e depois digam-me, que eu vou fazer sopa.
César teve vontade de beber os outros copos de whisky ainda intactos, a mulher tinha razão, como sempre. Tinha de preparar um discurso e uma explicação.

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quinta-feira, 8 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 21 (5ª parte)




Despiu-se rapidamente e exibiu orgulhoso toda a sua excitação ao espelho, sentindo-se bem animado com a vida, pela primeira vez há muito tempo. Uma leve culpa de estar a trair a namorada tentava entrar na sua cabeça, mas João não se sentia minimamente ligado à mulher que batia portas na cozinha. No fundo, e para sua desculpa interna, ele nem a conhecia. Mas a Ganesha era diferente, trazia-lhe uma sensação de paixão que o fazia querer ser solteiro, livre e desimpedido. Não podia ser coincidência. Se ele tinha uma amante hindú teria de haver um motivo muito forte, e a Isabel tinha de ter defeitos que o levassem a olhar para outra, dizia a si mesmo. Entrou no banho, sempre de olho no telefone, tornou a imaginar aquele corpo junto ao seu, tão sedoso, a escorregar facilmente no seu, a espuma a cair devagar pelas curvas suaves, a beijar-lhe as nádegas... o telemóvel apitou e João tirou o sabão rapidamente, secando-se a seguir atabalhoadamente, só o suficiente para não estragar o telefone. "Se pedes assim, com tanta educação... Já estás em casa?" um arrepio fez-lhe regressar a excitação, será que ela iria propor aparecer-lhe ali...? em sua casa? Teria de encontrar uma forma de se livrar da namorada, disse a si mesmo decidido. "Estou. Estive a tomar banho,... e acho que eras tu que me estavas a esfregar as costas..." riu-se com a sua ousadia. Saiu para o quarto em busca de uma roupa lavada, sempre sem tirar o sorriso do rosto, abriu todas as gavetas que lhe pareciam um local coerente para arrumar boxers, vestiu a roupa interior e continuou a abrir portas e gavetas, sem saber bem o que vestir, confuso com tanto fato e tão pouca coisa prática para andar por casa. Uma gaveta resistia em abrir, e João precisou usar de toda a perícia dos dedos para desentalar o que lhe parecia ser um livro a trancar a abertura, abrindo-a com esforço. Pegou no livro, bastante curioso, achava aquele um sítio bizarro para guardar literatura, junto às camisolas de inverno, ficando meio perplexo a ler a capa "Sexo Tântrico"... abriu-o e algo em si estremeceu ao ler escrito a lápis "Marta 2012". Já era a segunda Marta que lhe surgia na sua recente vida consciente, não poderiam ser a mesma, com toda a certeza, pensava confuso. Um quebra cabeças complicava-se a cada dia que passava, havia uma Isabel, uma Ganesha, uma Marta enfermeira e uma Marta que lhe emprestara aquele livro. Outra mensagem surgia no telemóvel poisado em cima da cama, e João sentou-se com o livro numa das mãos e o telefone noutra, cada vez mais intrigado com aqueles factos novos. "Quando saíres do banho vai até à estante embutida do lado esquerdo. Na prateleira mais alta, ao fundo, encontras-me." Deu um salto automático, como se fosse aquela uma ordem inquestionável, percorreu a prateleira com a mão e algo duro e frio lhe surgiu bem ao fundo, como se ali tivesse sido colocado propositadamente escondido do campo de visão. Pegou-lhe e deixou-se ficar uns segundos a olhar a pequena estátua de um elefante cheio de braços, uma mistura de fofice com excentricidade, uma imagem que já tinha visto quando fez a pesquisa da palavra "ganesha" na internet. Teria sido ela a colocar ali a estátua? A ideia de que já ali tinha andado no seu quarto aquela mulher misteriosa era tão excitante que tornou a fechar-se na casa de banho para continuar a conversa. Pensou no que lhe haveria de dizer... tinha tantas perguntas que seria difícil escolher uma. "Já aqui estás na minha mão... O que queres de mim?" Engoliu em seco e poisou a imagem no lavatório, desfolhando o livro que lhe parecia um ótimo prenúncio para toda aquela realidade hindú que surgia na sua vida. Posições e teorias sobre como prolongar orgasmos, durante horas!, constatou maravilhado, parecia o sonho de qualquer um, se com a mulher das pernas bonitas, claro. Já tinha pensado várias vezes como faria para lidar com a intimidade com a namorada, que mesmo bonita e sexy não lhe parecia nada o seu género de mulher. Não que lhe parecesse um castigo, afinal já há muito tempo que estava sem sexo, segundo a lógica, mas tinha-se apanhado diversas noites a matutar nessa questão. Os beijos ocasionais que Isabel lhe dava não o faziam sentir nada de especial, e para ser sincero consigo mesmo a massagem da enfermeira Marta tinha-o arrepiado mais... Mas talvez estivesse na hora de perceber se a namorada o conseguiria fazer esquecer a amante, pensou decidido. Iria aproveitar aquela excitação que sentia para tirar as suas dúvidas. Saiu da casa de banho e deixou tudo espalhado pelo quarto, tinha um objetivo em mente e teria de se despachar antes que lhe passasse o rancor. Entrou pela sala e abraçou Isabel, que se sobressaltou com aquela abordagem tão atípica.
- Sabes o que gostava de experimentar? - disse-lhe ao ouvido.
- Bem, acho que consigo adivinhar... mas assim? Antes de comer? - reagiu confusa e ligeiramente contrariada.
- O almoço ainda deve demorar a chegar... - sussurrou antes de a beijar.
Nélia correspondeu o beijo o mais naturalmente possível, pensado em mil e uma formas de conseguir safar-se daquela. Não esperava nada ter de começar logo naquele dia as funções de namorada. - João, ainda estás fraco.... - ronronou tentando libertar-se dele suavemente.
- Eu aguento. - puxou-a por um braço e encaminhou-a ao quarto, sentando-se na borda da cama e apertando-a contra si. - Tens de me mostrar como é que antigamente fazíamos isto. - desafiou-a sorrindo.
- Ok, mas rápido. - disse secamente, sorrindo de volta contrariada. Deitou-o para trás e dedicou-se o mais que conseguiu a fingir excitação, representar papéis sempre tinha sido uma das suas atividades favoritas, mas aquele era difícil, ainda não se esquecera da humilhação que passara naquele quarto há algum tempo atrás. Continuou a sua cena de casal apaixonado, e sentia-o já bem dominado, aquilo seria mais rápido, constatou aliviada. Tirou a camisola e usou de todos os seus atributos para o enlouquecer, resultava sempre, olhando em volta indolentemente. Viu bem perto da cabeça dele o telemóvel a vibrar, aproximou-se do aparelho, certificando-se de que João estava distraído e abriu a mensagem que tinha chegado. "Quero que voltes para mim... procura-me" Uma raiva apoderou-se dela, cegando-a, num ciúme azedo que lhe invadiu a garganta. O nojento tinha estado escondido às mensagens com outra e agora aliviava-se nela... novamente usada como uma puta, pensou amargurada, enquanto João lhe despia as calças e a roupa interior. Carregou no botão de chamada e colocou o telemóvel novamente na cama, agora era esperar a sonsa atender e estava resolvida a questão. - João... agora, agora! - gemeu Nélia, fingindo-se a enlouquecer de prazer, caprichando nos sons. João obedeceu-lhe e fizeram amor como se não houvesse amanhã, sem inibições de qualquer espécie, levados pelo calor do momento. - Diz o meu nome! - gritou Nélia acelerando o ritmo dos dois propositadamente, já consciente de que a chamada estava a ser ouvida há alguns segundos. - Isabel... - sussurrou meio a contragosto. - Mais alto! - grunhiu alternado com sons de prazer teatralizados – Isabel!

Janota entrou na sala e sentou-se no cadeirão em frente a Isabel que chorava silenciosamente no sofá. Não sabia bem o que dizer, mas suspeitava que o motivo teria o nome de João. Isabel colocou o telemóvel na mesinha no meio dos dois e olhou para o chão sem conseguir encarar o amigo. Janota estendeu-lhe a mão e puxou-a suavemente para si. Queria consolá-la, tirar-lhe aquela dor do peito, aquele homem do coração. Sentou-a no seu colo e deixou-a chorar, sem dizer nada. Estaria sempre ali para a ajudar.

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