-
Quando é que aprendeste yoga? – perguntou João, enquanto
esperavam pelo empregado de mesa com a ementa.
-
Há cinco anos decidi experimentar, andava nervosa e precisava de
encontrar um método natural para lidar com os problemas. –
confessou, sentando-se à chinês – Na primeira aula percebi que
era aquilo que queria fazer, ser professora de yoga. Estudei, fui
tirar a formação, e pronto.
-
Mas conseguiste logo fazer aquelas posições todas? Sem nunca ter
experimentado antes? – admirava-se da capacidade física dela.
Tinha-a observado na última aula, parecia uma mulher de borracha,
mas ao mesmo tempo, bastante forte. Não era possível que se ficasse
assim de um momento para o outro, pensava desconfiado.
-
Eu sempre fiz desporto, cuidei do corpo. Em pequena andei na
ginástica acrobática, ainda ganhei umas medalhas, e o yoga precisa
de muita elasticidade, principalmente da coluna. – explicou,
sorrindo para o empregado que chegara naquele momento cerimonioso com
as cartas da ementa.
João
ignorou o funcionário, como habitualmente fazia, mais por hábito,
que snobismo, continuando concentrado nela e na conversa dos dois,
ligeiramente aborrecido pela interrupção do homem.
-
Obrigada. – disse Marta educadamente, fazendo uma pausa na atenção
a João, voltando-se para o empregado. – És sempre assim tão rude
com as pessoas? – perguntou-lhe de chofre assim que o homem se
retirou.
-
Rude? Como assim? – reagiu espantado.
-
Eu diria mesmo mal educado. – recriminou-o, virando-se para a
grande ementa.
-
Mas eu tratei mal alguém?
-
João, ignorar alguém que te vem servir é extremamente indelicado.
Se fosse eu a empregada, cuspia-te na comida. – disse, sorrindo
para os nomes das comidas chiques.
-
Não me apercebi. – comentou com honestidade – Talvez faça isso
sem notar. – dedicou um pouco de tempo a matutar naquele
advertimento, enquanto decidia o que comer. Isabel também o
criticava pela mesma razão, mas estranhamente João nunca concordara
com as suas queixas. – Lavagante, é isso que me esta a apetecer…e…
sangria de champanhe. Aqui é deliciosa, tens de provar.
-
Parece-me bem, a sangria, claro. Para mim pode ser a salada de verão.
– olhou-o satisfeita, pousando a ementa. – Chama o empregado.
João
obedeceu e sentiu-se ligeiramente encavacado ao perceber que o
funcionário trazia uma atitude de descontentamento no seu semblante.
Ela tinha razão, tinha sido malcriado.
-
Já escolhemos. – tentou olhá-lo o mais diretamente possível,
sorrindo de forma simpática, para tentar remediar a má impressão
que tinha dado. Não queria sequer imaginar que o seu lavagante
pudesse trazer uma cuspidela de rancor por cima. Fez o pedido e
agradeceu, submissamente.
-
Assim está melhor. – comentou Marta orgulhosa da sua atitude mais
cívica. – Vês?, não custa nada sermos simpáticos.
-
Eu não quero é que ele me cuspa o prato. – explicou João
genuinamente preocupado.
Marta
soltou uma gargalhada, ele parecia uma autêntica criança em certas
ocasiões. Era tão enternecedor observar como a sua mente
funcionava, tão autêntico e básico.
-
Nem o teu prato, nem a nossa sangria, porque eu não lhe fiz mal
nenhum e não tenho de pagar por isso. – exclamou, levantando-se e
pedindo licença para ir ao wc.
João
ficou a observá-la, aos seus modos educados e cheios de classe,
naquele ambiente, parecia-lhe diferente, num meio mais snob.
Escolhera aquela cervejaria porque a frequentava com regularidade, e
porque se lembrou que poderiam levar Filipe com eles, se comessem na
esplanada. Uma mulher humilde, e João já não tinha bem a certeza
de que ela fosse de origens pobres, ficaria intimidada ou maravilhada
com os nomes pomposos da ementa, os salamaleques dos empregados e os
diferentes talheres. Mas Marta encaixava em todos os cenários, desde
o tanque da roupa onde lavava os lençóis, ao clima betinho que ali
se respirava. Apenas a sua aparência a fazia destoar, mas nem isso a
incomodava ou inibia. Entrara naturalmente, sentara-se à chinês e
fora mais Senhora que muitas tipas, filhas de muito boa gente fina da
cidade, com quem já ali partilhara umas Sapateiras. Era um absoluto
quebra-cabeças aquela mulher.
Perdia-se
nos seus pensamentos, quando Salvador e o segurança do “Pírulas”
que entravam na cervejaria lhe acenaram entusiasmados assim que o
viram e se dirigiram à sua mesa.
- Então pá? Por aqui? – Salvador inclinou-se para o cumprimentar,
quando Filipe se endireitou e fez cara de poucos amigos. – O que é
isto? Mas tu tens um cão? – exclamou assustado com o semblante do
animal.
-
Não é meu, é de uma amiga. – explicou João, cumprimentando-os
sem grande entusiasmo. Conhecia bem o amigo, e assim que ele visse
Marta não iria deixá-los a sós. Queria estar com ela sem
terceiros, tentar saber mais do seu passado, de onde vinha, etc.
Salvador seria uma distração e nunca se calava quando uma mulher
bonita estava presente, nem mesmo se esta fosse lésbica.
-
Amiga, heim? Deve ser coisa boa, que tu odeias cachorros. – gozou
Salvador, olhando em volta à espera de conseguir localizar a mulher
que acompanhava João.
-
Não comeces, é apenas amiga. E o cão é porreiro, chama-se Filipe.
Dá-lhe um “passou bem”, não sejas mal educado. – disse
divertido e curioso por saber se o cão o deixaria aproximar-se o
suficiente para lhe fazer uma festa.
Marta
aproximou-se nesse mesmo instante, com a sua calma natural e
sentou-se, sorrindo aos dois homens estranhos que conversavam com
João.
-
Olá! – cumprimentou-a Salvador com um sorriso de orelha a orelha.
-
Olá. – respondeu divertida.
-
Marta, este é o Salvador, um amigo meu de curso, mas que não
trabalha na área, tem um bar na Praça. – explicou, ligeiramente
incomodado com a abordagem do amigo à então apenas sua conhecida.
-
Ah, o “Pírulas”? – exclamou Marta esticando a mão para o
cumprimentar.
-
Sim!, esse mesmo! Já lá foste? – perguntou entusiasmado com a
fama do seu estabelecimento e o ar saudável da rapariga.
-
Já. Mas não gostei muito. – disse com franqueza.
João
desatou a rir, satisfeito com o súbito ar de desânimo do amigo, ele
ainda não conhecia o estilo pragmático e sincero de Marta, que
desconcertava qualquer um.
-
Este é o Janota, o segurança do bar, nosso amigo há vários
anos. – apresentou João, mais animado.
-
Olá Janota! Muito prazer. De ti lembro-me bem, obrigada pela ajuda
no outro dia, o homem estava realmente a pedi-las. – disse,
apertando-lhe a mão sorridente.
-
Prazer. E não é preciso agradecer, não gosto de machistas. –
explicou.
-
Sentem-se connosco. - sugeriu Marta, desejosa de alguma distração
que a ajudasse a engolir o almoço. João estava demasiado bonito,
descontraído e sexy. Era demais para a sua sanidade mental.
-
Eles têm mais que fazer… - e ainda não tinha acabado a frase,
Salvador já saltara para a cadeira ao lado de Marta, colocando-lhe o
braço por cima do encosto, e bombardeando-a com perguntas.
-
Com licença. – Janota puxou da cadeira vazia perto de João,
sentando-se com dificuldade, e bufando de esforço.
-
O que tens? – perguntou Marta, curiosa com aquele esgar estranho
que denunciava que o grande segurança tinha uma dor.
-
Nada, - desconversou, envergonhado com a situação – apenas uma
dorzita nas costas.
-
Espera, eu ajudo-te. - Marta levantou-se e colocou-se por detrás do
homem, para espanto dos três, que a olhavam sem compreender o que
pretendia fazer. Colocou uma mão no fundo do pescoço e começou a
percorrer toda a zona cervical pressionando levemente, à procura do
problema. Com a outra mão posicionou o queixo do segurança
ligeiramente de lado, e ao descer a mão pela coluna encontrou a zona
traumatizada, sorrindo. – Descontrai, por favor. – ordenou,
rodando nesse mesmo instante a cabeça amolecida do paciente, ao
mesmo tempo que pressionava sabiamente a vértebra correta. Um som
seco e forte assustou a plateia masculina, que se retesou admirada,
ao mesmo tempo que o segurança suspirou aliviado. – Pronto. Já
está. – rematou, voltando para a sua cadeira.
-
Obrigado… como fizeste isso? – perguntou-lhe Janota maravilhado
com o milagre que se dera nas suas costas.
-
Técnicas… - piscou-lhe o olho divertida.
-
Não, a sério, como é que sabes fazer isto? – perguntou João.
-
Tenho o curso de Osteopata, e algumas aulas de Quiroprática. Estas
dores são facílimas de tratar. – respondeu-lhe com naturalidade.
-
Não fazia ideia que tinhas esses cursos. Pensei que só fosses
professora de yoga. – disse, ainda espantado.
-
Há muita coisa que não sabes sobre mim. – retorquiu Marta,
lançando uma pequena farpa de curiosidade na direção dele.
-
Ah, então tu és A Professora de yoga? – exclamou Salvador.
-
Sim, pelos vistos sou a professora de yoga. – olhou João, que
corara ligeiramente com a falta de tato do amigo.
-
A Marta tem me dado aulas de yoga durante a semana. – balbuciou
encavacado, sem saber como explicar o facto de que já havia falado
nela a terceiros.
-
E hoje, como é sábado, não houve aula! – provocou Salvador,
sorrindo – Vieram almoçar fora. – rematou satisfeito.
-
És da zona da Beira Baixa? – perguntou Janota a Marta, curioso com
o leve sotaque que detetara na voz dela.
-
Sim… Porquê? – respondeu Marta um pouco perturbada com aquela
descoberta tão inesperada. Normalmente esforçava-se por eliminar os
hábitos e as características que a pudessem denunciar relativamente
às suas origens, mas nem sempre conseguia disfarçar o modo de falar
albicastrense.
-
Tinha família em Castelo Branco, fizeste-me lembrar a minha avó…
“não sâbes sôbre mím” – explicou Janota, imitando-a.
-
Mais uma novidade. – disse João meio emburrado com o facto de
todos os presentes estarem a partilhar com ele de detalhes privados
sobre Marta.
-
Não sejas ciumento João! – gracejou Salvador, que o conhecia bem
demais para não notar que ele gostava da professora, e não como
aluno dedicado. – E parem de chatear a rapariga com perguntas.
Diz-me lá, na sexta feira, como é? Queres que reserve o bar só
para ti?
-
Não… - respondeu sem jeito. – Já te tinha dito que não queria
festas. – resmungou.
-
Não é todos os dias que um gajo faz 39 anos! – comentou Salvador
inflamado.
-
Fazes anos na sexta? – perguntou Marta a sentir as pernas bambas.
Não podia ser… pensou nervosa. Um leonino é que não… seria
demasiado perfeito para ser verdade. Já compreendia a facilidade com
que se tinham relacionado. Uma alma gémea, ali, à mão de semear,
bonito para piorar as coisas, e ela “lésbica” e ex-mulher de um
psicopata.
-
Sim, faço. Para mal dos meus pecados. E pro ano são 40… - rosnou,
bebendo um grande gole de sangria e distraindo-se com Filipe, que lhe
colocara o focinho na perna, em solidariedade masculina.
-
Então está combinado! Sexta-feira vamos todos festejar o último
ano de validade do Dr. João Marques! – exclamou Salvador, levantando
o copo a pedir um brinde.
Cada
um se libertava a pouco e pouco, ligeiramente embriagados, contando
episódios cómicos e situações inusitadas, rindo com vontade, e
Marta descontraiu, bebendo um pouco mais que aquilo a que estava
habituada, encorajada por Salvador que lhe enchia o copo
regularmente, sem cerimónias. Tinha as pernas dormentes, da posição
em que estava há tantas horas, e sem pedir licença colocou-as
esticadas no colo de João, que se reposicionou à mesa para as poder
acomodar confortavelmente, como se fossem um casal e aquele fosse um
hábito íntimo já usual entre os dois.
Salvador notou as manobras encobertas pela
toalha da mesa e esforçou-se por não comentar, estava a ficar
preocupado com aquele relacionamento tão atípico entre o amigo,
visivelmente apaixonado, e a professora lésbica, que o olhava
languidamente, sempre que este falava. Estava treinado para
identificar todo o tipo de relacionamentos humanos. Sobrevivia no
negócio da noite com esse dom, era vital perceber quando alguém,
apenas com a linguagem corporal, poderia ser um problema, e sabia que
o Janota também notara, trocando olhares consigo. Se aquilo era
apenas uma amizade, ele era o Papa!
João sentia-se totalmente fascinado com o
sentido de humor de Marta, que gargalhava a todas as parvoíces de
Salvador, mestre em disparates, mas que normalmente as mulheres não
entendiam nem apreciavam. Mas ela encaixava naquele ambiente
pseudo-masculino como se toda a vida tivessem partilhado da companhia
uns dos outros. Talvez o facto de ser homossexual a tornasse mais
masculina nos relacionamentos, matutava, com um leve ardor no
estômago, ao lembrar-se de que ela não era sua quase conquista, mas
uma amiga, inatingível. A pele suave das suas pernas enlouquecia-o,
à medida que ia explorando com a mão o seu tornozelo, delicado e
macio. Como poderia aquilo ser possível? A mulher quase perfeita, do
pouco que já conhecera, inteligente, divertida, bonita, e com pele
de bebé… pensava, massajando-a com as duas mãos, ritmadamente.
Seria possível que ela um dia acordasse e já não gostasse de
mulheres? Perguntava-se, aparvalhado com o álcool que já bebera e
lhe toldava a razão. Queria percorrer-lhe as pernas até ao limite,
sentir aquela suavidade em todos os locais diferentes da sua
anatomia, não ter de se ficar pela cova luxuriante da parte de trás
do seu joelho, até onde conseguia chegar sem parecer mal no meio de
mais pessoas. Olhou-a de repente, Marta ruborescia, com um brilho no
olhar que o fez perder a noção, dando-lhe coragem para alcançar
mais terreno na pele suave das pernas dela, que reagiu subitamente,
retirando-as, e desviando os olhos dos dele. As mãos de João
penderam frustradas por debaixo da mesa, e Filipe aproveitou para
solicitar alguns carinhos, ciumento com as “festas” que João
dera a Marta, devolvendo-lhe um pouco da boa disposição de momentos
antes. Marta evitou olhá-lo o resto da refeição, concentrando-se
nos outros dois companheiros de almoço, esforçando-se por disfarçar
a sua excitação e desejo. Se ali estivessem os dois sozinhos
teria sido uma calamidade!
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