sexta-feira, 11 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 9 (3ª parte)


   


    João acordou com o som vindo da cozinha, estremunhado com um sonho bastante real em que falara ao telefone com Marta, e ela fizera yoga na sua cama. Esfregou os olhos pesados das poucas horas de sono que conseguira aproveitar e sentiu algo rijo na sua almofada, agarrando-o sobressaltado. Porque raio tinha ali o telemóvel?... Ligou o aparelho, sentando-se, e viu no registo de chamadas o número de Castelo Branco, às 7h00 em ponto. Alguns minutos de chamada… - Merda, adormeci ao telefone com ela… - Se fizesse isto à Isabel ela faria um escândalo. Estaria Marta, Isabel, corrigiu, zangada? Dirigiu-se ao quarto de banho e arranjou-se o mais depressa possível. Já não teria tempo para tomar o pequeno almoço, dormira quase duas horas a mais que o normal, lamentou-se, mais ansioso com o facto de ela ter ficado pendurada ao telefone com ele a dormir, do que os pacientes na sala de espera a reclamar com o atraso do médico. Eles que lessem uma revista, resmungou, saturado daquelas caras amarelentas e depressivas. Iria ser um péssimo dia com a neura do sono, constatou. Tinha a cabeça demasiado cheia de dúvidas e teorias sobre ela, o seu passado, seria um suplício ter de se abstrair de tudo isso e concentrar-se nos problemas dos outros. Precisava urgentemente de retomar a sua pesquisa, explorar cada pista e ideia que o mantivera acordado durante horas, compreender quem ela realmente era o mais depressa possível. Estava a caminhar a passos largos para a dependência emocional dela, a gostar demasiado de uma pessoa que simplesmente poderia não existir, ser uma farsa. Não tinha a certeza de que aguentaria outra “morte”.
   Saiu de casa enervado, a sua empregada Rosário andava particularmente estranha, parecia-lhe preocupada, mas João não tinha tido tempo para tentar perceber porquê. Sabia que ela tinha uma sobrinha problemática, que lhe tirava o sono de vez em quando, mas nunca se alongara muito em conversas. Algo de mais grave se passava, concluía, a sentir-se culpado por não lhe retribuir a dedicação que ela lhe devotava.
     Entrou no carro e o telemóvel não lhe saía da mão, como que a pedir-lhe que lhe ligasse, colado aos dedos, irrequietos. Olhou o número dela e não se conteve, afinal tinha uma boa desculpa para telefonar, devia-lhe um pedido de desculpas.
    - Estou, sim? – Adelaide atendeu prontamente.
   - Estou, sim, muito bom dia. Fala de casa da Isabel? – perguntou a sentir uma gota de suor a nascer-lhe no pescoço.
   - Quem fala? –questionou sem lhe responder. Um homem a ligar para a casa da menina não era usual, principalmente quando ela chegara dois dias antes.
  - Peço desculpa, chamo-me João Marques, sou o psiquiatra da Isabel, e fiquei em ligar-lhe hoje de manhã. – mentiu descaradamente, reagindo a um instinto que lhe dizia que a senhora o iria despachar se não estivesse segura de que a Isabel quisesse atender o telefone.
   - Ah, sim, como está Dr.? A menina Isabel não me avisou que iria telefonar. Mas ela saiu há pouco com a Senhora, só voltarão ao final do dia. – explicou.
   - Não há problema, deve ter-se esquecido. Pode apenas dar-lhe o recado de que liguei? – pediu, frustrado com a ideia de estar o resto do dia sem a ouvir.
   - Com certeza, assim que a menina chegar, darei o recado.
   - Muito obrigado, bom dia.
   - Bom dia, com sua licença. – desligou o aparelho, agradada com os modos bem educados do médico da Isabelinha. Gente fina, concluiu.
   João carregou no acelerador e dirigiu-se para o seu calvário diário, agora com mais uma preocupação na mente, não saber se ela estava zangada consigo.


   - Isabelinha, tu não podes tratar o cão como se fosse um humano! – recriminou Mariana, aborrecida com o mau humor da filha desde que saíra de casa.
   - Não é nada disso mãe, fico com medo que ele fuja, não está habituado a viver naquela casa, pode tentar procurar por mim e sair para a rua.
   - Disparate! A Adelaide disse que o vigiava, agora vamos aproveitar o dia em Cáceres, fazer umas compras, almoçar uns tapas e passear. – rematou decidida.
  - Claro, desculpe mãe. – acariciou-lhe a mão e esforçou-se por sorrir perante aquele programa de mulheres. Descontraiu no banco do passageiro do carro de Mariana e distraiu-se com a paisagem da viagem até Espanha, imaginando como seria bom que João conhecesse aqueles locais com ela, comessem uns tapas, dormitassem na relva do Parque Del Príncipe, em vez de se ir enfiar no El Corte Inglês, a percorrer quilómetros atrás da mãe, de loja em loja, sem orçamento nem travões de qualquer espécie. – Acha que consigo comprar um telemóvel ainda hoje? – queria muito falar com João, saber se não tinha chegado atrasado de manhã à clínica, estar sempre contactável para ele.
   - Claro querida! – reagiu surpreendida com a ideia. – Ainda bem que decidiste deixar-te dessas ideias malucas de estares isolada de tudo e todos.
   - Pois, anda-me a fazer falta, e a conduzir sozinha posso ter necessidade de pedir ajuda. – concluiu, omitindo a verdadeira intenção de ter um telefone móvel; esperar os telefonemas dele.
   - Claro. Deves ser a única rapariga com vinte e nove anos que não tem telemóvel! – recriminou-a.
     - Faz-me mais falta um esquentador, mas pronto… - sorriu-lhe divertida.
    Mariana arrepiou-se com a ideia de viver sem água quente nas torneiras, na era medieval, como a filha.




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quinta-feira, 10 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 9 (2ª parte)





    Escreveu o número de telefone de casa de Marta no local de pesquisa do site das páginas amarelas e rezou para que conseguisse descobrir algo de útil sobre ela. O local onde estava já seria um princípio, comentou consigo mesmo entusiasmado. No google não havia nada sobre uma “Marta de Castelo Branco”, ou melhor, constatava perdido, havia muita Marta naquela cidade, mas nenhuma era a que lhe interessava. A morada correspondente ao número fixo surgiu, e João selecionou-a, copiando-a para o google maps, a fim de a situar espacialmente. Rapidamente percebeu que o local ficava no centro de Castelo Branco, numa zona principal, e para visualizar melhor, recorreu ao “Street view” e esperou que as imagens satélite carregassem para continuar a pesquisa caseira. Uma propriedade demasiado grande para um lote urbano central apareceu no ecrã do pc, deixando-o confuso. Confirmou a morada inserida e “olhou” a rua em que se situava a mansão, ficando perplexo. Parecia-lhe um palácio daqueles que só as instituições do Estado conseguiam manter, adaptando para serviços administrativos, não uma casa familiar. Percorreu virtualmente toda a rua de cima para baixo, olhando tudo pormenorizadamente, tentando perceber aquele quebra-cabeças. Talvez ela fosse filha de uma das muitas empregadas que um casarão daqueles deveria ter, só para o manter limpo diariamente, matutou. Era bem provável. Deixou a “janela” do street view aberta e tratou de pesquisar no google apenas a morada do palácio, para ver se obtinha alguma pista. Várias referências ao local chique lhe apareceram, mas o seu objetivo era descobrir quem lá vivia, como se chamavam, o que faziam, etc. Depois de ler muito site inútil, apareceu subitamente o que procurava numa notícia regional de um jornal albicastrense. Era a residência familiar do Presidente da Câmara, antigo responsável pela direção da Medicina Legal do Hospital de Castelo Branco, Dr. José Fontes Pereira e Castro. Agarrou nessa novidade e fez nova pesquisa no google, desta feita, com muito mais informação, na sua grande maioria referentes ao trabalho atual de presidente do município. Festas, galas, inaugurações, assembleias, mil e um artigos sem importância. Deixou a “literatura” e carregou na pesquisa de imagens, aparecendo-lhe mais um rol de fotos institucionais, a mostrar um político sorridente e bem parecido. Percorria a página de imagens já cansado de tanto “cortar a fita” dos políticos, quando a viu junto do homem. Abriu a imagem fazendo zoom, com as mãos a suarem-lhe de nervos, e ali estava ela, no meio de um casal, vestida a preceito, formalmente, uma betinha com ar de frete numa cerimónia qualquer, bem mais nova que a Marta atual, mas definitivamente ela. A legenda deixava claro de quem se tratavam, Mariana, Isabel e José Fontes Pereira e Castro, mulher, filha única e Presidente, respetivamente.
     - Isabel?! – perguntou em voz alta. – Como assim, Isabel?? – exclamou horrorizado com a descoberta.
   Tornou a pesquisar no google, desta feita colocando apenas “Isabel Fontes Pereira e Castro, Castelo Branco”, ficando perplexo a olhá-la. Centenas de imagens de “Marta”, todas em situações formais, mas apenas até uma certa idade. Não havia nenhuma com a mulher que ele conhecia, apenas uma garota bonita. Retomou a pesquisa na web, deixando de parte as fotos dela, e tratou de se ajeitar na cama para ler exaustivamente tudo o que lhe aparecesse sobre ela. Várias páginas dedicas ao desporto mostravam-na nos pódios, tal como ela tinha referido dias antes, a receber medalhas ganhas nas competições de ginástica acrobática. Uma menina feliz e sorridente, constatou, naquela versão desportiva. Por mais que procurasse, nada de atual havia a dizer sobre a Isabel de Castelo Branco, resignou-se, fechando o portátil exausto, de tantas horas em frente ao ecrã. Olhou o relógio do telefone e viu com espanto que já eram perto das quatro da manhã. Afastou tudo do seu lado da cama e deitou-se, ficando a olhar o tecto, perdido nos seus pensamentos e teorias sobre tudo o que tinha descoberto. Algo de estranho tinha acontecido para que Marta, Isabel, corrigiu-se, tivesse deixado a vida confortável com a família abastada e tivesse vindo morar para aquele sítio inóspito no meio do nada, com literalmente nada a que estava acostumada. Zanga familiar não deveria ser, matutava, pois tinha ido visitar os pais. Seria assim tão excêntrica que preferisse carregar água quente para a casa de banho para conseguir tomar duche, e lavar a roupa à mão num tanque, a viver sem dificuldades nem trabalhos pesados? Porquê?




    - Estou?... – grunhiu para o telemóvel, ainda a dormir.
  - Bom dia! Ganhei! Fui a primeira a ligar. – tinha estado em pulgas à espera que chegassem as sete da manhã.
   - Marta? – perguntou confuso .
   - Sim, já acordaste?
   - Não… - respondeu num lamento.
   - Mas não disseste que podia ligar a partir das sete?
   - Da tarde… sete da tarde… - resmungou cheio de sono.
  - Ah… desculpa. Volta a dormir, então. – disse sentindo-se ridícula com a confusão do horário.
   - Não, fala comigo. – pediu, afastando as cobertas da cama com o calor que subitamente o afetou.
   - Bem, agora fiquei sem jeito… - confessou, sentindo-se corar.
   - Já acordaste há muito tempo?
- Sim, já fiz quase uma hora de yoga com o Filipe. Ele agora está a dormitar, é um cu de sono. – explicou divertida – E tu? Tens praticado?
  - O quê? Kamasutra? – perguntou provocador, sorrindo com a ideia de a deixar encavacada.
  - Não… yoga. – a cara escaldou-lhe mais ainda.
  - Nem por isso, sem a professora não tenho estímulo para me exercitar.
  - Preguiçoso… Vamos lá, a professora agora está aqui, é ótimo começar o dia a esticar a coluna. Vamos, senta-se. – ordenou entusiasmada.
  - Já está. – mentiu, sorrindo.
   - Não está nada. Aldrabão… Senta-te lá. Eu vou falando e tu imaginas que estou aí.
  - Na minha cama? Cala-te por favor… - gemeu a sentir-se aquecer mais e pontapeando o resto dos lençóis que ainda lhe cobriam os pés.
  - És impossível… - tinha vontade de se rebolar de alegria, como o Filipe fazia quando estava excitado.
   - Vá, agora a sério, estás aqui, sentada à chinês, eu estou-te a ver. Diz lá o que queres que eu faça.
  - Primeiro, esticas os braços e forças na direção do tecto, para as vértebras ficarem acordadas.
    - Já está. – mentiu novamente, apenas concentrado na imagem dela a fazer o exercício em questão.
    - Mas está mesmo? – questionou desconfiada.
    - Sim, claro. Já estou todo esticadinho.
   - Agora inclinas-te para a esquerda e para a direita, como te ensinei. – continuou, a imaginá-lo naquela posição. – Depois colocas as mãos em lótus e fechas os olhos, respirando com o abdómen.
   - Hum, hum… - sussurrou a sentir-se cada vez mais descontraído ao ouvir a sua voz cadenciada.
     - Esticas as pernas, e rodas o tronco para a esquerda.
   - Não quero esticar as pernas, - reclamou – canta-me lá aquele mantra que eu gosto. – pediu, enroscando-se na cama.
   - Om Shanti… Om Shanti… Om Shanti Om… Om…- repete comigo. Esperou alguns segundos, mas João calara-se, sem reagir. – João?... João?... Adormeceu… - desligou o telefone e olhou Filipe a dormir com censura. – Cus de sono!



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quarta-feira, 9 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 9 (1ª parte)




   - Então querida, ficas cá até quando? – perguntou Mariana, receosa de que a filha desaparecesse durante mais uma temporada sem deixar vestígios.
   - Ainda não decidi. Talvez até domingo. – Isabel pensava noite e dia nessa questão, remoendo-se de dúvidas. Queria partir o quanto antes para junto de João, mas se o fizesse naquele estado de espírito em que estava iria meter-se num problema maior que aquele em que já vivia diariamente. Lançar-se-ia nos seus braços, pondo-se em risco e pior que tudo, trazendo outra pessoa para o seu pesadelo. Não queria sequer imaginar que João fosse prejudicado ou atacado pelo seu fantasma de carne e osso.
   - Tu pensas que eu não te entendo, - interveio a mãe, pousando os talheres – sempre achaste que só a Adelaide é que te conhece, mas eu sei muito bem que esta tua vinda traz água no bico.
    - Não é nada disso mãe. – reagiu, espantada com o rumo da conversa, mais pessoal que o que habitualmente falava com Mariana. – Estava com saudades vossas.
    - Sim, não duvido. – limpou os cantos da boca com um gesto carregado de etiqueta – Mas uma mãe sabe quando a filha está a sofrer. O que se passou lá no sítio onde vives agora? – perguntou sem disfarçar a ironia na voz. Feria-a saber que a filha, a sua princesa, morava num pardieiro, juntamente com um cão horroroso.
   - Não sei o que fazer. – confessou, olhando a mãe com carinho e fingindo que não percebera o tom.
    - Como assim? Aquele animal tornou a procurar-te? – exclamou preocupada com a ideia de que o ex-genro continuasse a infernizar a filha.
    - Não… - respondeu, pouco certa de que ele não andasse sempre a rondá-la – Eu conheci uma pessoa. – conseguiu dizer corando.
    - Eu logo vi. E então? Não sabes o que fazer porquê?
   - Tenho receio de que o Tiago cumpra o que prometeu. – engoliu em seco com a recordação do dia do julgamento.
   - Isabel, tu viveste um horror que eu não consigo imaginar sequer, - pigarreou escondendo a emoção – nunca vivi nada assim, mas isso já passou. Já lá vão cinco anos, não achas que está na altura de ultrapassares isso? – questionou-a carinhosamente.
   - Sim, talvez… - uma lágrima caiu desamparada na toalha de linho – Mas prometi a mim mesma só voltar a tentar se encontrasse o tal…
   - Já pensaste em recorrer a um psicólogo, psiquiatra? – sugeriu a mãe, incomodada com o facto de que a filha ainda andasse deprimida – Acho que o fantasma agora só continua presente na tua vida porque o trazes dentro de ti.
Isabel olhou a mãe com admiração, aquelas palavras podiam estar mais certas do que Mariana imaginava. Sorriu-lhe, mais animada com a referência a um médico mental.
   - Ele é psiquiatra. – confessou, sentindo-se corar mais um pouco.
  - E ainda tens dúvidas de que ele é o tal? – piscou-lhe o olho, demonstrando uma rara cumplicidade maternal. – Vem aí o teu pai. Limpa as lágrimas e acabou esta conversa. – disse, retomando o discurso formal.


   - Então rapariga? O que tens? Estás doente? – Rosário aproximou-se da sobrinha que criara, uma pobre de Cristo, sem pai desde pequenina, que ficou subitamente órfã depois da sua irmã cometer o suicídio, vinte anos atrás.
    - Não tia. Hoje não me apetece sair. – respondeu com maus modos.
   - Nem te apetece ir pra borga nem trabalhar! Está aqui uma casa bem arranjada, está! – ralhou, furiosa com a atitude imprestável que aquela rapariga tinha. Não ajudava em casa, não tinha tido cabeça para os estudos, a única coisa que lhe parecia saber fazer era a maquilhagem todas as noites, antes de sair para as discotecas. Se nem isso lhe apetecia há dois dias, algo de errado se passava. – Queres ver que tenho de pedir ao meu patrão para te tratar? – exclamou, pensando na dificuldade que seria conseguir pagar a um psiquiatra daqueles um tratamento.
    - Nem pense! Eu não estou doida! – gritou de volta, sentindo a raiva a invadi-la de novo, só de imaginar ter de encarar o Dr João, depois de ele a ter tratado como uma prostituta reles e ordinária.
     - Não me levantes a voz, ouviste? – berrou Rosário ofendida. – Raios partam na rapariga que é enxertada em corno de cabra! – bateu a porta do quarto da sobrinha, lamentando-se da pouca sorte que tinha tido com a miúda.
     Nélia fitou o tecto, praguejando interiormente contra a saloia da tia, o seu destino miserável naquela casa, o seu futuro encalhado sem perspectivas de mudança e o facto de que os seus planos megalómanos tinham ido por água abaixo. Desde sempre se recordava de imaginar que um dia acabaria casada com o Dr João Marques, patrão da sua mãe adotiva, de quem esta falava maravilhas. Bonito, inteligente, charmoso, rico, e a dada altura viúvo. Perfeito para uma rapariga cheia de atributos físicos poder consolar. Pouco a pouco aproximou-se dele, com cautela para não mostrar qualquer ligação à “Dona Rosário”, e cada vez lhe parecia mais fácil atingir o seu objectivo. Só não contava que ele fosse tão nojento, como os que já tinha conhecido ao longo da sua jovem vida de adulta. Nem se dignara a olhá-la, depois de tudo aquilo, e pagou-lhe, sem remorsos, recordou, chorando na almofada. Só lhe apetecia morrer…



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terça-feira, 8 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 8 (3ª parte)




     - Filipe! – gritou Isabel, já a perder a paciência com o comportamento irracional do cão. Desde que se embrenharam no jardim traseiro da casa que o animal mudara completamente a atitude. Passara de brincalhão a nervoso, correndo contra ela, colocando-lhe as patas em cima, descontrolado e agressivo. – Estás a magoar-me! Para! Eu desisto, vamos para casa. – deu meia volta e caminhava frustrada, quando um arrepio de frio a atingiu no pescoço, fazendo-a voltar-se de repente, gelada de medo. Algo se passava de facto, o cão tinha motivos para estar nervoso, alguém os estava a vigiar, tinha quase a certeza, pensava, acelerando o passo em direção à casa. Filipe corria a seu lado, também ele sem desviar a atenção das sombras fantasmagóricas que os ladeavam como um casulo sufocante. Isabel alcançava as imediações da casa quando deixou de ver Filipe a seu lado, aumentando-lhe os nervos. Olhou para trás e viu o cão parado, a fitar algum perigo, eriçado, pronto a atacar. Uma recordação antiga de Tiago a espancar o cão deixou-a em pânico, obrigando-a a voltar atrás para o trazer consigo para casa. – Filipe! Anda cá! – gritou, não sendo obedecida. Caminhou mais um pouco, sempre chamando o animal, que continuava fixado, sem reagir. – Filipe, por favor, volta… - gemeu, a sentir as pernas bambas, prestes a desmaiar. Como que sentindo o seu medo, Filipe correu na sua direção, espevitando o seu instinto de sobrevivência e dando-lhe ânimo para tornar a dirigir-se para a casa. Pararam a fuga histérica assim que atingiram um local seguro, respirando com esforço do sprint. Isabel confortou o cão, agarrando-o maternalmente, e puxando-o pela coleira para dentro da habitação, evitando que ele lhe fugisse de novo. Dirigiu-se ao quarto o mais rapidamente possível, a fim de evitar encontrar-se com os pais, ou pior, com a sua Dazinha, que iria perceber a sua aflição. Sentou-se na cama e esticou-se para fechar a grande cortina, selando assim qualquer imagem do jardim que a pudesse enervar. Pegou no telefone e marcou o número de telemóvel de João. Precisava de o ouvir.
      - Estou? – respondeu-lhe uma voz ansiosa ao fim do primeiro toque.
    - Olá… - o som familiar do outro lado da linha soltou-lhe a emoção do episódio enervante de minutos antes, e as lágrimas correram-lhe sem lhe obedecer.
      - Olá. – disse, confuso com o silêncio que Marta mantinha. – Marta? Estou?
      - Sim, desculpa, deixei de te ouvir. – mentiu, respirando fundo e disfarçando a voz embargada do choro. Limpou a cara com a manga da camisola e recompôs-se. – Já estás em casa?
      - Sim, já cheguei há algum tempo. E por aí? Tudo bem?
     - Sim, claro. Estive agora a passear com o Filipe. Fomos apanhar ar. Hoje esteve imenso calor durante o dia, só agora ficou possível andar lá fora.
    - E ele? Já está mais conformado com a nossa separação forçada? – brincou, esticando-se na cama, satisfeito.
    - Acho que sim. Queres falar com ele? – perguntou a recuperar a disposição e esticando-se na cama, a sorrir.
     - Claro, chama-o lá.
    - Filipe, anda cá. Vem falar aqui com o teu amigo. – colocou o auscultador perto do focinho do cão, que fungou, cheirando o aparelho curioso.
     - Olá Filipe! Quando voltas? – disse com a voz colocada.
     - Não vais acreditar, ele deu uma pirueta! – comentou animada.
     - Eu tenho esse efeito nos cães… - gozou.
     - Estou a ver que sim, que és um autêntico encantador de cães.
     - De cães e não só. Só tu é que pareces imune. – confessou, sentindo um aperto no estômago.
     - E o César e a Elisabete? Tens falado com eles? – desconversou, a sentir-se corar.
     - Não. Amanhã talvez jante com eles. – respondeu meio desiludido com a atitude dela.
    - Conta-me como foi o teu dia. – pediu-lhe, tentando remediar a conversa, alongando o telefonema o mais que conseguisse.
     - O normal, pessoas desesperadas, tristes, deprimidas, uma alegria. – ironizou.
   - Não é fácil o que fazes, pois não? – perguntou carinhosamente. Se pudesse abraçá-lo-ia naquele momento.
     - Não, mas há certamente coisas piores para ganhar a vida.
     - Tais como?
    - Fazer exames retais a vacas, ser pendura do carro do lixo, ser calceteiro… - brincou, pegando no livro do Kamasutra e ganhando coragem para a testar.
    - És muito cómico, sabias? – sorriu de orelha a orelha, imaginando a cara dele a enumerar aquelas tarefas ingratas.
      - Marta, gostava de te perguntar uma coisa.
      - Sim, o que foi? – engoliu em seco, reagindo ao tom mais sério com que João lhe falava.
     - Estava aqui a ler o teu livro enquanto esperava que me ligasses, - confessou sem se aperceber – e queria saber se alguma vez praticaste alguma destas posições.
     - Como? – lançou surpreendida.
     - Sim, queria saber se já fizeste isto.
   - Porquê? – perguntou receosa, temendo que aquilo fosse uma ratoeira para que ela se explicasse. Ele já devia andar desconfiado de que ela não fosse homossexual.
   - Porque aqui só há instruções para um casal hétero, tenho tentado perceber como podes ter utilizado isto com outra mulher, e acho que não dá. – explicou, percorrendo as páginas devagar, analisando por alto uma e outra ilustração.
    - Pois. – limitou-se a dizer, engolindo em seco.
    - Pois o quê? – sorriu satisfeito com o silêncio dela.
  - Nunca o fiz. – mentiu, omitindo qualquer informação adicional – Tu és muito curioso. – recriminou-o – E isso não são perguntas que se façam a uma senhora!
    - Desculpe, minha senhora. – poisou o livro e recostou-se novamente.
    - Está desculpado.
    - Posso fazer outra pergunta, minha senhora? – questionou-a a sentir-se com sorte.
    - Se não for de cariz privado, sim.
    - Gostava de um dia destes ir passear ao Gêres?
    - Ao Gerês? – excitou-se com a ideia – Com quem, pode-se saber? – perguntou dissimulada.
    - Com o Filipe e um motorista.
   - Claro, adoraria ser transportada até lá, se fosse num carrão desportivo azul metálico, então… seria perfeito!
    - Óptimo! – disse feliz com a ideia.
    - Agora sou eu a fazer as perguntas. – avisou-o, mudando de posição na cama.
    - Com certeza. Pergunte o que quiser.
    - Como se chamava a tua mulher?
    - Isabel.
   - Desculpa? – tossiu com a coincidência de ter o mesmo nome da ex-mulher dele, engasgando-se.
    - Isabel. Porquê?
    - Nada. É um nome bonito. – disse honestamente.
    - Pois é, mas atualmente gosto mais de outro. – confessou, sentindo as pernas dormentes.
   - E há quanto tempo ela morreu? – questionou-o, mudando estrategicamente o rumo da conversa.
   - Há quatro anos. De cancro. Foi terrível. Não tive mais ninguém (permanente) desde então. – enumerou, para evitar mais interrogatórios sobre o tema.
    - Desculpa, não te queria aborrecer.
    - Não me estás a aborrecer, só não quero gastar o tempo contigo a falar disso. Quando voltas?
   - Não sei. Tenho uns assuntos chatos para resolver por aqui, mas vou tentar ir sexta. Não prometo. – explicou, sentindo-se infeliz com a ideia de não o ver durante tantos dias.
    - Quando chegares tenho uma surpresa para ti.
   - Surpresa? Não me digas que mete mais canoas… - gemeu, temendo mais provações na água em embarcações minúsculas.
   - Nada disso. Vais gostar! – exclamou misterioso.
   - O que é? Diz-me! – suplicou, detestava suspense.
   - Não. Quando voltares vês. - e esperava que fosse o mais rápido possível.
   Um bater na porta do quarto de Isabel interrompeu-os subitamente.
  - Espera só um momento. Estão a chamar-me, não desligues. – poisou o telefone e dirigiu-se à porta aborrecida. – Sim?
   - Menina, desculpe, mas a sua mãezinha precisa de fazer um telefonema e a linha está ocupada há muito tempo. É melhor desligar, antes que ela aqui venha. – informou-a Adelaide, preocupada com a possível intromissão na privacidade da sua menina.
   - Ah, obrigada Dazinha. Vou já desligar. – voltou a correr para a cama, retomando a chamada. – João? Desculpa, mas vou ter de desligar. Esta linha é fixa e há mais gente na casa a querer telefonar… - explicou, sentindo-se uma adolescente a quem tinham chamado a atenção por estar há muito tempo em telefonemas com namorados.
   - Temos de te arranjar um telemóvel! – disse autoritariamente.
   - Temos?
   - Tens. Não cabe na cabeça de ninguém no século XXI não teres telefone móvel. Ainda para mais, andas de carro sozinha, se te acontece alguma coisa, como fazes?
   - Não sei. Não gosto desses aparelhómetros. – concluiu, a pensar que naquele momento adoraria ter um, só para poder estar toda a noite à conversa com ele.
   - Ok, depois falamos melhor sobre isso. Amanhã ligas, ou queres que eu ligue? – perguntou a sentir-se deprimido com o fim do telefonema.
   - Eu ligo, não tens o meu número…
   - Marta, os telemóveis mostram o número que nos está a telefonar… - explicou com vontade de rir da ignorância informática dela.
   - Pronto, está bem. A partir de que horas posso ligar?
   - Das sete.
   - Vamos ver quem liga primeiro então. – desafiou-o, sorrindo.
   - Adeus, até amanhã. Dá um beijinho meu ao Filipe e outro à dona.
   - Ok… até amanhã… - derreteu-se na almofada, a imaginá-lo a beijá-la.
   - Vá, desliga.
   - Desliga tu.
   - Não…
   - Menina! A mãezinha vem aí! – avisou Adelaide, entrando no quarto e interrompendo a conversa.
   - Tenho de ir. Beijos. – desligou o telefone, angustiada com aquela separação tão repentina. Seria doloroso esperar até o ouvir de novo.

João ficou a olhar demoradamente para o telefone. Aquilo tinha sido conversa de namorados, como dois miúdos, patéticos e desejosos de se ouvirem. Uma pequena esperança desafiou-o a continuar a pesquisa que Marta tinha interrompido ao telefonar. Pegou no portátil e abriu o Google. Se havia alguma coisa sobre uma Marta de Castelo Branco, ali encontraria, de certeza.



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segunda-feira, 7 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 8 (2ª parte)




      “- Odeio-te, deixa-me em paz! – gritou Isabel, fechando a porta do quarto na cara de João. – Deixa-te de histerismos! – berrou-lhe de volta, dando uma palmada na porta. Aquele casamento estava a ir por água abaixo, pensou, farto de tudo aquilo. – Eu só queria um filho, egoísta de merda! – exclamou descontrolada de dentro do quarto. João sabia que um dia ela lhe iria atirar aquilo à cara. Agora era tarde demais, Isabel não poderia engravidar nos próximos anos, teria de tratar o cancro primeiro. Era óbvio que ela temia morrer, sabia-o, e ele não lhe tinha concretizado o sonho antes disso. Engoliu em seco, pegou nas chaves e saiu. Se ela morresse não teria hipótese de se redimir. Mais uma culpa para juntar ao rol.”

     - Dr. João, Dr.! – chamou Diana, receosa de que o patrão a repreendesse por estar a interromper o seu transe habitual.
    - Sim? – olhou-a desconcertado, confuso com todas as lembranças que o perseguiam desde sábado à noite.
   - Posso mandar entrar a paciente? – já estavam atrasados nas consultas, o médico estava particularmente pouco eficiente naquela segunda-feira, e as pessoas começavam a reclamar na sala de espera.
     - Sim, claro. – respondeu sem vida.
     - Dona Sara Mendes, pode entrar por favor. – indicou Diana, abrindo mais a porta para a senhora de meia idade.
   - dona… - rosnou João baixinho, recriminando a forma pouco educada de se chamar uma Senhora daquelas. Mas seria possível que só lhe arranjassem funcionárias burras? – Bom dia Sara, como vai? – cumprimentou-a cerimoniosamente, deixando-a sentar primeiro, e depois retomando o seu lugar na cadeira em frente.
    - Bom dia Dr., estou um pouco melhor, acho eu. – confessou pouco convencida, descontraindo na cadeira.
     - Bem, já é um começo. Tem feito a medicação que lhe receitei? Dorme melhor?
    - Sim, tudo direitinho, durmo muito bem. Pareço uma pedra, acordo de manhã fresca que nem uma alface! – brincou, dando uma leve gargalhada, de olhos tristes.
     - Mas…
     - Mas… dormir bem não é o suficiente.
     - E o que acha que seria o suficiente para si?
   - Um pouco de atenção, que o meu marido me olhasse de vez em quando… - confessou envergonhada.
     - Sim, seria o mínimo que um marido deveria fazer pela mulher. – disse sentindo um buraco de culpa no estômago.
     - Cada vez estamos mais afastados. Não consigo alterar o rumo que o nosso casamento está a levar.
      O telefone interrompeu a consulta, deixando João aborrecido.
     - Peço desculpa Sara, deve ser urgente para a minha secretária estar a ligar. – desculpou-se, atendendo o telefonema.
      - Faça favor, Dr. Não se preocupe.
      - Sim? – disse bruscamente.
     - Dr., tenho ao telefone uma senhora que insistiu muito em falar consigo, diz que é urgente, não consigo despachá-la… - explicou Diana em pânico.
      - Mas quem é?
    - Uma tal de Ganesha. – temia ouvir um berro do outro lado da linha, a mulher devia ser uma lunática qualquer e ouviria poucas e boas do patrão.
     - Passe. – disse secamente, sentindo o coração a explodir de entusiasmo. Era ela! – Desculpe, é uma chamada importante, serei rápido. – informou a paciente, que o olhava curiosa. – Estou?
     - Olá. Estou a interromper? – Marta sentia o coração na boca, a atrapalhar-lhe o discurso.
    - Não. Ainda bem que ligaste… - murmurou para o telefone, virando-se ligeiramente para o lado, para evitar o olhar da paciente.
   - Não sei o teu número de telemóvel… e pensei que gostasses de saber que cheguei bem. – enrolava os dedos no cabo do telefone, nervosa.
    - Ainda bem,… e o Filipe? Está bem? – perguntou, olhando na direção contrária da mulher que o examinava a ele e ao seu telefonema.
     - Nem por isso… anda abatido, acho que tem saudades tuas… - sentiu toda a sua face corar de repente.
      - Só ele? – esfregava a mão livre na perna, nervoso.
      - Não. – disse, depois de uns momentos de silêncio.
     - Posso ligar-te mais tarde? – olhou a paciente com um sorriso amarelo, sentindo-se a escaldar de vergonha.
      - Eu ligo. Vou pedir o teu número à deusa da caça! – brincou – Beijos.
    - Ok, até logo então. – desligou o telefone, encarando a senhora, que lhe sorria divertida, deixando-o ainda mais encavacado. – Uma chamada urgente… - pigarreou, retomando uma postura profissional, com a cara ainda a ferver.
      - Não há problema nenhum. – disse educadamente a senhora, sorrindo com vontade. Era muito reconfortante sentir que aqueles médicos, normalmente tão seguros de si mesmos, também possuíam um lado humano, e este, estava apaixonado.
    - Bem, dizia-me que gostaria de mais atenção, dedicação, é compreensível, uma vida inteira dedicada à família, quando os filhos começam a ser independentes, é normal as mães se sentirem subitamente sós.
    - É isso mesmo, fiquei subitamente sozinha e isso põe-me triste e perdida. Mas é tudo uma questão de adaptação, certo? – perguntou esperançosa. Sem que ele tivesse percebido, aquele telefonema animara-os aos dois. Algo de muito simples lhe surgira na mente, a visão do que os seus próprios filhos deveriam sentir, agora que se dedicavam a outros amores, que não os maternais, e ela não os podia censurar. Era a paixão, o amor, o desejo que os apanhava desprevenidos, tal como aquele médico ficara ao ouvir a voz da sua paixão do outro lado do telefone. Completamente apanhado!

     Saiu do quarto onde se isolara para fazer o telefonema que a deixara sem sono de domingo para segunda. A Dazinha tinha ficado de “orelhas em pé”, tal como o Filipe, tinham os dois um “faro” incrível quando o assunto eram os seus sentimentos. Precisava de a descansar de que estava tudo bem e a razão do seu nervosismo não era medo, mas entusiasmo por ouvir a voz dele… Parecera-lhe triste, abatido, mas mais logo telefonaria e descobriria o que se passava. Secretamente desejava que estivesse assim por sentir a sua falta, mas isso já seria pedir muito, concluiu pouco segura de si mesma. Porque haveria ele de se afetar com saudades, se apenas estava longe há um dia? Sacudiu os seus raciocínios da mente e entrou na cozinha, abrindo um sorriso franco ao ver o seu bolo preferido a sair do forno.
      - Ah! Que bom… Já te disse que te adoro?

    - Tem aí o registo da chamada de há pouco? – perguntou a Diana, que se sobressaltou com medo de ser repreendida por ter passado um telefonema a meio de uma consulta e ter dado o número pessoal do patrão à mulher persistente que lhe deu a volta demasiado rápido.
    - Sim, consigo ver isso, só um momento. – apressou-se a procurar o número nos registos do telefone moderno, encontrando-o prontamente. Ainda se recordava do indicativo diferente do de Coimbra. Pegou num post-it, escreveu rapidamente e entregou-lho sorrindo satisfeita. – Aí está!
     - Obrigado, até amanhã. – João deu meia volta e saiu, colocando o papel no bolso. Sentia-se pior que um garoto prestes a entrar num parque temático, uma excitação neurótica invadira-o desde que Marta o surpreendera com o telefonema depois de almoço. Esforçara-se por se concentrar, mas na sua cabeça apenas imaginava Marta a consolar Filipe, tristonho pela sua ausência, e isso punha-o estupidamente feliz. Não via a hora de chegar a casa, tomar banho e esperar pelo telefonema dela. E enquanto ela não ligasse, iria descobrir mais algumas coisas sobre o seu passado, ou tentar, pois apenas tinha um número de telefone e poderia ser inútil na sua pesquisa. Algo lhe dizia que Marta não era bem a pessoa que ele imaginara quando a conheceu. Independentemente do que ela fosse, o que ele queria mesmo era descobrir que ela o tinha enganado, que lhe mentira, e tivesse um motivo digno para o ter feito.
      Entrou no carro e conduziu o mais rapidamente possível até casa, queria privacidade para aquele telefonema, para a ouvir, sem interrupções nem distrações.


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sexta-feira, 4 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 8 (1ª parte)




      Nélia caiu para o lado vazio da cama, estoirada com aquela abordagem animal que não sabia que João possuía. Da primeira vez fora patético, mas naquela noite parecia outra pessoa, determinado, possessivo e sexy. Talvez começasse a gostar da sua companhia, desejou esperançosa, posicionando-se de lado, à espera que ele a olhasse apaixonado. João levantou-se, pegou na carteira, tirou uma nota e poisou-a na mesa de cabeceira.
      - Chama um táxi, está aqui o dinheiro. – disse, sem sequer a olhar, enfiando-se cobardemente na casa de banho e fechando a porta.
     Ficou a olhar o dinheiro, com os olhos rasos de água, sem reação. Depois de uns minutos de perplexidade, começou a pensar novamente e vestiu-se, sentindo uma humilhação que a queimava por dentro. Já tinha alcançado o limite da dignidade, sentia-se uma puta. Pegou na nota, saiu porta fora, entrando apressada no elevador enquanto olhava a sua figura ordinária no espelho. Uma mulher suja e descabelada mirava-a com pena, recriminando-a. Duas lágrimas grossas caíram dos olhos da sujeita, e Nélia chorou com ela, explodindo de raiva.

     Engoliu dois comprimidos inteiros, depois de dar dois murros na porta da casa de banho, e quase partir um dedo. Marta não lhe saíra da cabeça o tempo todo, imaginando-a na sua cama, fantasiando que a outra era ela, a que realmente queria que ali estivesse. Salvador tinha razão, lamentou-se agoniado, estava apaixonado pela professora. Meteu-se no duche e deixou-se ficar tempo suficiente para que Nélia já tivesse desaparecido de sua casa, não conseguiria encará-la. Fora uma autêntica besta, pensou, engolindo em seco.

    - Menina Isabel! – exclamou Adelaide em êxtase ao ver a sua querida menina, depois de tanto tempo, à porta de casa.
    - Dazinha… - caiu-lhe nos braços, largando as malas, e matando as saudades daquele abraço caloroso e forte.
    - Entre, entre, mas que horas são? Veio a conduzir sozinha a estas horas da noite? – reagiu preocupada, depois de se recompor.
     - Ainda não é meia-noite. Mas está tudo bem, eu vim devagar. – descansou-a – O que interessa é que cheguei, sã e salva. Os meus pais já estão a dormir? – perguntou enquanto olhava a sua casa com carinho, apercebendo-se de que tinha muitas saudades de tudo aquilo.
     - Já querida. Já dormem há muitas horas. Sabe como é, o seu paizinho deita-se com as galinhas! – brincou, ajudando-a a carregar as malas até ao quarto.
    - Então deixemo-los descansar. Amanhã de manhã faço-lhes uma surpresa! – beijou a empregada carinhosamente e poisou as suas coisas na cama de dossel. – Também preciso de dormir. E tomar banho! – sorriu de orelha a orelha imaginando a sua banheira.
       - Faça isso menina. Quer que lhe traga uma frutinha e um chá? – perguntou emocionada com a visão da sua menina de volta em casa, como antigamente.
       - Se não for dar muito trabalho… - abraçou-a, enquanto a empregada saía do quarto diligente.
      - Nunca foi trabalho. – beijou a face de Isabel e saiu a fungar, limpando os cantos dos olhos com um pequeno lenço de tecido.
Isabel fechou a porta, olhou em volta e deu um abraço em Filipe, que se colocou de pé, com as patas possessivas em cima dela.
      - Não te preocupes, ele já não vive cá. – descansou o animal que certamente tinha medo daquele lugar. Tinham vivido horrores naquele quarto, mas Isabel esforçava-se por só visualizar o passado feliz da sua infância e adolescência, antes de Tiago ter entrado nas suas vidas, quando aquele quarto era o palco de histórias de princesas e cavaleiros apaixonados, e o futuro era uma doce expectativa no coração de uma menina sonhadora.
       Libertou-se do cão, despiu-se e encheu a banheira, entrando devagar. Que saudades… pensou feliz.


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quinta-feira, 3 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 7 (3ª parte)




João saiu do duche mais fresco e revigorado, mas ainda com aquelas cólicas incómodas na barriga, que não o deixavam em paz. Tinha prometido ao Salvador que o ia visitar à noite, e por muito que não lhe apetecesse, seria bem melhor que estar para ali sozinho a pensar nela. Vestiu-se, sempre revivendo a imagem dela na canoa, a espalhar suavemente água pelo corpo, cada vez mais intensa nos movimentos, e a olhá-lo provocadoramente. Quando calçou os sapatos, Marta já vinha de joelhos equilibrada na canoa na sua direção, agarrando-se-lhe ao pescoço, beijando-o.
- Porra! – bufou, levantando-se da cama enfurecido com a sua mente indisciplinada. – Mas que merda! – agarrou nas chaves e carteira com um gesto brusco e saiu batendo a porta com estrondo. A sua vontade era ir direito à casa dela e tirar a limpo a história de que ela não gostava de homens, pensava enraivecido, carregando nos botões do elevador com força. Tinha quase a certeza de que ela tinha ficado excitada quando lhe massajou as pernas e os pés debaixo da mesa ao almoço. Já não era nenhum garoto sem experiência, sabia que ela tinha gostado, e aquele brilho no olhar… - Podes parar, pelo amor de Deus? – pediu a si mesmo em voz alta, engolindo em seco com a lembrança do toque suave da sua pele. Entrou no carro e carregou no acelerador obrigando-se a manter a rota em direção ao bar. Tinha de se acalmar, recuperar o bom senso, aquela energia sexual frustrada era muito má conselheira, pensou, abrindo o vidro e respirando o ar fresco da rua. E era só isso que o punha louco, falta de sexo, explicava a si mesmo. Nada mais.

-Volta aqui, não torno a pedir… - Tiago esticou a mão, num raro gesto de carinho, pedindo-lhe que voltasse para dentro do carro. Isabel engoliu em seco e obedeceu, não queria chateá-lo, faltava muito pouco para se livrar daquele pesadelo. Só mais um mês… encorajava-se, pedindo aos Céus que ele não lhe batesse, não ali, à luz do dia. Filipe seguiu-a, entrando no carro com um leve rosnar. – O que é que esse cão quer? – berrou Tiago, canalizando a sua fúria para o pequeno animal que gania, tentando esconder-se debaixo dos bancos do carro. - Para, por favor, ele ainda é bebé! Bate-me a mim! – implorou, chorando e agarrando-lhe nos braços que se mexiam freneticamente. Tiago endireitou-se no banco e retomou a respiração calma, ignorando-a e ligando o motor do carro, como se nada se tivesse passado. Filipe não emitiu mais nenhum som, mantendo-se em pânico escondido, e Isabel fazia força para não chorar, o que o irritaria ainda mais. Nenhum dos dois falou até casa, Isabel pegou no pequeno animal e entrou no solar, sorrindo para a Dona Adelaide, sua segunda mãe, que a conhecia melhor que ninguém e que não aprovava aquele casamento. Entrou no quarto, evitando conversas e Tiago seguiu-a, trancando a porta e colocando a chave no bolso, devagar e ameaçadoramente. – O que foi, Tiago? – gemeu, a tremer com o silêncio dele. – Não me pediste que te batesse?”

Acordou do transe quando Filipe lhe começou a lamber a cara, limpando-lhe as lágrimas que caíam sem parar. Marta isolara-se na sala de prática de yoga, onde normalmente conseguia recuperar a estabilidade emocional e evitar preocupações, mas o facto de estar a envolver-se com outra pessoa exumava velhos cadáveres que tinham sido enterrados com dificuldade. Lembranças dolorosas sobre casamento, relacionamento amoroso, sufocavam-na, destabilizando-lhe as emoções que, desde que conhecera João, andavam em remoinho dentro dela. Abraçou o cão, companheiro do seu martírio, e chorou mais um pouco. Precisava de se afastar de tudo aquilo, disse a si mesma decidida. Levantou-se, fez a mala, trancou a casa e saiu. Quanto mais depressa, melhor.


- Olha, olha, o Pinga-Amor! – gozou Salvador, cumprimentando João que se sentou amuado ao balcão.
- Um whisky. – disse secamente, olhando-o com cara de poucos amigos.
- Então ouve lá, não trouxeste a professora para beber um copo?
- Não. Ela foi a Castelo Branco. – resmungou, já sem paciência para o aturar.
- Que pena… Mesmo lésbica, é uma alegria para as vistas! – brincou, à espera da reação do amigo.
- Olá! Era mesmo o gajo que eu precisava de encontrar! – disse entusiasmado a um amigo que acabava de se sentar ao seu lado.
- Então João, tudo bem? Olá Salvador, o mesmo que aqui o Dr. – disse, divertido com a súbita rima.
- Ainda trabalhas na Câmara Municipal?
- Claro! Precisas de alguma coisa? – respondeu prontamente.
- Sim, cobrar aquele favorzito. – explicou, sorrindo-lhe satisfeito.
- Fala baixo. – advertiu-o, olhando desconfortável ao seu redor, com medo que João falasse algo que o prejudicasse. – O que é que queres?
- Sim, João, o que é que tu queres dos serviços municipais? – perguntou Salvador, a rejubilar com aquilo, e posicionando-se mais de perto para descobrir o que o amigo andava a magicar, mas já com uma leve ideia do que seria. Marta explicara-lhes ao almoço os problemas que tinha com a Câmara há vários anos, e um mais um eram dois.
João olhou-o com censura, mas ignorou-o propositadamente, voltando-se para o amigo do lado.
- Tens de me resolver um problema de saneamento. Aponta aí a morada, e nada de desculpas de político. – disse prontamente, indicando a morada e o local exacto.
- Não sei se consigo isto para já… - reagiu sem jeito, pensando na trabalheira que iria ter para conseguir corresponder ao pedido.
- Esta semana. A proprietária vai estar fora esta semana, e é bom que quando ela chegue possa abrir a torneira da água em usar a água da rede! – ordenou, dando-lhe uma palmada de solidariedade nas costas.
- Fogo João, só me lixas… - resmungou, levantando-se e afastando-se com o whisky na mão.
- O Amor é louco, não façam pouco, dessa loucura! – cantarolou Salvador, fugindo do braço de João, que o tentava agarrar para o calar.
- Eu não gosto dela! Para com isso! Só estou a tentar ajudar. – explicou-se, aborrecido.
- Então se não gostas, prova-o. Chegou agora a tua outra amiga do peito, a louraça. – indicou-lhe com o queixo. – Quero ver se também lhe vais pedir algum favor para a Marta…
- Vai-te f… - não terminou a palavra, sendo abraçado por Nélia, sem cerimónias.
- Olá… - ronronou, beijando-o nas duas faces.
- Olá, tudo bem? Vamos? – agarrou-a por um braço e indicou-lhe o caminho, dirigindo-a para fora do bar, enquanto Salvador abanava a cabeça divertido com o temperamento explosivo de João.
- Mas que pressa! Vamos aonde? – perguntou entusiasmada.
“Aonde”?, pensou João entristecido com a forma parola com que a Nélia falava sem disfarçar. Se havia coisa que lhe tirava a tesão eram gajas brejeiras, lamentou-se. Mas sentia-se carregado de fúria, frustração e energia por gastar, e ela gostava do sexo ranhoso que ele conseguia oferecer-lhe. Melhor que aquilo, impossível.



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