“-
Odeio-te, deixa-me em paz! – gritou Isabel, fechando a porta do
quarto na cara de João. – Deixa-te de histerismos! – berrou-lhe
de volta, dando uma palmada na porta. Aquele casamento estava a ir
por água abaixo, pensou, farto de tudo aquilo. – Eu só queria um
filho, egoísta de merda! – exclamou descontrolada de dentro do
quarto. João sabia que um dia ela lhe iria atirar aquilo à cara.
Agora era tarde demais, Isabel não poderia engravidar nos próximos
anos, teria de tratar o cancro primeiro. Era óbvio que ela temia
morrer, sabia-o, e ele não lhe tinha concretizado o sonho antes
disso. Engoliu em seco, pegou nas chaves e saiu. Se ela morresse não
teria hipótese de se redimir. Mais uma culpa para juntar ao rol.”
-
Dr. João, Dr.! – chamou Diana, receosa de que o patrão a
repreendesse por estar a interromper o seu transe habitual.
-
Sim? – olhou-a desconcertado, confuso com todas as lembranças que
o perseguiam desde sábado à noite.
-
Posso mandar entrar a paciente? – já estavam atrasados nas
consultas, o médico estava particularmente pouco eficiente naquela
segunda-feira, e as pessoas começavam a reclamar na sala de espera.
-
Sim, claro. – respondeu sem vida.
-
Dona Sara Mendes, pode entrar por favor. – indicou Diana, abrindo
mais a porta para a senhora de meia idade.
-
dona… - rosnou João baixinho, recriminando a forma pouco educada
de se chamar uma Senhora daquelas. Mas
seria possível que só lhe arranjassem funcionárias burras?
– Bom dia Sara, como vai? – cumprimentou-a cerimoniosamente,
deixando-a sentar primeiro, e depois retomando o seu lugar na cadeira
em frente.
-
Bom dia Dr., estou um pouco melhor, acho eu. – confessou pouco
convencida, descontraindo na cadeira.
-
Bem, já é um começo. Tem feito a medicação que lhe receitei?
Dorme melhor?
-
Sim, tudo direitinho, durmo muito bem. Pareço uma pedra, acordo de
manhã fresca que nem uma alface! – brincou, dando uma leve
gargalhada, de olhos tristes.
-
Mas…
-
Mas… dormir bem não é o suficiente.
-
E o que acha que seria o suficiente para si?
-
Um pouco de atenção, que o meu marido me olhasse de vez em quando…
- confessou envergonhada.
-
Sim, seria o mínimo que um marido deveria fazer pela mulher. –
disse sentindo um buraco de culpa no estômago.
-
Cada vez estamos mais afastados. Não consigo alterar o rumo que o
nosso casamento está a levar.
O
telefone interrompeu a consulta, deixando João aborrecido.
-
Peço desculpa Sara, deve ser urgente para a minha secretária estar
a ligar. – desculpou-se, atendendo o telefonema.
-
Faça favor, Dr. Não se preocupe.
-
Sim? – disse bruscamente.
-
Dr., tenho ao telefone uma senhora que insistiu muito em falar
consigo, diz que é urgente, não consigo despachá-la… - explicou
Diana em pânico.
-
Mas quem é?
-
Uma tal de Ganesha.
– temia ouvir um berro do outro lado da linha, a mulher devia ser
uma lunática qualquer e ouviria poucas e boas do patrão.
-
Passe. – disse secamente, sentindo o coração a explodir de
entusiasmo. Era
ela!
– Desculpe, é uma chamada importante, serei rápido. – informou
a paciente, que o olhava curiosa. – Estou?
-
Olá. Estou a interromper? – Marta sentia o coração na boca, a
atrapalhar-lhe o discurso.
-
Não. Ainda bem que ligaste… - murmurou para o telefone, virando-se
ligeiramente para o lado, para evitar o olhar da paciente.
-
Não sei o teu número de telemóvel… e pensei que gostasses de
saber que cheguei bem. – enrolava os dedos no cabo do telefone,
nervosa.
-
Ainda bem,… e o Filipe? Está bem? – perguntou, olhando na
direção contrária da mulher que o examinava a ele e ao seu
telefonema.
-
Nem por isso… anda abatido, acho que tem saudades tuas… - sentiu
toda a sua face corar de repente.
-
Só ele? – esfregava a mão livre na perna, nervoso.
-
Não. – disse, depois de uns momentos de silêncio.
-
Posso ligar-te mais tarde? – olhou a paciente com um sorriso
amarelo, sentindo-se a escaldar de vergonha.
-
Eu ligo. Vou pedir o teu número à deusa da caça! – brincou –
Beijos.
-
Ok, até logo então. – desligou o telefone, encarando a senhora,
que lhe sorria divertida, deixando-o ainda mais encavacado. – Uma
chamada urgente… - pigarreou, retomando uma postura profissional,
com a cara ainda a ferver.
-
Não há problema nenhum. – disse educadamente a senhora, sorrindo
com vontade. Era muito reconfortante sentir que aqueles médicos,
normalmente tão seguros de si mesmos, também possuíam um lado
humano, e este, estava apaixonado.
-
Bem, dizia-me que gostaria de mais atenção, dedicação, é
compreensível, uma vida inteira dedicada à família, quando os
filhos começam a ser independentes, é normal as mães se sentirem
subitamente sós.
-
É isso mesmo, fiquei subitamente sozinha e isso põe-me triste e
perdida. Mas é tudo uma questão de adaptação, certo? –
perguntou esperançosa. Sem que ele tivesse percebido, aquele
telefonema animara-os aos dois. Algo de muito simples lhe surgira na
mente, a visão do que os seus próprios filhos deveriam sentir,
agora que se dedicavam a outros amores, que não os maternais, e ela
não os podia censurar. Era a paixão, o amor, o desejo que os
apanhava desprevenidos, tal como aquele médico ficara ao ouvir a voz
da sua paixão do outro lado do telefone. Completamente apanhado!
Saiu
do quarto onde se isolara para fazer o telefonema que a deixara sem
sono de domingo para segunda. A Dazinha tinha ficado de “orelhas em
pé”, tal como o Filipe, tinham os dois um “faro” incrível
quando o assunto eram os seus sentimentos. Precisava de a descansar
de que estava tudo bem e a razão do seu nervosismo não era medo,
mas entusiasmo por ouvir a voz dele…
Parecera-lhe triste, abatido, mas mais logo telefonaria e descobriria
o que se passava. Secretamente desejava que estivesse assim por
sentir a sua falta, mas isso já seria pedir muito, concluiu pouco
segura de si mesma. Porque haveria ele de se afetar com saudades, se
apenas estava longe há um dia? Sacudiu os seus raciocínios da mente
e entrou na cozinha, abrindo um sorriso franco ao ver o seu bolo
preferido a sair do forno.
-
Ah! Que bom… Já te disse que te adoro?
-
Tem aí o registo da chamada de há pouco? – perguntou a Diana, que
se sobressaltou com medo de ser repreendida por ter passado um
telefonema a meio de uma consulta e ter dado o número pessoal do
patrão à mulher persistente que lhe deu a volta demasiado rápido.
-
Sim, consigo ver isso, só um momento. – apressou-se a procurar o
número nos registos do telefone moderno, encontrando-o prontamente.
Ainda se recordava do indicativo diferente do de Coimbra. Pegou num
post-it, escreveu rapidamente e entregou-lho sorrindo satisfeita. –
Aí está!
-
Obrigado, até amanhã. – João deu meia volta e saiu, colocando o
papel no bolso. Sentia-se pior que um garoto prestes a entrar num
parque temático, uma excitação neurótica invadira-o desde que
Marta o surpreendera com o telefonema depois de almoço. Esforçara-se
por se concentrar, mas na sua cabeça apenas imaginava Marta a
consolar Filipe, tristonho pela sua ausência, e isso punha-o
estupidamente feliz. Não via a hora de chegar a casa, tomar banho e
esperar pelo telefonema dela. E enquanto ela não ligasse, iria
descobrir mais algumas coisas sobre o seu passado, ou tentar, pois
apenas tinha um número de telefone e poderia ser inútil na sua
pesquisa. Algo lhe dizia que Marta não era bem a pessoa que ele
imaginara quando a conheceu. Independentemente do que ela fosse, o
que ele queria mesmo era descobrir que ela o tinha enganado, que lhe
mentira, e tivesse um motivo digno para o ter feito.
Entrou
no carro e conduziu o mais rapidamente possível até casa, queria
privacidade para aquele telefonema, para a ouvir, sem interrupções
nem distrações.
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