-
Filipe! – gritou Isabel, já a perder a paciência com o
comportamento irracional do cão. Desde que se embrenharam no jardim
traseiro da casa que o animal mudara completamente a atitude. Passara
de brincalhão a nervoso, correndo contra ela, colocando-lhe as patas
em cima, descontrolado e agressivo. – Estás a magoar-me! Para! Eu
desisto, vamos para casa. – deu meia volta e caminhava frustrada,
quando um arrepio de frio a atingiu no pescoço, fazendo-a voltar-se
de repente, gelada de medo. Algo se passava de facto, o cão tinha
motivos para estar nervoso, alguém os estava a vigiar, tinha quase a
certeza, pensava, acelerando o passo em direção à casa. Filipe
corria a seu lado, também ele sem desviar a atenção das sombras
fantasmagóricas que os ladeavam como um casulo sufocante. Isabel
alcançava as imediações da casa quando deixou de ver Filipe a seu
lado, aumentando-lhe os nervos. Olhou para trás e viu o cão parado,
a fitar algum perigo, eriçado, pronto a atacar. Uma recordação
antiga de Tiago a espancar o cão deixou-a em pânico, obrigando-a a
voltar atrás para o trazer consigo para casa. – Filipe! Anda cá!
– gritou, não sendo obedecida. Caminhou mais um pouco, sempre
chamando o animal, que continuava fixado, sem reagir. – Filipe, por
favor, volta… - gemeu, a sentir as pernas bambas, prestes a
desmaiar. Como que sentindo o seu medo, Filipe correu na sua direção,
espevitando o seu instinto de sobrevivência e dando-lhe ânimo para
tornar a dirigir-se para a casa. Pararam a fuga histérica assim que
atingiram um local seguro, respirando com esforço do sprint. Isabel
confortou o cão, agarrando-o maternalmente, e puxando-o pela coleira
para dentro da habitação, evitando que ele lhe fugisse de novo.
Dirigiu-se ao quarto o mais rapidamente possível, a fim de evitar
encontrar-se com os pais, ou pior, com a sua Dazinha, que iria
perceber a sua aflição. Sentou-se na cama e esticou-se para fechar
a grande cortina, selando assim qualquer imagem do jardim que a
pudesse enervar. Pegou no telefone e marcou o número de telemóvel
de João. Precisava de o ouvir.
-
Estou? – respondeu-lhe uma voz ansiosa ao fim do primeiro toque.
-
Olá… - o som familiar do outro lado da linha soltou-lhe a emoção
do episódio enervante de minutos antes, e as lágrimas correram-lhe
sem lhe obedecer.
-
Olá. – disse, confuso com o silêncio que Marta mantinha. –
Marta? Estou?
-
Sim, desculpa, deixei de te ouvir. – mentiu, respirando fundo e
disfarçando a voz embargada do choro. Limpou a cara com a manga da
camisola e recompôs-se. – Já estás em casa?
-
Sim, já cheguei há algum tempo. E por aí? Tudo bem?
-
Sim, claro. Estive agora a passear com o Filipe. Fomos apanhar ar.
Hoje esteve imenso calor durante o dia, só agora ficou possível
andar lá fora.
-
E ele? Já está mais conformado com a nossa separação forçada? –
brincou, esticando-se na cama, satisfeito.
-
Acho que sim. Queres falar com ele? – perguntou a recuperar a
disposição e esticando-se na cama, a sorrir.
-
Claro, chama-o lá.
-
Filipe, anda cá. Vem falar aqui com o teu amigo. – colocou o
auscultador perto do focinho do cão, que fungou, cheirando o
aparelho curioso.
-
Olá Filipe! Quando voltas? – disse com a voz colocada.
-
Não vais acreditar, ele deu uma pirueta! – comentou animada.
-
Eu tenho esse efeito nos cães… - gozou.
-
Estou a ver que sim, que és um autêntico encantador de cães.
-
De cães e não só. Só tu é que pareces imune. – confessou,
sentindo um aperto no estômago.
-
E o César e a Elisabete? Tens falado com eles? – desconversou, a
sentir-se corar.
-
Não. Amanhã talvez jante com eles. – respondeu meio desiludido
com a atitude dela.
-
Conta-me como foi o teu dia. – pediu-lhe, tentando remediar a
conversa, alongando o telefonema o mais que conseguisse.
-
O normal, pessoas desesperadas, tristes, deprimidas, uma alegria. –
ironizou.
-
Não é fácil o que fazes, pois não? – perguntou carinhosamente.
Se pudesse abraçá-lo-ia naquele momento.
-
Não, mas há certamente coisas piores para ganhar a vida.
-
Tais como?
-
Fazer exames retais a vacas, ser pendura do carro do lixo, ser
calceteiro… - brincou, pegando no livro do Kamasutra e ganhando
coragem para a testar.
-
És muito cómico, sabias? – sorriu de orelha a orelha, imaginando
a cara dele a enumerar aquelas tarefas ingratas.
-
Marta, gostava de te perguntar uma coisa.
-
Sim, o que foi? – engoliu em seco, reagindo ao tom mais sério com
que João lhe falava.
-
Estava aqui a ler o teu livro enquanto esperava que me ligasses, -
confessou sem se aperceber – e queria saber se alguma vez
praticaste alguma destas posições.
-
Como? – lançou surpreendida.
-
Sim, queria saber se já fizeste isto.
-
Porquê? – perguntou receosa, temendo que aquilo fosse uma ratoeira
para que ela se explicasse. Ele já devia andar desconfiado de que
ela não fosse homossexual.
- Porque aqui só há instruções para um casal hétero, tenho tentado
perceber como podes ter utilizado isto com outra mulher, e acho que
não dá. – explicou, percorrendo as páginas devagar, analisando
por alto uma e outra ilustração.
-
Pois. – limitou-se a dizer, engolindo em seco.
-
Pois o quê? – sorriu satisfeito com o silêncio dela.
-
Nunca o fiz. – mentiu, omitindo qualquer informação adicional –
Tu és muito curioso. – recriminou-o – E isso não são perguntas
que se façam a uma senhora!
-
Desculpe, minha senhora. – poisou o livro e recostou-se novamente.
-
Está desculpado.
-
Posso fazer outra pergunta, minha senhora? – questionou-a a
sentir-se com sorte.
-
Se não for de cariz privado, sim.
-
Gostava de um dia destes ir passear ao Gêres?
-
Ao Gerês? – excitou-se com a ideia – Com quem, pode-se saber? –
perguntou dissimulada.
-
Com o Filipe e um motorista.
-
Claro, adoraria ser transportada até lá, se fosse num carrão
desportivo azul metálico, então… seria perfeito!
-
Óptimo! – disse feliz com a ideia.
-
Agora sou eu a fazer as perguntas. – avisou-o, mudando de posição
na cama.
-
Com certeza. Pergunte o que quiser.
-
Como se chamava a tua mulher?
-
Isabel.
-
Desculpa? – tossiu com a coincidência de ter o mesmo nome da
ex-mulher dele, engasgando-se.
-
Isabel. Porquê?
-
Nada. É um nome bonito. – disse honestamente.
-
Pois é, mas atualmente gosto mais de outro. – confessou, sentindo
as pernas dormentes.
-
E há quanto tempo ela morreu? – questionou-o, mudando
estrategicamente o rumo da conversa.
-
Há quatro anos. De cancro. Foi terrível. Não tive mais ninguém
(permanente) desde então. – enumerou, para evitar mais
interrogatórios sobre o tema.
-
Desculpa, não te queria aborrecer.
-
Não me estás a aborrecer, só não quero gastar o tempo contigo a
falar disso. Quando voltas?
-
Não sei. Tenho uns assuntos chatos para resolver por aqui, mas vou
tentar ir sexta. Não prometo. – explicou, sentindo-se infeliz com
a ideia de não o ver durante tantos dias.
-
Quando chegares tenho uma surpresa para ti.
-
Surpresa? Não me digas que mete mais canoas… - gemeu, temendo mais
provações na água em embarcações minúsculas.
-
Nada disso. Vais gostar! – exclamou misterioso.
-
O que é? Diz-me! – suplicou, detestava suspense.
-
Não. Quando voltares vês. - e esperava que fosse o mais rápido
possível.
Um
bater na porta do quarto de Isabel interrompeu-os subitamente.
-
Espera só um momento. Estão a chamar-me, não desligues. – poisou
o telefone e dirigiu-se à porta aborrecida. – Sim?
-
Menina, desculpe, mas a sua mãezinha precisa de fazer um telefonema
e a linha está ocupada há muito tempo. É melhor desligar, antes
que ela aqui venha. – informou-a Adelaide, preocupada com a
possível intromissão na privacidade da sua menina.
-
Ah, obrigada Dazinha. Vou já desligar. – voltou a correr para a
cama, retomando a chamada. – João? Desculpa, mas vou ter de
desligar. Esta linha é fixa e há mais gente na casa a querer
telefonar… - explicou, sentindo-se uma adolescente a quem tinham
chamado a atenção por estar há muito tempo em telefonemas com
namorados.
-
Temos de te arranjar um telemóvel! – disse autoritariamente.
-
Temos?
-
Tens. Não cabe na cabeça de ninguém no século XXI não teres
telefone móvel. Ainda para mais, andas de carro sozinha, se te
acontece alguma coisa, como fazes?
-
Não sei. Não gosto desses aparelhómetros. – concluiu, a pensar
que naquele momento adoraria ter um, só para poder estar toda a
noite à conversa com ele.
-
Ok, depois falamos melhor sobre isso. Amanhã ligas, ou queres que eu
ligue? – perguntou a sentir-se deprimido com o fim do telefonema.
-
Eu ligo, não tens o meu número…
-
Marta, os telemóveis mostram o número que nos está a telefonar…
- explicou com vontade de rir da ignorância informática dela.
-
Pronto, está bem. A partir de que horas posso ligar?
-
Das sete.
-
Vamos ver quem liga primeiro então. – desafiou-o, sorrindo.
-
Adeus, até amanhã. Dá um beijinho meu ao Filipe e outro à dona.
-
Ok… até amanhã… - derreteu-se na almofada, a imaginá-lo a
beijá-la.
-
Vá, desliga.
-
Desliga tu.
-
Não…
-
Menina! A mãezinha vem aí! – avisou Adelaide, entrando no quarto
e interrompendo a conversa.
-
Tenho de ir. Beijos. – desligou o telefone, angustiada com aquela
separação tão repentina. Seria doloroso esperar até o ouvir de
novo.
João
ficou a olhar demoradamente para o telefone. Aquilo tinha sido
conversa de namorados, como dois miúdos, patéticos e desejosos de
se ouvirem. Uma pequena esperança desafiou-o a continuar a pesquisa
que Marta tinha interrompido ao telefonar. Pegou no portátil e abriu
o Google. Se havia alguma coisa sobre uma Marta de Castelo Branco,
ali encontraria, de certeza.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário