terça-feira, 8 de maio de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 8 (3ª parte)




     - Filipe! – gritou Isabel, já a perder a paciência com o comportamento irracional do cão. Desde que se embrenharam no jardim traseiro da casa que o animal mudara completamente a atitude. Passara de brincalhão a nervoso, correndo contra ela, colocando-lhe as patas em cima, descontrolado e agressivo. – Estás a magoar-me! Para! Eu desisto, vamos para casa. – deu meia volta e caminhava frustrada, quando um arrepio de frio a atingiu no pescoço, fazendo-a voltar-se de repente, gelada de medo. Algo se passava de facto, o cão tinha motivos para estar nervoso, alguém os estava a vigiar, tinha quase a certeza, pensava, acelerando o passo em direção à casa. Filipe corria a seu lado, também ele sem desviar a atenção das sombras fantasmagóricas que os ladeavam como um casulo sufocante. Isabel alcançava as imediações da casa quando deixou de ver Filipe a seu lado, aumentando-lhe os nervos. Olhou para trás e viu o cão parado, a fitar algum perigo, eriçado, pronto a atacar. Uma recordação antiga de Tiago a espancar o cão deixou-a em pânico, obrigando-a a voltar atrás para o trazer consigo para casa. – Filipe! Anda cá! – gritou, não sendo obedecida. Caminhou mais um pouco, sempre chamando o animal, que continuava fixado, sem reagir. – Filipe, por favor, volta… - gemeu, a sentir as pernas bambas, prestes a desmaiar. Como que sentindo o seu medo, Filipe correu na sua direção, espevitando o seu instinto de sobrevivência e dando-lhe ânimo para tornar a dirigir-se para a casa. Pararam a fuga histérica assim que atingiram um local seguro, respirando com esforço do sprint. Isabel confortou o cão, agarrando-o maternalmente, e puxando-o pela coleira para dentro da habitação, evitando que ele lhe fugisse de novo. Dirigiu-se ao quarto o mais rapidamente possível, a fim de evitar encontrar-se com os pais, ou pior, com a sua Dazinha, que iria perceber a sua aflição. Sentou-se na cama e esticou-se para fechar a grande cortina, selando assim qualquer imagem do jardim que a pudesse enervar. Pegou no telefone e marcou o número de telemóvel de João. Precisava de o ouvir.
      - Estou? – respondeu-lhe uma voz ansiosa ao fim do primeiro toque.
    - Olá… - o som familiar do outro lado da linha soltou-lhe a emoção do episódio enervante de minutos antes, e as lágrimas correram-lhe sem lhe obedecer.
      - Olá. – disse, confuso com o silêncio que Marta mantinha. – Marta? Estou?
      - Sim, desculpa, deixei de te ouvir. – mentiu, respirando fundo e disfarçando a voz embargada do choro. Limpou a cara com a manga da camisola e recompôs-se. – Já estás em casa?
      - Sim, já cheguei há algum tempo. E por aí? Tudo bem?
     - Sim, claro. Estive agora a passear com o Filipe. Fomos apanhar ar. Hoje esteve imenso calor durante o dia, só agora ficou possível andar lá fora.
    - E ele? Já está mais conformado com a nossa separação forçada? – brincou, esticando-se na cama, satisfeito.
    - Acho que sim. Queres falar com ele? – perguntou a recuperar a disposição e esticando-se na cama, a sorrir.
     - Claro, chama-o lá.
    - Filipe, anda cá. Vem falar aqui com o teu amigo. – colocou o auscultador perto do focinho do cão, que fungou, cheirando o aparelho curioso.
     - Olá Filipe! Quando voltas? – disse com a voz colocada.
     - Não vais acreditar, ele deu uma pirueta! – comentou animada.
     - Eu tenho esse efeito nos cães… - gozou.
     - Estou a ver que sim, que és um autêntico encantador de cães.
     - De cães e não só. Só tu é que pareces imune. – confessou, sentindo um aperto no estômago.
     - E o César e a Elisabete? Tens falado com eles? – desconversou, a sentir-se corar.
     - Não. Amanhã talvez jante com eles. – respondeu meio desiludido com a atitude dela.
    - Conta-me como foi o teu dia. – pediu-lhe, tentando remediar a conversa, alongando o telefonema o mais que conseguisse.
     - O normal, pessoas desesperadas, tristes, deprimidas, uma alegria. – ironizou.
   - Não é fácil o que fazes, pois não? – perguntou carinhosamente. Se pudesse abraçá-lo-ia naquele momento.
     - Não, mas há certamente coisas piores para ganhar a vida.
     - Tais como?
    - Fazer exames retais a vacas, ser pendura do carro do lixo, ser calceteiro… - brincou, pegando no livro do Kamasutra e ganhando coragem para a testar.
    - És muito cómico, sabias? – sorriu de orelha a orelha, imaginando a cara dele a enumerar aquelas tarefas ingratas.
      - Marta, gostava de te perguntar uma coisa.
      - Sim, o que foi? – engoliu em seco, reagindo ao tom mais sério com que João lhe falava.
     - Estava aqui a ler o teu livro enquanto esperava que me ligasses, - confessou sem se aperceber – e queria saber se alguma vez praticaste alguma destas posições.
     - Como? – lançou surpreendida.
     - Sim, queria saber se já fizeste isto.
   - Porquê? – perguntou receosa, temendo que aquilo fosse uma ratoeira para que ela se explicasse. Ele já devia andar desconfiado de que ela não fosse homossexual.
   - Porque aqui só há instruções para um casal hétero, tenho tentado perceber como podes ter utilizado isto com outra mulher, e acho que não dá. – explicou, percorrendo as páginas devagar, analisando por alto uma e outra ilustração.
    - Pois. – limitou-se a dizer, engolindo em seco.
    - Pois o quê? – sorriu satisfeito com o silêncio dela.
  - Nunca o fiz. – mentiu, omitindo qualquer informação adicional – Tu és muito curioso. – recriminou-o – E isso não são perguntas que se façam a uma senhora!
    - Desculpe, minha senhora. – poisou o livro e recostou-se novamente.
    - Está desculpado.
    - Posso fazer outra pergunta, minha senhora? – questionou-a a sentir-se com sorte.
    - Se não for de cariz privado, sim.
    - Gostava de um dia destes ir passear ao Gêres?
    - Ao Gerês? – excitou-se com a ideia – Com quem, pode-se saber? – perguntou dissimulada.
    - Com o Filipe e um motorista.
   - Claro, adoraria ser transportada até lá, se fosse num carrão desportivo azul metálico, então… seria perfeito!
    - Óptimo! – disse feliz com a ideia.
    - Agora sou eu a fazer as perguntas. – avisou-o, mudando de posição na cama.
    - Com certeza. Pergunte o que quiser.
    - Como se chamava a tua mulher?
    - Isabel.
   - Desculpa? – tossiu com a coincidência de ter o mesmo nome da ex-mulher dele, engasgando-se.
    - Isabel. Porquê?
    - Nada. É um nome bonito. – disse honestamente.
    - Pois é, mas atualmente gosto mais de outro. – confessou, sentindo as pernas dormentes.
   - E há quanto tempo ela morreu? – questionou-o, mudando estrategicamente o rumo da conversa.
   - Há quatro anos. De cancro. Foi terrível. Não tive mais ninguém (permanente) desde então. – enumerou, para evitar mais interrogatórios sobre o tema.
    - Desculpa, não te queria aborrecer.
    - Não me estás a aborrecer, só não quero gastar o tempo contigo a falar disso. Quando voltas?
   - Não sei. Tenho uns assuntos chatos para resolver por aqui, mas vou tentar ir sexta. Não prometo. – explicou, sentindo-se infeliz com a ideia de não o ver durante tantos dias.
    - Quando chegares tenho uma surpresa para ti.
   - Surpresa? Não me digas que mete mais canoas… - gemeu, temendo mais provações na água em embarcações minúsculas.
   - Nada disso. Vais gostar! – exclamou misterioso.
   - O que é? Diz-me! – suplicou, detestava suspense.
   - Não. Quando voltares vês. - e esperava que fosse o mais rápido possível.
   Um bater na porta do quarto de Isabel interrompeu-os subitamente.
  - Espera só um momento. Estão a chamar-me, não desligues. – poisou o telefone e dirigiu-se à porta aborrecida. – Sim?
   - Menina, desculpe, mas a sua mãezinha precisa de fazer um telefonema e a linha está ocupada há muito tempo. É melhor desligar, antes que ela aqui venha. – informou-a Adelaide, preocupada com a possível intromissão na privacidade da sua menina.
   - Ah, obrigada Dazinha. Vou já desligar. – voltou a correr para a cama, retomando a chamada. – João? Desculpa, mas vou ter de desligar. Esta linha é fixa e há mais gente na casa a querer telefonar… - explicou, sentindo-se uma adolescente a quem tinham chamado a atenção por estar há muito tempo em telefonemas com namorados.
   - Temos de te arranjar um telemóvel! – disse autoritariamente.
   - Temos?
   - Tens. Não cabe na cabeça de ninguém no século XXI não teres telefone móvel. Ainda para mais, andas de carro sozinha, se te acontece alguma coisa, como fazes?
   - Não sei. Não gosto desses aparelhómetros. – concluiu, a pensar que naquele momento adoraria ter um, só para poder estar toda a noite à conversa com ele.
   - Ok, depois falamos melhor sobre isso. Amanhã ligas, ou queres que eu ligue? – perguntou a sentir-se deprimido com o fim do telefonema.
   - Eu ligo, não tens o meu número…
   - Marta, os telemóveis mostram o número que nos está a telefonar… - explicou com vontade de rir da ignorância informática dela.
   - Pronto, está bem. A partir de que horas posso ligar?
   - Das sete.
   - Vamos ver quem liga primeiro então. – desafiou-o, sorrindo.
   - Adeus, até amanhã. Dá um beijinho meu ao Filipe e outro à dona.
   - Ok… até amanhã… - derreteu-se na almofada, a imaginá-lo a beijá-la.
   - Vá, desliga.
   - Desliga tu.
   - Não…
   - Menina! A mãezinha vem aí! – avisou Adelaide, entrando no quarto e interrompendo a conversa.
   - Tenho de ir. Beijos. – desligou o telefone, angustiada com aquela separação tão repentina. Seria doloroso esperar até o ouvir de novo.

João ficou a olhar demoradamente para o telefone. Aquilo tinha sido conversa de namorados, como dois miúdos, patéticos e desejosos de se ouvirem. Uma pequena esperança desafiou-o a continuar a pesquisa que Marta tinha interrompido ao telefonar. Pegou no portátil e abriu o Google. Se havia alguma coisa sobre uma Marta de Castelo Branco, ali encontraria, de certeza.



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