sexta-feira, 28 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 15 (5ª parte)





João conduzia possuído, rua abaixo, rua acima, tentando perceber onde é que ela estava. Mantinha a chamada em alta-voz desde que Isabel ligara sem querer, e quando ouviu a voz dela não conseguiu desligar o telemóvel. Sabia que não era correto, mas pediu licença ao paciente e saiu até a um local sossegado na clínica, ficando paralisado ao ouvir a descrição que ela dava a Elisabete. Sabia que ela estava a chorar, precisava de a ir ver, de a abraçar, ela tinha estado grávida e o ex-marido provocara-lhe um aborto com porrada… Sentia-se a explodir de raiva, capaz de o matar com as próprias mãos, se o visse à frente. Secretamente desejava encontrá-lo, mas sabia que isso seria improvável, portanto apenas lhe restava consolá-la. Viu-a dentro do café, sentada com Elisabete e parou o carro abruptamente, cruzando o olhar com ela. Isabel percebeu que ele vinha perturbado, olhou instintivamente o telemóvel e pegou-lhe.
- João? – disse com a voz trémula.
- Vamos embora, dá um beijinho à Lisa e vamos dar uma volta. – pediu-lhe.
Isabel obedeceu, e João saiu do carro, ajudando-a a entrar. Acenou adeus à amiga perplexa no café e dirigiu para longe dali, levando-os sem rumo definido. Assim que as ruas se tornaram menos povoadas, encostou o carro, tirou os cintos dos dois e puxou-a levemente para o seu colo.
- Desculpa, ouvi tudo… telefonaste-me sem querer… não consegui resistir quando me apercebi de que ias contar alguma coisa sobre ti… - confessou, olhando-a nos olhos.
- Não faz mal, iria contar-te tudo mesmo… assim já está. Não tenho de o repetir. – deveria sentir-se zangada com aquela invasão de privacidade, mas o facto é que estava aliviada. Aquele gesto de a ir procurar preocupado deixou-a de tal forma emocionada que não conseguiu culpá-lo. – Eu amo-te muito. Obrigada por me teres ido buscar. – beijou-o e deixou-se ficar enroscada nele, em silêncio.
- Se não fizeres queixa dele eu vou matá-lo. – avisou-a depois de uns minutos de silêncio.
- Quê?! – sobressaltou-se.
- É isso mesmo. E depois vais ter de esperar por mim 25 anos e ir à cadeia todas as semanas levar-me os comprimidos. – acrescentou, desanuviando um pouco a conversa.
- Ah, pensei que estivesses a falar a sério… Por favor, não quero mortes nenhumas…
- Eu estou a falar a sério. Ou vais agora comigo à polícia ou assim que eu o encontrar, mato-o. E isso vai-me dar a pena máxima. – olhou-a sério, beijando-lhe a boca seca.
- Está bem… Mas prometes-me que não fazes nada que te possa prejudicar? – perguntou receosa.
- Ele está-me a prejudicar neste preciso momento, e eu ficarei para sempre prejudicado enquanto ele andar solto, ou vivo. Entende uma coisa Isabel, eu amo-te. Esse homem fez-te muito mal, não pagou por isso, e ainda voltou a ameaçar-te depois de tudo o que se passou. O que queres que eu faça? Que finja que ele não te entrou pela casa a dentro e rabiscou as paredes? Que fique à espera que ele te mate? Porque acredita que se ele for esperto, primeiro vai tentar fazer-me mal a mim, porque sabe que agora não estás sozinha. Se ele tentar aproximar-se de ti terás alguém ao teu lado. Agora eu sei que ele vai atacar quem te está próximo, e espero que o faça cara a cara. Por isso, ou vamos agora à polícia e tentamos resolver isto através da legalidade, ou ficamos calados à espera do próximo passo dele, e aí, eu mato-o.
Isabel mergulhou a cara molhada no pescoço de João, chorando tudo o que reprimira no café, embalada pelos braços dele.


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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Escritas criativas, ou não


Um texto feito de propósito para um concurso de escrita criativa, que obedecia a algumas regras das quais já não me recordo, mas que me frustraram bastante... obviamente não ganhei! :)


Não conseguia tirar-lhe os olhos de cima há bastante tempo, completamente vidrada, como uma palerma, era uma visão maravilhosa… Fitou-me curioso por alguns segundos e senti-me envergonhada com a minha indiscrição, voltando novamente a atenção para o meu pequeno companheiro que se contorcia num emaranhado de cão e trela, debatendo-se furioso e levando-me à loucura. A minha incapacidade de o educar era notória, e subitamente o pequeno diabo soltou-se, correndo desenfreado pela esplanada, perante o desespero que me subia às faces, em tom de vermelho vivo, só com a ideia de que nunca mais o conseguiria apanhar. Percorreu todas as mesas, fintando-me e eu no seu encalço humilhava-me em público, sem rapidez para o alcançar, quando algo o fez estacar e prender a atenção no homem que me invadia os pensamentos, saltando-lhe no colo, sem cerimónias. Lambeu-lhe o queixo, pescoço e orelhas, sem vergonha nenhuma, e senti-me a querer desmaiar, teria de lhe falar, pedir desculpa, e Deus sabia como eu era má com palavras, como perdia o fio condutor, parecendo retardada e gaga. Levantou-se sorridente, estendeu-me o cão e um pequeno caderno onde momentos antes escrevera, "Gostava de falar consigo, sabe linguagem gestual? Dava imenso jeito agora! ” Estendeu-me a caneta e respirei fundo, aliviada. Nesse dia comecei a acreditar em Milagres.

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"A Mala Vermelha" - Cap 15 (4ª parte)




Só mais três pacientes, mentalizava-se, assim que o obsessivo compulsivo bateu a porta, aquilo era demais para uma manhã, lamentava-se, rodando a cabeça na tentativa de descontrair os músculos do pescoço. Devia haver profissões consideradas de desgaste emocional, com direito a mais tempo de férias que o que dizia a lei. Como era possível recuperar a saúde mental em menos de um mês, dividido durante o ano, se apenas num dia de trabalho João se sentia a rebentar pelas costuras… Olhou o telemóvel antes do próximo paciente entrar e enviou um sms a Isabel “estou farto de aqui estar… vamos tirar férias?”. A porta abriu-se e uma senhora entrou desmotivada. João poisou o aparelho e cumprimentou-a de sorriso forçado.
- Bom dia!

- Então, o que vais beber? – Elisabete questionou bem disposta.
- Pode ser um chá de laranja canela. – respondeu sorridente, sentindo o telefone vibrar na carteira. Elisabete pediu licença e levantou-se para ir aos lavabos, deixando Isabel à vontade para ver a mensagem em privado. Abriu o sms e no mesmo instante sentiu-se descontrair com a ideia de estar alguns dias longe com ele, talvez na praia, a aproveitar o resto de verão. Respondeu-lhe no mesmo momento, “sim, por favor…”, poisando o telemóvel na mesa quando Elisabete voltou.

- Isabel! Estou? Isabel? – João atendera a chamada dela, mas parecia que se tinha enganado e carregado nos botões sem querer. Ouvia barulhos, mas ninguém respondia de volta. – Isabel?

- Pronto, precisava mesmo de me refrescar, hoje foi puxado! – gracejou, sentando-se confortavelmente de frente para a sua professora.
- Sim, abusei um bocadinho. Mas andei a preguiçar estes dias e precisava de puxar por mim. – explicou sorrindo.
- E então querida? O que me querias falar?
- Bem… não sei por onde começar. – pigarreou, organizando as ideias – Primeiro, o meu nome não é Marta. Inventei esse nome porque ando “fugida” de um ex-marido abusivo, com quem estive casada dois anos e namorei muitos mais. – confessou, calando-se automaticamente com a presença do empregado que colocava os pedidos na mesa. – Deve estar confusa com o motivo porque lhe estou a contar pormenores pessoais da minha vida, mas como estou numa relação com o João, e ele já sabe da verdade, não faz sentido encontrarmo-nos todos um dia e a Elisabete me chamar de Marta…
- Claro querida. Mas não precisas de me contar nada, se não quiseres… - César já lhe explicara por alto os problemas da nova namorada do amigo, mas Elisabete sabia ser discreta.
- Preciso sim. Tenho de o fazer, porque a Marta vai desaparecer, já cumpriu o seu papel e agora preciso de encarar a minha realidade, se quiser ficar com o João. – explicou, bebendo um pouco do chá.
- Eu compreendo. De facto, sem resolveres primeiro a questão do teu passado não podes avançar.
- Precisamente. Eu conheci o Tiago ainda no liceu. Andámos juntos na faculdade, todos esperavam que nos casássemos um dia. Mas a dada altura ele transformou-se, começou a ser violento verbalmente, destratava-me num minuto, fazíamos amor no outro. Era estranho e complicado. Eu comecei a questionar o futuro de tudo aquilo e ele apercebeu-se, daí para a frente foi o caos. Um dia deu-me uma bofetada tão forte que me apanhou de tal forma de surpresa que não tive reação. Nem chorei, fiquei apenas perplexa, a olhá-lo. Ele caiu-me aos pés, implorou que o perdoasse,… enfim… era um louco e eu não quis acreditar na minha intuição. Engravidei sem querer e casámos. Foi o maior erro da minha vida. Porque é que disse que sim no altar, perante toda a família e amigos, se aquele homem me batia? Perguntei-me várias vezes nos momentos pós tareia. Pensei muitas vezes em deixá-lo, mas ele ameaçava-me que me tiraria o filho, fugiria com o bebé se eu o fizesse. Aquele filho ainda não tinha nascido e eu já estava no meu limite emocional, mas não podia sequer imaginar ficar sem ele, o meu Filipe (esse era o nome que já tinha escolhido)… - Isabel parou a confissão, procurando um lenço na carteira para limpar as lágrimas.
- Querida, por favor, não relembres esses assuntos… não é preciso contares-me nada. – suplicou Elisabete já a chorar também, entregando um lenço a Isabel e limpando-se com outro.
- Não, por favor, deixe-me dizer isto tudo. – respirou fundo e continuou – Vínhamos de um jantar com os meus pais. Tudo correra com relativa normalidade, pelo menos para mim. Mas sem que eu me apercebesse, fiz algo de errado durante a noite, nunca compreendi o quê. Só quando entrei no carro e ele trancou as portas, acelerando a fundo é que notei que tinha cometido alguma falha. Perguntei-lhe o que se passava, mas ele continuava a conduzir que nem um louco, sem me falar. Nunca tive tanto medo na vida… Se não estivesse grávida tinha-me lançado do carro em andamento… Levou-me para os arredores de Castelo Branco (onde vivíamos) e bateu-me dentro do carro. Ao início aguentei a fúria dele, pensando que seria como das outras vezes, ele dava-me umas lambadas, uns puxões de cabelo, e acalmava. Mas não,… da cara passou para a barriga, e dali fui parar ao hospital. Só me lembro de acordar e vê-lo esmurrado e ferido na cara, como se tivesse sofrido algum acidente, a olhar-me de lágrimas nos olhos. Os meus pais choravam com ele, e eu fiquei sem bebé. – Elisabete deu-lhe as mãos, fungando, e olhando noutra direção, sem a encarar. Isabel recompôs-se mais um pouco e continuou. Nunca tinha falado abertamente sobre aquilo com ninguém para além de dois ou três polícias e pessoas no tribunal. – Quando me disseram que o acidente de carro que tinha sofrido provocara um aborto, fiquei cega, levantei-me da cama, arranquei os tubos todos e lancei-me em cima dele. Queria matá-lo, e conseguiria fazê-lo naquele momento, mas ao contrário de mim, várias pessoas o protegeram da “louca”. Ele bateu-se para fingir um acidente… chorou ao meu lado a representar, depois de ter espancado a sua mulher e matado o seu próprio filho… Deram-me calmantes, durante vários dias, e depois, quando voltei para casa pedi o divórcio, pois naquele momento eu já não tinha medo que ele me matasse. Já não me importava, só queria que ele desaparecesse da minha vida. E se para isso eu tivesse de morrer, que fosse. Ironicamente ele não foi preso, nunca consegui provar que me batia, que me tinha espancado naquela noite, todos queriam que me calasse. Nessa altura pensei em suicídio, elaborei vários planos, mas não tive coragem. Não conseguira magoar a minha mãe e a Dazinha (a minha ama que ainda hoje vive com os meus pais). O Tiago já tinha causado sofrimento suficiente naquela família, não lhe iria dar mais aquele prazer. Consegui o divórcio à força, uma ordem de proibição de contacto, mas ele safou-se. À saída do tribunal, ameaçou-me, disse que nunca me deixaria em paz, que me mataria se o trocasse… e eu fugi, mudei a minha vida toda e vim para Coimbra, começar tudo de novo, com a Marta. Estive estes cinco anos em paz… embora não houvesse um único dia em que não me lembrasse do meu filho que ele matou, nunca mais tive notícias dele… até ontem. – Isabel bebeu mais um pouco de chá, engolindo com esforço.
- Mas esse homem apareceu ontem? – perguntou aflita.
- Ontem eu e o João chegámos do Gerês e quando entrámos na minha sala de yoga estavam lá escritas na parede ameaças… ele forçou a entrada, sabe que eu tenho outra pessoa, deve andar a vigiar-me desde sempre… - arrepiou-se com a ideia e poisou a chávena.
- Que horror… mas já foram à polícia, certo? – exclamou.
- Não… fiquei demasiado chocada ontem, não tive capacidade… - confessou envergonhada.
- Mas querida, tens de fazer queixa dele! Um monstro desses não pode andar por aí impune.
- Eu sei. Mas não queria envolver o João nos meus problemas… - fungou, limpando novamente os olhos – O Tiago é um estigma meu, que tenho de resolver sozinha. Não conseguiria viver se ele fizesse mal ao João.
- Aí eu não concordo contigo. É certo que o Tiago faz parte do teu passado, mas se o João já sabe, e quer estar contigo, está a aceitar esse problema também. Não acredito que ele vá permitir que tu lides com isto sozinha.
- Não sei… ainda é tudo muito recente. Ele mal me conhece e eu a ele… Não deveria ser assim o início de uma relação.
- Não é de facto o que normalmente acontece, mas é a vossa realidade. – resumiu pragmaticamente, dando-lhe novamente a mão.

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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 15 (3ª parte)




- Bom dia, Diana. Se alguém me ligar, por favor passe-me a chamada. – pediu à secretária, que se surpreendeu com o ar fresco e bem disposto do chefe.
-Bom dia Dr. Sim, claro. Espera uma chamada de alguém em especial? – perguntou de forma prática, havia sempre imensos pacientes que tentavam contactar o médico durante o dia. – É só que não o queria estar a interromper sempre que alguém precisa de saber quantos comprimidos pode tomar, ou… - começou a explicar, ficando corada logo de seguida com o sorriso do médico, que nunca tinha reagido a nada do que ela dissesse.
- Sim, esqueci-me desse pormenor. Só atendo a “Ganesha”, a Isabel, ou a Marta. – disse, entrando no gabinete satisfeito com o ar escandalizado de Diana. Sentia-se especialmente divertido, leve e com menos dez anos em cima. E tudo aquilo sem um único fármaco. Tinha de repensar as prescrições que fazia habitualmente aos seus pacientes, seria de facto necessária tanta droga? Problemas emocionais gerados por vidas conflituosas, frustradas, madrastas, que os ensinavam na escola a medicar com anestesiantes, compensado depois com estimulantes e finalizando com soporíferos, tudo devidamente legal e acessível economicamente. Seria aquele o caminho para a cura mental, ou apenas um adiar de problemas? Decidira-se pela psiquiatria por se sentir compelido a tratar nos outros aquilo que nunca tinha conseguido resolver dentro de si, e que vira matar a mãe, depois da morte de Filipe. Conscientemente sabia que as suas reações físicas à dor da perda e da culpa poderiam ter uma explicação neurológica, e aprendera a lidar com isso, à força de comprimidos estratégicos, fazendo as suas próprias experiências pessoais, até encontrar uma dose certa e o menos prejudicial possível. Lia todas as bulas, pesquisava os componentes, origens, efeitos a médio e longo prazo, tentando assim resolver o problema principal que lhe dominava a vida, sentir demais. Esse era o seu diagnóstico privado e secreto, o facto de amar demais, pensar demais, temer demais, numa angústia sufocante, que as drogas anulavam à superfície. Cresceu até à idade adulta acompanhado pelos frascos, conheceu Isabel, namorou, casou, e as doses cresceram com ele, ela morreu e já não havia remédio que o trouxesse totalmente de volta. César dizia-lhe que um dia teria a sua “noite negra”, que o corpo se fartaria de ser obrigado a reagir emocionalmente de forma artificial, e que lhe iria cobrar todas as lágrimas e gritos que João lhe negava, sempre que engolia mais um comprimido. Mas cada vez acreditava mais que o amigo se enganara na profecia profissional, Marta apareceu na sua vida, e com Isabel trouxera-lhe a cura, sem que o fundo do poço se tivesse revelado. O psiquiatra dentro de si levantava a sobrancelha em dúvida, e João olhava-o com desprezo. Se havia um poço no seu caminho, já o tinha ultrapassado e deixara ficar para trás.
Foi interrompido pelo bater leve na porta, pôs de lado os seus raciocínios e iniciou mais uma manhã de trabalho. Sentia-se especialmente esperançoso e positivo. Iria almoçar com ela, jantariam juntos, e no final do dia, dormiriam abraçados. Não havia melhor remédio.

- Marta, graças a Deus voltaste! – exclamou Elisabete ao entrar na sala de yoga e ver a sua professora preferida de volta.
- Olá, sim, foram apenas umas mini-férias. – explicou sem jeito, incomodada com o facto de que Elisabete a tratava pelo nome fictício e isso lhe soar estranho e indelicado, não queria que a amiga ficasse zangada quando descobrisse que tinha sido enganada.
- O César ontem disse-me que estás em casa do João… - disse baixinho de forma cúmplice – desculpa estar a ser indiscreta, mas fiquei tão feliz… não imaginas como sonhei com isto. Algo me dizia que vocês podiam dar certo… - continuou excitada – e não é que estava certa? O João é um amor, queria tanto que ele encontrasse uma mulher em condições…
- Sim, bem… obrigada. Eu também o acho um amor… - sentiu-se corar, ao ver o resto da classe atenta às palavras de Elisabete que falava um pouco alto demais com a emoção.
- Desculpa, estou a encavacar-te… vamos mas é à aula, depois falamos. Queres ir beber um chá quando sairmos?
- Sim, claro. Também queria falar-lhe sobre um assunto… mas não tem a ver com o João. – sossegou-a ao ver a ansiedade a surgir-lhe nos olhos.
- Tudo bem querida. Vou para o meu lugar, elas já me estão a olhar de lado. – deu uma espreitadela incomodada às colegas que esperavam na sala, de caras pouco sorridentes – Invejosas… - disse entre dentes, encaminhando-se para o fundo da sala.

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terça-feira, 25 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 15 (2ª parte)





Sentaram-se à mesa e Rosário parecia incomodada sem saber como se comportar, com aquela presença estranha ao pequeno-almoço.
- Já tomou café? – perguntou Isabel, decidida a acabar com o ambiente esquisito.
- Não, quer dizer, sim. – corrigiu embaraçada, procurando um pano para esfregar alguma superfície e se distrair enquanto eles não saíssem de casa.
- Rosário, sente-se por favor. Faça-nos companhia. – pediu João, relembrando-se de que Isabel não era snob nem conseguiria ignorar a presença de outra pessoa enquanto comiam.
- Então, com licença. – sentou-se aliviada com o facto de que a namorada do patrão não ser nenhuma dondoca arrogante, o que lhe dificultaria muito a vida e o trabalho.
- Dás-me boleia para Celas? – perguntou Isabel, que se lembrou naquele momento de que não tinha o jipe com ela e dava aulas de manhã.
- Achas que não há problema ires trabalhar? – uma leve azia subiu-lhe à garganta com a ideia de a deixar durante o dia.
- Tenho de ir, - começou a explicar, ligeiramente envergonhada com a atenção que Rosário dava à conversa – mas podemos almoçar, se quiseres… - sugeriu, corando com um apalpão debaixo da mesa.
- Combinado. – descontraiu ligeiramente e continuaram a refeição, incluindo a empregada na conversa, que se prontificou a fazer lanches para os dois, se precisassem, e adiantar o jantar, se fosse caso disso. Isabel e Rosário gostaram imediatamente uma da outra, e a primeira não confessou que era vegetariana ao vê-la tão entusiasmada com a receita de jardineira que “era a preferida do patrão”.
Despediram-se os três e o casal saiu, com Filipe amuado na varanda, por não ter ainda liberdade de movimentos. Isabel compadecia-se do cão, que não estava habituado a espaços fechados, mas João prometeu-lhes que iriam espairecer de tarde, deixando-a mais descansada. Queria que eles se sentissem bem consigo, que Isabel ponderasse nunca mais voltar sozinha para a casa na quinta. Amava-a e nunca se sentira tão bem a viver com uma mulher. Não tomava o rol de comprimidos desde que tinham saído para o Gerês, simplesmente não se lembrava da necessidade de os tomar, e ela era a responsável por isso. Puxou-a para um beijo apaixonado enquanto o elevador descia até ao rés-do-chão, e só se soltaram quando uns vizinhos reformados que entravam na cabine os alertaram de que já tinham chegado ao destino.
- Peço imensa desculpa… - disse Isabel corada até às orelhas, puxando João de dentro do elevador.
- Estão aqui, estão a proibir que andemos juntos no elevador na próxima reunião de condomínio! – brincou, divertido com o ar escandalizado da vizinha.
- Que vergonha…
- Vergonha é roubar e ser apanhado. – concluiu, puxando-a novamente para outro beijo, enquanto passavam mais vizinhos idosos.
- Ainda vamos presos por atentado ao pudor, ou expulsam-te do prédio. – disse, encaminhando-o para o carro.
- Mudo-me para tua casa e tens de me aturar, afinal, tu é que és a culpada do meu comportamento irracional. – explicou com naturalidade, entrando no carro e sendo imitado por Isabel.
- És muito arrogante. – provocou-o, adorando aqueles modos pomposos com que ele falava, tão cheio de si. Era enternecedor, não sabia explicar bem porque aquilo lhe dava tanto prazer. Talvez fosse o facto de ela saber que ele era o homem mais doce e romântico que conhecera, mas que só o revelava a ela, em momentos privados, e que toda sua superioridade exterior escondia intenções dissimuladas de alguém que na realidade pensava primeiro nos outros. Leonino como ele só.
- Arrogante não, prático! Não me vais deixar na rua da amargura, ou vais? – perguntou, fazendo ar de escandalizado.
- Claro que não. – a imagem da sua sala de prática vandalizada perturbou a sua boa disposição, trazendo-a de volta à realidade. Se quisesse regressar a casa teria de enfrentar o seu fantasma e tomar decisões.
- Ei!, não fiques assim. Nós vamos resolver isto. – prometeu-lhe, beijando-lhe a mão ao vê-la subitamente abatida – E já que falamos nisso, Isabel…, não achas que seria prudente registar na polícia o incidente da sala de yoga? Se ele não pode chegar perto de ti e te entrou pela casa a dentro, para escrever ameaças, é bom que isso se saiba, para que eles iniciem um processo de averiguação. – sugeriu, tentando manter um tom de voz pouco dominador. A sua vontade era obriga-la a obedecer, seguir os seus conselhos à força.
- Talvez tenhas razão… - confessou, aliviada por tê-lo na sua vida. Da primeira vez que enfrentara Tiago fizera-o sozinha, em péssimas condições psicológicas, e conseguira sobreviver. Com João a seu lado seria bastante mais fácil. – Vais comigo à esquadra? – perguntou a medo.
- Claro. Eu sou testemunha, não penses sequer em ir sem mim. – disse-lhe, sabendo que ela precisava dele naquele momento mas que não gostaria de ter de o pedinchar. Já a conhecia tão bem que parecia que conviviam há vários anos, sem segredos ou aspetos de personalidade que surpreendessem um ou outro.
- Está bem, quando quiseres ir, vamos. – concluiu, sorrindo-lhe agradecida. Romântico, pensou enternecida, romântico e altruísta…
- Trouxeste o telemóvel? Assim quando eu terminar as consultas de manhã venho buscar-te. – disse-lhe, enquanto encostava o carro junto ao prédio onde Isabel dava aulas.
- Trouxe, mas eu vou lá ter. – informou-o, abrindo a porta do carro e saindo para rodear o carro.
- Vais deixar-me assim, sem uma despedida em condições? – lamentou-se, ligeiramente frustrado.
- Não, mas se fico aí dentro aos beijos contigo perdemos a hora. – explicou divertida, dando-lhe um beijo leve pela janela do lado do condutor, mas rapidamente sendo puxada para um segundo beijo mais demorado. – Vês? – pigarreou, tentando aclarar a garganta, que ficara presa com aquele arrebatamento sensual. – És um perigo…
- A menina é a culpada. – brincou, retomando o ar sério logo de seguida – Se mudares de ideia, eu venho buscar-te.
Isabel afastou-se em direção ao prédio, sorrindo-lhe, e João ficou a certificar-se de que não havia ninguém suspeito por perto a vigiá-la. Fingiu estar a mexer no telemóvel, com os óculos escuros postos, e olhou todos os carros e homens nos passeios, tentando detetar algum comportamento estranho. Sentia-se a entrar numa espiral de mania da perseguição, mas não queria saber, o que não podia era ser descuidado e permitir que o traste a perturbasse novamente. Poisou o telefone e arrancou, tendo de travar a fundo logo de seguida para não embater num carro que se lhe atravessou à frente inesperadamente. O homem parecia assustado e confuso, e pediu-lhe desculpa por gestos, submissamente, libertando a estrada e permitindo que João retomasse a marcha. Respirou fundo do susto e encaminhou-se para o trabalho. Tinha de prestar mais atenção à estrada, concluiu nervoso.

Tiago precisava de o tirar do caminho, e a ideia de o assustar animou-o ao ponto de desistir parar o carro e ir buscar Isabel dentro do prédio puxada pelos cabelos. Talvez brincasse primeiro com os nervos do rapaz, durante algum tempo, só pelo gozo de o chatear. Ela estaria sempre ali à espera de ser castigada pela sua ousadia, mas o seu novo pretendente teria de aprender que não se mexe no que é dos outros. Primeiro o homem e o cão, depois, quando ela já estivesse devidamente perturbada, não hesitaria em voltar para si, a bem ou a mal. Desejava que ela lutasse, que não fosse fácil, assim teria muito mais prazer, suspirou, relembrando-se de como era delicioso bater-lhe. Ela também gostava, Tiago sabia-o, e naquele dia, em que juraram perante Deus que nada os separaria, Isabel dissera no altar que sim, mesmo depois de já ter levado a primeira de muitas bofetadas. Ele sabia cumprir promessas.


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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 15 (1ª parte)




- Minha Nossa Senhora! – exclamou Rosário, horrorizada com a confusão da casa, normalmente impecável e limpa. Parecia que por ali tinha passado um furacão, lamentava-se surpresa. Poisou a sua carteira no armário da entrada e começou a colocar tudo nos devidos lugares, bufando. – Mas o que lhe terá passado pela cabeça? Será que entrou em casa com os copos? – perguntava em voz alta, quando se erguia com uma moldura na mão e viu Filipe a olhá-la em silêncio, sem se mexer – Jesus Cristo, Virgem Santíssima… - sussurrou com a garganta seca, a entrar em pânico. O cão não se movia, continuando o seu “scanner” perturbador, e Rosário encostou-se trémula à porta de casa, chamando pelo patrão com a voz quase em surdina.
Isabel dormitava na cama, depois de ter sido acordada por João na casa de banho a tomar duche. Era muito barulhento, constatava satisfeita, a deixar-se preguiçar. Batia portas, dava encontrões em tudo e deixava cair o champô com toda a força nos pés, praguejando alto e bom som. Hábitos de quem vivia sozinho há muito tempo, matutava, sentindo-se apaixonada por tudo o que lhe dizia respeito, até os pequenos defeitos. Sentiu uma necessidade urgente de o ir surpreender no banho e abraçar, quando ouviu uma voz trémula e pouco definida a chamar por João, lembrando-se repentinamente da empregada dele e de Filipe, que ficara isolado do lado de fora do quarto toda a noite. Levantou-se num pulo, vestiu a primeira coisa que lhe apareceu no chão do quarto e correu a socorrer a senhora que deveria estar em pânico.
- Desculpe, esquecemo-nos do Filipe… - abordou-a, agarrando na coleira do animal que se mantinha impávido a amedrontar a mulher empalidecida. – Bom dia, chamo-me Isabel. – estendeu-lhe a mão, sorrindo e sendo cumprimentada de volta.
- Bom dia menina, eu é que peço desculpa, devia estar a descansar. Mas tinha receio que o cão me mordesse. – conseguiu dizer no meio do espanto por dar de caras com uma mulher ali dentro. Nunca tal tinha acontecido em todo o tempo que ali trabalhava. Sabia sempre dizer quando o Dr. recebia visitas femininas, mas estas nunca ali pernoitavam.
- Eu vou levá-lo para o quarto. – disse, arrastando o animal pesado.
- Vou fazer o pequeno almoço para o Dr., gosta de torradas e café?, é o que ele toma sempre! – perguntou decidida a agradar a rapariga simpática.
- Sim, claro. Qualquer coisa. Obrigada, até já. – encaminhou-se para o quarto e fechou a porta, feliz por ainda ouvir a água na divisão do lado. Agora com outra pessoa em casa as suas intenções esmoreciam, não se sentia confortável com a ideia, matutava enquanto se despia, mas tinha mesmo de tomar banho, e talvez ele já estivesse a acabar, dando-lhe espaço para ela se arranjar. Entrou numa nuvem de fumo que cegava completamente e tacteou o espaço para encontrar a pega da porta do chuveiro, entrando silenciosamente, excitada como uma criança mal comportada que regozijava com alguma partida prestes a surpreender.
- Deves ser telepática, estou há que tempos a pensar nisto. – brincou, agarrando-a.
- Porque não me acordaste antes? Estás aqui a gastar água há “horas”, desnecessariamente. – gozou Isabel, entrando para debaixo da pressão do chuveiro moderno. – Só acordei porque fazes imenso barulho e o Filipe estava a amedrontar a tua empregada, coitada, estava aflita com medo dele.
- A Rosário já chegou? Bolas… - reclamou, chateado, beijando-lhe o pescoço.
- Sim, porquê? – esforçava-se por se manter consciente e a respirar, com a água a cair-lhe diretamente na cabeça e o corpo amolecido sem forças.
- Isso quer dizer que já só temos uma hora… e para o que eu tinha imaginado é pouco tempo. – explicou, encostando-a à parede fria de azulejo, comprimindo-a contra si.
- E se ela ouve? Fico sem jeito… - confessou, envergonhada com a ideia de que terceiros os pudessem ouvir, mas sem capacidade de se opor às intenções românticas dele.
- Estão duas portas a separarem-nos dela, e eu prometo não gritar. – gozou, elevando-a.
- Ah, sem gritos não tem piada… - lamentou-se divertida, saltando-lhe para as ancas e beijando-o.
- Exibicionista… - provocou-a, sentindo-se a aquecer a água que lhe caía em cima.
- Destruidor do meio ambiente… - devolveu-lhe, sorrindo, já com os pensamentos a girar perdidos.
- Eu reciclo o lixo! – disse, beijando-a novamente e cada vez com mais intensidade.
- Mas esbanjas água! – advertiu-o, fechando a torneira e agarrando-se à parede atabalhoadamente, à procura de estabilidade para o corpo, dominado pelo ritmo cada vez mais intenso de João.
- Hum hum… sou um mauzão. – gozou, beijando-a com paixão.

- Cala-te… - suplicou, a sentir-se noutra dimensão.
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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 14 (4ª parte)





Marta lutava com o micro-ondas demasiado sofisticado da cozinha ultra-moderna de João, carregando em botões atrás de botões, sentindo-se uma idiota por não conseguir perceber como se descongelava coisas sem ser ao natural, ou em água quente, como estava habituada na sua casa com os ritmos mais lentos. Não podiam ficar horas à espera que aquela mistela estranha aquecesse ao ar, lamentava-se, aborrecida com a ideia de que teria de lhe perguntar como se usava aquela geringonça, e detestava pedir favores, especialmente a homens. Quase se convencera a si própria de que teria de engolir o orgulho no que dizia respeito ao micro-ondas, quando subitamente a máquina decidiu colaborar e iniciou o processo de descongelar, ao mesmo tempo que a campainha da porta tocou, junto com um bater leve de nós dos dedos. Marta dirigiu-se à entrada e espreitou pelo óculo, já a embarcar em pensamentos neuróticos de perseguição. Confirmou que era ele e abriu a porta aos dois machos da sua vida. Esse pensamento fê-la sorrir e João ainda não tinha poisado Filipe nem fechado a porta, já ela se lhe tinha agarrado ao pescoço, beijando-o. O cão libertou-se do abraço de grupo com dificuldade, saltando nas três patas para o chão e procurando um sítio isolado para descansar, enquanto o casal esbarrava contra os objetos dispostos nas superfícies dos móveis modernos da sala. Encontraram o sofá, depois de várias caneladas na mobília, e caíram desamparados, sem notar que Filipe os olhava de orelhas em pé, surpreso com aquela súbita luta. Arrancaram os sapatos, as roupas, sem se descolarem um do outro, numa fúria desenfreada que começou a enervar o cão, que dava voltas sobre si mesmo, com a pata enfaixada ao pendurão, soltando uivos. Marta e João pararam para olhar o animal, que se arrastava na direção do sofá, gemendo de medo, sem entender o que se passava entre eles os dois, obrigando-os a isolarem-se no quarto e fechar a porta.
- Isto é como ter um filho, é preciso os papás se esconderem para darem uns beijinhos… brincou João, puxando-a para si.
- Pior… este vai-te arranhar a porta toda… - gracejou, acabando de despir o que ainda trazia no corpo.
- Acho que vai valer a pena… o que é uma porta riscada perante uma mulher nua? – provocou João sorrindo à imagem de Marta.
- “Uma mulher”? – reclamou ofendida com aquele termo pouco personalizado.
- A minha mulher. – atreveu-se a classificar.
- Ah, assim está melhor. – sorriu-lhe afetada, queimando de alegria interiormente. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, ironicamente, no dia em que Tiago ressuscitara na sua vida. César tinha razão, a vida era uma caixa de surpresas, ninguém está certo de nada, mas podemos escolher o que fazer perante aquilo que nos vai surgindo, de bom e de mau. João era uma prenda do destino, uma oportunidade de ser feliz e de fazer felicidade com outro. Não iria afastá-lo, pelo contrário, se ele quisesse, e aceitasse o seu passado, iria pela primeira vez em muito tempo, lutar por manter essa felicidade.
- E eu? – perguntou-lhe ao ouvido, interrompendo os seus pensamentos.
- Tu? – questionou-o surpreendida, sem entender a pergunta.
- O que sou eu para ti? – um aperto no estômago obrigou-o a olhá-la perante o seu silêncio.
- João, tu és o meu homem. – disse, num rasgo de coragem inédito.
- Ah bom… - comentou aliviado, e estupidamente contente. Levantou-a do chão, enquanto a beijava apaixonadamente, sentindo-se tonto de tanta emoção. O seu corpo era ainda mais fácil de amar que a sua personalidade, o que o enlouqueceu. Tudo parecia de tal forma seu e familiar, sem constrangimentos ou dúvidas, simplesmente doce e sensual, numa combinação perfeita que o arrebatou. Como era possível que alguém não a venerasse ou beijasse os pés à cabeça? Como podia aquele traste ter-lhe batido e infernizado a vida? Não iria descansar enquanto aquele homem estivesse solto, ou vivo, concluiu vingativo.
- Prometes-me uma coisa? – pediu Marta procurando o seu olhar.
- Não sei… - beijou-lhe o pescoço, descendo até ao ombro.
- Não te zangas comigo se eu te contar um segredo?
- Não sei… - continuou a descida, quase sem a ouvir.
- Eu não me chamo Marta… - confessou.
- Ah não?... – gracejou, sem parar de a beijar. Sabia bem quem ela era, mas queria que o dissesse espontaneamente.
- Eu chamo-me Isabel… - conseguiu dizer, com medo de que ele achasse estranho ou bizarro ela ter o mesmo nome da ex-mulher falecida.
- Hum… - levantou a cabeça e olhou-a a sorrir, deliciado com o voto de confiança que ela lhe dava. – E posso tratar-te por Belinha?
- Não achas estranho?... – perguntou aflita.
- Não. – apoiou todo o seu peso em cima dela, encarando-a – Eu já sei disso há alguns dias. Sei de várias coisas… andei a pesquisar. – confessou.
- E então? Queres ser namorado de uma mulher que vive uma vida dupla a fugir de um psicopata?
- Não, se ela quiser, quero casar com uma mulher linda, boazona, livre e desimpedida, que ainda por cima sabe sexo tântrico! – disse-lhe reforçando as palavras com alguns beijos estratégicos.
- Isso não se diz assim… é covardia… agora tenho de aceitar para tu não parares… - sentia-se a entrar em ebulição com aquela conversa de pé de orelha, carregada de estímulos.
- Eu consigo ser muito retorcido, ainda não viste nada. – ameaçou-a, voltando-a para cima de si. Sexo falante, aquilo era uma novidade, constatou divertido. Levantou-se e ficaram sentados um no outro, de cabeças coladas, encarando-se apaixonados.
- Podes chamar-me de Isabel? Eu queria ouvir.
- Isabel. – beijou-a na bochecha – Isabel. – no canto da boca – Isabel. – no pescoço livre que ela lhe oferecia ao colocar a cabeça para trás. – Isabel. – no peito.
- Adoro-te.



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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 14 (3ª parte)




Marta e César falaram durante bastante tempo, quase num sussurro que João não conseguia perceber. Ficou tentado em colocar o ouvido na porta, mas a estupidez da ideia travou-o, indo simplesmente sentar-se junto de Filipe, na sala, a consolar o animal e a si mesmo, fazendo-lhe festas e massagens que relaxaram os dois. João nunca tinha gostado de cães em particular, e sempre se sentira desconfortável junto deles, grandes ou pequenos, que reagiam instintivamente à sua energia negativa. Mas Filipe era um cão diferente, pensava distraído, parecia entender tudo o que se passava à sua volta, com um olhar astuto e cheio de personalidade, que transmitia os seus estados de espírito de forma honesta. Para além disso, emitia uns sons guturais que quase falavam, e como Marta tinha dito no momento de pânico em sua casa, aquele cão nunca ladrava. Parecia mesmo recusar-se a ser cem por cento animal, arranjando sons alternativos para se explicar.
- És mesmo giro, sabias? – disse-lhe João, já sentado no chão com o grande animal esparramado por cima de si, em posição adequada a ser massajado com eficácia.
- Vocês são os dois muito giros. – comentou Marta que apareceu na sala, já com cores e lado a lado com César, que sorria sem vestígios de preocupação no olhar.
- Bem, aqui está uma cena que sempre pensei impossível de ver, o João a brincar com um cão… - comentou César, que se mantinha naturalmente confortável mesmo depois da conversa com Marta.
- Sentes-te melhor? – perguntou João, levantando-se com dificuldade debaixo do cão.
- Sim, está tudo bem. – respondeu, abraçando-o sorridente e beijando-o como se fosse aquilo um hábito entre um casal já antigo. César respirou fundo, mostrando um sinal de alívio perante aquela demonstração de afeto e despediu-se dos dois.
- Levas o Filipe à rua? Ele deve estar aflito. Eu vou tentar perceber como se usam estas coisas todas aqui na cozinha e tentar não nos matar com um jantar inventado. – deu dois beijos no psiquiatra, que corou ligeiramente, e encaminhou-se, com toda a graça e elegância que lhe eram características, para a cozinha.
Os dois médicos saíram de casa, com Filipe ainda no colo de João, que esperou ficar a sós com o amigo para tentar saber pormenores sobre a conversa entre ele e Marta.
- Então, César? Ela explicou-te o que aconteceu na sala de yoga de sua casa?
- Sim, contou-me que foi vandalizada. – disse calmamente.
- E por quem? Ela não disse? Aquilo que lá estava escrito era pessoal. – exclamou inflamado.
- Deve ser, mas como disseste e bem, é pessoal. – encarou-o sério.
- Estás a brincar a comigo? – vociferou, poisando o cão no chão, num local onde o animal poderia estar sossegado. – Ela tem de chamar a policia e denunciar quem fez aquilo!
- João, acalma-te. Se chegas lá a cima a casa e te pões nestes termos a comandar o que ela tem ou não tem de fazer, garanto-te que sai porta fora e nunca mais a vez. – sentenciou.
- Como assim? – uma acidez subiu-lhe até à garganta, ao imaginar que Marta desaparecesse da sua vida naquele momento – Ela disse que ia embora?
- Não, não disse. – suspirou – Só estou a fazer deduções, João. Eu não te posso contar tudo aquilo que falámos, terás de ser tu a conversar com ela. Mas, em todo o caso, tenho de te alertar de que a Marta conseguiu sair de uma relação com um psicótico e vai reagir mal se a pões contra a espada e a parede. Independentemente de eu e tu sabermos que chamar a polícia seria o mais correto a fazer, também lhe sugeri isso, as mulheres que lidaram com homens possessivos e agressivos, e conseguiram livrar-se deles, tendem a ganhar um medo irracional a situações de confronto com os antigos companheiros. É natural, a polícia e o tribunal são meras formalidades, quando tu sabes que nenhuma dessas instâncias pode nada contra um maluco com a missão de te matar.
- Ele tentou matá-la? – disse quase sem voz, agarrando o braço de César para se apoiar.
- Vai para cima, acalma-te, não a obrigues a falar hoje. – aconselhou-o, dando-lhe uma palmada suave do ombro – Descansem e amanhã é outro dia!
- Obrigado César. – conseguiu dizer, em jeito de despedida, abatido com o facto de não poder resolver tudo aquilo naquela mesma noite. Talvez estivesse mesmo a ser leviano e ingénuo ao pensar que o ir fazer queixa às autoridades resolveria o problema instantaneamente.
- Ah, é verdade… - César voltou-se para João a meio do seu trajeto até ao prédio do lado – Ela não é lésbica. – piscou-lhe o olho e sorriu, regressando ao seu caminho até casa.
- Já desconfiava... – tentou sorrir de volta. Deveria estar aos pulos de satisfação com aquela confirmação de que Marta poderia gostar dele como homem, mas a azia não o deixava festejar. Sentia-se furioso com um tipo que não conhecia, o que lhe arrepiava ligeiramente os pelos na nuca. Procurou por Filipe, que se arrastava pelo pequeno passeio relvado, numa luta entre a tala da pata traseira, a procura de uma posição confortável em cima da pouca natureza que a urbanização lhe permitia, e uma comichão qualquer atrás da orelha. Decidiu esperar um pouco antes de subir, para pensar o que dizer, treinar a descontração que César lhe sugerira, mas que lhe parecia impossível de conseguir. O cão não parecia estar com pressa, e João sentou-se num banco a admirar aquelas manobras acrobáticas. Com era bom ser cão, pensou com alguma inveja. Pelo menos aquele cão, corrigiu, imaginando-o a dormir por cima da dona vestida com aquele pijama minúsculo que lhe vira há dois dias por baixo do robe. – Sortudo.

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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 14 (2ª parte)





Agora era só esperar que ela tivesse juízo, que voltasse para casa sozinha e deixasse de o ver. Tinha sido bastante claro cinco anos antes. Ou ela ficava com ele, ou estava condenada a morrer sozinha. E Tiago teria todo o prazer de se certificar disso, que Marta morreria. Fugira de Castelo Branco para Coimbra, com uma identidade nova, como se isso fosse o suficiente para que ele não a descobrisse, recordava-se sorrindo. Era mesmo estúpida e ingénua, dissera-lhe à saída do tribunal. Não havia sentença nenhuma que os separasse, muito menos que lhe garantisse a liberdade que ela desejava. Bastara-lhe um mês para a encontrar, a ela e ao maldito cão, que devia ter afogado junto com os outros, lamentava-se furioso. Dar-lhe-ia um par de dias para que ela regressasse a casa, e apanhasse juízo, se isso não acontecesse, resolveria o assunto à sua maneira.


- Vou fazer um chá. – disse João, beijando-lhe a cabeça. Era Psiquiatra, mas uma vez mais não conseguia usar nada do que aprendera para a ajudar. Deveria ser capaz de a fazer falar, de a pôr confortável o suficiente para que saísse daquele estado catatónico. Sentia-se furioso e alterado, não conseguiria o distanciamento necessário para a trazer de volta. Uma ideia surgiu-lhe e telefonou a César. Talvez o amigo a conseguisse trazer de volta.
- João, não me sinto bem… - sussurrou sem forças, sentindo um desmaio iminente. Há alguns anos que não vivia aquelas sensações de terror, mas reconhecia a reação do seu corpo às lembranças da sua vida com Tiago.
- Calma, já chamei o César, ele vai saber o que fazer. – pegou nela ao colo e levou-a para o quarto, cada vez mais nervoso com tudo aquilo. A impotência voltava, pensou angustiado ao lembrar-se de Isabel a morrer. Não aguentaria perder Marta, disse-lhe o seu inconsciente, não sabia bem porquê, só a conhecia há menos de duas semanas. Isabel fora sua mulher e namorada durante mais de uma década, mas morrera e ele continuara vivo. A ideia de que Marta lhe definhasse nos braços era muito mais aterradora. – Queres o chá?
- Não… ainda não. – respondeu-lhe com dificuldade. Fica aqui comigo, por favor. – pediu-lhe, abraçando-o. Não era de Tiago que tinha medo, do que ele pudesse fazer-lhe, mas sim de que tudo aquilo fosse impossível, que tivesse de o deixar, para o proteger. Poderia ir à polícia, denunciar o ex-marido, ele estava proibido de chegar perto dela, mas e se ele entretanto atacasse João, se descobrisse onde morava o homem que ela começara a amar? Essa angústia corroía-a por dentro, a indecisão do que deveria fazer. Percebera a mensagem na parede: “O que foi que te avisei? Puta Ordinária”. Deveria andar a espiá-la novamente, insistia naquela loucura, nunca mais iria ter paz, ser feliz.

César chegou rapidamente, receoso do pedido de ajuda do amigo, que deveria estar muito mal para o chamar, concluiu gravemente. Bateu à porta e aguardou nervoso, temia o dia em que não chegaria a tempo para João. Este abriu a porta energicamente, para espanto de César, que pensava encontra-lo abatido e desesperado, achando-o apenas desesperado, mas carregado de energia positiva, a reação proactiva a um problema, o vulgarmente chamado, fodido da vida.
- Olá César, obrigado por teres vindo. Preciso que me ajudes a acalmar a Marta. – disse-lhe de rompante, chamando-o até ao quarto, onde ela se mantinha deitada de lado a olhar a parede, sem se mexer.
- Ela parece calma. – sussurrou-lhe antes de entrar, feliz por não ter nas mãos nenhuma situação de histeria ou descontrole físico.
- Ela parece-te calma. – explicou-lhe ao ouvido – Acredita que isto não é normal.
- Deixa-me falar com ela sozinho. – pediu-lhe, fechando a porta devagar e aproximando-se da cama, onde se sentou paternalmente junto dela.


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terça-feira, 18 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 14 (1ª parte)




A casa continuava igual, como Tiago se lembrava da primeira vez que forçara a entrada, muitos anos antes. A idiota era descuidada, não trancava as janelas, tinha a mania que ainda vivia no Solar, onde alguém sempre atento lhe trataria da segurança e comodidade. Entrou calmamente, observando tudo pormenorizadamente, à espera de ver sinais claros de que já enfiara outro homem na cama. Estava tudo limpo e arrumado, a cama só tinha uma almofada, o que o tranquilizou um pouco, talvez estivesse a imaginar coisas, concluiu. Espreitou na pequena casa-de-banho, uma escova de dentes, um champô de mulher, sabonete de glicerina, como ela gostava, nada de presenças secundárias por ali. Caminhou até à cozinha, inspecionando tudo, sentiu uma raiva a crescer-lhe no peito ao observar as duas chávenas no escorredor, o estupor já bebia chá com ela… Abriu o cesto da roupa suja, tirou peça por peça, tudo de mulher, concluiu satisfeito, cheirando-as num instinto doentio de saudades. Guardava a roupa novamente, quando umas calças se soltaram embrulhadas no meio de uma das suas longas saias, sentiu-se corar de fúria, eram demasiado grandes para ela as usar, de homem, rosnou. – Vaca… - soltou, dirigindo-se à sala de prática, disposto a vingar-se. Tirou da sua mochila a lata de tinta vermelha em spray, abanou-a e deixou-lhe o recado. Curto e grosso. Ela iria entender.



João estacionou o carro à porta da casa de Marta, retirou Filipe do banco traseiro, e seguiu-a até casa, observando a sua elegância natural de mulher confiante. Ainda não tinham tido oportunidade de falar sobre o que estava a acontecer com os dois, mas já percebera que ela não era muito dada a esclarecimentos teóricos sobre os seus sentimentos. Isso angustiava-o um pouco, mas por outro lado, deixava-o numa expectativa excitante. Poisou o cão no seu cesto da entrada, fazendo-lhe uma festa e entrou em casa, tirando os sapatos à entrada, como ela fazia. Era um hábito diferente, mas que curiosamente o fazia sentir-se confortável e relaxado. Marta levou o seu saco de viagem até ao quarto, arrumou o que estava limpo e levou a roupa suja para o cesto na cozinha. Franziu o sobrolho ao ver a tampa torta, levantou-a e espreitou, sentindo uma azia estranha. Seria imaginação sua, ou a última peça que lá pusera era o pijama e este não aparecia no cimo da roupa? João surgiu distraindo-a das suas paranóias, e trazia consigo uma energia que lhe pôs o cérebro em pausa, apagando tudo. Mais uma vez não falaram nada, absorvendo apenas a química que os envolvia, e que já tinham adiado bastante tempo. João pegou nela e levou-a instintivamente para a sala de prática, sem saber bem porquê, parecia-lhe o sítio ideal para terminar aquele dia, sob o olhar sábio e protetor de Ganesha. Marta abriu a porta com o braço livre, e o outro a rodear o pescoço de João, que a beijava apaixonado. Sentiu-o a baixar-se até ao chão, sentar-se em posição de lótus, mantendo-a no colo, e sorriu interiormente, afinal ele tinha lido o livro, pensou satisfeita. Fez uma pausa, olhando-o apaixonada, a sentir-se completamente rendida, em êxtase, pronta para lhe dizer que sim, que também o adorava, quando João ficou subitamente hirto, com os olhos furiosos, a fixar a parede, sobressaltando-a.
- Marta, o que é isto? – sussurrou, fazendo-a voltar a cabeça para o local.
- AH…. – engoliu o grito de horror, agarrando os braços de João à procura de apoio.
João abraçou-a, a sentir-se ferver por dentro, sentia-a a desfalecer em silêncio, sem explicar o que poderia ter ali acontecido, queria berrar e abaná-la, mas primeiro tinham de sair dali. A imagem grotesca, desenhada na parede a cobrir os deuses hindus, acompanhada de palavras de ódio e ameaças, eram demasiado fortes para aguentar. Fugiram para a rua, sentando-se nas escadas da entrada, com a garganta seca, um ao lado do outro. Marta olhava o infinito em transe, sem se mexer, parecia pensar em algo muito triste ou terrível, concluía João, sem saber o que fazer para que ela reagisse. Abraçou-a, encostando a cabeça dela no seu peito e deixaram-se ficar assim, até que Marta se decidisse a falar.
Foi Filipe quem quebrou o silêncio, ladrando, dando sinal, e sobressalto-a novamente.
- Ele nunca ladra… - levantou-se em pânico, a imaginar que Tiago estivesse por ali, escondido a observá-los, pronto a atacar.
-Marta, para. Olha para mim, tem calma. – pediu João, a ver materializar-se noutra pessoa aquilo que ele vivia diariamente, a ansiedade, o medo a espalharem-se por todo o corpo. - Vamos embora daqui. – disse decidido. Sentou-a no chão, ao lado de Filipe, entrou em casa e tornou a encher o saco dela com roupas ao acaso. Entrou na sala de prática, pegou na pequena estátua de Ganesha intacta e colocou-a também no saco, bem como a mala vermelha, a tal que o levara até ali e que estranhamente aparecia naquele momento, ou estivera sempre com eles?, perguntava-se confuso, caminhando para a rua. Levou-os para o carro, meteu o cesto de Filipe na mala e trancou a casa. Marta continuava sem reagir, apenas seguindo-o com o olhos, pálida.
- Hoje ficas em minha casa, ok? Temos de perceber o que aconteceu aqui. – disse-lhe, beijando-lhe a mão. – Não tenhas medo, tudo se vai resolver.



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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 13 (4ª parte)






- Devagar… devagar… DEVAGAR! – bradou, vendo o ponteiro dos conta-quilómetros a chegar com facilidade aos 220.
- Conta, ou então não abrando! – gritou-lhe de volta, decidida a tirar a limpo os fantasmas que o assombravam.
- Ok, OK! Mas para de acelerar, por favor. – suplicou, a ficar receoso de que ela estivesse mesmo a falar a sério e aquilo não fosse mais uma das suas piadas.
- Já abrandei, vamos. Desembucha. – ordenou, olhando-o duramente.
- Estas tuas terapias são altamente duvidosas!
- Não me enroles, olha que eu fico com uma crãimbra no pé. – ameaçou-o.
- Tudo bem. – disse resignado, descontraindo no banco e olhando para a janela do seu lado. – Tinha 14 anos, estávamos a passar o dia no rio com amigos, família, havia comida, jogos, brincadeiras, o normal… - enumerou com a voz grave – O meu irmão, Filipe, mais novo que eu 5 anos, era um chato, andava sempre colado a mim. Onde eu ia, ele também queria ir… - relembrou sorrindo para a janela – E eu fui nadar… sem lhe dizer nada. Fugi dele, entendes? Estava farto de ser babysiter, queria estar um bocado sozinho. Não vi que ele me seguiu, entrou na água por trás de mim. – limpou uma lágrima discretamente – Quando regressei à tona de um mergulho ouvi gritos, estava longe da margem e não percebi o que se passava. Toda a gente esbracejava, os homens mergulhavam na minha direção… e eu olhava-os, sem entender… Foi quando vi, mesmo ao meu lado… o braço dele, esticado para mim, e o olhar dele, submerso, aterrorizado… não consegui… não me mexi. – silenciou-se durante uns momentos, absorvendo a tristeza das suas lembranças antigas – acho que foi o primeiro ataque de pânico que tive. – confessou, respirando fundo – Depois disso, já perdi a conta.
Marta abrandava o carro sem se aperceber, engolindo uma dor quente que lhe descia devagar pelo esófago, queimando-lhe tudo. Conseguia visualizá-lo no rio, um miúdo, a ver o irmão morrer ao seu lado. Como é que alguém poderia viver depois disso sem sequelas? Encostou na berma, soltou o cinto e trepou-lhe para o colo, precisava de chorar e de ser abraçada. Sentia-se culpada por ter forçado João a falar sobre coisas tão dolorosas. Precipitara-se e fora leviana.
- É terrível João, muito triste aquilo que vos aconteceu. – disse emocionada, coma cabeça encostada nele. – Só de imaginar já fico desesperada, deves ter sofrido muito, nem consigo sequer quantificar esse tipo de dor. – continuou, já em choro solto.
- Sh… tem calma. Já passou, não há nada a fazer. – consolou-a, como se tivesse sido ela a perder um irmão. – Eu era um miúdo, não percebi o que estava a acontecer… foi uma fatalidade. – concluiu, respirando aliviado.
- Desculpa, não devia ter-te forçado a falar. – olhou-o, sentindo-se mortificada.
- Não, fizeste bem. Nunca tinha explicado tudo o que aconteceu a ninguém. Estive anos bloqueado, sem me lembrar. Depois quando recordei começaram as crises agudas, desesperava só de pensar em falar sobre o Filipe. – explicou, fazendo-lhe festas no cabelo. – Ouvir assim a história é diferente. O César sempre disse que tinha de o verbalizar. – confessou, com um sorriso triste – Tinha razão.
- Não consigo conduzir mais, podes trocar comigo? – pediu-lhe, limpando a cara e abraçando-o novamente.
- Claro. – respondeu-lhe calmamente – Até fico mais aliviado, para ser sincero. – brincou, tentando animá-la um pouco. Era estranha aquela reação tão forte aos sentimentos dos outros, pensava intrigado ao vê-la enrolada como uma bola a chorar. Sempre tão pragmática com as suas coisas, desvalorizando tudo o que para ele seria um drama, mas quando o assunto eram as dores dos outros, parecia uma criança. Beijou-lhe as lágrimas, sugando-as com barulho, o que a fez rir e voltar a um estado mais calmo, o que possibilitou a troca de lugares e prosseguiram a viagem, em silêncio, sem rádio ou futilidades, apenas o som ocasional de uma melodia daquelas que ela entoava quando meditava. Sem a letra esquisita, apreciava João, afagando o focinho de Filipe, todo esticado para a frente do carro, quase em cima dele.

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