Sentaram-se
à mesa e Rosário parecia incomodada sem saber como se comportar,
com aquela presença estranha ao pequeno-almoço.
-
Já tomou café? – perguntou Isabel, decidida a acabar com o
ambiente esquisito.
-
Não, quer dizer, sim. – corrigiu embaraçada, procurando um pano
para esfregar alguma superfície e se distrair enquanto eles não
saíssem de casa.
-
Rosário, sente-se por favor. Faça-nos companhia. – pediu João,
relembrando-se de que Isabel não era snob nem conseguiria ignorar a
presença de outra pessoa enquanto comiam.
-
Então, com licença. – sentou-se aliviada com o facto de que a
namorada do patrão não ser nenhuma dondoca arrogante, o que lhe
dificultaria muito a vida e o trabalho.
-
Dás-me boleia para Celas? – perguntou Isabel, que se lembrou
naquele momento de que não tinha o jipe com ela e dava aulas de
manhã.
-
Achas que não há problema ires trabalhar? – uma leve azia
subiu-lhe à garganta com a ideia de a deixar durante o dia.
-
Tenho de ir, - começou a explicar, ligeiramente envergonhada com a
atenção que Rosário dava à conversa – mas podemos almoçar, se
quiseres… - sugeriu, corando com um apalpão debaixo da mesa.
-
Combinado. – descontraiu ligeiramente e continuaram a refeição,
incluindo a empregada na conversa, que se prontificou a fazer lanches
para os dois, se precisassem, e adiantar o jantar, se fosse caso
disso. Isabel e Rosário gostaram imediatamente uma da outra, e a
primeira não confessou que era vegetariana ao vê-la tão
entusiasmada com a receita de jardineira que “era a preferida do
patrão”.
Despediram-se
os três e o casal saiu, com Filipe amuado na varanda, por não ter
ainda liberdade de movimentos. Isabel compadecia-se do cão, que não
estava habituado a espaços fechados, mas João prometeu-lhes que
iriam espairecer de tarde, deixando-a mais descansada. Queria que
eles se sentissem bem consigo, que Isabel ponderasse nunca mais
voltar sozinha para a casa na quinta. Amava-a e nunca se sentira tão
bem a viver com uma mulher. Não tomava o rol de comprimidos desde
que tinham saído para o Gerês, simplesmente não se lembrava da
necessidade de os tomar, e ela era a responsável por isso. Puxou-a
para um beijo apaixonado enquanto o elevador descia até ao
rés-do-chão, e só se soltaram quando uns vizinhos reformados que
entravam na cabine os alertaram de que já tinham chegado ao destino.
-
Peço imensa desculpa… - disse Isabel corada até às orelhas,
puxando João de dentro do elevador.
-
Estão aqui, estão a proibir que andemos juntos no elevador na
próxima reunião de condomínio! – brincou, divertido com o ar
escandalizado da vizinha.
-
Que vergonha…
-
Vergonha é roubar e ser apanhado. – concluiu, puxando-a novamente
para outro beijo, enquanto passavam mais vizinhos idosos.
-
Ainda vamos presos por atentado ao pudor, ou expulsam-te do prédio.
– disse, encaminhando-o para o carro.
-
Mudo-me para tua casa e tens de me aturar, afinal, tu é que és a
culpada do meu comportamento irracional. – explicou com
naturalidade, entrando no carro e sendo imitado por Isabel.
-
És muito arrogante. – provocou-o, adorando aqueles modos pomposos
com que ele falava, tão cheio de si. Era enternecedor, não sabia
explicar bem porque aquilo lhe dava tanto prazer. Talvez fosse o
facto de ela saber que ele era o homem mais doce e romântico que
conhecera, mas que só o revelava a ela, em momentos privados, e que
toda sua superioridade exterior escondia intenções dissimuladas de
alguém que na realidade pensava primeiro nos outros. Leonino como
ele só.
-
Arrogante não, prático! Não me vais deixar na rua da amargura, ou
vais? – perguntou, fazendo ar de escandalizado.
-
Claro que não. – a imagem da sua sala de prática vandalizada
perturbou a sua boa disposição, trazendo-a de volta à realidade.
Se quisesse regressar a casa teria de enfrentar o seu fantasma e
tomar decisões.
-
Ei!, não fiques assim. Nós vamos resolver isto. – prometeu-lhe,
beijando-lhe a mão ao vê-la subitamente abatida – E já que
falamos nisso, Isabel…, não achas que seria prudente registar na
polícia o incidente da sala de yoga? Se ele não pode chegar perto
de ti e te entrou pela casa a dentro, para escrever ameaças, é bom
que isso se saiba, para que eles iniciem um processo de averiguação.
– sugeriu, tentando manter um tom de voz pouco dominador. A sua
vontade era obriga-la a obedecer, seguir os seus conselhos à força.
-
Talvez tenhas razão… - confessou, aliviada por tê-lo na sua vida.
Da primeira vez que enfrentara Tiago fizera-o sozinha, em péssimas
condições psicológicas, e conseguira sobreviver. Com João a seu
lado seria bastante mais fácil. – Vais comigo à esquadra? –
perguntou a medo.
-
Claro. Eu sou testemunha, não penses sequer em ir sem mim. –
disse-lhe, sabendo que ela precisava dele naquele momento mas que não
gostaria de ter de o pedinchar. Já a conhecia tão bem que parecia
que conviviam há vários anos, sem segredos ou aspetos de
personalidade que surpreendessem um ou outro.
-
Está bem, quando quiseres ir, vamos. – concluiu, sorrindo-lhe
agradecida. Romântico, pensou enternecida, romântico e altruísta…
-
Trouxeste o telemóvel? Assim quando eu terminar as consultas de
manhã venho buscar-te. – disse-lhe, enquanto encostava o carro
junto ao prédio onde Isabel dava aulas.
-
Trouxe, mas eu vou lá ter. – informou-o, abrindo a porta do carro
e saindo para rodear o carro.
-
Vais deixar-me assim, sem uma despedida em condições? –
lamentou-se, ligeiramente frustrado.
-
Não, mas se fico aí dentro aos beijos contigo perdemos a hora. –
explicou divertida, dando-lhe um beijo leve pela janela do lado do
condutor, mas rapidamente sendo puxada para um segundo beijo mais
demorado. – Vês? – pigarreou, tentando aclarar a garganta, que
ficara presa com aquele arrebatamento sensual. – És um perigo…
-
A menina é a culpada. – brincou, retomando o ar sério logo de
seguida – Se mudares de ideia, eu venho buscar-te.
Isabel
afastou-se em direção ao prédio, sorrindo-lhe, e João ficou a
certificar-se de que não havia ninguém suspeito por perto a
vigiá-la. Fingiu estar a mexer no telemóvel, com os óculos escuros
postos, e olhou todos os carros e homens nos passeios, tentando
detetar algum comportamento estranho. Sentia-se a entrar numa espiral
de mania da perseguição, mas não queria saber, o que não podia
era ser descuidado e permitir que o traste a perturbasse novamente.
Poisou o telefone e arrancou, tendo de travar a fundo logo de seguida
para não embater num carro que se lhe atravessou à frente
inesperadamente. O homem parecia assustado e confuso, e pediu-lhe
desculpa por gestos, submissamente, libertando a estrada e permitindo
que João retomasse a marcha. Respirou fundo do susto e encaminhou-se
para o trabalho. Tinha de prestar mais atenção à estrada, concluiu
nervoso.
Tiago
precisava de o tirar do caminho, e a ideia de o assustar animou-o ao
ponto de desistir parar o carro e ir buscar Isabel dentro do prédio
puxada pelos cabelos. Talvez brincasse primeiro com os nervos do
rapaz, durante algum tempo, só pelo gozo de o chatear. Ela estaria
sempre ali à espera de ser castigada pela sua ousadia, mas o seu
novo pretendente teria de aprender que não se mexe no que é dos
outros. Primeiro o homem e o cão, depois, quando ela já estivesse
devidamente perturbada, não hesitaria em voltar para si, a bem ou a
mal. Desejava que ela lutasse, que não fosse fácil, assim teria
muito mais prazer, suspirou, relembrando-se de como era delicioso
bater-lhe. Ela também gostava, Tiago sabia-o, e naquele dia, em que
juraram perante Deus que nada os separaria, Isabel dissera no altar
que sim, mesmo depois de já ter levado a primeira de muitas
bofetadas. Ele sabia cumprir promessas.
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