segunda-feira, 17 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 13 (4ª parte)






- Devagar… devagar… DEVAGAR! – bradou, vendo o ponteiro dos conta-quilómetros a chegar com facilidade aos 220.
- Conta, ou então não abrando! – gritou-lhe de volta, decidida a tirar a limpo os fantasmas que o assombravam.
- Ok, OK! Mas para de acelerar, por favor. – suplicou, a ficar receoso de que ela estivesse mesmo a falar a sério e aquilo não fosse mais uma das suas piadas.
- Já abrandei, vamos. Desembucha. – ordenou, olhando-o duramente.
- Estas tuas terapias são altamente duvidosas!
- Não me enroles, olha que eu fico com uma crãimbra no pé. – ameaçou-o.
- Tudo bem. – disse resignado, descontraindo no banco e olhando para a janela do seu lado. – Tinha 14 anos, estávamos a passar o dia no rio com amigos, família, havia comida, jogos, brincadeiras, o normal… - enumerou com a voz grave – O meu irmão, Filipe, mais novo que eu 5 anos, era um chato, andava sempre colado a mim. Onde eu ia, ele também queria ir… - relembrou sorrindo para a janela – E eu fui nadar… sem lhe dizer nada. Fugi dele, entendes? Estava farto de ser babysiter, queria estar um bocado sozinho. Não vi que ele me seguiu, entrou na água por trás de mim. – limpou uma lágrima discretamente – Quando regressei à tona de um mergulho ouvi gritos, estava longe da margem e não percebi o que se passava. Toda a gente esbracejava, os homens mergulhavam na minha direção… e eu olhava-os, sem entender… Foi quando vi, mesmo ao meu lado… o braço dele, esticado para mim, e o olhar dele, submerso, aterrorizado… não consegui… não me mexi. – silenciou-se durante uns momentos, absorvendo a tristeza das suas lembranças antigas – acho que foi o primeiro ataque de pânico que tive. – confessou, respirando fundo – Depois disso, já perdi a conta.
Marta abrandava o carro sem se aperceber, engolindo uma dor quente que lhe descia devagar pelo esófago, queimando-lhe tudo. Conseguia visualizá-lo no rio, um miúdo, a ver o irmão morrer ao seu lado. Como é que alguém poderia viver depois disso sem sequelas? Encostou na berma, soltou o cinto e trepou-lhe para o colo, precisava de chorar e de ser abraçada. Sentia-se culpada por ter forçado João a falar sobre coisas tão dolorosas. Precipitara-se e fora leviana.
- É terrível João, muito triste aquilo que vos aconteceu. – disse emocionada, coma cabeça encostada nele. – Só de imaginar já fico desesperada, deves ter sofrido muito, nem consigo sequer quantificar esse tipo de dor. – continuou, já em choro solto.
- Sh… tem calma. Já passou, não há nada a fazer. – consolou-a, como se tivesse sido ela a perder um irmão. – Eu era um miúdo, não percebi o que estava a acontecer… foi uma fatalidade. – concluiu, respirando aliviado.
- Desculpa, não devia ter-te forçado a falar. – olhou-o, sentindo-se mortificada.
- Não, fizeste bem. Nunca tinha explicado tudo o que aconteceu a ninguém. Estive anos bloqueado, sem me lembrar. Depois quando recordei começaram as crises agudas, desesperava só de pensar em falar sobre o Filipe. – explicou, fazendo-lhe festas no cabelo. – Ouvir assim a história é diferente. O César sempre disse que tinha de o verbalizar. – confessou, com um sorriso triste – Tinha razão.
- Não consigo conduzir mais, podes trocar comigo? – pediu-lhe, limpando a cara e abraçando-o novamente.
- Claro. – respondeu-lhe calmamente – Até fico mais aliviado, para ser sincero. – brincou, tentando animá-la um pouco. Era estranha aquela reação tão forte aos sentimentos dos outros, pensava intrigado ao vê-la enrolada como uma bola a chorar. Sempre tão pragmática com as suas coisas, desvalorizando tudo o que para ele seria um drama, mas quando o assunto eram as dores dos outros, parecia uma criança. Beijou-lhe as lágrimas, sugando-as com barulho, o que a fez rir e voltar a um estado mais calmo, o que possibilitou a troca de lugares e prosseguiram a viagem, em silêncio, sem rádio ou futilidades, apenas o som ocasional de uma melodia daquelas que ela entoava quando meditava. Sem a letra esquisita, apreciava João, afagando o focinho de Filipe, todo esticado para a frente do carro, quase em cima dele.

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