quinta-feira, 20 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 14 (3ª parte)




Marta e César falaram durante bastante tempo, quase num sussurro que João não conseguia perceber. Ficou tentado em colocar o ouvido na porta, mas a estupidez da ideia travou-o, indo simplesmente sentar-se junto de Filipe, na sala, a consolar o animal e a si mesmo, fazendo-lhe festas e massagens que relaxaram os dois. João nunca tinha gostado de cães em particular, e sempre se sentira desconfortável junto deles, grandes ou pequenos, que reagiam instintivamente à sua energia negativa. Mas Filipe era um cão diferente, pensava distraído, parecia entender tudo o que se passava à sua volta, com um olhar astuto e cheio de personalidade, que transmitia os seus estados de espírito de forma honesta. Para além disso, emitia uns sons guturais que quase falavam, e como Marta tinha dito no momento de pânico em sua casa, aquele cão nunca ladrava. Parecia mesmo recusar-se a ser cem por cento animal, arranjando sons alternativos para se explicar.
- És mesmo giro, sabias? – disse-lhe João, já sentado no chão com o grande animal esparramado por cima de si, em posição adequada a ser massajado com eficácia.
- Vocês são os dois muito giros. – comentou Marta que apareceu na sala, já com cores e lado a lado com César, que sorria sem vestígios de preocupação no olhar.
- Bem, aqui está uma cena que sempre pensei impossível de ver, o João a brincar com um cão… - comentou César, que se mantinha naturalmente confortável mesmo depois da conversa com Marta.
- Sentes-te melhor? – perguntou João, levantando-se com dificuldade debaixo do cão.
- Sim, está tudo bem. – respondeu, abraçando-o sorridente e beijando-o como se fosse aquilo um hábito entre um casal já antigo. César respirou fundo, mostrando um sinal de alívio perante aquela demonstração de afeto e despediu-se dos dois.
- Levas o Filipe à rua? Ele deve estar aflito. Eu vou tentar perceber como se usam estas coisas todas aqui na cozinha e tentar não nos matar com um jantar inventado. – deu dois beijos no psiquiatra, que corou ligeiramente, e encaminhou-se, com toda a graça e elegância que lhe eram características, para a cozinha.
Os dois médicos saíram de casa, com Filipe ainda no colo de João, que esperou ficar a sós com o amigo para tentar saber pormenores sobre a conversa entre ele e Marta.
- Então, César? Ela explicou-te o que aconteceu na sala de yoga de sua casa?
- Sim, contou-me que foi vandalizada. – disse calmamente.
- E por quem? Ela não disse? Aquilo que lá estava escrito era pessoal. – exclamou inflamado.
- Deve ser, mas como disseste e bem, é pessoal. – encarou-o sério.
- Estás a brincar a comigo? – vociferou, poisando o cão no chão, num local onde o animal poderia estar sossegado. – Ela tem de chamar a policia e denunciar quem fez aquilo!
- João, acalma-te. Se chegas lá a cima a casa e te pões nestes termos a comandar o que ela tem ou não tem de fazer, garanto-te que sai porta fora e nunca mais a vez. – sentenciou.
- Como assim? – uma acidez subiu-lhe até à garganta, ao imaginar que Marta desaparecesse da sua vida naquele momento – Ela disse que ia embora?
- Não, não disse. – suspirou – Só estou a fazer deduções, João. Eu não te posso contar tudo aquilo que falámos, terás de ser tu a conversar com ela. Mas, em todo o caso, tenho de te alertar de que a Marta conseguiu sair de uma relação com um psicótico e vai reagir mal se a pões contra a espada e a parede. Independentemente de eu e tu sabermos que chamar a polícia seria o mais correto a fazer, também lhe sugeri isso, as mulheres que lidaram com homens possessivos e agressivos, e conseguiram livrar-se deles, tendem a ganhar um medo irracional a situações de confronto com os antigos companheiros. É natural, a polícia e o tribunal são meras formalidades, quando tu sabes que nenhuma dessas instâncias pode nada contra um maluco com a missão de te matar.
- Ele tentou matá-la? – disse quase sem voz, agarrando o braço de César para se apoiar.
- Vai para cima, acalma-te, não a obrigues a falar hoje. – aconselhou-o, dando-lhe uma palmada suave do ombro – Descansem e amanhã é outro dia!
- Obrigado César. – conseguiu dizer, em jeito de despedida, abatido com o facto de não poder resolver tudo aquilo naquela mesma noite. Talvez estivesse mesmo a ser leviano e ingénuo ao pensar que o ir fazer queixa às autoridades resolveria o problema instantaneamente.
- Ah, é verdade… - César voltou-se para João a meio do seu trajeto até ao prédio do lado – Ela não é lésbica. – piscou-lhe o olho e sorriu, regressando ao seu caminho até casa.
- Já desconfiava... – tentou sorrir de volta. Deveria estar aos pulos de satisfação com aquela confirmação de que Marta poderia gostar dele como homem, mas a azia não o deixava festejar. Sentia-se furioso com um tipo que não conhecia, o que lhe arrepiava ligeiramente os pelos na nuca. Procurou por Filipe, que se arrastava pelo pequeno passeio relvado, numa luta entre a tala da pata traseira, a procura de uma posição confortável em cima da pouca natureza que a urbanização lhe permitia, e uma comichão qualquer atrás da orelha. Decidiu esperar um pouco antes de subir, para pensar o que dizer, treinar a descontração que César lhe sugerira, mas que lhe parecia impossível de conseguir. O cão não parecia estar com pressa, e João sentou-se num banco a admirar aquelas manobras acrobáticas. Com era bom ser cão, pensou com alguma inveja. Pelo menos aquele cão, corrigiu, imaginando-o a dormir por cima da dona vestida com aquele pijama minúsculo que lhe vira há dois dias por baixo do robe. – Sortudo.

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