Marta e César falaram durante bastante
tempo, quase num sussurro que João não conseguia perceber. Ficou
tentado em colocar o ouvido na porta, mas a estupidez da ideia
travou-o, indo simplesmente sentar-se junto de Filipe, na sala, a
consolar o animal e a si mesmo, fazendo-lhe festas e massagens que
relaxaram os dois. João nunca tinha gostado de cães em particular,
e sempre se sentira desconfortável junto deles, grandes ou pequenos,
que reagiam instintivamente à sua energia negativa. Mas Filipe era
um cão diferente, pensava distraído, parecia entender tudo o que se
passava à sua volta, com um olhar astuto e cheio de personalidade,
que transmitia os seus estados de espírito de forma honesta. Para
além disso, emitia uns sons guturais que quase falavam, e como Marta
tinha dito no momento de pânico em sua casa, aquele cão nunca
ladrava. Parecia mesmo recusar-se a ser cem por cento animal,
arranjando sons alternativos para se explicar.
-
És mesmo giro, sabias? – disse-lhe João, já sentado no chão com
o grande animal esparramado por cima de si, em posição adequada a
ser massajado com eficácia.
-
Vocês são os dois muito giros. – comentou Marta que apareceu na
sala, já com cores e lado a lado com César, que sorria sem
vestígios de preocupação no olhar.
-
Bem, aqui está uma cena que sempre pensei impossível de ver, o João
a brincar com um cão… - comentou César, que se mantinha
naturalmente confortável mesmo depois da conversa com Marta.
-
Sentes-te melhor? – perguntou João, levantando-se com dificuldade
debaixo do cão.
-
Sim, está tudo bem. – respondeu, abraçando-o sorridente e
beijando-o como se fosse aquilo um hábito entre um casal já antigo.
César respirou fundo, mostrando um sinal de alívio perante aquela
demonstração de afeto e despediu-se dos dois.
-
Levas o Filipe à rua? Ele deve estar aflito. Eu vou tentar perceber
como se usam estas coisas todas aqui na cozinha e tentar não nos
matar com um jantar inventado. – deu dois beijos no psiquiatra, que
corou ligeiramente, e encaminhou-se, com toda a graça e elegância
que lhe eram características, para a cozinha.
Os
dois médicos saíram de casa, com Filipe ainda no colo de João, que
esperou ficar a sós com o amigo para tentar saber pormenores sobre a
conversa entre ele e Marta.
-
Então, César? Ela explicou-te o que aconteceu na sala de yoga de
sua casa?
-
Sim, contou-me que foi vandalizada. – disse calmamente.
-
E por quem? Ela não disse? Aquilo que lá estava escrito era
pessoal. – exclamou inflamado.
-
Deve ser, mas como disseste e bem, é pessoal. – encarou-o sério.
-
Estás a brincar a comigo? – vociferou, poisando o cão no chão,
num local onde o animal poderia estar sossegado. – Ela tem de
chamar a policia e denunciar quem fez aquilo!
-
João, acalma-te. Se chegas lá a cima a casa e te pões nestes
termos a comandar o que ela tem ou não tem de fazer, garanto-te que
sai porta fora e nunca mais a vez. – sentenciou.
-
Como assim? – uma acidez subiu-lhe até à garganta, ao imaginar
que Marta desaparecesse da sua vida naquele momento – Ela disse que
ia embora?
-
Não, não disse. – suspirou – Só estou a fazer deduções,
João. Eu não te posso contar tudo aquilo que falámos, terás de
ser tu a conversar com ela. Mas, em todo o caso, tenho de te alertar
de que a Marta conseguiu sair de uma relação com um psicótico e
vai reagir mal se a pões contra a espada e a parede.
Independentemente de eu e tu sabermos que chamar a polícia seria o
mais correto a fazer, também lhe sugeri isso, as mulheres que
lidaram com homens possessivos e agressivos, e conseguiram livrar-se
deles, tendem a ganhar um medo irracional a situações de confronto
com os antigos companheiros. É natural, a polícia e o tribunal são
meras formalidades, quando tu sabes que nenhuma dessas instâncias
pode nada contra um maluco com a missão de te matar.
-
Ele tentou matá-la? – disse quase sem voz, agarrando o braço de
César para se apoiar.
-
Vai para cima, acalma-te, não a obrigues a falar hoje. –
aconselhou-o, dando-lhe uma palmada suave do ombro – Descansem e
amanhã é outro dia!
-
Obrigado César. – conseguiu dizer, em jeito de despedida, abatido
com o facto de não poder resolver tudo aquilo naquela mesma noite.
Talvez estivesse mesmo a ser leviano e ingénuo ao pensar que o ir
fazer queixa às autoridades resolveria o problema instantaneamente.
-
Ah, é verdade… - César voltou-se para João a meio do seu trajeto
até ao prédio do lado – Ela não é lésbica. – piscou-lhe o
olho e sorriu, regressando ao seu caminho até casa.
-
Já desconfiava... – tentou sorrir de volta. Deveria estar aos
pulos de satisfação com aquela confirmação de que Marta poderia
gostar dele como homem, mas a azia não o deixava festejar. Sentia-se
furioso com um tipo que não conhecia, o que lhe arrepiava
ligeiramente os pelos na nuca. Procurou por Filipe, que se arrastava
pelo pequeno passeio relvado, numa luta entre a tala da pata
traseira, a procura de uma posição confortável em cima da pouca
natureza que a urbanização lhe permitia, e uma comichão qualquer
atrás da orelha. Decidiu esperar um pouco antes de subir, para
pensar o que dizer, treinar a descontração que César lhe sugerira,
mas que lhe parecia impossível de conseguir. O cão não parecia
estar com pressa, e João sentou-se num banco a admirar aquelas
manobras acrobáticas. Com era bom ser cão, pensou com alguma
inveja. Pelo menos aquele cão, corrigiu, imaginando-o a dormir por
cima da dona vestida com aquele pijama minúsculo que lhe vira há
dois dias por baixo do robe. – Sortudo.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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