quarta-feira, 31 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (4ª parte)




Senta! Não... Senta! - disse, de dedo espetado em direção a Filipe, que estava mais interessado no biscoito – Ai, que guloso... se não aprendes não levas o doce! Vamos, temos de praticar agora, enquanto ele não chega, já sabes que depois o papá irrita-se contigo a saltitar de um lado para o outro... Tiago? Olá... estava a ensinar o Fili...- Tiago passou pelos dois furioso, sem os olhar, trazendo aquela energia agressiva que modificava o ambiente de um local – Vamos, Filipe, vai lá para fora, acabou a brincadeira. Vai!


- Filipe... pára... - resmungou, acordando com dificuldade ao sentir o nariz frio do cão no seu pescoço. - Deixa-me dormir... - ralhou, quando subitamente teve consciência do que dizia e levantou o tronco – Filipe? - olhou pelo quarto e não o viu, como seria previsível, mas barulhos vindos da cozinha deixaram-na em alerta, não se recordava bem de como tinha ido parar à cama, nem trocado de roupa.. seria ele? Um ardor de felicidade subiu-lhe pelo abdómen em direção à garganta, com a ideia de que João tinha tido alta, se recordara de tudo e estivesse a fazer-lhe chá com torradas. Correu até à cozinha e estacou ao ver Janota de avental, um homem enorme de luvas de cozinha e faces coradas com o esforço de cozinhar. A felicidade que sentiu apanhou-a de surpresa, e abraçou instintivamente o grande segurança que não sendo o João, era com toda a certeza o segundo homem por quem nutria amizade e carinho. Era graças a ele que ainda estava viva, e isso não conseguiria nunca esquecer.
- Olá, então, sentes-te melhor? - disse naturalmente, como se ter uma pequena mulher agarrada ao seu tronco fosse a coisa mais normal do mundo.
- Janota... o que fazes aqui? - perguntou, largando-o e facilitando-lhe os movimentos atabalhoados com as panelas.
- Bem, isso é uma história grande, que te vou contar durante o almoço... se algum dia conseguir terminar uma destas tuas receitas esquisitas de comer sem carne... - explicou, sorrindo-lhe encavacado.
- Estive a dormir desde ontem? - sobressaltou-se, retirando-lhe uma das panelas das mãos e ajudando no cozinhado. - Não me lembro de nada...
- Acho que estas coisas verdes já estão cozidas... vamos para a mesa? - escorreu a água da panela, ficando completamente camuflado no vapor da água quente e provocando um riso em Isabel.
- Sim, tenho muita fome... - espreitou a outra panela e verificou se a massa já estava pronta – Acho que isto já está. Vamos.
Sentaram-se na mesa exterior, onde corria uma brisa agradável de um dia solarengo de outono, e Isabel lançou-se na refeição, sendo observada por Janota que exibia um sorriso paternal de satisfação.
- Mastiga devagar, ainda ficas com dor de barriga.
- Diz lá, o que foi que aconteceu ontem? - perguntou, depois de comer algumas garfadas.
- Bem... ontem vim até aqui para te trazer uma prenda... e quado cheguei não te encontrava em lado nenhum da casa, por isso fui dar a volta lá atrás ao quintal e vi-te no chão de gatas a mexer na terra... - explicou, tendo cuidado nas palavras, com todo o tato que conseguia ter para não a deixar perturbada. Se lhe dissesse textualmente aquilo que vira certamente que ela ficaria envergonhada. - ...depois, desmaiaste.
Isabel corou, ao recordar o surto que tivera junto à campa de Filipe, e pousou os talheres, nervosa. Não sabia que tinha sido vista naquela situação, e podia imaginar o choque dele.
- Desculpa, estás sempre a ver-me nas piores figuras... - gracejou.
- Posso imaginar o que te levou a ficares nervosa daquela maneira... mas sentes-te melhor? - desconversou.
- Sim,... mas, e ficaste cá durante a noite?
- Eu e o Dr. César e a Elisabete... só o Salvador é que não pôde, ficou no bar. O Dr deu-te um comprimido, por isso dormiste tanto... de manhã cedo foram-se todos embora e eu fiquei para ver quando acordavas.- explicou.
- Que vergonha... - pousou as mãos no colo e desviou o olhar do dele.
- Vergonha é roubar! Mas diz-me lá, gostaste da prenda? - Disse mais animado e aliviado por já ter explicado tudo.
- Mas o que é? Onde está? - respondeu curiosa com a surpresa.
- Não viste? Esteve toda a noite em cima de ti... Espera, vou procurar. - levantou-se e voltou rapidamente de dentro de casa com um cachorro irrequieto que lhe cabia na mão enorme. - Aqui está! Estava com medo que não fosse boa ideia, mas o Dr garantiu-me que ias gostar!
- Oh... meu...Deus... - exclamou a sentir lágrimas de alegria nos olhos – Janota.... que coisa mais fofa... - pegou-lhe reverencialmente e deu-se a cheirar, satisfeita com aqueles cumprimentos que só um cão bebé conseguia dar. - Quem é a coisa mais linda da mamã?! Quem é, quem é? Sim... é o meu... - olhou repentinamente para o sexo do animal, para confirmar se era macho ou fêmea – o meu Filipe!
- Ainda bem que gostas... estava com algum medo que fosse um bocado cedo para substituir o Filipe. - explicou, recostando-se na cadeira e recomeçando a comer.
- Não... - disse a sorrir com os beijos e fungadelas no pescoço – todos os cães são únicos, têm uma personalidade própria, e o meu Filipe foi um cão excepcional... - relembrou, emocionada – Vivemos muita coisa juntos, boa e má, sem ele nunca tinha aguentado o que aguentei – confessou – e aqui o Filipe Júnior vai ser um bom cãozinho e só fazer xixi e cocó cá fora na rua, certo? - olhou o cachorro que se contorcia de excitação.
- Pois... sobre isso... acho que o teu Júnior já marcou a casa em todos os sítios possíveis e imaginários... e o pior é que não é macho verdadeiro, ele agacha-se para fazer xixi, como as cadelas e nunca sabes se está só sentado ou se já está a molhar a carpete outra vez...
- Enquanto são pequeninos não levantam a perna... aqui o tio Janota não percebe nada de cãezinhos fofinhos, pois não? Mas o menino vai ser lindo e não sujar a casa, é preciso é muita paciência e salsichas.
- Salsichas? - perguntou curioso.
- Sim, não há nada que não consigas ensinar a um cão se tiveres salsichas no bolso. Acredita. - explicou.
- Acho que também fazia umas habilidades por umas salsichas... - sentenciou divertido.



Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e fugiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apoderou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.

- João! Acorda!

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terça-feira, 30 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (3ª parte)




- Já lhe disse que acho que gosto de cães? - lançou, decidido a conversar o máximo que pudesse.
- Sim, já disse. Mas se quer a minha opinião, não saia daqui a correr e a ir adoptar um cachorro! Esses animais pequenos dão muito trabalho, precisam de muita paciência, tempo, disponibilidade, e vão sujar-lhe a casa toda. Se ainda tivesse um quintal, podia lá deixar o cão, mas...
- Como sabe se eu tenho ou não um quintal?... Eu não sei. - exclamou espantado com a observação.
- Claro que não sei, apenas deduzi pelo aspecto das suas mãos cuidadas... - apressou-se a esclarecer, fingindo-se naturalmente concentrada no corte e desviando a cabeça de forma a que ele não tivesse acesso direto à sua imagem.
João observou as suas mãos, curioso com a perspicácia dela, que já olhara tempo suficiente para si para fazer deduções. - Hum... de facto não devo fazer muita jardinagem..., mas não deixa de ser surpreendente como as enfermeiras hoje em dia são dotadas. É massagens, cortes de cabelo, investigação... - gozou, procurando o seu olhar e virando ligeiramente a cabeça, quando uma dor fina e insuportável o atacou na orelha esquerda e o fez gritar, afastando-se automaticamente das mãos da enfermeira.
- Desculpe, por favor, desculpe... - gaguejou Isabel, horrorizada com a tesourada que dera na orelha de João, que sangrava sem parar. Pressionou a ferida com a toalha, em pânico. - mas porque é que se mexeu? - berrou nervosa, com as mãos a tremer.
- Agora a culpa é minha? - gemeu, olhando-a espantado.
- Espere, vou chamar ajuda. - disse sem pensar.
- Vá mas é buscar uma agulha e linha e ponha-me isto novamente no sítio! - ralhou, com a dor a abrandar rapidamente.
- Deixe-me ver... - retirou suavemente a toalha e percebeu que o corte não era tão grave como o grito dele fizera parecer. - João, acho que não é preciso linha..., vou buscar um penso, já volto. - saiu apressada, sem sequer lavar o sangue das mãos, a sentir o coração na boca. Recordou rapidamente o que deveria fazer para parecer minimamente profissional quando lhe limpasse a ferida e colocasse o penso e procurou pelo material necessário num dos carrinhos que estava no corredor. Voltou a correr para o quarto, fechou a porta e respirou fundo. Aquilo não podia estar a acontecer... "apanha-se mais depressa um mentiroso que um cocho!", diria a Dazinha, e ela tinha sempre razão.
- Estou à espera! - resmungou, enquanto tentava ao espelho observar a ferida que parecia já não sangrar.
- Já aqui tenho tudo. - disse, erguendo uma quantidade enorme de gazes e adesivos, e obrigando-o a sentar-se novamente.
- Tem a certeza de que é preciso isso tudo?
- Quem é que é aqui a enfermeira? - exclamou, disfarçando o embaraço.
- Como quiser... - disse, levantando as mãos em desistência. - Também não vou ao "Pírulas" hoje... não há problema de ficar ridículo....- acrescentou.
Isabel olhou-o espantada, tinha tido um flash de memória sem se aperceber. Uma bolha de oxigénio formou-se no seu peito, invadindo-a de esperança, o que a fez sorrir.
- O que é o "Pírulas"? - perguntou confuso com aquela sua afirmação.
- Acho que é um bar na Praça... - respondeu, ficando estupidamente à espera que toda a memória aparecesse de repente e ele a beijasse com saudade.
- Bem, não me recordo de nada disso... - murmurou abatido com o acontecimento que o deixava mais angustiado que esperançoso. Temia ficar tolo, sem recuperar a memória de forma eficaz, apenas tendo uns vislumbres do que tinha sido. Isso seria pior que nascer de novo, como tinha sugerido Marta no dia anterior. - Pode deixar-me sozinho?
- Mas... e o resto do cabelo? - uma azia desceu-lhe pela garganta, junto com uma vontade enorme de chorar. Terminaria ali a sua relação com ele? Depois de lhe dar uma tesourada numa orelha e o deixar como um mendigo de cabelo desordenado..?
- Desculpe, tem razão, termine o corte, por favor, acho que preciso de descansar... - murmurou, sem a conseguir olhar. Sentia-se a descer a pique para uma angústia sufocante, com o desespero a tomar-lhe conta dos pensamentos.
- Eu prometo que sou rápida... - gemeu, a sentir os nervos a descontrolarem-lhe os movimentos das mãos, que cortavam a um ritmo cada vez mais rápido. - Por favor, desculpe-me, não fique chateado, foi só de raspão, eu faço-lhe um penso perfeitinho e daqui a uns dias já nem se nota...
- Não faz mal, eu também não devia ter mexido a cabeça... - murmurou abatido, sem vontade de continuar a conversar. - Eu mesmo faço o penso, deixe estar.
- Eu já tive um cão, já lhe tinha dito, era um companheiro... - fungou, tentando não se deixar levar pela tristeza de tudo aquilo, pelo desespero que via no olhar dele.
- Hum, hum... - disse, sem emoção, olhando o infinito, sem lhe prestar grande atenção. Até o simples facto de se sentir excitado perto daquela enfermeira o fazia sentir-se mal. Seria assim tão canalha, que preferia a companhia de uma estranha à da sua namorada? Porque nada fazia sentido, nada do que sentia o acalmava ou elucidava do seu passado. Deu uma última olhadela nela, e viu-se obrigado a desviar o olhar, porque a vontade que tinha era a de a abraçar.
- Pronto, está feito. - sacudiu os cabelos do pescoço e dos ombros e arrumou tudo, para disfarçar a tristeza. - Pode deitar-se agora, se quiser, deve precisar de descansar. Depois quando estiver mais bem disposto tome um banho, para tirar os restantes cabelos que aí ficaram.
João obedeceu, arrastou-se para o quarto e deixou-se cair na cama, virando-se para a parede, para esconder o choro que o começava a ameaçar.
Isabel ficou estática a olhá-lo, sem saber o que fazer. Queria tanto abraçá-lo e dizer-lhe que o amava, mas não conseguia desobedecer a César. Aproximou-se o mais que conseguiu da cama e respirou fundo.
- João? Posso ajudar? Quer que chame o médico? - sussurrou emocionada.
João manteve-se em silêncio, sem coragem para lhe pedir que ficasse e lhe desse a mão. Tinha medo, muito medo do que pudesse vir a recordar ou não, mas ela não o podia ajudar, não o conhecia, não sabia nada sobre a sua antiga vida, era uma enfermeira simpática, ponto.
- Vou embora, então... - reprimiu um soluço de choro, apertando os lábios. - As melhoras, e trate de se pôr bom e arranjar o tal cão... - deu meia volta e saiu, fechando a porta e correndo dali para fora. Não era assim que tinha imaginado a despedida, com João de costas voltadas para ela, em sofrimento, sem precisar dela. Procurou por César no gabinete do médico, mas nem esse parecia importado, tendo-se esfumaçado no ar. Chegou à rua sem se aperceber do caminho que tinha feito, com a cabeça pesada e confusa, procurou pelo jipe e entrou, acelerando até casa, em piloto automático, tinha de rebentar num local seguro e sem testemunhas. Uns sons agoniantes saíam-lhe desgovernados da boca, como que uns lamentos guturais que precisam de se libertar, e temeu não conseguir conduzir até casa, tal era o estremecimento do seu corpo, sempre que tentava silenciar os gritos. Parou o carro desajeitadamente na entrada da quinta, saiu a correr e dirigiu-se à campa de Filipe, onde se sentou agarrando nos joelhos enquanto os sons ganhavam força e a faziam temer o pior. Tinha de abraçar o seu cão, pensou enlouquecida, começando a esgravatar a terra com os dedos, furiosamente. Sim, estava a enlouquecer, mas já nada importava, apenas precisava de ver o seu Filipe e chorar agarrada a ele. Não conseguia que as lágrimas saíssem de outra forma, constatou, escavando mais e mais, à procura do cadáver do cão. Umas ossadas surgiram, revelando os restos mortais já bastante deteriorados, numa imagem que a fez parar e soltar a primeira lágrima. O seu amor reduzido a meia dúzia de ossos, o bebé que ele tinha morto, o seu filho, João, o cão, tudo ali morto e enterrado.
- Isabel! - um grito ao longe chamou o seu nome, segundos antes de perder a consciência.

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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (2ª parte)




- Por favor, desculpa-me... - murmurou desanimado sem saber o que dizer mais.
- Ela não se chama Isabel... o nome dela é Nélia, eu já a "conhecia". - acrescentou às informações que César lhe tinha dado.
- A culpa é minha, eu não soube enfrentá-la, fiquei com receio de a abordar logo no quarto, por causa do João, não o queria confundir ainda mais....
- Não... isto é tudo demasiado complicado e cada vez me convenço mais de que o João não é o meu futuro, o universo parece conspirar contra isto, e eu estou cansada César... - confessou, largando uma lágrima.
- Não digas isso, por favor Isabel, o João precisa de nós, não o podemos deixar ser enganado desta forma! Eu sei lá o que esta tipa psicótica pode fazer? Tu tens de me ajudar a resolver isto. - suplicou, sentando-se mais perto de Isabel e pegando-lhe nas mãos.
- César, eu prometi ao João que lhe cortava o cabelo hoje, trouxe a tesoura e vou cumprir a promessa. Mas será uma despedida. Não quero, nem posso lutar contra uma loira demasiado vistosa com intenções pouco claras. Ela entrou nisto para ganhar, e eu já tive a minha dose de psicopatas na vida. Vou voltar para Castelo Branco daqui a uns meses, depois de a escola arranjar uma substituta para dar as minhas aulas, e chega. Tenho andado a pensar em vários cenários e soluções, e este é o mais seguro para mim, para a minha sanidade mental. - levantou-se, abraçou César, que se mantinha calado com a surpresa e a abraçou de volta, como se precisasse ele de ser consolado.
- Eu... não sei o que dizer... - murmurou emocionado e a sentir-se estupidamente fraco.
- Não tem de dizer nada, apenas prometer-me que o vai defender e ajudar, estar atento para ela não o tratar mal, pelo menos enquanto estiver vulnerável. Depois, se ele quiser ficar com ela já é uma escolha, e cada um faz o que quer da sua vida. - rematou pragmaticamente e com um certo desdém na voz. Saiu da sala, dirigiu-se à casa de banho mais perto e lavou a cara com água fria, na tentativa de se acalmar o suficiente para conseguir entrar no quarto de João. Olhou-se demoradamente ao espelho, perdendo momentaneamente a lucidez, como se olhasse alguém estranho e não se reconhecesse. Um arrepio percorreu-a dos pés à cabeça, matar Tiago tinha sido mais fácil que o que estava prestes a fazer, constatou com pavor. Não queria deixá-lo, queria lutar por ele, devia entrar pelo quarto a dentro e beijá-lo, contar-lhe tudo o que a sua memória perdera, dizer-lhe que o amava e recuperar a sua vida. Mas o medo congelava-lhe as pernas, mantinha-a em pausa física, como se temesse que Tiago não tivesse de facto morrido, e a apanhasse no corredor, segundos antes de ela entrar no quarto de João. Obrigou-se a respirar cadenciadamente, como tantas vezes explicara aos outros nas suas aulas, sentou-se no chão da casa de banho para corrigir a postura do tronco e assim o oxigénio chegar mais eficazmente ao cérebro, sem se permitir chorar, porque sabia que no momento em que começasse, teria de berrar e espernear, e ali não era o local. Um último sacrifício para conseguir cumprir a promessa.


João levantou-se devagar, ainda meio zonzo das horas intermináveis que passava deitado durante o dia, e ligeiramente enjoado com o efeito da visita matinal da namorada. Era estranho como a Isabel parecia tão doce nos seus pensamentos, mas pessoalmente lhe dava sensações tão negativas, matutou com culpa. A sua vida era uma incógnita, e sabia que teria de dar algum crédito às pessoas que diziam conhecê-lo, porque elas o iriam ajudar a melhorar, mas os seus instintos não o deixavam confiar a cem por cento naquela mulher em particular. Seria correto aquilo que sentia?, perguntava-se angustiado, quando a porta abriu ligeiramente e uma voz familiar surgiu pouco segura.
- Bom dia. Posso? - Isabel espreitou para dentro do quarto, com uma leve esperança de que ele estivesse a dormir e pudesse observá-lo um pouco, antes de se afastar de vez de João.
- Olá, bom dia! - respondeu animado, ajeitando-se rapidamente para se certificar de que estava minimamente apresentável.
- Vim terminar o serviço. - puxou da tesoura de dentro do bolso da bata emprestada que pedira a uma enfermeira do piso. - Acha que é boa hora? Posso voltar depois, se preferir...
- Não, estava mesmo à sua espera. - apressou-se a dizer, sentando-se no fundo da cama satisfeito com a visita prometida. - Vejo que hoje trouxe a bata, afinal não é nenhuma maluca fugida da ala feminina. - gracejou, curioso com o semblante abatido da enfermeira que lhe parecera reservada, mas otimista no dia anterior.
- Muito bem. - esforçou-se por sorrir, sem conseguir sentir de facto alegria – Vamos lá então tratar dessa juba de leão! - encaminhou-se para a casa de banho do quarto, colocou o banco na posição ideal e procurou por uma toalha de rosto para colocar nas costas de João, sempre sendo observada em silêncio, o que a deixou dormente e incomodada. - Então, mudou de ideias? - disse, tentando acabar com o momento estranho.
- Sim, claro, vamos a isso. - sentou-se, deixou que Marta lhe colocasse a toalha nas costas, e ficou a olhá-la no espelho, sem saber bem porquê. - É engraçado, parece que a conheço de outro local... já ontem tive esta sensação...
- Não, - mentiu – isso é impossível. - rematou sem se alongar – Agora vou só molhar ligeiramente o cabelo para o corte ficar mais certo. - esfregou água nas mãos e passou-as pelo cabelo de João que emitiu um som de prazer com a súbita massagem capilar.
- Isto é mesmo bom... Marta, mas que vocação perdida aqui nestes corredores. Porque não é massagista a tempo inteiro? Eu ia diariamente pagar por uma massagem destas. - sorriu de olhos fechados.
- Gosto mais de dar injeções a maluquinhos. - gracejou, a sentir-se amolecer contra as costas de João, que desatou a rir com a piada, descontraído pelos dedos experientes de Isabel.
- As suas injeções são assim tão boas? Quero experimentar isso! - brincou, abrindo os olhos e notando um rubor súbito nas bochechas da enfermeira. - Desculpe, não a queria ofender. - tratou de se redimir, pensando que talvez aquela troca de palavras a pudesse estar a incomodar ou deixar desconfortável.
- Não se preocupe, eu estou habituada a que os meus pacientes fiquem relaxados, até na língua. - concentrou-se em pentear o farto cabelo e analisar os ângulos em que teria de cortar mais, para que a sua cara ficasse proporcionalmente bem enquadrada.
- Pois, a culpa é sua. - rematou satisfeito ao ver que ela não se deixava intimidar com a brincadeira. - Agora por favor não se vingue no meu cabelo... não quero ficar um Anhuca!
- Logo se vê. - deu a primeira tesourada com prazer, retomando a concentração e permitindo-se aproveitar o momento em que ali estavam encostados, de forma íntima, como se nada tivesse acontecido e ainda fossem namorados.

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sexta-feira, 26 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (1ª parte)





Há muito tempo que não acordava tão esperançosa com o futuro. A ideia de visitar João na clínica, lhe cortar o cabelo como prometido, conversar com ele, era tão doce, que lhe iluminou o início da manhã, como já não acontecia há meses. O dia de chuva que se adivinhava, frio e desconfortável não a incomodavam minimamente. João esperava-a, iriam estar juntos, e felizmente a amnésia não o tinha transformado em ninguém diferente. Continuava o mesmo, pensava satisfeita, apenas não se recordava de nada, nem das coisas boas, nem das más, e isso poderia nem ser assim tão negativo. Tinha fantasmas terríveis que o assombravam desde adolescente, libertara-se de tudo, agora Isabel teria de o conquistar, uma vez mais. Isso parecia-lhe um pequeno preço a pagar pela paz de espírito que a perda de memória provocara. Se havia coisa que tinha aprendido com a Dazinha era aquela forma positiva de transformar uma situação dramática numa possibilidade de novas perspectivas. "Só não há solução para a morte, menina Isabelinha!", diria ela, resolvendo o problema instantaneamente.
Fechou o jipe e encaminhava-se para o edifício da clínica, quando viu Nélia estacionar o carro de João e estacou confusa. Estaria a ver bem?, seria um carro igual?. César apareceu no seu raio de visão, no que lhe pareceu serem minutos, depois da assombração com a loira espampanante. Isabel saiu do transe e correu até o alcançar, a sentir uma nuvem agoirenta a cobri-los, na eminência de uma carga de água. - Dr César!- gritou, temendo dar de caras com a mulher no átrio da clínica.
- Isabel... - sussurrou desanimado. Tivera pesadelos com aquela situação, até a mulher o obrigar a tomar um chá calmante a meio da noite. Teria de explicar à verdadeira Isabel que não fora capaz de lidar com a outra, e agora João vivia uma mentira.
- Dr César... - arfou com o esforço da corrida – Conhece aquela mulher? Aquele é o carro do João, não é?, ou estou doidinha?!... É que me parece mesmo o carro... - lançou sem parar, já com as pernas a tremer.
- Isabel... temos de conversar... - confessou, agarrando-lhe paternalmente no antebraço e conduzindo-a para o elevador, enumerando mentalmente o seu discurso e pedido de desculpas.


- Querido... bom dia! - ronronou Nélia ao entrar sem bater, interrompendo uma conversa entre João e uma enfermeira que o medicava antes do pequeno almoço.
- Olá Isabel... - esforçou-se por sorrir – Aqui tão cedo? - Uma estranha sensação invadiu-lhe o peito, deixando-o levemente aborrecido com a visita da namorada. Tinha pensado em dormitar um pouco antes do corte de cabelo prometido pela enfermeira albicastrense. Não sabia se Isabel ali estava só de passagem ou se ficaria algum tempo, o que o deixou amuado. Sentia-se sem paciência para conversas.
- Vim ver como te sentes, se precisas de alguma coisa... tenho ginásio agora de manhã, mas não queria deixar de te ver primeiro... - ronronou, encostando-se a ele sem cerimónias e pudor, sem se importar com a presença da enfermeira que arrumava os seus utensílios bastante corada.
- Isabel... - olhou a enfermeira envergonhado, tudo aquilo lhe parecia não ser bem o tipo de comportamento que gostava.
- João, a senhora enfermeira está habituada a ver esposas apaixonadas com saudades, não está? - olhou-a com firmeza e um certo atrevimento, sem se afastar do médico constrangido.
A enfermeira saiu sem responder, deitando um olhar duro à visita tão mal educada, e deixou-os a sós, apressando-se por ir alertar o Dr César dos novos desenvolvimentos.
- Pronto, já estamos sozinhos. - sorriu-lhe satisfeita – Queria mesmo falar-te em privado. - disse, modificando o tom de voz, denunciando um tema mais sério – Sabes aquele cartão que eu tinha da tua conta bancária? Olha, perdi-o... e agora preciso de levantar dinheiro para pagar o ginásio e não consigo... Eu avisei-te que devias ter-me posto como 2ª titular da conta, afinal, foi lá que depositaste o dinheiro que fizeste com a venda do meu apartamento. - recriminou-o, fingindo-se ofendida com a ação – Eu logo vi que isto podia dar problemas... tudo bem que íamos comprar uma casa os dois, e metade sou eu que vou pagar, mas eu podia ter-te dado o dinheiro só na altura... agora estou de mãos e pés atados. Explicas-me como vou sobreviver até tu voltares para casa?
- Isabel... - reagiu estupefacto com toda aquela informação estranha e confusa – Eu não sei o que dizer... bem, o melhor é fazer-se outro cartão e tiras o diheiro... não sei... - conseguiu dizer, perante aquela mulher tão aborrecida.
- Acho bem, e vou tratar disso ainda hoje! Vou ao banco e de lá peço ao gerente para te ligar, assim explicas-lhe que estás internado e eu trato de tudo, trago-te depois os papeis para assinares e resolvemos isto num instante! - beijou-lhe a boca, lentamente, deixando-o dormente e confuso, e saiu vitoriosa, sorrindo de costas para o médico desmemoriado. Aquilo era tão fácil que até dava vontade de rir! Conseguira em alguns dias o que andara anos a imaginar, ser mulher de um médico cheio de dinheiro, a fazer vida de dondoca, com a vantagem que nem tinha de o aturar enquanto estivesse no hospital. Afinal a vida nem era assim tão madrasta, sofrera muito até ali chegar, e tinha todo o direito de usufruir daquele momento, o seu momento.

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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 19 (5ª parte)




“… quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…”

João acordou sobressaltado com aquele breve sonho, efeito da digestão do jantar com mais uma dose de comprimidos variados, a nova sobremesa do hotel de cinco estrelas a que estava confinado, sem data para sair. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma criança nos sonhos, pensava curioso, nem aquele cheiro a pão fresco, mas César alertara-o de que os sonhos noturnos poderiam ser confusos e pouco credíveis. Era necessário deixá-los aparecer, sem que isso se transformasse num factor de mais angústia. Havia remédios para não sonhar, informaram-no numa das visitas consulta, mas só seriam necessários se ele não lidasse positivamente com essas manifestações do inconsciente. Como estava farto de medicamentos, esforçava-se para não sucumbir à angústia que o rosto indefinido do menino lhe provocava.
E também havia Isabel, a bela mulher que aparecera naquela tarde, trazendo-lhe mais um raio de esperança. Era nela que teria de pensar, como um objetivo claro para a sua recuperação total. Iria visualizar a sua cara antes de voltar a adormecer, na tentativa de sonhar com ela. Estava farto de ser prisioneiro do passado, queria dedicar-se ao futuro.


César abriu a porta de casa e sentiu automaticamente metade do peso sair-lhe de cima. Dias de trabalho duros eram sempre difíceis de ultrapassar, mas por vezes dava por si a desejá-los, só para sentir aquele alívio quando entrava em casa e recebia aquela energia positiva que Lisa colocava em tudo, nos pequenos pormenores. Uma flor diferente no hall, aquela velinha acesa em honra da Sagrada Família que os olhava da sapateira da entrada, o cheiro de um ambientador por cima da mesa de café no centro da sala que se misturava com o odor a pele gasta dos sofás já a pedir reforma, mas que teimosamente iam ficando por serem os únicos anatomicamente adaptados ao casal. Tudo aquilo o curava, menos naquele dia. Sentou-se no seu lugar, como habitualmente, à espera que Lisa aparecesse de uma das divisões, enquanto ele remoía nas suas dores, sentindo-se especialmente em baixo. Uma mistura de frustração com medo, que não conseguia bem explicar, apertavam-lhe a barriga. Levantava-se do sofá quando Elisabete lhe surgiu por trás, abraçando-o com um braço e colocando-lhe um copo generosamente servido de whisky, com duas pedras a dançar, tilitando.
- Como é que sabias que ia mesmo agora buscar um? – perguntou espantado com a clarividência da mulher.
- Muitos anos, meu querido. Já tenho o Doutoramento em maridos psiquiatras. – brincou, sentando-se do seu lado intimamente.
- Sim, é verdade, eu tenho muita sorte. Não sei como é que os meus colegas aguentam aquelas mulheres de vinte e poucos anos,… não é que estejas velha, - sorriu-lhe atrevido – mas és como eu, andamos na mesma rotação. Acho que já tinha pirado se não fosses tu. – confessou, pegando-lhe na mão e dando-lhe um beijo.
- Isso é verdade, tens mesmo muita sorte! – gracejou – Agora explica-me lá o que te deixou assim tão cabisbaixo, velhote!
- Ainda não percebi bem o que aconteceu. A imagem que ilustra é um grande trator a arrebanhar tudo e todos, passando por cima sem dó nem piedade.
- Deixa-te de ilustrações, - disse curiosa – conta-me tim tim por tim tim o que viste.
- Bem, quando cheguei ao final da tarde ao quarto do João, entro e vejo uma mulher loira, vistosa, sentada à sua beira na cama, de mãos dadas com ele. – começou a explicar – Fiquei naturalmente surpreso com a cena, nunca a tinha visto, e o João parecia também estupefacto, coitado.
- Pois, ele ficaria estupefacto com qualquer coisa, não se lembra de nada… - acrescentou.
- Claro. Mas a tipa tinha qualquer coisa no olhar que assusta, sabes? Apresentou-se como a “Isabel”, namorada do João. Acreditas? – exclamou infamado.
- Hum… Sim, e que mais? – perguntou, de olhar fixo no nada, concentrada nos pormenores do discurso do marido.
- Chamei-a logo ao gabinete, para tentar perceber o que é que ela queria… Confrontei-a com a verdade, que sabia que ali havia esquema e ela não negou nem confirmou. Apenas me esclareceu que era conhecida do João e mostrou-me as provas dessa relação… umas fotos nojentas dos dois na cama.
- Como eram as fotos?
- Como eram as fotos? – perguntou escandalizado com a curiosidade da mulher.
- Sim! Como estavam? Deitados, de bruços, de cócoras… diz lá!
- O João deitado, de olhos fechados, e ela em várias posições… a fotografar, com o braço estendido, assim. – demonstrou como deveriam ter sido captadas as fotos, pela lógica da perspectiva.
- E depois? O que disseste quando as viste?
- O óbvio, que aquilo não provava nada! E ela desafiou-me, literalmente, levantou-se e saiu disparada de volta para o quarto dele… Quando a consegui alcançar, já a apanhei aos beijos com ele.
- Esperta… E o João? Embasbacado, não?
- Coitado, com cara de quem não sabia onde se meter… Mas o pior não sabes… - acrescentou gravemente – Ela pediu os pertences pessoais dele na sua frente, chaves do carro, casa, roupa, e não nos deu outra hipótese senão obedecer-lhe. Como é que íamos explicar depois ao João que não podíamos dar as chaves à “namorada”, sem transformar aquilo num problema ainda maior?
- Que loucura… E agora a tipa deitou a mão à casa e ao carro? – perguntou, sem precisar de uma resposta – Será que está lá neste momento?
- Não sei, espreita aí da varanda e vê se há lá luz. – disse sem emoção na voz, bebendo mais um gole.
Elisabete obedeceu energicamente, olhando discretamente para o prédio ao lado e confirmando que a tal “Isabel” estava em casa do João. Uma ideia surgiu-lhe, seria arriscado, mas precisava tentar ajudar o seu amigo e resolver a trapalhada que o marido não tinha tido coragem de fazer.
- Não há luz nenhuma… - mentiu, fechando um pouco do estore para dissuadir o marido de confirmar o que ela dizia – Bem, deixa-te estar aí a terminar o teu whisky, relaxa, que eu vou lá abaixo ver o correio e já venho. Podias ir tomar um banho, o jantar está quase pronto, e já continuamos a conversa. – beijou-o na cabeça e saiu em direção à porta de casa, sem demonstrar qualquer constrangimento.
- Está bem. – disse, engolindo o resto da bebida de uma só vez. A ideia do banho animava-o, e precisava de jantar rapidamente, senão o whisky tomar-lhe-ia conta do juízo.
Elisabete bateu a porta de casa e apressou-se a dirigir-se ao prédio do lado, onde a tal mulher se encontrava, a ocupar uma casa que não lhe pertencia. Não sabia bem o que lhe iria dizer concretamente, mas precisava de a ver ao vivo, dirigir-lhe algumas palavras para tentar entender com que tipo de pessoa o João teria que lidar, e consequentemente, todos eles. Tocou a uma campainha ao acaso e pediu educadamente para lhe abrirem a porta do prédio, inventando uma desculpa coerente. Ninguém desconfiava de uma voz de mulher aflita, comprovou, ao ouvir o som da porta automática a abrir prontamente. Subiu as escadas, evitando o elevador, na tentativa de ganhar tempo para se preparar, sentindo-se ligeiramente nervosa. Agora não poderia desistir, e teria de ser rápida, para que César não desconfiasse.
Colocou o ouvido delicadamente junto à porta de casa de João, parecia-lhe ouvir música um pouco estranha e agressiva, daquelas que passavam na rádio do café perto da escola de yoga. Tocou à campainha e fez o seu melhor ar, certa de que a rapariga iria estudar a imagem pelo óculo e esperou um instante antes de premir novamente o botão, insistindo.
- Sim? – uma voz em alerta soou do outro lado.
- Sim? Vizinha? Desculpe incomodar, mas estou muito aflita! – disse fingindo-se com um problema grave.
Nélia abriu uma nesga da porta, desconfiada daquela visita repentina, mas já tinha denunciado a sua presença, não poderia deixar a mulher sem resposta.
- O que aconteceu?
- Desculpe querida, mas moro aqui ao lado, e acho que o meu gato saltou para a sua varanda… estou tão aflita, posso ir lá ver se ele está bem? – choramingou, já entrando pela casa, desaustinada.
- Sim, claro… - reagiu sem hipótese – Mas tem a certeza de que o gato veio para esta varanda? – perguntou, abrindo a porta de vidro e espreitando para o local já escurecido da noite.
- Ai, meu Deus… não está aqui! – exclamou, deitando as mãos à cabeça – Eu vi-o saltar… não me digam que caiu lá para baixo!
- Tenha calma, os gatos têm muitas vidas! Sente-se um pouco, pode ser que tenha saltado novamente para a vossa varanda… - Nélia esforçou-se por ser simpática, afinal iria morar ali por uns tempos, não queria ser mal falada.
- Obrigada… - fungou, tirando um lenço do bolso e fazendo de conta que limpava uma lágrima dos olhos – Podia dar-me um copo de água? Estou muito nervosa. – pediu, tentando perceber se ela já era íntima do local, observando-a a procurar o armário correto dos copos e analisando todas as movimentações da loira espampanante.
- Aqui tem. Beba. Vou espreitar melhor a varanda. – Nélia deixou-a a recompor-se, não lhe apetecia nada ficar a dar conversa a mulheres com chiliques da menopausa.
- É muito atenciosa… - suspirou, assim que a rapariga voltou da varanda – Desculpe invadir assim a sua casa… deve estar atrasada já com o jantar, não é? – comentou, devolvendo-lhe o copo e mostrando intenção de sair – O Dr deve estar a chegar…
- Eh… sim, ia agora começar a fazer o jantar. – mentiu, começando a ficar incomodada com o seguimento da conversa.
- Engraçado, nunca a vi aqui no prédio. Está cá há pouco tempo, de certeza.
- Sim, sim. Mudei-me apenas há algumas semanas… Mas quase nunca saio de casa. O João não quer que eu trabalhe. – inventou, tentando encaminhar a mulher para fora do apartamento.
- Ah, faz muito bem. Uma rapariga assim tão bem apessoada, é normal que ele tenha ciúmes e a queira guardar! – gracejou, dando-lhe o braço e deixando-se levar até ao corredor. Já tinha percebido o que queria e feito a primeira abordagem à mulher. Já não era uma total estranha para a suspeita de burla, e isso seria importante.
- Obrigada, mas agora tenho de ir fazer o jantar…
- Claro, querida. Obrigada pela sua simpatia, vou procurar o “Tareco” na casa da outra vizinha. Adeus, e espero vê-la mais vezes! – deu-lhe um par de beijos e deixou-a fechar a porta, antes de se lançar em direção a sua casa. O marido já devia estar pronto do banho e a lasanha tinha ficado no forno por esquecimento. Seria uma catástrofe!

- Mas onde é que tu te meteste? – exclamou César aborrecido, à luta com as luvas de pano com que tentava tirar o jantar do forno.
- Desculpa, a Dona Perpétua apanhou-me lá em baixo e não se calava! – mentiu, tirando-lhe tudo das mãos e puxando a travessa com facilidade para a mesa já posta na sala. – Vamos, que isto está no ponto! – disse animada.
- Cheira muito bem… Mas não tenho assim muito apetite.
- Nem penses em fazer-me uma desfeita dessas. Nada de depressões imaginárias, tens de comer, e este é um dos teus pratos favoritos! Vamos, dá cá o prato! – ordenou, tomando as rédeas da situação, ali quem mandava era ela, como uma mãe de substituição, mantendo a família na ordem.
César obedeceu e deixou-a encher o prato, sorrindo ligeiramente, afinal, era muito bom ter alguém que gostava dele ao ponto de o querer alimentar como uma criança. Serviu os copos de vinho e lançou-se na Lasanha, adiando um pouco o resto da conversa sobre João. Lisa tinha aquele dom, o de o chamar à realidade mais básica, puxando-o daqueles planos mais abstratos e angustiantes dos pensamentos. Comer era um dos seus trunfos, e se ela cozinhava bem, pensou satisfeito.



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quarta-feira, 24 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 19 (4ª parte)





Esperou que Isabel desaparecesse na rua e saiu detrás da carrinha estacionada, correndo até à porta do prédio e apressando-se a retirar da caixa do correio a chave da tia. Se tudo corresse como planeara desde a clínica até ali, nunca mais a Rosário entraria naquela casa e essa era uma das primeiras coisas a providenciar, afastar a empregada de João e do seu apartamento. Entrou em casa e sorriu de orelha a orelha, com uma satisfação que lhe fazia inchar o peito. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, realizada e optimista. Na sua cabeça nada poderia correr mal, era tão fácil que dava vontade de gargalhar. A vingança mais fria que poderia ter imaginado, assumir o lugar de Isabel, deitar-se na sua cama, conduzir o seu carro, usufruir de todas as mordomias chiques que João nunca lhe dera a oportunidade sequer de desejar, expulsando-a de casa como se fosse um pedaço de esterco sem utilidade. Iria ocupar o seu lugar na vida dele, usá-lo enquanto a sorte lhe permitisse, organizar-se financeiramente, introduzindo-se naquele meio social requintado, e se João recuperasse a memória, depressa encontraria outro possível namorado rico a quem se encostar. A vida tinha-lhe sido até então madrasta, estava na altura de mudar as regras e fazer-se esperta. Esperar pela bondade do destino ficava fora de questão, nem que para isso tivesse que se transformar em Isabel.

- Podes por favor explicar-me isso tudo com calma? – Elisabete esforçava-se por entender o discurso atrapalhado e nervoso do marido, que lhe ligara antes de chegar a casa, o que era raro e sinal de problemas.
- Lisa, o João está a ser vítima de burla, entendes? Estava lá uma mulher no quarto que assumiu ser a “Isabel”, a namorada, me enfrentou descaradamente, sem papas na língua… - gemeu, a sentir-se patético à medida que verbalizava tudo aquilo.
- Tem calma, demoras muito a chegar? Não é melhor falarmos em casa, tomas um banho, jantamos e explicas-me tudo com tempo? Vamos, não há nada que não se possa resolver, anda. Conduz com calma que eu vou terminar o jantar. – disse carinhosamente, transformando a neurose do marido automaticamente.
- Sim, sim… tens razão, já vou a caminho. – confessou, respirando fundo – Até já. – desligou o telefone e concentrou-se no trajeto, olhando-o com mais atenção que o costume. Fazia aquela estrada, ida e volta, há vários anos, mas só quando ficava realmente preocupado é que lhe prestava atenção, procurando nos seus pormenores uma âncora para o desespero. Agarrava-se à enormidade das árvores à sua volta, estudando a sua forma, para não pensar em nada do que assistira naquele fim de tarde. A Lisa saberia desdramatizar tudo aquilo, encontrar uma solução prática e tirar-lhe aquele peso da culpa, pensou, aliviado com a perspectiva de chegar a casa. Não poderia nunca ser Psiquiatra se não estivesse casado com ela, admitiu, recordando-se de lhe ter pedido um dia que fosse sua e nunca o deixasse, por puro egoísmo, a que muitos chamavam de amor. Sem ela não seria nada, amava-a, ou melhor, precisava-a mais que tudo.


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terça-feira, 23 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 19 (3ª parte)




João saía do quarto de banho, amparando-se nos móveis, ainda pouco certo nos movimentos, quando Nélia apareceu bruscamente e se lançou nos seus braços, emocionada.
- Que saudades… tive tantas saudades tuas… - levantou a cabeça e procurou o seu olhar, beijando-o com paixão, no exato momento em que César entrava de novo no quarto.
- Desculpe Dr… - disse João envergonhado com aquela indiscrição da namorada. – Já conversaram tudo?
- Não, mas fica para uma outra altura. – rematou o médico, olhando Nélia duramente.
- Querido, agora deita-te, ainda estás fraco. – encaminhou-o para a cama com suavidade – Dr, onde estão as coisas pessoais do meu namorado? – perguntou com os olhos sorridentes, deixando-o encurralado.
- Guardadas.
- Então pode pedir que as tragam? Precisava de usar o carro, o meu está na oficina, ainda não o fui buscar.
- Preciso da autorização do paciente, e nas condições atuais não podemos colocar-lhe essa responsabilidade… - explicava, a tentar safar-se da situação e negar o pedido da mulher, que infelizmente parecia astuta o suficiente para conseguir o que queria.
- Desculpe Dr, mas parece-me um pouco de zelo profissional a mais. Afinal, isso são pormenores de protocolo! Eu preciso de usar o carro e estão lá as chaves! Não achas João?
- Sim, claro. Se ela precisa do carro, dr… - concluiu assarapantado.
- Pronto, está a ver? Peça lá a uma funcionária que traga tudo o que é do João, inclusive a roupa que trazia quando deu entrada. Eu levo para casa.
- Sim, claro. – resignou-se furioso, levantando-se e fingindo-se convencido. Sentia-se a perder o controle de tudo aquilo, a aquela maluca agia demasiado rápido, sem lhe dar hipótese de pensar como poderia reverter a situação sem prejudicar João. Caminhou nervoso pelo corredor, e pensou em telefonar para Isabel, perguntar-lhe se saberia quem era aquela mulher misteriosa, mas iria simplesmente magoá-la com aquela história surreal. Calma, dizia a si mesmo, era preciso ter calma para não piorar tudo. Pegou nos pertences de João e colocou-os num saco da clínica, suspirando. Quase quarenta anos de profissão e nunca tinha lidado com uma excêntrica daquele calibre. Lisa saberia como lidar com ela, lamentou-se, porque não conseguia ele calar a matraca à loira sabichona?


Isabel fechou a porta de casa de João e limpou uma pequena lágrima que teimava em querer sair desde que se encaminhara para a saída. O medo de nunca mais ali voltar invadia-a, tornando-a ansiosa e frágil. Sabia que estava a dramatizar, era uma questão de tempo até João recuperar a memória, mentalizava-se, colocando a chave na caixa do correio, como Rosário pedira. Todas as suas roupas, saco de viagem, vestígios diretos e indiretos da sua breve presença na casa foram meticulosamente retirados, e Isabel sabia que era para o bem de João. César estava certo, não poderiam criar uma realidade alternativa na sua mente, contando-lhe pormenores importantes do passado esquecido, simplesmente porque iriam colidir positiva e negativamente com o que o seu subconsciente bloqueava. Quando ele se lembrasse, deveria estar o menos influenciado possível, para conseguir lidar de forma saudável com os sentimentos que todas as memórias lhe trariam. Isabel sabia-o, percebia e respeitava a sua opinião profissional, e deixou apenas Ganesha, discretamente arrumado numa prateleira superior, praticamente invisível, para o guardar durante a noite, assim que regressasse a casa. Saiu do prédio e dirigiu-se ao jipe, acelerando nervosamente. Já estava atrasada para a sua aula da tarde e ficar por ali era torturante. Felizmente tinha o yoga para a ajudar, suspirou agradecida.

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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 19 (2ª parte)







Caminhou em silêncio até ao fundo do corredor, seguido por Nélia que não demonstrava qualquer constrangimento com aquela conversa privada e fazia a sua primeira análise do que estava a acontecer. Uma oportunista sem escrúpulos, gritava-lhe a sua vozinha interior.
- Sente-se por favor. – ordenou, tomando o lugar em frente do outro lado da grande secretária cheia de processos clínicos.
- Obrigada. Então? O que queria conversar?
- Sou amigo do João há vários anos. Ele teve uma mulher chamada Isabel e tem de facto uma namorada também com esse nome, e nenhuma delas é a senhora. Quer explicar-me o que vem a ser isto?
Nélia sorriu indolentemente e recostou-se na cadeira, observando o psiquiatra nervoso.
- Bem, lá porque nunca me viu antes, não significa que eu não faça parte da vida dele. Nós temos uma relação, que começou antes dessa tal suposta namorada. Se ele nunca lhe contou é porque tencionava manter-me em segredo.
- Não, nunca mencionou conhecer uma terceira Isabel. E eu duvido que isso seja verdade. – respirou fundo e continuou – Menina, eu não sei o que pretende com esta abordagem, mas tenho de a avisar de que está a comprometer o tratamento e a recuperação ativa do paciente. Ainda não lhe falámos sobre detalhes do passado que ele esqueceu momentaneamente porque aguardamos que recupere sozinho, sem influências. Aquilo que fez pode ser altamente prejudicial! – disse já exaltado.
- Então deixam um homem já quase recuperado, pelo que pude perceber, completamente às cegas, à espera que se dê um milagre e ele se lembre de quem era? Parece-me bastante cruel. – ironizou – Cruel e pouco correto.
- Desculpe mas não tem qualquer legitimidade para tecer considerações sobre o que é correto ou não no tratamento do paciente. Como já lhe disse, não a conheço de parte nenhuma.
- Pois, já me disse, e eu repito-lhe também: Eu e o João temos uma relação. Eu tenho provas. – tirou o telemóvel da carteira, procurou as fotos dos dois na cama e mostrou ao médico, sem pudores.
- Isso não prova nada. – uma azia ameaçou aparecer com aquela visão que sabia que ela utilizaria também com João.
- Quer apostar?
- Minha menina, eu não vou permitir que faça o que está a pensar! O João não namora consigo. Se andaram enrolados meia dúzia de vezes isso não lhe dá o direito de querer assumir um lugar que não é seu! – berrou, dando uma palmada na mesa.
- Vamos ver se não dá! – respondeu sorrindo – Ele deve estar ansioso por retomar a vida que deixou pendurada e que ninguém o deixa lembrar. – levantou-se e saiu apressadamente do gabinete deixando César embasbacado, voltando ao quarto o mais rapidamente que conseguiu. O médico não teria hipótese de a desmentir, principalmente porque temia confundir ainda mais o amigo.


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sexta-feira, 19 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 19 (1ª parte)





- Posso entrar? – perguntou docemente depois de bater na porta entreaberta do quarto de João.
- Sim. Boa tarde. – respondeu meio espantado com a visão daquela mulher vistosa que lhe sorria familiarmente.
- João… meu amor… - choramingou, aproximando-se da cama devagar, enquanto avaliava a reação dele.
- Desculpe, conhecemo-nos?
- Sou eu, a Isabel. – disse mentindo descaradamente e sentando-se na cama de forma íntima.
- Isabel…? – aquele nome não lhe parecia totalmente desconhecido, mas, ou a proximidade física entre os dois estava a ser demasiado rápida, ou a memória daquela cara não existia simplesmente.
- Querido… estive no estrangeiro quando tudo aconteceu… não fazia ideia de que tinhas sofrido um acidente… quando cheguei hoje a nossa casa e não te vi fiquei em pânico! – explicou, agarrando-lhe nas mãos suadas dos nervos, o que a deliciou – Mas não te preocupes, agora vai ficar tudo bem!
João endireitou-se na cama, para respirar melhor e afastar-se do cheiro do perfume da mulher, que o enjoava ligeiramente, com uma ansiedade a crescer-lhe no peito. Esperara por aquela visita durante vários dias, quando a consciência do que lhe tinha acontecido permitiu o surgimento de várias questões práticas sobre o seu passado. Mas, ao contrário do desejado, não sentia nada ao olhar nos olhos da mulher que se identificava como seu amor.
- Desculpe… mas explique-me com calma quem é… - conseguiu dizer com a boca a secar-lhe.
- Claro, eu não devia ter entrado assim nervosa. Estive tanto tempo sem te ver… e quando soube que estavas aqui… felizmente o acidente não te magoou… - disse, observando-o com cuidado – Eu sou a tua namorada, Isabel. Vivemos juntos há algum tempo, eu sei que não te lembras de nada, o Dr. César explicou-me. – acrescentou, no exato momento em que o médico entrou no quarto e interrompeu o seu discurso.
- Bom dia. – exclamou confuso ao ver uma mulher de mãos dadas com João, que parecia aterrorizado – O que é que passa aqui? – Não se recordava de ter autorizado aquela visita, ou sequer de alguma vez a ter conhecido.
- Bom dia, Dr. – disse João – Esta é a Isabel. – explicou, surpreendido com o visível espanto do médico.
- A Isabel? – virou-se instantaneamente para ela, à procura de uma resposta para toda aquela loucura.
- Sim, a Isabel, não se recorda? Falámos ontem ao telefone. Sou a namorada do João. – encarou-o firmemente, estendendo-lhe a mão – Prazer em conhecê-lo pessoalmente.
- Prazer. – respondeu gravemente, a sentir-se ferver de raiva com aquela situação lunática. – Pode por favor acompanhar-me ao meu gabinete? Precisava mesmo de conversar consigo.
Nélia levantou-se, beijou João na boca e fez-lhe uma festa carinhosa, sossegando-o.
- Eu volto já amor.
- Faça favor. – César abriu-lhe a porta e sorriu a João, para não o alertar ainda mais. Sabia que não tinha disfarçado o nervoso daquele encontro e seria ainda mais difícil explicar-lhe tudo depois de perceber o que quereria aquela mulher misteriosa que se intitulava macabramente de Isabel, utilizando o nome das duas mulheres do passado de João.


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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 18 (4ª parte)




- Acho que está a ficar perfeito! Dê uma olhadela no espelho.
João abriu os olhos e surpreendeu-se com o ar rejuvenescido que a sua cara transmitia. Ficava melhor sem barba, reconheceu, olhando alternadamente para a esquerda e para a direita.
- Obrigado, ficou muito bem. E tem razão, preciso de cortar o cabelo, acho que nunca o usei assim tão grande.
- Então amanhã se quiser eu corto-lho. – ofereceu-se automaticamente, iniciando a limpeza do local para disfarçar o embaraço.
- Enfermeira, massagista, barbeira… que mais é que sabe fazer?
- Também dou aulas de yoga. – confessou, ajudando-o a regressar ao quarto.
- Eu não sei bem o que fazia para além de ser psiquiatra…. E mesmo isso já não devo poder exercer nunca mais, se não recuperar a memória… - lamentou-se, sentindo uma azia nervosa.
- Não se martirize com isso agora. A memória vai voltar naturalmente, - disse, desejando ardentemente ter razão – com calma vai começar a relembrar pequenas coisas. Precisa é de ter alta daqui e voltar aos locais familiares, a sua casa, ver as suas coisas…
- E se nunca me lembrar novamente? – perguntou-lhe com o olhar nervoso.
- Se nunca se lembrar, começa tudo de novo. – respondeu naturalmente sorrindo-lhe – Já viu o que é poder renascer sem a carga de passado que acumulamos ao longo dos anos? Ficar livre de medos irracionais que temos, não sabemos bem porquê, esquecer as pessoas que nos magoaram, o mal que fizemos aos outros?
- Visto assim, nem parece tão mau… - concluiu – Não sabe nada sobre mim?
- Não, - mentiu, para não desobedecer às orientações clínicas de César, que ainda queria aguardar pela recuperação natural do doente – e mesmo que soubesse, não poderia dizer.
- Então, se não podemos falar sobre mim, falemos sobre si. – sugeriu, com vontade de continuar à conversa com a enfermeira. – Pode ser?
- Sim, claro. O que quer saber? – sentou-se no fundo da cama, ansiosa com o facto de ser obrigada a mentir-lhe ainda mais.
- Coisas banais… O nome já sei. É daqui de Coimbra?
- Não, sou de Castelo Branco.
- Ah, daí o sotaque.
- Eu tenho sotaque? – fingiu-se ofendida.
- Tem, mas é bonito.
- Devia ouvir a minha mãe falar, é ainda mais bonito. – disse, corando com o elogio.
- É casada?
- Não, divorciada. – engoliu uma bola de ardor que a queimou até ao estômago.
- Solteira?
- Sim, tecnicamente.
- Filhos?
- Não. – outro ardor queimou a garganta ainda em brasa.
- Não me diga que vive sozinha no meio de gatos? – brincou, tentando desanuviar o ambiente. Percebera que o tema divórcio e filhos lhe era desconfortável, e o antigo psiquiatra dentro de si parecia dar-lhe uma palmada na cabeça avisando-o de que estava a ser indiscreto e insensível.
- Não. Vivo sozinha, mas não tenho gatos nem cão. Já tive um arraçado de boxer, mas faleceu. Ainda estou a ganhar coragem para arranjar outro. Faz-me muita falta, tenho saudades de ter uma companhia saltitante e leal. – confessou, sentindo-se deprimir com aquelas lembranças.
- Eu acho que gosto de cães. Não sei se alguma vez tive um, ou se tenho lá em casa algum a morrer de fome à minha espera… mas se não tiver, também vou arranjar um. Pelo menos não fico a falar para as paredes, sozinho. – gracejou, ficando a matutar no termo “faleceu” que ela utilizara para definir a morte de um animal de companhia. Devia gostar muito desse cão, para o considerar falecido e não morto.
- São uma grande companhia, de facto. – concluiu, ganhando coragem para se despedir. Não podia ficar por ali o dia todo e tinha aulas para dar. – Amanhã trago a tesoura?
- Sim, por favor. – respondeu prontamente – E obrigado uma vez mais.
- De nada. Agora descanse. – levantou-se e acenou timidamente para se despedir, saindo do quarto com uma sensação de estranheza nos membros todos. Fisicamente era difícil aquela nova forma de estar junto dele, a distância formal, a necessidade não satisfeita de o beijar, o tratamento na terceira pessoa, e sempre a mesma energia a rodeá-los, como um íman invisível… seria apenas ela a sentir aquela vibração? Precisava de voltar amanhã, e de falar com o Dr César, para arranjar uma bata emprestada, comprar uma tesoura de cortar cabelo, enumerava distraída caminhando pelo corredor, quando uma mão lhe estacou a marcha.
- Menina Isabel! – exclamou Rosário deliciada por reencontrar a namorada simpática do seu patrão.
- Olá Rosário, como vai? – cumprimentou de volta, estranhando a companhia espampanante e loira da empregada de João, que parecia manter-se estrategicamente de costas, de uma forma muito indelicada.
- Vai-se andando, como Deus quer. Venho visitar o Dr João. Já esteve com ele? Como é que ele está?
- Está bem. Mais animado, já se levantou…
- E não se lembra ainda de nada?
- Não, e por favor, não podemos baralhá-lo com muitas recordações. O Dr César quer que ele se vá recordando naturalmente. – explicou, receosa de que ela mencionasse algum pormenor dramático do que tinha acontecido antes do internamento.
- Claro, claro. Não se preocupe, vou dizer-lhe quem sou, mas não conto nada. – sossegou-a. – Deixe-me apresentar-lhe a minha sobrinha… a N… - parou a meio do nome, procurando por ela confusa, sem a encontrar – Onde é que a cachopa se meteu?
- Rosário, tenho de ir. Depois falamos, ainda preciso ir ao apartamento buscar as minhas coisas que por lá ficaram.
- Eu arrumei tudo. Lembrei-me que quisesse levá-las… - confessou, corando com a insinuação de que Isabel teria de sair de casa do patrão.
- Obrigada, posso lá passar hoje?
- Eu hoje não vou lá, agora já não há necessidade de ir todos os dias… Mas fazemos assim, fica com esta chave, vai lá e depois deixa-a na caixa do correio. – sugeriu de forma prática.
- Perfeito. Então adeus.
- Adeus menina Isabel. E que tudo lhe corra bem. – procurou novamente pela sobrinha no corredor e desistiu de esperar, entrando no quarto, não sem antes se benzer. Não poderia esquecer-se de ser cuidadosa com as palavras.


Isabel saiu em direção a casa dele, quanto mais depressa resolvesse aquilo melhor. Não poderia esperar muito mais, João recuperava a olhos vistos e rapidamente voltaria para casa. Meteu-se no jipe e acelerou, decidida a apagar todos os vestígios de si mesma do apartamento, apenas considerando deixar Ganesha de olho, como talismã, para o orientar e proteger. Arranjaria outra para a sua casa, João precisava mais que ela.

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