Senta! Não... Senta!
- disse, de dedo espetado em direção a Filipe, que estava mais
interessado no biscoito – Ai, que guloso... se não aprendes não
levas o doce! Vamos, temos de praticar agora, enquanto ele não
chega, já sabes que depois o papá irrita-se contigo a saltitar de
um lado para o outro... Tiago? Olá... estava a ensinar o Fili...-
Tiago passou pelos dois furioso, sem os olhar, trazendo aquela
energia agressiva que modificava o ambiente de um local – Vamos,
Filipe, vai lá para fora, acabou a brincadeira. Vai!
- Filipe... pára... - resmungou,
acordando com dificuldade ao sentir o nariz frio do cão no seu
pescoço. - Deixa-me dormir... - ralhou, quando subitamente teve
consciência do que dizia e levantou o tronco – Filipe? - olhou
pelo quarto e não o viu, como seria previsível, mas barulhos vindos
da cozinha deixaram-na em alerta, não se recordava bem de como tinha
ido parar à cama, nem trocado de roupa.. seria ele? Um ardor de
felicidade subiu-lhe pelo abdómen em direção à garganta, com a
ideia de que João tinha tido alta, se recordara de tudo e estivesse
a fazer-lhe chá com torradas. Correu até à cozinha e estacou ao
ver Janota de avental, um homem enorme de luvas de cozinha e faces
coradas com o esforço de cozinhar. A felicidade que sentiu apanhou-a
de surpresa, e abraçou instintivamente o grande segurança que não
sendo o João, era com toda a certeza o segundo homem por quem nutria
amizade e carinho. Era graças a ele que ainda estava viva, e isso
não conseguiria nunca esquecer.
- Olá, então, sentes-te melhor? -
disse naturalmente, como se ter uma pequena mulher agarrada ao seu
tronco fosse a coisa mais normal do mundo.
- Janota... o que fazes aqui? -
perguntou, largando-o e facilitando-lhe os movimentos atabalhoados
com as panelas.
- Bem, isso é uma história grande,
que te vou contar durante o almoço... se algum dia conseguir
terminar uma destas tuas receitas esquisitas de comer sem carne... -
explicou, sorrindo-lhe encavacado.
- Estive a dormir desde ontem? -
sobressaltou-se, retirando-lhe uma das panelas das mãos e ajudando
no cozinhado. - Não me lembro de nada...
- Acho que estas coisas verdes já
estão cozidas... vamos para a mesa? - escorreu a água da panela,
ficando completamente camuflado no vapor da água quente e provocando
um riso em Isabel.
- Sim, tenho muita fome... - espreitou
a outra panela e verificou se a massa já estava pronta – Acho que
isto já está. Vamos.
Sentaram-se na mesa exterior, onde
corria uma brisa agradável de um dia solarengo de outono, e Isabel
lançou-se na refeição, sendo observada por Janota que exibia um
sorriso paternal de satisfação.
- Mastiga devagar, ainda ficas com dor
de barriga.
- Diz lá, o que foi que aconteceu
ontem? - perguntou, depois de comer algumas garfadas.
- Bem... ontem vim até aqui para te
trazer uma prenda... e quado cheguei não te encontrava em lado
nenhum da casa, por isso fui dar a volta lá atrás ao quintal e
vi-te no chão de gatas a mexer na terra... - explicou, tendo cuidado
nas palavras, com todo o tato que conseguia ter para não a deixar
perturbada. Se lhe dissesse textualmente aquilo que vira certamente
que ela ficaria envergonhada. - ...depois, desmaiaste.
Isabel corou, ao recordar o surto que
tivera junto à campa de Filipe, e pousou os talheres, nervosa. Não
sabia que tinha sido vista naquela situação, e podia imaginar o
choque dele.
- Desculpa, estás sempre a ver-me nas
piores figuras... - gracejou.
- Posso imaginar o que te levou a
ficares nervosa daquela maneira... mas sentes-te melhor? -
desconversou.
- Sim,... mas, e ficaste cá durante a
noite?
- Eu e o Dr. César e a Elisabete...
só o Salvador é que não pôde, ficou no bar. O Dr deu-te um
comprimido, por isso dormiste tanto... de manhã cedo foram-se todos
embora e eu fiquei para ver quando acordavas.- explicou.
- Que vergonha... - pousou as mãos no
colo e desviou o olhar do dele.
- Vergonha é roubar! Mas diz-me lá,
gostaste da prenda? - Disse mais animado e aliviado por já ter
explicado tudo.
- Mas o que é? Onde está? -
respondeu curiosa com a surpresa.
- Não viste? Esteve toda a noite em
cima de ti... Espera, vou procurar. - levantou-se e voltou
rapidamente de dentro de casa com um cachorro irrequieto que lhe
cabia na mão enorme. - Aqui está! Estava com medo que não fosse
boa ideia, mas o Dr garantiu-me que ias gostar!
- Oh... meu...Deus... - exclamou a
sentir lágrimas de alegria nos olhos – Janota.... que coisa mais
fofa... - pegou-lhe reverencialmente e deu-se a cheirar, satisfeita
com aqueles cumprimentos que só um cão bebé conseguia dar. - Quem
é a coisa mais linda da mamã?! Quem é, quem é? Sim... é o meu...
- olhou repentinamente para o sexo do animal, para confirmar se era
macho ou fêmea – o meu Filipe!
- Ainda bem que gostas... estava com
algum medo que fosse um bocado cedo para substituir o Filipe. -
explicou, recostando-se na cadeira e recomeçando a comer.
- Não... - disse a sorrir com os
beijos e fungadelas no pescoço – todos os cães são únicos, têm
uma personalidade própria, e o meu Filipe foi um cão excepcional...
- relembrou, emocionada – Vivemos muita coisa juntos, boa e má,
sem ele nunca tinha aguentado o que aguentei – confessou – e aqui
o Filipe Júnior vai ser um bom cãozinho e só fazer xixi e cocó cá
fora na rua, certo? - olhou o cachorro que se contorcia de excitação.
- Pois... sobre isso... acho que o teu
Júnior já marcou a casa em todos os sítios possíveis e
imaginários... e o pior é que não é macho verdadeiro, ele
agacha-se para fazer xixi, como as cadelas e nunca sabes se está só
sentado ou se já está a molhar a carpete outra vez...
- Enquanto são pequeninos não
levantam a perna... aqui o tio Janota não percebe nada de cãezinhos
fofinhos, pois não? Mas o menino vai ser lindo e não sujar a casa,
é preciso é muita paciência e salsichas.
- Salsichas? - perguntou curioso.
- Sim, não há nada que não consigas
ensinar a um cão se tiveres salsichas no bolso. Acredita. -
explicou.
- Acho que também fazia umas
habilidades por umas salsichas... - sentenciou divertido.
Quem está livre és mesmo... tu! -
o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e fugiu –
Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir
alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido.
Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao
banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem
comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem
desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo
na direção da água. Um medo apoderou-se do seu corpo, queria
dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr,
mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente,
enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.
-
João! Acorda!
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