Subiu os degraus, espreitou pela janela
e tentou abrir a porta, que estava obviamente trancada. Uma ideia
surgiu-lhe, seria ela daquelas pessoas que tem sempre uma chave de
prevenção para o caso de se esquecer da dela? Procurou por cima da
moldura de madeira da porta, debaixo do tapete de entrada, e quando
levantou o vaso grande com um cacto ali estava ela, a luzir.
Rasgou-se-lhe um sorriso pateta, não queria acreditar na sua sorte,
abriu a porta e entrou a medo, com uma excitação crescente e
irresistível. Havia eletricidade, constatou ao mexer nos
interruptores, seria sinal de que voltaria um dia destes?! Caminhou
pela casa, admirando tudo com calma e uma certa fascinação. A sala
era acolhedora, nem muito vazia nem muito cheia, com uma decoração
natural. Uma estante ocupava toda a parede em frente à porta da rua,
percorreu-a com os olhos, era tanta literatura diferente, desde os
clássicos aos mais esotéricos. Estatuetas daquelas bonecadas hindús
decoravam alguns locais fazendo o contraste com as molduras clássicas
e antigas de gente com bom ar, e ela. Sempre demasiado enigmática, às vezes até triste. Entrou sem pudores para a zona mais íntima da
casa, não teria de se justificar a ninguém por estar a invadir uma
casa alheia. Uma sala grande com ar de estúdio de yoga, sem
espelhos, e de onde saía uma vibração estranha e incomodativa.
Fechou a porta por instinto, não gostava daquilo. Caminhou em busca
do quarto dela, aquele santuário feminino onde a sua imaginação
iria certamente explodir de tantos estímulos. Não estava enganado,
ainda se sentia o cheiro dela ali, uma cama convidativa, macia,
pormenores delicados e de bom gosto. Sentou-se nela e imaginou-a ali
a dormir, sozinha, o segurança não encaixava naquele ambiente e nem
sequer deveria caber na cama, era demasiado alto. A imagem dele ali a
violar aquele espaço deu-lhe dor de barriga e estudou o armário
para se distrair. Roupas simples, muitas saias, e um vestido preto
que se destacava pelo género e textura. Retirou-o e analisou-o, era
bonito, de marca, constatou ao ver a etiqueta, devia ser o que usara
naquele dia no bar. Ficava-lhe muito bem, relembrou-se, colocando-o
no sítio. Tinha voltado para Castelo Branco sem ele, pensou
satisfeito, era sinal de que não ia frequentar bares. Aquela
sensação de possessividade surpreendia-o, não tinha nenhum desses sentimentos pela namorada.
Deu mais uma olhadela geral no quarto e voltou para a sala. Estava
cansado e ainda mais dorido, procurou um local para descansar um
pouco as pernas e escolheu uma poltrona que se lhe adaptou ao corpo
de forma extraordinária, aquilo era uma maravilha, constatou
descontraindo. Fechou os olhos relaxado, aquilo sim era vida, onde
teria ela comprado aquilo? Uma luz acendeu-se na zona do quarto e
João estremeceu, teria voltado? Ouviu um murmúrio de uma música
familiar, numa voz de mulher, sim, a Marta tinha voltado, finalmente,
pensou suspirando e fechando os olhos. Teria reparado na sua obra do
jardim? Esperava que ficasse satisfeita e que o Filipe não lhe
fizesse xixi nos crisântemos. Um cheiro a legumes salteados
invadiu-lhe as narinas, estava cheio de fome, mas demasiado
preguiçoso para se levantar e ajudá-la com o jantar. Estava ansioso
para que ela lhe contasse como estava a família lá de Castelo
Branco, ainda não os tinha ido conhecer, recriminou-se, se calhar
estavam ofendidos com a sua falta de atenção, mas ela não o tinha
convidado a ir, fugiu sem dizer nada. Marta aproximou-se dele, trazia
o vestido preto debaixo do roupão, iria sair? Pegou numa manta e
tapou-o, estava a dormir, constatou. Que pena, queria dizer-lhe que
voltasse, mas estava a dormir. Ela saiu e fechou a porta, com
demasiado barulho.
João acordou sobressaltado com o
frio, tinha adormecido e estava sem a camisola mais grossa, e ao
contrário do sonho, ninguém o tinha aconchegado com uma manta.
Tinha escurecido, quanto tempo teria dormido? Procurou o telemóvel e
viu que era perto da meia noite. Como seria aquilo possível? Dormia
sempre tão mal, à base de soporíferos, como se tinha deixado ficar
ali tanto tempo? Aquele cadeirão era mágico, só podia. A barriga
deu um ronco de fome e João decidiu voltar para sua casa. Trancou a
porta e guardou a chave no bolso, não queria mais ninguém ali a
entrar sorrateiramente como ele. No dia seguinte voltaria para
continuar a jardinagem, tinha adorado mexer na terra, descontraíra-o.
Mais uma coisa sobre si que descobria. Certificou-se de que tudo
ficava arrumado e despediu-se mentalmente do sítio. Gostava muito de
ali estar, agora teria de regressar à sua realidade, à casa fria e
solitária que lhe diziam ser a sua. Seria possível a amnésia
ter-lhe alterado os gostos? De psiquiatra dandy e mulherengo a homem
do campo que gostava de estar na cozinha e a tirar ervas daninhas do
quintal... Aquilo era demasiado estranho.
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