sexta-feira, 2 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 21 (1ª parte)





- Mas o que foi que aconteceu com o meu namorado? - berrou Nélia descontrolada ao se aperceber que João estava sob o efeito de calmantes e não poderia assinar o papel que tinha trazido do banco para conseguir ter acesso à conta do médico, como tinham combinado.
- O paciente teve um episódio grave de ansiedade durante a manhã, esteve agitado toda a noite e foi necessário medicá-lo para ele descansar. - explicou sem sequer a olhar – Acho que por hoje já não será benéfico mais visitas, ele não deve acordar tão cedo. - lamentava aquela recaída no amigo, mas o ar desiludido e furioso da bisca dava-lhe um certo gozo. Alguma ela devia andar a tramar, para ficar tão decepcionada com o facto de João estar inconsciente.
- O Sr acha-se muito esperto, não é? - disse, com o dedo espetado na direção da cara do diretor da especialidade – Sabia que ele ia assinar hoje os papéis do banco e drogou-o para ele ficar incapaz! - berrou, sem medir o tom de voz ou se importar com quem pudesse ouvir.
- Menina, não fazia ideia de que tinha papéis para assinar, mas ainda bem que o paciente está adormecido, não sei se esses documentos seriam benéficos para ele. - esclareceu, sorrindo – Mas ainda bem que falou nisso, há aqui algumas regras que deveria saber, uma, é que o paciente não se encontra capaz de assinar nada, ele não se recorda de nada, a assinatura é por isso considerada invália oficialmente, enquanto eu não lhe der alta. Outra regra é que eu estou a perder a paciência consigo, e mais uma piadinha destas e proíbo-a de visitar o paciente. Terei de explicar ao João o porquê, mas não é só a menina que sabe mentir. Ou dá meia dúzia de passos atrás nas suas intenções, ou acaba aqui esta palhaçada. - agarrou-lhe no dedo que continuava na sua direção e baixou-o, sem desviar o olhar do dela, que lançava faíscas de ódio. - Agora, se nos faz a todos um grande favor, retire-se e volte amanhã. - agarrou-lhe no braço e fez questão de a encaminhar até à porta, fechando-a sem culpas na cara de Nélia, espantada com a ousadia do médico. Deu uma olhadela à enfermeira que fingia estar ocupada com a tensão arterial do paciente e sorriu-lhe comprometido.
- Eu não ouvi nada, Sr Dr. - descansou-o, arrumando o aparelho medidor de tensão arterial.
- Obrigado Helena.


Isabel perdia-se nos seus tristes pensamentos, enquanto afagava o pequeno Filipe que dormia profundamente no seu colo. Olhava para a janela da sala, de onde se podia ver parte do jardim e ao fundo o tanque, onde tantas vezes se lamentara e dissera impropérios alto e bom som, nos seus queixumes pessoais de pouca sorte quando lavava roupa à mão com água fria. Um leve sorriso nostálgico surgiu-lhe, quando relembrava Filipe, o primeiro, a saltitar em volta dela, nos dias de calor, à espera que uma ou outra gota de água fresca "voassem" para ele caçar. Como eram fáceis esses tempos, como tinham sido felizes naqueles cinco anos, antes de aparecer João, e reaparecer Tiago... Seria quase impossível esquecer o ex-marido, aquilo que tinha sofrido, mas mais difícil seria esquecer como João sabia amá-la, fisica e psicologicamente. Todo o seu corpo se arrepiou ao imaginá-lo novamente a entrar pela sua casa a dentro, sorridente, a invadir todo o seu espaço de sons e alegria. Ironicamente, ele é que era o doente com depressão, quem deveria precisar de ânimo, mas para ela sempre fora o contrário. A sua vida tinha sido colocada em pausa, depois de fugir de Castelo Branco, estava em banho-maria até o conhecer. O estado zen em que vivera sempre a satisfizera plenamente, à medida que as feridas de Tiago iam sarando devagar e Isabel recuperava a sua fé no futuro. João entrou-lhe pelo portão da quinta a dentro e a Marta viu aí a sua oportunidade de sair de cena. O que ela não esperava é que tudo voltasse aos tempos do casamento, que aquelas sensações de medo regressassem, e a assombrassem de novo. Muitas vezes se mantivera ali naquele cadeirão, onde João gostava de se sentar, com Filipe no colo, em compasso de espera, a olhar o jardim, na esperança de que ele aparecesse. Se o cão levantava uma orelha e denunciava algum som estranho rezava para que não fosse apenas o Janota, ou a Elisabete, sentindo-se péssima logo depois, por perceber como era ingrata com aqueles dois amigos, sempre presentes para a animar. Mas quem ela queria mesmo era ele... e isso só confidenciava a Filipe. O cão levantou a cabeça de repente, olhou a porta e saltou-lhe do colo, abanando-se até à porta, excitado. Isabel sentiu novamente aquela bolha de esperança, mas ao contrário dos primeiros tempos, afastou-a do peito e levantou-se, caminhando até Filipe e abrindo a porta a Janota, que a visitava diária e religiosamente antes de ir trabalhar, trazendo-lhe alguma normalidade ao dia longo e tristonho.


- Olá, então? Apanhaste trânsito? - questionou Salvador, espantado com o atraso do colega e amigo segurança, sempre cumpridor das suas tarefas e escrupuloso nos seus horários.
- Não, desculpa, devia ter-te avisado, mas quando tentei ligar vi que tinha o telemóvel sem bateria. - explicou-se, meio encavacado com a sensação de estar a falhar, coisa que detestava – Fiquei mais um pouco com a Isabel, ela precisava de uma lenha mais miúda para acender a lareira, e eu estive a cortar e distraí-me com as horas. Já ligaste as câmaras? Hoje vai ser outra daquelas noites, não é? Vou trocar-me. - disse, deixando Salvador sem tempo para lhe responder.
- Hum, hum... parece-me é que eu sou o único aqui que não acho piada à vida do campo... - ironizou, lamentando que o segurança estivesse demasiado apegado à amiga em comum. Ainda se ia magoar, e com um corpanzil daqueles, teria muita massa corporal para sarar. Precisava de o abordar, delicadamente claro, sobre o facto de ele estar a apaixonar-se pela Isabel e pela ideia de ser o macho alfa da quinta, o protector da frágil donzela, que todos os dias parecia precisar de algo diferente, não que ela o pedisse, sabia-o, mas que Janota inventava para justificar as suas idas diárias a casa de Isabel. Aquilo ainda ia dar porcaria, quando João acordasse do estado desmemoriado e reclamasse a mulher, ela iria a correr para ele e o segurança ficava sem tarefas para ocupar os dias, para além de um grande desgosto e desilusão. Tirou um fino e bebeu-o quase de um gole, na tentativa de ganhar coragem para a conversa difícil mas necessária. Janota surgiu ao fundo da sala bem animado e enérgico, com uma daquelas t-shirts pequenas e justas que lhe acentuavam sempre os argumentos em qualquer discussão. Imaginou como seria levar um murro daqueles braços e a ideia tirou-lhe logo o rancor de se meter nos assuntos dos outros. Ainda não era a hora de o aborrecer, e o rapaz andava tão satisfeito... pensou cobardemente, sorrindo-lhe de longe. Guardaria a conversa para uma outra altura, ele já era grandinho o suficiente para saber no que se estava a meter...

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