- Mas o que foi que aconteceu com o meu
namorado? - berrou Nélia descontrolada ao se aperceber que João
estava sob o efeito de calmantes e não poderia assinar o papel que
tinha trazido do banco para conseguir ter acesso à conta do médico,
como tinham combinado.
- O paciente teve um episódio grave
de ansiedade durante a manhã, esteve agitado toda a noite e foi
necessário medicá-lo para ele descansar. - explicou sem sequer a
olhar – Acho que por hoje já não será benéfico mais visitas,
ele não deve acordar tão cedo. - lamentava aquela recaída no
amigo, mas o ar desiludido e furioso da bisca dava-lhe um certo gozo.
Alguma ela devia andar a tramar, para ficar tão decepcionada com o
facto de João estar inconsciente.
- O Sr acha-se muito esperto, não é?
- disse, com o dedo espetado na direção da cara do diretor da
especialidade – Sabia que ele ia assinar hoje os papéis do banco e
drogou-o para ele ficar incapaz! - berrou, sem medir o tom de voz ou
se importar com quem pudesse ouvir.
- Menina, não fazia ideia de que
tinha papéis para assinar, mas ainda bem que o paciente está
adormecido, não sei se esses documentos seriam benéficos para ele.
- esclareceu, sorrindo – Mas ainda bem que falou nisso, há aqui
algumas regras que deveria saber, uma, é que o paciente não se
encontra capaz de assinar nada, ele não se recorda de nada, a
assinatura é por isso considerada invália oficialmente, enquanto eu
não lhe der alta. Outra regra é que eu estou a perder a paciência
consigo, e mais uma piadinha destas e proíbo-a de visitar o
paciente. Terei de explicar ao João o porquê, mas não é só a
menina que sabe mentir. Ou dá meia dúzia de passos atrás nas suas
intenções, ou acaba aqui esta palhaçada. - agarrou-lhe no dedo que
continuava na sua direção e baixou-o, sem desviar o olhar do dela,
que lançava faíscas de ódio. - Agora, se nos faz a todos um grande
favor, retire-se e volte amanhã. - agarrou-lhe no braço e fez
questão de a encaminhar até à porta, fechando-a sem culpas na cara
de Nélia, espantada com a ousadia do médico. Deu uma olhadela à
enfermeira que fingia estar ocupada com a tensão arterial do
paciente e sorriu-lhe comprometido.
- Eu não ouvi nada, Sr Dr. -
descansou-o, arrumando o aparelho medidor de tensão arterial.
- Obrigado Helena.
Isabel perdia-se nos seus tristes
pensamentos, enquanto afagava o pequeno Filipe que dormia
profundamente no seu colo. Olhava para a janela da sala, de onde se
podia ver parte do jardim e ao fundo o tanque, onde tantas vezes se
lamentara e dissera impropérios alto e bom som, nos seus queixumes
pessoais de pouca sorte quando lavava roupa à mão com água fria.
Um leve sorriso nostálgico surgiu-lhe, quando relembrava Filipe, o
primeiro, a saltitar em volta dela, nos dias de calor, à espera que
uma ou outra gota de água fresca "voassem" para ele caçar.
Como eram fáceis esses tempos, como tinham sido felizes naqueles
cinco anos, antes de aparecer João, e reaparecer Tiago... Seria
quase impossível esquecer o ex-marido, aquilo que tinha sofrido, mas
mais difícil seria esquecer como João sabia amá-la, fisica e
psicologicamente. Todo o seu corpo se arrepiou ao imaginá-lo
novamente a entrar pela sua casa a dentro, sorridente, a invadir todo
o seu espaço de sons e alegria. Ironicamente, ele é que era o
doente com depressão, quem deveria precisar de ânimo, mas para ela
sempre fora o contrário. A sua vida tinha sido colocada em pausa,
depois de fugir de Castelo Branco, estava em banho-maria até o
conhecer. O estado zen em que vivera sempre a satisfizera plenamente,
à medida que as feridas de Tiago iam sarando devagar e Isabel
recuperava a sua fé no futuro. João entrou-lhe pelo portão da
quinta a dentro e a Marta viu aí a sua oportunidade de sair de cena.
O que ela não esperava é que tudo voltasse aos tempos do casamento,
que aquelas sensações de medo regressassem, e a assombrassem de
novo. Muitas vezes se mantivera ali naquele cadeirão, onde João
gostava de se sentar, com Filipe no colo, em compasso de espera, a
olhar o jardim, na esperança de que ele aparecesse. Se o cão
levantava uma orelha e denunciava algum som estranho rezava para que
não fosse apenas o Janota, ou a Elisabete, sentindo-se péssima logo
depois, por perceber como era ingrata com aqueles dois amigos, sempre
presentes para a animar. Mas quem ela queria mesmo era ele... e isso
só confidenciava a Filipe. O cão levantou a cabeça de repente,
olhou a porta e saltou-lhe do colo, abanando-se até à porta,
excitado. Isabel sentiu novamente aquela bolha de esperança, mas ao
contrário dos primeiros tempos, afastou-a do peito e levantou-se,
caminhando até Filipe e abrindo a porta a Janota, que a visitava
diária e religiosamente antes de ir trabalhar, trazendo-lhe alguma
normalidade ao dia longo e tristonho.
- Olá, então? Apanhaste trânsito? -
questionou Salvador, espantado com o atraso do colega e amigo
segurança, sempre cumpridor das suas tarefas e escrupuloso nos seus
horários.
- Não, desculpa, devia ter-te
avisado, mas quando tentei ligar vi que tinha o telemóvel sem
bateria. - explicou-se, meio encavacado com a sensação de estar a
falhar, coisa que detestava – Fiquei mais um pouco com a Isabel,
ela precisava de uma lenha mais miúda para acender a lareira, e eu
estive a cortar e distraí-me com as horas. Já ligaste as câmaras?
Hoje vai ser outra daquelas noites, não é? Vou trocar-me. - disse,
deixando Salvador sem tempo para lhe responder.
- Hum, hum... parece-me é que eu sou
o único aqui que não acho piada à vida do campo... - ironizou,
lamentando que o segurança estivesse demasiado apegado à amiga em
comum. Ainda se ia magoar, e com um corpanzil daqueles, teria muita
massa corporal para sarar. Precisava de o abordar, delicadamente
claro, sobre o facto de ele estar a apaixonar-se pela Isabel e pela
ideia de ser o macho alfa da quinta, o protector da frágil donzela,
que todos os dias parecia precisar de algo diferente, não que ela o
pedisse, sabia-o, mas que Janota inventava para justificar as suas
idas diárias a casa de Isabel. Aquilo ainda ia dar porcaria, quando
João acordasse do estado desmemoriado e reclamasse a mulher, ela
iria a correr para ele e o segurança ficava sem tarefas para ocupar
os dias, para além de um grande desgosto e desilusão. Tirou um fino
e bebeu-o quase de um gole, na tentativa de ganhar coragem para a
conversa difícil mas necessária. Janota surgiu ao fundo da sala bem
animado e enérgico, com uma daquelas t-shirts pequenas e justas que
lhe acentuavam sempre os argumentos em qualquer discussão. Imaginou
como seria levar um murro daqueles braços e a ideia tirou-lhe logo o
rancor de se meter nos assuntos dos outros. Ainda não era a hora de
o aborrecer, e o rapaz andava tão satisfeito... pensou cobardemente,
sorrindo-lhe de longe. Guardaria a conversa para uma outra altura,
ele já era grandinho o suficiente para saber no que se estava a
meter...
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário