segunda-feira, 5 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 21 (2ª parte)




João lia um jornal para distrair a cabeça, já começava a ficar farto daquele quarto. Há alguns dias que se sentia plenamente restabelecido, e não entendia as reservas do médico em deixá-lo ir para casa. Mesmo que não recuperasse a memória, tinha ainda que continuar a sua vida, e ali fechado seria bem mais difícil. Fechou o jornal aborrecido, não lhe interessava nenhuma daquelas notícias, queria era passear, ver coisas, apanhar sol, conhecer a sua casa e as suas recordações por lá espalhadas. A enfermeira entrou naquele momento com o jantar, sempre profissional e sorridente, poisando-o na mesa, juntamente com os comprimidos da noite e começou a sua rotina de check up.
- Sente-se bem? Algum desconforto? Quer algum outro jornal... um livro...?
- Sim, queria. - disse, lembrando-se de algo – Será que conseguia trazer-me o meu telemóvel? Eu devia ter um certo?
- Bem... eu não sei se o Dr César iria concordar. - disse meio confusa com aquele pedido.
- Porquê? Já me disseram que terei alta nos próximos dias. E terão de me devolver o telemóvel. Não acha que tenho o direito de ter curiosidade?
- Sim, claro. Mas em todo o caso, certamente que o aparelho está desligado, sem bateria. Já não é utilizado há tanto tempo...
- Pronto, então não é preciso ter receios. Traga-me o telefone ainda hoje, por favor. - um certo autoritarismo surgiu-lhe na voz, surpreendendo-o, talvez aquele fosse um hábito antigo, dar ordens. Parecia ter resultado, a enfermeira saiu do quarto meio espantada, como se fosse sua secretária particular. Já tinha pensado como fazer relativamente ao carregamento da bateria do telemóvel. Tinha conversado com um outro paciente numa das tardes de jogos de damas, e o rapaz tinha comentado com ele que possuía um carregador dos chineses que dava para todos os aparelhos. Vangloriara-se daquilo durante todo o jogo, ao ponto de João se vir embora aborrecido com a conversa amalucada, e afinal ainda ia dar jeito, pensou satisfeito. Talvez houvesse pormenores interessantes nas mensagens, estava curioso por ver o que conseguiria descobrir. Só esperava não ter o telefone bloqueado com códigos... pois não se lembrava nem tinha forma de o conseguir.
A enfermeira entrou momentos depois, mais rapidamente do que João previra, e deu-lhe o aparelho moderno meio contrariada. Notava-se que não tinha a certeza de estar a tomar a decisão certa.
- Obrigada. É de facto um telemóvel muito bonito! - agradeceu, olhando-o de várias perspectivas. - Prometo que só o ligo quando o César me deixar, e também não tenho cá o carregador, não fique preocupada. - sossegou-a, sorrindo-lhe.
- Ok, uma boa noite então, já mando vir recolher o seu tabuleiro. - retirou-se mais descansada. Se o chefe lhe cobrasse aquilo estava tramada.
João esperou alguns momentos que o caminho ficasse livre, aproveitou para engolir a sopa rapidamente e deu duas garfadas rápidas na vitela assada, excitado com a possibilidade de descobrir alguma coisa sobre si. Engoliu um dos comprimidos e o soporífero guardou-o no bolso do robe, para não adormecer antes de concretizar o seu plano.


- Senta! - ordenou com voz firme. - Lindo menino! - atirou-lhe um biscoito e voltou-se assustada ao ouvir o som de notificação de mensagens do telemóvel, que estava quase sempre em silêncio. - Espera Filipe, deixa-me ver quem é... - uma sensação de medo invadiu-a, recordando-se da mensagem de Tiago, e a imagem horrenda do cão. Pegou no telemóvel e ficou em apneia ao ver o nome de João no remetente do sms. Que brincadeira estúpida era aquela? As mãos tremiam-lhe, sem coragem para abrir a mensagem, e duas lágrimas caíram-lhe, largando o aparelho e fugindo da sala, cobardemente. Seria a Nélia a gozar com ela? Só podia, João não tinha acesso ao telemóvel há semanas, raciocinava. Mas porque é que não a deixavam em paz?
João limpava o suor da palma das mãos nas calças do pijama, excitado com aquela descoberta. Não tinha qualquer conversa gravada com o número de telefone da Isabel, e estranhamente estava não atribuído, mas uma tal de "Ganesha" mandava-lhe fotos maravilhosas de umas pernas, e rira-se bastante tempo com a conversa que lera. Num acesso de coragem, e porque não tinha nada a perder, mandara uma mensagem de volta a dizer "Olá", na esperança de que aquela pessoa respondesse de volta e ele conseguisse perceber de quem se tratava. Os minutos passavam dificilmente, desesperando-o, acedeu à internet e procurou o significado de ganesha, ficando ainda mais confuso com os resultados. Um elefante hindú?

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(imagem, internet)

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