João lia um jornal para distrair a
cabeça, já começava a ficar farto daquele quarto. Há alguns dias
que se sentia plenamente restabelecido, e não entendia as reservas
do médico em deixá-lo ir para casa. Mesmo que não recuperasse a
memória, tinha ainda que continuar a sua vida, e ali fechado seria
bem mais difícil. Fechou o jornal aborrecido, não lhe interessava
nenhuma daquelas notícias, queria era passear, ver coisas, apanhar
sol, conhecer a sua casa e as suas recordações por lá espalhadas.
A enfermeira entrou naquele momento com o jantar, sempre profissional
e sorridente, poisando-o na mesa, juntamente com os comprimidos da
noite e começou a sua rotina de check up.
- Sente-se bem? Algum desconforto?
Quer algum outro jornal... um livro...?
- Sim, queria. - disse, lembrando-se
de algo – Será que conseguia trazer-me o meu telemóvel? Eu devia
ter um certo?
- Bem... eu não sei se o Dr César
iria concordar. - disse meio confusa com aquele pedido.
- Porquê? Já me disseram que terei
alta nos próximos dias. E terão de me devolver o telemóvel. Não
acha que tenho o direito de ter curiosidade?
- Sim, claro. Mas em todo o caso,
certamente que o aparelho está desligado, sem bateria. Já não é
utilizado há tanto tempo...
- Pronto, então não é preciso ter
receios. Traga-me o telefone ainda hoje, por favor. - um certo
autoritarismo surgiu-lhe na voz, surpreendendo-o, talvez aquele fosse
um hábito antigo, dar ordens. Parecia ter resultado, a enfermeira
saiu do quarto meio espantada, como se fosse sua secretária
particular. Já tinha pensado como fazer relativamente ao
carregamento da bateria do telemóvel. Tinha conversado com um outro
paciente numa das tardes de jogos de damas, e o rapaz tinha comentado
com ele que possuía um carregador dos chineses que dava para todos
os aparelhos. Vangloriara-se daquilo durante todo o jogo, ao ponto de
João se vir embora aborrecido com a conversa amalucada, e afinal
ainda ia dar jeito, pensou satisfeito. Talvez houvesse pormenores
interessantes nas mensagens, estava curioso por ver o que conseguiria
descobrir. Só esperava não ter o telefone bloqueado com códigos...
pois não se lembrava nem tinha forma de o conseguir.
A enfermeira entrou momentos depois,
mais rapidamente do que João previra, e deu-lhe o aparelho moderno
meio contrariada. Notava-se que não tinha a certeza de estar a tomar
a decisão certa.
- Obrigada. É de facto um telemóvel
muito bonito! - agradeceu, olhando-o de várias perspectivas. -
Prometo que só o ligo quando o César me deixar, e também não
tenho cá o carregador, não fique preocupada. - sossegou-a,
sorrindo-lhe.
- Ok, uma boa noite então, já mando
vir recolher o seu tabuleiro. - retirou-se mais descansada. Se o
chefe lhe cobrasse aquilo estava tramada.
João esperou alguns momentos que o
caminho ficasse livre, aproveitou para engolir a sopa rapidamente e
deu duas garfadas rápidas na vitela assada, excitado com a
possibilidade de descobrir alguma coisa sobre si. Engoliu um dos
comprimidos e o soporífero guardou-o no bolso do robe, para não
adormecer antes de concretizar o seu plano.
- Senta! - ordenou com voz firme. -
Lindo menino! - atirou-lhe um biscoito e voltou-se assustada ao ouvir
o som de notificação de mensagens do telemóvel, que estava quase
sempre em silêncio. - Espera Filipe, deixa-me ver quem é... - uma
sensação de medo invadiu-a, recordando-se da mensagem de Tiago, e a
imagem horrenda do cão. Pegou no telemóvel e ficou em apneia ao ver
o nome de João no remetente do sms. Que brincadeira estúpida era
aquela? As mãos tremiam-lhe, sem coragem para abrir a mensagem,
e duas lágrimas caíram-lhe, largando o aparelho e fugindo da sala,
cobardemente. Seria a Nélia a gozar com ela? Só podia, João não
tinha acesso ao telemóvel há semanas, raciocinava. Mas porque é
que não a deixavam em paz?
João limpava o suor da palma das mãos
nas calças do pijama, excitado com aquela descoberta. Não tinha
qualquer conversa gravada com o número de telefone da Isabel, e
estranhamente estava não atribuído, mas uma tal de "Ganesha"
mandava-lhe fotos maravilhosas de umas pernas, e rira-se bastante
tempo com a conversa que lera. Num acesso de coragem, e porque não
tinha nada a perder, mandara uma mensagem de volta a dizer "Olá",
na esperança de que aquela pessoa respondesse de volta e ele
conseguisse perceber de quem se tratava. Os minutos passavam
dificilmente, desesperando-o, acedeu à internet e procurou o
significado de ganesha, ficando ainda mais confuso com os resultados.
Um elefante hindú?
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário