terça-feira, 6 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 21 (3ª parte)





- Olá vizinha! Tudo bem?
- Olá... como está? - disse a contragosto, aborrecida com o facto de ter de dar conversa à chata da mulher que falava sempre pelos cotovelos.
- Então o nosso Dr? Ainda está sem memória? - perguntou Elisabete dissimulada, afagando o braço de Nélia.
- Sim, mas a melhorar. Qualquer dia volta para casa. - olhou o relógio a fingir pressa para ir a qualquer lado e se poder livrar do questionário.
- Desculpe,... eh, - deu a entender que já não se recordava do nome.
- Isabel... - grunhiu incomodada.
- Isso! Desculpe, Isabel, deve estar com pressa para ir visitar o namorado, claro. Mande-lhe os meus cumprimentos, e as melhoras! E um bom dia para si também.
- Obrigados, adeus. - soltou-se da mulher e dirigiu-se o mais depressa que podia para o carro.
- "Obrigados"... - bufou Elisabete com escárnio. Não gostava nada de sentir desprezo pelas pessoas, mas aquela tipa era mesmo uma ordinária da pior espécie, matutava, enquanto se encaminhava para o prédio do lado. Se já se tinha visto, uma bronca daquelas achar que alguma vez o João podia gostar dela, ou sequer viver com ela... Tinha de ir arranjar-se para a sua aula de yoga e tentar descobrir se a Isabel, a verdadeira, comentou consigo mesma, ainda continuava imune ao charme do segurança matulão. Ela não conseguia perceber como isso era possível, Janota era um homem impressionante e dava imenso jeito ali pela quinta. Sorriu com os seus devaneios de meia idade, ao imaginar-se no alpendre a debitar ordens ao musculado, que partia lenha obedientemente, e ainda lhe sorria de volta apaixonado. Abriu a porta do prédio com um sorriso palerma no rosto e ao ver o seu reflexo na porta de vidro corou ligeiramente com os seus pensamentos. Ai se o César sonhasse... Entrou em casa e deu de caras com o marido ainda de robe, todo desgrenhado e de olheiras, com um aspecto miserável de barba por fazer.
- A minha investigadora privada já tem novidades? - brincou, sentando-se à mesa do pequeno almoço.
- A tua sorte é seres sempre um galanteador, senão ias ver! - gozou, lançando-lhe um beijo de longe e continuando o seu caminho até ao quarto, sem conseguir parar de sorrir. Duvidava que o matulão, quando chegasse à idade do marido fosse assim tão encantador. Os esteróides deviam dar-lhe cabo da inteligência, e homem velho e burro é que não!



- Bom dia, amor! Estás pronto para voltar para casa? - ronronou Nélia ao entrar no quarto, fingindo-se emocionada.
- Mas... é hoje? - perguntou ansioso. - Ninguém me disse nada... - confessou meio desiludido com o facto de ninguém o ter avisado. Sentia-se de mau humor e irascível, e aquela ida repentina para casa não o punha mais calmo.
- Devias estar a pular de alegria! - sentenciou – Afinal, vamos recuperar este tempo perdido, viajar, fazer compras, ir jantar fora a sítios elegantes... - o seu imaginário não parava, só com as possibilidades que aquele namorado lhe trazia.
- Desculpa Isabel, claro que estou entusiasmado, só que não me apercebi que era já hoje, apanhaste-me de surpresa. - explicou, começando a ajudar na arrumação das poucas coisas pessoais que tinha no quarto e na casa de banho. Isabel deu-lhe uma roupa lavada trazida de casa e apressou-o a ir fazer a sua higiene matinal. - Ainda vou demorar, se quiseres podes ir ao bar da clínica beber café... - sugeriu João desejoso que aquela companhia saísse dali e o deixasse sozinho. Não percebia porquê, mas aquela namorada era sempre estranha e inconveniente. Baralhava-o muito o facto de não ter qualquer sentimento positivo quando ela estava por perto. Isabel saiu e João tornou a pegar no telemóvel, sentia-se bastante frustrado por ainda não ter recebido nenhuma resposta do sms enviado à "ganesha" na noite anterior. Sabia que era também isso que o punha de tão mau humor, aquela centelha de esperança de que houvesse uma mulher com pernas bonitas e sentido de humor à espera de um contacto dele esfumava-se e a sensação de vazio crescia, bem como um leve desespero ao imaginar-se numa casa com Isabel. Ainda não descobrira nada de positivo e excitante no seu passado recente que não conseguia recordar, e algo dentro de si se recusava a aceitar que aquela era a sua namorada. Tudo isso misturado com a culpa que aqueles sentimentos lhe provocavam tornavam o regresso à vida normal num martírio.
Antes de entrar no banho tornou a mandar um sms ao contacto misterioso em acto de desespero, fosse o que Deus quisesse. "Olá, preciso de saber quem és". Esperou alguns minutos por uma resposta e desistiu, ainda mais amargurado com a sua realidade. Tinha de se deixar de palermices românticas e admitir a verdade, tinha uma namorada bonita, sem nada na cabeça, mas haveria com toda a certeza um motivo para a ter escolhido e viverem juntos. Poisou o telemóvel e entrou no banho.

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(imagem, internet)


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