segunda-feira, 12 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 22 (1ª parte)





- Vamos sair hoje à noite? - perguntou João a tentar desanuviar o clima tenso e pesado que se sentia naquela casa depois dos dois terem feito amor. Nem a conseguia encarar, como iriam ali ficar os dois sozinhos a jantar e a ver as horas passar até um deles ter sono?
- Pode ser. - finalmente uma boa ideia, pensou aliviada. - Também podíamos jantar fora... não há aqui nada para comer. - explicou, olhando com desprezo o interior do frigorífico.
- Excelente! Vou-me arranjar, estou habituado a jantar cedo, por causa dos horários da clínica. - fugiu do campo de visão dela e encaminhou-se ao quarto, fechando a porta. Passou as mãos pelo cabelo e sentiu a pequena cicatriz da orelha a raspar na sua mão, o que o fez sorrir ao recordar o acidente com a tesoura e a enfermeira. Apanhou o livro do "Sexo Tântrico" do chão, de onde caiu um pequeno pedaço de papel que voou para debaixo da cama, obrigando-o a colocar-se de gatas para o apanhar. Pegou nele curioso e sentou-se na cama, "Marta... professora de Yoga...e um número de telefone fixo...". Marta, disse a si mesmo, matutando, novamente aquele nome, sexo tântrico, ganesha, yoga...aquilo não podia ser coincidência, concluiu excitado. Pegou no telemóvel para marcar o número do cartão de visita mistério e reparou com desconfiança que tinha feito uma chamada para o contacto "ganesha", durante alguns minutos. Talvez o tenha feito sem querer, pensou a sentir-se culpado e confuso. Só esperava que não tivesse sido na hora do sexo desconfortável... Só lhe faltava mais essa. Pôs esse pensamento de lado e marcou o número fixo, ficando ligeiramente nervoso com aquele compasso de espera a ouvir os toques do outro lado da linha.
- Estou?... Estou sim?.... Quem fala?
João ficou mudo, sem reação, conhecia aquela voz, sem sombra de dúvidas. Desligou automaticamente o telefonema e deixou-se ficar estático sem saber bem o que fazer a seguir. Que raio de confusão era aquela... perguntava-se ansioso. A voz que ouvira era a da enfermeira de CasteloBranco, que se chamava Marta e lhe dissera a dada altura na conversa que também era professora de yoga. Mas porque fingira na altura que não o conhecia? Se tinha um livro dela em casa e um cartão pessoal deveria ter tido contacto com ela anteriormente... matutava. Precisava descobrir a morada associada àquele número fixo, talvez fosse a casa dela. Iria lá e tiraria tudo em pratos limpos, decidiu, guardando o livro e o cartão na gaveta da mesa de cabeceira. Agora era hora de ir sair com a sua namorada... disse a si mesmo, mais para se encorajar que outra coisa qualquer. Precisava urgentemente de recuperar a intimidade com ela, aquela convivência não estava a ser nada fácil. Pareciam não ter tema de conversa, e para além dos seus atributos físicos, não vira nada nela que o pudesse cativar. Seria ele um homem fútil antes do acidente?

Elisabete poisou as compras no tapete de entrada para procurar a chave de casa e estacou surpreendida ao ouvir vozes masculinas do outro lado da porta. Não estavam à espera de visitas, só lhe faltava mais essa, o dia já estava a correr mal desde que chegara à aula de yoga e Isabel não aparecera. Não lhe atendera o telefone, e estava genuinamente preocupada com aquele desaparecimento súbito da professora. Sabia que a vida de Isabel não tinha sido fácil nos últimos tempos, mas não gostara nada da sensação de ignorância e espanto que teve de comungar com as outras colegas. Algo de grave teria de ter acontecido, Elisabete só queria era já ter conhecimento prévio, para não ser apanhada de surpresa. Para não interromper o marido continuou à procura da chave, mas teve de desistir, a neura atrapalhava-a e pressionou a campainha com força, já a descarregar a fúria no botão, sem dó nem piedade. A menopausa devia estar eminente, pensou derrotada, encostando-se à parede, cansada e afogueada. A porta abriu passado uns momentos e Elisabete estava prestes a soltar em cima de César o desagrado pelo enorme tempo de espera, doíam-lhe as mãos do peso dos sacos e estava atrasada para começar a fazer o jantar. Deu-lhe o beijo da praxe e espreitou por cima do ombro do marido, para ver quem estava sentado na sala. O segurança enorme levantou-se e sorriu-lhe amigavelmente, desarmando-a automaticamente, o que deixou César divertido. Adorava ver a libido da mulher a dominá-la e as suas lutas internas por reprimir os seus pensamentos mais atrevidos. Ela pensava que conseguia disfarçar, mas era tão genuíno que não podia ficar ciumento sequer. Apenas achava graça, e não raras as vezes Elisabete usava-o para se redimir dos seus ímpetos mais animalescos, o que no final era positivo para os dois. Sabia que já não era o homem de antigamente, e a mulher mantinha-se em forma, saudável, e se a queria acompanhar fisicamente sem ginástica ou outra atividade, tinha de dar a mão à palmatória. Estava gordo e barrigudo, flácido e velho, mas amava-a e ela a ele. Disso não havia dúvidas. Fechou a porta a sorrir e imaginou como seria a sua noite, doce e sensual, quando ela lhe pedisse aquela massagem nos pés...
- Boa noite. Peço desculpa vir incomodar a esta hora... - explicou-se Janota meio envergonhado com aquela invasão.
- Não incomoda nada. - cumprimentou-o com dois beijos – Passou-se alguma coisa com a Isabel? Ela hoje não apareceu na aula...
- Bem, foi precisamente por causa dela que aqui vim falar com o Dr César. - confessou gravemente – Ela ficou muito abalada com uma situação hoje de tarde... bem... eu já contei ao Dr o que foi... - sentia-se ligeiramente encavacado com o tema ao falar dele com uma senhora tão distinta. Não tinha coragem de dizer tudo aquilo novamente em frente a Elisabete.
- Sim, querida, senta-te. O Janota veio conversar comigo porque está muito preocupado com a Isabel... E com razão. Esta situação está a descontrolar-se, já está a ganhar contornos sádicos e a miúda não merecia nada disto. - enumerou, tirando três copos de whisky do armário e enchendo-os ligeiramente.
- Mau, podem explicar-me o que aconteceu? - disse frustrada com aquele secretismo todo.
- Resumidamente, o João estabeleceu contacto com a Isabel através de sms, pelos vistos deram-lhe o telemóvel lá na clínica e ele deve ter conseguido maneira de o carregar. Certamente deveria estar a tentar perceber quem era a pessoa que mantinha contacto com ele pelo telemóvel, antes do internamento. Isto sou eu a imaginar, claro... - explicava César, pensativo.
- E...? - resmungou Elisabete impaciente.
- E... parece que a coisa estava encaminhada, segundo a Isabel, mas depois, aparentemente ele telefonou-lhe e quando ela atendeu percebeu que não havia ninguém do outro lado da linha a falar, apenas ouviu durante uns segundos o que lhe pareceu ser sexo. - concluiu, dando um gole na bebida.
- Que vaca... - sussurrou – Desculpem, mas isto está na cara que é coisa da tal Nélia. - Elisabete detestava cada vez mais aquela vizinha nova. - Não percebo o que leva aquela rapariga, tão nova, bonita, a prestar-se a um papel destes... Mas ela não vê que a qualquer momento o João recupera e vai ser uma bronca de todo o tamanho?
- Eu estou-me a borrifar para os problemas dessa tipa, - interveio Janota – só não quero a Isabel exposta a estas cenas. Já chega. Se vissem como ela estava, qualquer dia faz as malas e pira-se para Castelo Branco.
- Bem, e o que acha que podemos fazer para a ajudar? - Elisabete sabia que Janota tinha medo que a Isabel largasse tudo e fugisse para a sua terra natal, ele amava-a, estava na cara, e era mais um problema para adicionar aos outros tantos da sua professora de yoga e amiga. - Ó César, não achas que devias sentar-te com o João e acabar com esta palhaçada toda? - ralhou com o marido, que no fundo tinha o seu quê de culpa naquela situação.
- Bem... não sei se isso será o melhor..., não é Dr? - gemeu Janota preocupado.
Elisabete olhou-o duramente, calando-o automaticamente, e dirigiu o seu olhar recriminador para o marido, exigindo-lhe uma resposta. - Vocês os homens... Acham certo eles andarem a sofrer quando podíamos acabar com esta confusão toda conversando com os dois? César, eu sei que a tua preocupação é a questão clínica do passado do João, ele pode parecer restabelecido, mas ainda precisa de tempo para enfrentar problemas, blá blá blá... - escarneceu – Mas isto está a ficar descontrolado. Daqui a nada ele engravida esta gaja e acabou-se! Achas certo? Achas que ele te vai perdoar? - virou-se para o segurança – E tu Janota, já percebemos que gostas da Isabel, e muito, mas tens de ter cuidado para não deixares esses sentimentos toldarem-te o bom senso. - levantou-se, pegou nos sacos das compras e dirigiu-se à cozinha deixando-os no sofá. – Agora pensem bem no que querem fazer e depois digam-me, que eu vou fazer sopa.
César teve vontade de beber os outros copos de whisky ainda intactos, a mulher tinha razão, como sempre. Tinha de preparar um discurso e uma explicação.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário