quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

"A Mala Vermelha" - Cap 25 (3ª parte)



- Tia? - Nélia engoliu em seco ao ver Rosário plantada à porta de casa de João, com ar de quem ali tinha ido tirar satisfações. Finalmente tinha descoberto onde vivia, lamentou-se a sentir-se entrar em pânico. João ficara na garagem à procura das malas de viagem e teria de a conseguir despachar antes de ele subir, ou lá se ia a sua viagem ao Gerês, e a promessa de uns dias de paixão.
- Nélia...., eu não queria acreditar quando a Fátima me começou a descrever a mulher que vivia com o Dr João... tinha de vir ver com os meus próprios olhos!! - começou, agarrando-a pelo braço, mas com vontade de lhe bater ali mesmo - O que é que tu fazes aqui?! E desde quando é que te chamas Isabel? Ham?! - elevou a voz enervada, sacudindo-a com força.
- Tia... por favor, eu posso explicar tudo. - olhava nervosa a porta do elevador - Mas vamos até às escadas do prédio, aqui podem-nos ouvir. - suplicou, já com as lágrimas a romper.
- Anda lá! - resignou-se Rosário, também pouco confortável com a discussão ali no hall dos apartamentos. Seguiu a sobrinha e notou como a rapariga estava sofisticada, chique, certamente vivia sustentada pelo Dr, nem trabalho devia ter, não saberia fazer nada que pagasse aquelas roupas. Entraram no sector das escadas e Nélia fechou a porta depois de espreitar e se certificar de que João ainda não tinha chegado a casa.
- Por favor, não estrague a minha vida!, o João acha que sou a Isabel, sim, e eu menti. - admitiu - Não lhe disse o meu nome verdadeiro porque sempre fui apaixonada por ele, essa é a verdade. - agarrou as mãos da tia carinhosamente - Desde o tempo em que a tia me contava histórias do seu patrão, sempre o quis conhecer, e foi o que aconteceu num bar aqui em Coimbra, há uns meses atrás. - explicou, com as lágrimas já a correr - Já nos deitávamos antes de ele conhecer a tal Isabel! - desviou o olhar da cara chocada com que a tia recebia as informações íntimas - Sim, eu vinha cá a casa de noite, mas saía antes de amanhecer, porque não me queria encontrar consigo, sabia que não ia entender esta relação. Mas juro-lhe que sempre gostámos um do outro, ele pedia-me para ficar, - mentiu, sem remorsos, teria de justificar a sua presença ali - eu é que nunca quis. Mas eu amo-o muito, nunca fiz nada com más intenções.
Rosário estendeu-lhe um lenço, sem saber o que dizer. Tinha ali ido para a desancar, e agora que ouvia uma explicação sincera ficava desarmada. - E ele também gosta de ti? - questionou-a meio incrédula, como se isso fosse impossível.
- Claro, hoje vamos sair, vamos passar uns dias ao Gerês. - confidenciou fungando. - Ele ainda está muito baralhado, coitadinho. O médico mandou-o espairecer. - sorriu, satisfeita com a reação da tia, que parecia mais calma e resignada.
- Bem, Nélia, Deus me livre de estragar a tua vida, e se realmente gostam um do outro... - entrelaçou os dedos uns nos outros, envergonhada.
- Obrigada tia, não se preocupe comigo. - devolveu-lhe o lenço sujo - Só preciso que me faça um favor, - bateu as pestanas húmidas com as lágrimas - saia por aqui, não deixe que a vejam. O João não se lembra de si, mas não quero perturbá-lo, vou fingir que nada se passou. - concluiu com alguma frieza na voz. Sentia Rosário novamente submissa e era imperativo despachá-la sem que ninguém a visse.
- Sim, claro, querida. - o olhar da sobrinha mandava-a descer imediatamente as escadas - Façam boa viagem, e telefona-me de vez em quando, a dar notícias do Dr... - pediu, já a descer obedientemente. Talvez houvesse alguma esperança para a rapariga, pensou respirando fundo. Não conseguia perceber como um Dr daqueles tão distinto podia engraçar-se pela sobrinha, mas se estavam felizes, era o principal. - Adeus!

(direitos resrvados, afsr)
(imagem, internet)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

"A Mala Vermelha" - Cap 25 (2ª parte)



- Olá César... - cumprimentou Isabel, sem grande entusiasmo ao ver chegar o psiquiatra. Nunca mais acabava aquela novela na sua vida, remoeu, guardando no jipe as caixas de frutas e legumes metodicamente ordenados com um sentido estético que a deixava enternecida. - Vou vender isto ao Botânico, há lá uma feira de produtos biológicos... - explicou.
- Curioso... - sorriu na direção das caixas - Ele é mesmo artista, não é? E mais curioso, sabes que ele deu-se a este trabalho todo para ir a essa mesma feira?
- Onde queres chegar com essas “curiosidades”? - lançou a sentir-se enfurecer com aquelas insinuações. - Eu sei perfeitamente quais são as qualidade dele! Mas caso seja necessário lembrar-te, ele vive com a “Isabel”! Está mais feliz que nunca, segundo o Comandante Santos, aquele baboso com quem tive de falar. Ele estava particularmente enfeitiçado pela “mulheraça” do João! - bateu a porta da mala do jipe com força.
- Isabel, não fiques zangada, por favor. O Santos é um tolo, - explicou paternalmente - e o João ficou cheio de medo de se encontrar preso, está momentaneamente esperançoso com a segunda oportunidade que a vida lhe deu. - ironizou.
- Então que faça bom proveito. - rematou - Eu estou momentaneamente em Coimbra, e só aqui vou ficar hoje porque tenho pena de deitar tudo isto para o caixote do lixo, que era o que devia fazer, se tivesse juízo. - encarou-o, continuando os seus lamentos catárticos - Mas sou uma parva, cada vez mais me convenço disso. Devia estar furiosa porque o João me sujou a casa toda e desarrumou mais que trinta miúdos deixados à solta num quarto de brinquedos. Tenho tudo de pantanas, a cama revoltada, é preciso lavar os lençóis, tirar a presença dele ali de dentro, aspirar, limpar o pó, e em vez de ir formalizar a queixa na PSP para ele aprender, só quero enfiar-me ali dentro e chorar agarrada à almofada! - berrou.
- É por isso que te vou pedir um último favor. - agarrou-lhe nas mãos frias - Não vás já embora para Castelo Branco. Ele vai voltar, garanto-te. Eu conheço-o, não vai aguentar a rapariga muito tempo. Até acho que é agora, quando ele baixar a guarda com ela que tudo vai terminar. - sentia-se ligeiramente carrasco a dizer aquilo, mas era o que sentia verdadeiramente.
- Então devo aqui ficar à espera que ele ande às cambalhotas com ela e se recorde de mim? - gemeu incrédula.
- Não... - mentiu - Aguarda só uns dias. Ele fugiu para aqui porque só se sentia bem neste local, sem saber porquê. A vida no seu apartamento era-lhe insuportável. Inconscientemente ele recorda-se do que passou aqui contigo, entendes? Quando descobri que era aqui que ele fazia a jardinagem secreta de que nos falou a mim e à Lisa fiquei felicíssimo. - explicou carinhosamente.
- César... eu sei que gostas dele como um filho, e por um filho fazemos coisas impensáveis. O que me estás a pedir é mais que isso, é cruel e impossível. Não vou sacrificar a minha felicidade por ele, por muito que me custe, desta vez vou pensar primeiro em mim. - entrou dentro do jipe e despediu-se com vontade de lhe passar com o carro por cima dos pés. Os homens conseguiam ser brutais, mesmo sem lhe bater.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

"A Mala Vermelha" - Cap 25 (1ª parte)




Quando lhe disseram que a sobrinha estava a viver com um médico em Coimbra nunca lhe passou pela cabeça que Nélia pudesse traí-la daquela forma. Rosário tinha as mãos e as pernas a tremer, e tentava equilibrar-se atrás da carrinha estacionada do outro lado da rua do prédio do Dr João. Esperava que um dos dois aparecesse na rua, ou na varanda, só para confirmar as informações que lhe tinha dado uma antiga amiga que conhecera enquanto trabalhara exclusivamente para o “Dr”, também ela empregada de longos anos de uma família do primeiro andar. Partilhavam histórias que animavam os seus dias, sempre que não se gostava de alguém do prédio ou de uma pessoa que frequentava a casa onde trabalhavam. Fátima telefonava-lhe desde que Rosário fora dispensada do seu trabalho, e semanalmente lá conversavam sobre o que se passava no prédio, como se ainda se encontrassem a meio do dia nas escadas comuns, enquanto gozavam da pausa de almoço e da ausência dos patrões. Uma amiga que estimava, e por isso, tinha em grande conta, nunca duvidaria da sua palavra. Falava-lhe numa Isabel de nariz empinado, mas Rosário só tinha conhecido a Isabel simpática e sorridente, que tinha feito um milagre e entrado naquela casa. Tinha poucas, mas boas memórias dela, mesmo ligeiramente magoada por ter sido demitida, porque sabia que a culpa da desgraça que assolara aquela casa tinha sido sua. Quando abriu a porta ao homem bem falante e ele lhe disse que ia levar o cão dali para fora, Rosário nem pensara duas vezes, ficara tão aliviada por se ver livre do bicho que nem refletira ou confirmara com o “Dr”. Ainda sentia uma leve azia todas as vezes que recordava a voz aflita do patrão ao telefone a perguntar-lhe pelo cão. Tinha muitos remorsos do que fizera, mas se aquilo que ali tinha ido confirmar fosse verdade, a sobrinha ia aprender uma lição, e não havia “Dr” nenhum que a fosse segurar. Encostou-se à carrinha, para descansar a coluna da posição em que estava há algumas horas a espreitar, mas nem precisou de se esconder, o carro do seu antigo patrão aparecia ao virar da esquina, e Rosário conseguiu vê-los aos dois, que nem a olharam, enquanto a viatura passava por ela devagar em direção à porta da garagem. Nélia estava sentada no lugar do “morto”, toda sorridente e bonita. Sempre fora uma estampa, concluiu tristemente, como se sempre tivesse previsto que a beleza da sobrinha fosse a sua maior maldição. Nunca se esforçara em nada, na escola, em casa, na vida, pensava que bastava vestir-se bem e arranjar-se e tudo surgia caído do céu. Ali estava a prova, de como uma rapariga tonta podia viver enganada, e como Rosário falhara com ela e com a irmã. Nélia podia estar iludida com a vida, mas não ia enganar o Dr João, pensou decidida. Contornou a carrinha e dirigiu-se à porta do prédio, tocando para a casa onde Fátima trabalhava, ganhando assim tempo para chegar primeiro ao apartamento e surpreender a sobrinha, já que o Dr João nem sequer se lembraria dela.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

"A Mala Vermelha" - Cap 24 (7ª parte)




- É como te digo, Santos, o rapaz não é perigoso, apenas anda baralhado, e tem tido alguma dificuldade em recuperar a memória. Não há necessidade de formalizar a queixa, pois não?
- Eu não tenho intenção nenhuma de arrastar isto, já tenho processos que cheguem que nunca vão dar em nada. - confessou – Mas a proprietária fez queixa, só se ela desistir é que posso deixá-lo ir. - mentiu, tentando encontrar argumentos para a detenção.
- Eu acho estranho ela ter telefonado para a polícia, eles conhecem-se, isso não é nada típico da Isabel... - matutava em voz alta – Tens a certeza de que foi ela?
- Bem, não vais abrir a boca sobre isto,... mas eu precipitei-me um bocado, digamos. - confessou, coçando a cabeça preocupado - Passei por cima de algumas etapas, para fazer o favor ao Fontes, o pai dela, - acrescentou – foi meu colega. Como não sabia de nada do que se estava a passar, nem conheço o João, pareceu-me apenas um pai preocupado com a integridade física da filha. Mas ela não formalizou a queixa, de facto...
- Ah, então está tudo resolvido. Eu falo com ela, não te preocupes. Tens a minha palavra de que ele nunca mais volta ao local do "crime". - disse com humor – Ele precisa é de retomar as consultas e passar uns tempos longe de Coimbra, desanuviar a cabeça. Afinal não fez nada de mal, concretamente.
- Quer dizer, invadiu uma casa sem autorização... - acrescentou com alguma preocupação.
- Pronto, mas já devolveu a chave, não foi? Eu mantenho-o afastado. Tens a minha palavra!
- Só não quero o Fontes a chatear-me porque soltei o rapaz. - confessou preocupado, enquanto eliminava os papéis na destruidora de papel, formalizando o fim do processo.
- A Isabel fala com o pai, eu certifico-me de que o faz. - sorriu, satisfeito com o poder de persuasão que o estatuto de antigos vizinhos de infância lhe dava ali no gabinete do Comandante da PSP. O João tinha muita sorte, pensou, se não fosse o Santos teria sido impossível resolver aquela salganhada sem tribunal nem advogados. - Posso ir lá vê-lo?
- Claro, vamos buscá-lo, sendo assim já não há motivo para ele estar preso... - suspirou, aliviado com menos um suspeito sob a sua alçada.
- Obrigado Santos, - deu-lhe uma leve palmada fraterna nas costas enquanto se encaminhavam para o interior da esquadra – agora outra coisa, também recebeste aquele convite para o jantar dos antigos moradores do "Bairro"? Acho que desta vez vou, e levo a Lisa.
- Recebi, sim. Mas não devo levar companhia... - confessou abatido – A Manuela deixou-me.
- Deixou-te? Eh pá, não sabia... lamento. Mas isso foi há pouco tempo? Ainda noutro dia a Lisa me disse que a encontrou não sei onde e estiveram a tomar café. Não comentou nada disso...
- Pois, foi o mês passado... ainda nem acredito que ela teve coragem de cumprir as ameaças. - sorriu envergonhado, assumindo a culpa das suas fraquezas físicas. - As mulheres são tramadas...
- Pois são... por isso é que eu nem sequer penso certas coisas, a Lisa lia-me logo os pensamentos e matava-me durante a noite. - brincou, desanuviando a conversa, mas agradecendo interiormente ser tão bem casado. Se tivesse vontade de trair a mulher sentir-se-ia um miserável, como o amigo lhe parecia naquele momento. - Pede-lhe desculpa e apanha juízo, já estás a ficar velho, pá! Já viste o que era teres de aturar uma daquelas? - sussurrou apontando para Nélia, que enlaçava o João como uma lapa. Sabia que um dia o João ia acabar por ceder, aquilo era muita mulher para não se reparar.
O Comandante olhou-o com humor, era de facto perigoso haver mulheres daquelas. Devia ser crime usar roupas sugestivas com um físico daqueles. - Já não tinha capacidade para isto... - gozou – Sr João Marques, vai ser solto, afinal houve uma desistência da queixa. - mentiu, abrindo a porta – Está tudo resolvido, mas está proibido de se aproximar da quinta da D. Isabel Fontes Pereira e Melo.
- Sim, claro. Obrigado. - deu a mão a Isabel, sorrindo-lhe, esperançoso com aquele recomeço e súbita liberdade, depois de algumas horas de medo. Isabel Fontes Pereira e Melo... registou o nome na memória, mais tarde iria pesquisar sobre aquele nome tão pomposo. Mas antes, queria chegar a casa depressa e aproveitar o presente. Acabava de ter uma nova oportunidade de ser amado e amar.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)