terça-feira, 19 de março de 2019

"A Mala Vermelha" - Cap 26 (4ª parte)



Ouviu o despertador ao longe, com grande dificuldade, e durante alguns minutos não conseguiu levantar-se nem desligar o aparelho. Sentia-se ainda derrotada e com sono, precisava de mais umas horas de descanso, pensou, abrindo os olhos pesados e procurando com a mão pelo cachorro, que estranhamente não se encontrava na cama. Levantou-se, vestiu o robe, foi à casa de banho e ficou horrorizada com o seu aspecto. Olheiras fundas e negras faziam um contraste ainda maior aos olhos inchados. Como poderia encarar a aula de yoga e as suas alunas com aquele aspecto?, perguntou-se desanimada. Teria de colocar maquilhagem, o que detestava, para parecer humana. Saiu do quarto, dirigiu-se à cozinha para fazer café, procurando com o olhar pelo cão, que parecia ter desaparecido. Encheu a cafeteira com água e procurou pelo pacote do café no armário, quando um vulto a fez virar-se repentinamente. A cafeteira caiu ao chão com estrondo, quando as mãos ficaram amolecidas com a visão de João com Filipe ao colo, que se debatia a tentar lambê-lo, histérico.
- Não te quis acordar antes, cheguei durante a noite.
- Como assim, chegaste durante a noite? - conseguiu dizer, com a garganta seca.
- Ontem lembrei-me de tudo, Isabel. - largou o cão e tentou puxá-la para si, mas Isabel cruzou os braços, fugindo-lhe. Em vez disso apanhou a cafeteira do chão e deu-lhe algum espaço. Já tinha imaginado que ela fosse reagir mal e não queria magoá-la mais.
- O que aconteceu ontem? Tentei ligar-te centenas de vezes... não imaginas as coisas que me passaram pela cabeça... - o choro rebentou-lhe atrapalhando-lhe as palavras - ... pensei que tinhas morrido... Disseste o meu nome. - João tentou abraçá-la novamente, mas ainda era cedo, não queria que ele lhe tocasse.
- Desculpa Isabel, é uma longa história, - não queria perturbá-la com o afogamento evitado pelo Filipe, o rapaz da receção - O telemóvel caiu e estragou-se e não tinha forma de te ligar de volta. Por isso vim embora.
- E a Nélia? Veio também? Levaste-a a casa, antes de aqui vires arrombar a minha porta? - bradou a sentir-se colérica, continuando a chorar sem parar. Agarrou num maço de guardanapos e limpou-se furiosamente, evitando novamente as mãos dele.
- Não... ela ficou lá. Deixei-a lá... mas não quero falar sobre essa tipa. Isabel, por favor, eu quero saber de ti. O que aconteceu contigo depois da morte do Filipe? - perguntou emocionado ao relembrar momentaneamente o dia em que encontrou o cão pendurado na sala de yoga, como um animal de abate, e que o levou a um esgotamento. - O Tiago? Ele atacou-te? O que aconteceu depois?
- Eu matei-o. - disse friamente, enquanto algumas lágrimas lhe desciam pela cara e pescoço. - Não é preciso ficares preocupado. Está tudo resolvido.
- Mataste-o? - bradou, agarrando-a à força. Sabia que ela nunca iria correr-lhe para os braços, estava demasiado magoada com ele. - Desculpa, eu devia ter feito isso, devia ter sido eu a acabar com ele...
- Fiquei louca quando acordaste na clínica e não me conheceste... - gemeu, agarrando-se finalmente a João, que a apertou com força contra si - , atraí-o para aqui e espetei-lhe uma faca da cozinha no peito...- concluiu, chorando o que restava para chorar.
- Isabel... vamos sair da cozinha... - conseguiu dizer, depois de alguns minutos de silêncio e lágrimas - Aqui há muitas facas... - sorriu-se com a piada que lhe surgia inesperadamente.
- Parvo... - Isabel soltou uma gargalhada, sem conseguir largar o abraço apertado. Limpou a cara à t-shirt dele, escondendo-se no seu peito, sentia-se com pouca coragem para o olhar. Estava feia, inchada e ranhosa.
- Anda, vamos sentar-nos aqui na poltrona. - arrastou-a suavemente para o cadeirão fofo e sentou-a ao seu colo. Amava-a tanto que só lhe apetecia gritar de euforia. Finalmente sentia a sua respiração acalmar, mesmo sem a olhar nos olhos sabia que sorria. Beijou-lhe o alto da cabeça, repetidamente, e esperou que Isabel o quisesse enfrentar. Ela foi gradualmente inclinando a cabeça até os olhos dos dois se encontrarem. João beijou-a e todo o seu mundo voltou a girar na rotação certa. Queria amá-la ali mesmo, mas Isabel separou-se do beijo olhando-o duramente por uns segundos.
- Quando foi a última vez que estiveste com ela? - perguntou-lhe secamente. - Não mintas.
- Isabel... o que interessa isso? - aquilo não ia dar bom resultado, pensou, engolindo em seco.
- Responde.
- Ontem. - disse envergonhado.
- Vou fazer o café, queres torradas? - perguntou sem denunciar qualquer tipo de emoção negativa, o que o confundiu.
- Sim..., pode ser... mas, não estás zangada? - perguntou a medo a sentir-se desorientado.
- Não posso estar zangada, não eras tu. Mas vais ficar de quarentena.
- Como? - sorriu-lhe, divertido com a piada.
- É isso mesmo... ainda ontem aquela... pessoa esteve contigo. Não esperas que me vá deitar hoje contigo, pois não?
- Isabel... Isabel... - olhou-a divertido. 

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(imagem, internet)

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