tag:blogger.com,1999:blog-90532328527492717662024-02-19T02:12:19.830-08:00Contos ModernosAna Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.comBlogger243125tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-33058649702616080272020-09-09T01:36:00.003-07:002020-09-09T01:36:30.566-07:00"A Mala Vermelha" - Final<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1rFU3IVE20dcJqqWTyx_FxiUyWlyTDRrcfiVvgZMjXrJKv_tRNaH1FqjT8HgS966HXfGXYurn7bhyDOMkd5ay1sVZ1qW5662pzCIOF_LqN12VeoeFZY7_sDWIA7j-ILOTD6lxBN_xkPA/s350/shiva-shakti-vrindavan-das.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="350" data-original-width="350" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1rFU3IVE20dcJqqWTyx_FxiUyWlyTDRrcfiVvgZMjXrJKv_tRNaH1FqjT8HgS966HXfGXYurn7bhyDOMkd5ay1sVZ1qW5662pzCIOF_LqN12VeoeFZY7_sDWIA7j-ILOTD6lxBN_xkPA/s320/shiva-shakti-vrindavan-das.jpg" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> - De quarentena?! - Salvador explodiu a rir com os lamentos de João, que lhe confidenciava as exigências de Isabel depois de ele ter voltado do Gerês e terem reatado a relação interrompida pelos acontecimentos dramáticos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Mais alto, que ali ao fundo ainda não perceberam... - resmungou, meio dividido entre a vontade de rir e o amuo. - Há uma semana que me anda a pôr doido... e não desiste dessa ideia. Estou aqui, estou a ser preso por violação consumada ao mais alto nível! - engoliu o resto do fino de um trago, sorrindo no final, induzido pelas gargalhadas do amigo que já limpava os cantos dos olhos de chorar a rir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- E a louraça? Nunca mais a viste? - perguntou respirando fundo e tentando acalmar a risota.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Claro que vi, foi um escândalo... apareceu-me lá no apartamento, histérica e pronta a matar. - explicou - A minha sorte é que a Isabel tinha ido dar aulas e não estava, senão, em vez de quarentena era ano sabático! - comentou, com um ar genuinamente preocupado. - Fui levá-la a casa da tia, a Rosário, que ficou destroçada, coitada da mulher. Tem ali muito com que se preocupar. Eu devia era ter ido à polícia fazer queixa da tipa, mas a Isabel pediu-me para não o fazer. Assim acabou de vez a história e pronto. - resumiu, pedindo mais um fino num gesto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ah pois, nunca mais te livravas desse fantasma, a Isabel tem razão. - comentou entregando a bebida a João. - Agora não afogues as carências físicas no álcool!, bebe devagar que já vais no quarto. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não é nada disso... - bufou constrangido - Estou a ganhar coragem para fazer uma coisa mais logo, quando a Isabel chegar. - confessou, tirando do bolso uma caixa pequena.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- E vais pedi-la em casamento aqui no bar? Isso não é nada romântico, pá! - insurgiu-se Salvador, chocado com aquela insensibilidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Achas? Eu tinha preparado um discurso e tudo... - gozou - Claro que não vai ser aqui!, já tenho tudo pensado. Durante a festa de anos vou fingir que tenho a prenda dela em casa, o que na realidade é verdade, só que não é uma prenda física, é o pedido. A Lisa está a ajudar-me e já lá deve estar a preparar o cenário romântico. Eu disse-lhe para não se poupar, queria mesmo uma coisa exagerada, já não aguento mais dormir com uma almofada entre nós os dois...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Portanto, a prenda és tu que a recebes?, Está certo, isso é tão romântico que até eu já me estou a apaixonar por ti! - gozou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Menino, vou-lhe dar presentes a noite toda, se ela aceitar o pedido, claro. - acrescentou, já a duvidar do seu esquema infalível. - Salvador, pára de me colocar macaquinhos na cabeça. Tu não a conheces. Tenho de a surpreender de forma excêntrica, para ela ceder da sua teimosia. Eu sei que anda a esforçar-se por não quebrar o “celibato pascal”, também tem sofrido, mas quer marcar uma posição. E eu acho sinceramente que está à espera do pedido, ela não liga nenhuma a prendas, das que as mulheres normalmente gostam. Tem de ser “tchanam!” - exibiu um sorriso orgulhoso nas suas intenções.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bem, tu lá sabes. Mas eu, no teu lugar, arranjava uma mala ou uma echarpe só em caso de o plano A não funcionar. - opinou sabedor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olha, ela vem aí. Agora cala-te. - João ficou sentado a admirá-la, enquanto Isabel cumprimentava Janota, e uma ponta de ciúmes abrasou-o, terminando o fino fresco de uma assentada. O segurança parecia conformado com a amizade que ela lhe reservava, mas João conseguia ver nos olhos do gigante a mágoa de um homem não correspondido. Era notória a frustração, mesmo que bastante dissimulada. Era a sua pequena vingança pessoal, nunca lhe conseguiria bater a ponto de o magoar, bem pelo contrário, por isso gozava secretamente da vantagem que tinha em ser o escolhido dela. Levantou-se quando ela chegou perto dele e Janota desapareceu dos seus pensamentos. Toda aquela energia sexual reprimida subia-lhe à cabeça como fogo de artifício e cegava-o. João sabia que Isabel fazia de propósito, para o ter na mão, mas ele adorava ser o seu fantoche. Agarrou-a e beijou-a de tal forma que se fosse necessário iria com ela para os lavabos, como dois adolescentes no pico das hormonas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ó Isabel, por favor, olha que o homem rebenta! - gozou Salvador, expondo as confidências do amigo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olá, então, somos os primeiros? - perguntou, libertando-se dele e sentindo a cabeça à roda. Sexo tântrico era uma disciplina exigente e difícil, que apenas com muita prática se conseguia dominar. Iria aguentar aquilo só enquanto João não lhe parecesse magoado. Mas estranhamente ele parecia andar entusiasmado com os travões que ela lhe punha, o que a intrigava durante horas, enquanto não conseguia adormecer a senti-lo em alerta à espera de um movimento em falso que denunciasse o fim da lei seca. Não queria ser cruel, apenas dar uns dias para que estabilizassem e recomeçassem tudo sem a lembrança de Nélia ainda fresca na memória. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- O César e a Lisa devem estar mesmo a chegar. - respondeu, olhando-a apaixonado - Estás muito bonita. - sussurrou-lhe ao ouvido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigada, também estás muito bonito. - respondeu-lhe de volta, na mesma moeda, certa de que ele ficaria muito mais incomodado com um bafo quente junto ao ouvido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olhem, até eu já estou a ficar com os calores, por favor, não nos martirizem mais. Acabem lá com isso e voltem a ser pessoas normais, pode ser? - rugiu Salvador, afastando-se do casal que se espremia um no outro junto ao balcão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- 30 anos... estás oficialmente a ficar no ponto! - brincou, sentando-se e puxando-a para perto de si.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Velha, queres tu dizer!, - resmungou, afastando-se e sentando-se no banco ao lado - Mas ok, ainda me falta 10 para ficar acabada, ainda há tempo. - sorriu-lhe feliz como já não se sentia há muito tempo. João estava com um brilho nos olhos diferente, misterioso. - O que foi? Porque é que me estás a olhar assim?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Amo-te, sabias?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim. - conseguiu dizer, depois de alguns segundos de paralisia vocal. Ele desmontava-a com uma facilidade que a deixava incapaz de pensar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">César e Elisabete chegaram interrompendo o momento e transformando-o na festa de aniversário que realmente deveria estar a acontecer, acalmando os ânimos com a serenidade madura que os caracterizava. Só Elisabete transparecia uma leve excitação quando João cruzava o olhar com o dela, garantindo-lhe em linguagem muda que tudo estava pronto para a surpresa final.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Permitam-me que diga umas palavrinhas, enquanto todos estamos sóbrios e capazes de testemunhar no futuro, se necessário! - gracejou, colocando-se de pé e abraçando Isabel, ligeiramente desconfortável com declarações públicas. - O ano que passou foi um dos melhores e piores da minha vida, encontrei o amor da minha vida e perdi-o, e os pormenores vocês todos já sabem. - despachou, com pressa para chegar à parte importante - Mas o mais incrível de tudo o que vivi foi a descoberta de que o João não existia na realidade. Nunca fui psiquiatra, nem mulherengo, muito menos um ricalhaço cheio de mordomias. O meu nome é João, mas sou jardineiro a aprender agricultura, só amo a Isabel e gosto de casas pequenas e de madeira. Desculpa, querida, se te desiludi. - brincou, olhando-a - Nunca foi minha intenção enganar-te. E agora que já me confessei, queria agradecer-vos a todos o que fizeram por mim e pela Isabel, nunca vos vou conseguir pagar a amizade que nos dedicaram. - levantou a cerveja em gesto de brinde - Mas, e agora vem o mais importante, - disse, com um tom misterioso que deixou Isabel ligeiramente ansiosa. Tinha a sensação de que ele andava a tramar alguma, e secretamente desejava que fosse um pedido de casamento para acabarem de vez com o celibato - A minha Isabel faz hoje anos, e é a ela que devemos fazer o verdadeiro brinde! Parabéns amor! - beijou-a, deixando-a ligeiramente frustrada. Tinha sido a altura ideal, ali junta de todos os amigos, para lhe fazer a proposta romântica, pensou abatida. Porque deixava ele arrastar aquele sofrimento físico?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">A noite já ia longa, quando João se decidiu a ir para casa com Isabel, que desfalecia de sono. Dançaram quase até já não sentirem os pés, num frenesim de festejo que não combinava com aquilo que Isabel sentia, depois do brinde. Não podia dizer que estava triste, João dedicara-se toda a noite a adorá-la de todas as formas e feitios, mas o corpo pedia cama e descanso, para conseguir absorver a frustração de ter pensado que ele não queria casar. Talvez esse fosse o limite dele, depois de tudo o que tinha vivido com a morte do irmão, da mãe e depois da primeira mulher. Isabel era uma romântica, no fundo imaginava-se a vestir-se de branco e casar com um príncipe, para apagar finalmente da memória o seu casamento com o demónio. Dizer que sim a João era o seu desejo mais profundo, mas nunca lho diria. No caminho para casa pouco falou, fingindo-se dormitar, mas os seus pensamentos giravam e traziam-lhe dúvidas que não facilitariam o resto da noite. Estava implícito que acabaria naquele dia o celibato, mas Isabel não se sentia propriamente excitada com isso, o que a deixava receosa de o magoar. O carro parou e João saiu, pensando que ela dormia, abriu a porta do lado de Isabel devagar e chamou-a, ajudando-a a sair, com um abraço que a fez amolecer ainda mais.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Estás muito cansada? - perguntou-lhe, ansioso com o que tinha ainda por fazer. Sabia que ela estava desiludida com o seu discurso, conhecia-a bem, e custara-lhe não revelar a surpresa que a esperava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Hum, hum... - Isabel abriu os olhos, caminhando abraçada a João, quando este parou à entrada da casa, e ligou as luzes do alpendre, que abriram uma fiada de gambiarras que iluminaram o espaço, transformando-o num local idílico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel... ainda falta a minha prenda. - sussurrou-lhe ao ouvido de forma sensual, acordando todas as células do corpo dela. - Precisas de estar acordada... - respirou-lhe desde o ouvido até à boca, beijando-a com intenção e sentindo-a a desfalecer, pronta. Olhou-a. - Nunca tive tanta vontade de fazer isto, e tenho aguentado até hoje, para que este fosse o teu momento. - tirou a caixa do bolso e mostrou-lhe um anel simples, com uma beleza igual à dela, verdadeira - Isabel, queres casar comigo? Ter filhos comigo? Ou cães, ou o que gostares mais?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Isabel olhava-o sem falar, completamente rendida ao romantismo delicioso dele, do qual duvidara horas antes, a sentir um calor que subia e descia do chakra Muladhara ao Anahata, numa espiral de prazer quase idêntico ao orgasmo. Seria quilo possível? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel... não dizes nada? - perguntou confuso com o ar de prazer dela e o silêncio. Percebeu que algo se passava dentro dela, algo estranho, e abriu a porta, puxando-a levemente para dentro de casa, orientando-a em transe até à sala de prática. Fechou a porta, num impulso, selando-os naquele local espiritual, colocou as luzes em modo baixo e levou-a até ao centro da sala. Os olhos de Isabel emitiam um brilho que já tinha visto antes, e como ela parecia noutra dimensão, decidiu ouvir a sua intuição e não esperar por ordens. Despiu-se totalmente, despiu-a a seguir, sem pressas, beijando-a em todos os locais possíveis e imaginários, e deitou-a, ficando a pairar por cima dela, que continuava em transe, como se apenas ali estivesse o corpo, que o reclamava cada vez mais. João esperou que Isabel voltasse, e assim que percebeu nos olhos dela que chegara o momento, consumou a união entre os dois.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Milhares de estrelas rodopiavam à volta dos dois, soprando cânticos de louvor e êxtase, enquanto Isabel atingia o clímax e o chakra Sahastrara abria um feixe de várias cores em direção ao céu. Chegara, finalmente, pensou, sentindo-se ainda a levitar, com a respiração violenta a normalizar. Recuperou a visão, e João olhava-a divertido, com um sorriso vitorioso, como se sentisse orgulhoso de qualquer coisa. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isto foi um sim? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-78964104735400049482020-09-08T01:46:00.002-07:002020-09-08T01:46:51.593-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 26<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiykC6BbXIFS3BUqca3MpsNkadaYLQhPAO5JHvAVpsUbaMZ5fgrAqNjoxCA6jMn8lvRqFffR6e8tXqlHaifEnOy32DKn6UIAnK9AmDYzPNsgn9Hvq4wMF50cqRlS44ySTC_gc2cmCCKvU8/s400/maos.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="313" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiykC6BbXIFS3BUqca3MpsNkadaYLQhPAO5JHvAVpsUbaMZ5fgrAqNjoxCA6jMn8lvRqFffR6e8tXqlHaifEnOy32DKn6UIAnK9AmDYzPNsgn9Hvq4wMF50cqRlS44ySTC_gc2cmCCKvU8/s320/maos.jpg" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> - João, eu amo-te... - Isabel beijou-o, depois de o olhar profundamente, cravando-lhe uma angústia quente e funda no esterno, que o sufocou. A garganta seca dificultava a respiração e levantou-se, fingindo um mal estar repentino provocado pelo jantar sumptuoso que tomaram no quarto do hotel. Ela queria privacidade, intimidade, cumplicidade, e João tentou até não aguentar mais. “Amo-te...” era o limite da sua capacidade, pensou, molhando a cara com água fria na casa de banho, onde se refugiou. O pânico começava a alastrar-se na sua mente, e o corpo reagia como uma bomba. Recordava-se daquilo, pensou, obrigando-se a respirar fundo. Picadas leves percorriam-lhe os braços lentamente em direção às mãos, uma sensação de leveza nos joelhos parecia retirar-lhe as forças das pernas, o que disparou o pânico. Tinha de sair daquele quarto rapidamente, apanhar ar, já não suportava o perfume dela, que o estrangulava desde que fechara a porta do quarto mais cedo. Todo o corpo de Isabel estava envenenado com o cheiro agressivo a flores, e tinha-o beijado durante horas, lembrou-se assustado, estava contaminado, iria morrer. Abriu a porta da casa de banho e precipitou-se à procura do telemóvel, vestiu uma t-shirt, calçou-se e disse-lhe que ia tentar comprar champanhe. Foi o que lhe surgiu no momento. Precisava de se afastar dela, sem levantar suspeitas. Correu pelo corredor até encontrar a porta que dava acesso à zona exterior da piscina. Respirou como se estivesse submerso há alguns minutos, com os pulmões a exigir oxigénio furiosamente. Colocou-se de cócoras, para poupar as pernas que pareciam ceder com o peso da sua angústia. Precisava de a ouvir, de ouvir aquele mantra que só ela sabia, pensou, carregando no número dela, tinha de a gravar a cantar aquilo, acalmava-o. - Estou, Isabel? - João?, o que aconteceu? O que se passa? João?... - Desculpa. - João?... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">........</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>… quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">........</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>Com mais força! – gritava-lhe o irmão mais novo, a pedir que João lhe empurrasse o baloiço. – Daqui a nada sais a voar! – respondeu, dando um impulso ainda maior e rindo com o espírito corajoso de Filipe. – Meninos! Venham jantar! – chamou a mãe naquele tom melodioso característico das horas de comer. Correram os dois para ver quem chegava primeiro. Filipe detinha o recorde, orgulhoso e fazia sempre uma festa quando atingia a porta mais depressa que o irmão mais velho. A casa cheirava a assado, o prato preferido dos dois. Continuaram a corrida para ver quem lavava as mãos mais depressa, mas o pequeno Filipe sorria-lhe esticando-se a pedir ajuda para chegar ao sabonete. – Dá cá esses dedinhos marotos!</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.......</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">........</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e figiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apodereou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.........</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho… - disse o pai que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe? Gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe.”</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Senhor!!!!, o funcionário do hotel gritou, descalçando-se rapidamente e lançando-se à água completamente vestido. Mergulhou para o alcançar, mas o corpo parecia fazer força na direção do fundo da piscina, obrigando-o a vir à tona ganhar ar para outra tentativa. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>Sempre que a via sentia-se assim, parvinho de todo, sem saber como lhe dizer todas aquelas coisas inteligentes que pensara no dia anterior. Era impossível ser natural e descontraído quando ela estava por perto, lamentava-se. Naquele dia combinaram ir beber um café ao Samambaia, sentaram-se um em frente ao outro, pediram café, depois água, um bolo, uma torrada, dois finos, tremoços, e acabaram a tarde a serem repreendidos pelo empregado de mesa para pararem com os beijos, havia clientes incomodados. Invejosos, dissera ela divertida. </i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>Agora que já somos namorados oficialmente, temos de pensar num assunto de extrema importância, João! – disse muito séria, deixando-o alarmado. Sentou-se para a olhar melhor, ali deitada na relva de braços atrás da cabeça parecia-lhe a coisa mais bonita que já vira.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Diz lá, então. – sorriu-lhe acendendo um cigarro.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- De que cor é que compro a minha mala? – continuou séria, a esforçar-se para não se rir – É que vamos andar sempre juntos, e preciso de saber qual a cor que vai ficar melhor com as tuas roupas!</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Estás a brincar, ou a falar a sério? – perguntou meio aparvalhado.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Palerma! – disse-lhe rindo agarrada à barriga – Achas mesmo que ia querer combinar a carteira contigo? Adoro esta, só me separo dela quando uma de nós morrer! – profetizou, continuando a rir do ar apalermado com que João tinha ficado.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Não sejas teimosa, isso não combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de palermices. </i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> <i>A casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la. Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois. Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele, a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso. Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro “filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado afogar-se… </i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- A Eduarda vai ser mãe. – comentou Isabel, animada com a notícia de que a melhor amiga conseguira finalmente realizar o seu sonho de engravidar, depois de alguns anos de dificuldade e sofrimento. – Ai sim?, que bom. – disse sem sequer a olhar. Aquele tema surgia de tempos a tempos como uma sombra a pairar sobre os dois, dissipando-se depois com as distrações do dia-a-dia das suas carreiras absorventes. – João, podíamos pensar nisso também. Não para já, que estás a iniciar o trabalho na Clínica e precisas de te dedicar a isso, mas daqui a um, dois anos. – sugeriu Isabel a medo. Sabia que o marido fugia do assunto, mostrando-se muito pouco interessado em ser pai, mas ela adorava um dia engravidar, ser mãe, cuidar de um bebé, e se para isso, tivesse que deixar a carreira, não pensaria duas vezes. – Isabel, ainda é cedo, e não tenho a certeza de que isso seja uma boa ideia. - tentou desculpar-se, sem conseguir ser honesto com a mulher, que o olhara magoada. Depois da morte de Filipe, o seu primeiro “filho”, não teria capacidade emocional para passar por tudo de novo. A cara do irmão a desaparecer na água do rio ainda o assombrava em algumas noites. Não, ser pai nunca.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… - perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa? Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? – perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">.....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>-Odeio-te, deixa-me em paz! – gritou Isabel, fechando a porta do quarto na cara de João. – Deixa-te de histerismos! – berrou-lhe de volta, dando uma palmada na porta. Aquele casamento estava a ir por água abaixo, pensou, farto de tudo aquilo. – Eu só queria um filho, egoísta de merda! – exclamou descontrolada de dentro do quarto. João sabia que um dia ela lhe iria atirar aquilo à cara. Agora era tarde demais, Isabel não poderia engravidar nos próximos anos, teria de tratar o cancro primeiro. Era óbvio que ela temia morrer, sabia-o, e ele não lhe tinha concretizado o sonho antes disso. Engoliu em seco, pegou nas chaves e saiu. Se ela morresse não teria hipótese de se redimir. Mais uma culpa para juntar ao rol.”</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">......</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>Filipe olhou-o amuado, a fazer aquele beicinho adorável, pensou, divertido. Sempre que não lhe faziam as vontades ficava impossível, até conseguir o que pretendia. Não percebia bem o que mais queria o irmão, já tinha cedido e entrado na água com ele, mesmo com frio e pouca vontade de brincar. Mandou-lhe água para a cara em provocação, rindo descontraído, e Filipe desatou a chorar ruidosamente. Tentou alcançá-lo, não gostava de o ver magoado, mas tinha sido só uma brincadeira. O menino agarrou-se com força num abraço, como se nunca mais o quisesse largar. João comoveu-se e deixou-se ficar a sentir a pele quente e fofa de Filipe, dando-lhe colo. “Desculpa mano...”, disse o menino, dando-lhe um beijinho no ombro, mas sem o olhar, envergonhado. “A mãe disse-me que tinha de te vir pedir desculpa... Ela está muito zangada, só me dá mais chocolates se eu te abraçar com muita força!”, explicou, apertando-o ainda mais, o que surpreendeu João. Como podia o irmão ter tanta força... “Agora já passou, e eu quero voltar para o colo da mãe, ela tem chocolates, ok?”, disse, olhando-o e segurando a cabeça de João com as mãos. “Tudo bem, mas tu não sabes nadar...”, respondeu preocupado, olhando em volta e vendo a distância a que ainda estavam da terra. “Não é preciso, ela leva-me, mas tens de me largar.”, explicou, apontando para cima. João olhou e viu a tona da água, como se estivessem os dois submersos de repente. Algas altas e largas ladeavam-nos escurecendo a água, e João agarrou Filipe com força, batendo os pés furiosamente, na tentativa de os salvar aos dois do afogamento eminente. “João!, não ouviste?, a Mãe tem chocolates, deixa-me ir!”, pediu Filipe obrigando-o a olhar nos seus olhos. “Vem para a toalha, já acabou, está frio. Eu quero que vás secar-te, ainda não podes vir connosco, e não há chocolates suficientes para os dois.” João parou bruscamente, e sentiu o irmão soltar-se devagar e subir sem esforço, a rir na sua direção, dizendo-lhe adeus. A sua mão gordinha girava e desapareceu sem que isso o angustiasse. Uma sensação de paz invadiu-o, fazendo-o boiar calmamente até à tona da água, estava livre, pensou, e tossiu violentamente, cuspindo a água que lhe bloqueava a respiração e deixando o oxigénio entrar.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Senhor!!! Está a ouvir-me? - disse aliviado ao vê-lo tossir a água que engolira e respirar de novo. - Que susto... se não chegasse neste momento tinha morrido... - arfou do esforço de o içar da água. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado... - João sorriu agradecido ao rapaz da receção, que o tinha salvo do afogamento, percebeu, olhando em volta, ainda em choque. Levantou o tronco e tentou compreender como tinha caído na piscina, não se recordava de cair ou tropeçar, apenas se recordava de estar a falar ao telefone com a Isabel. - O meu telemóvel?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Acho que ficou na água... - respondeu, olhando o fundo da piscina e vendo o aparelho preto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ajuda-me a levantar? Tenho de voltar para Coimbra, depressa. Tenho de ir ter com ela, é urgente. - A ideia de que Tiago a pudesse ter atacado enquanto ele estivera ausente no internamento e a sofrer de amnésia invadia-lhe a mente. - Não vou voltar ao quarto, e preciso que empate a mulher que veio comigo. - explicou, enquanto tentava organizar os pensamentos. Teria de trocar de roupa, e tinha todos os seus pertences no quarto onde estava a Nélia. Odiava-a de uma forma que não conseguia controlar, e temia fazer um disparate. Como tinha sido ela capaz daquela loucura toda... de o enganar...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tenha calma, acabou de passar por uma experiência traumática!, Pode precisar de ser visto por um médico... - tentou racionalizar o rapaz, confuso com aquele discurso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ouça, não posso explicar, mas preciso mesmo de sair daqui hoje, vá ao meu quarto e arranque a mulher de lá, não sei como..., diga-lhe que há uma simulação de incêndio... sei lá!, tenho de ir buscar as minhas coisas sem que ela me veja. - agarrou na lapela encharcada do casaco do rapaz, olhando-o desesperado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Calma, eu vou lá. Mas primeiro deixe-me trocar de roupa... - olhou-se nervoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Claro, claro, tem razão... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Fazemos assim, vem comigo até ao balneário dos funcionários, eu visto-me e vou lá ao quarto chamá-la... e depois pode ir ao quarto buscar as suas coisas... - o desespero nos olhos do homem convenceram-no de que tinha de o ajudar, mesmo achando tudo aquilo de loucos. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado..., como se chama mesmo? - perguntou João agradecido pela ajuda.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Filipe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">João sorriu e abraçou-o, num ímpeto. Sim, aquele podia ser o seu irmão mais novo, se fosse vivo. Um Filipe corajoso que salvaria um desconhecido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado, Filipe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- César, estou-lhe a dizer... ele telefonou-me e chamou-me pelo meu nome verdadeiro... depois pediu-me desculpa e calou-se! Ficou tudo em silêncio! Aconteceu alguma coisa, eu sei! - bradou Isabel desesperada ao telefone, já a imaginar o pior. - Já liguei centenas de vezes e vai sempre para a caixa de correio. Ele está no Gerês, enviou-me hoje cedo uma foto do hotel onde tínhamos estado os três no verão... - gemeu, deitando uma lágrima que desencadeou um choro compulsivo que tentava segurar há muito tempo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel, tem calma. Não podemos pensar em desgraças. Pode haver uma explicação lógica para isto tudo. Como se chamava o hotel onde estiveram?, recordas-te? Telefonamos para lá e tiramos a limpo se aconteceu alguma coisa. - disse o psiquiatra pragmaticamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, tem razão... - soluçou com força, tentando estacar o choro, e procurando na memória o nome do hotel - ...era qualquer coisa “amigo dos patudinhos”... não sei bem mais o quê...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vou desligar e tentar descobrir onde é esse hotel. Calma... tenta beber um chá e acalmar-te. Já torno a ligar para te dar mais informação. - suspirou alto, largando parte da preocupação que o começava a invadir. Lisa olhava-o de lágrimas nos olhos, visivelmente emocionada com a teoria que todos pensavam mas não verbalizavam. João poderia ter cometido o suicídio, e isso era impossível de aceitar. Pegou no pc e começou à procura no google de hotéis no Gerês onde houvesse alguma indicação de aceitarem animais de companhia ou alguma descrição parecida com o que Isabel tinha dito. Era preciso manter a sanidade mental antes de qualquer atitude drástica ou desespero, disse a si mesmo em auto-controle. A mulher mantinha-se nas suas costas, agarrada a si, em tensão, dando-lhe inconscientemente algum apoio físico. Colocou a mão por cima da dela e Lisa gelava. Pegou nela e deu-lhe um beijo, agradecendo-lhe. Rapidamente encontrou meia dúzia de números de possíveis hotéis que cabiam na descrição e ligaram para todos, acabando por acertar no último, tinha lá estado de facto um cliente chamado João Marques, mas saíra há pouco mais de meia hora. O rapaz que atendeu César parecia desconfiado com as perguntas, e não deu muita informação adicional, mas algo se tinha passado. O importante era que ele estava vivo, e de volta. Recompuseram-se do susto e telefonaram a Isabel, descansando-a. Nada de grave acontecera, teriam de aguardar até que João contactasse um deles, pois o telemóvel não funcionava por algum motivo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Isabel chorou de alívio até o cansaço a derrotar. Coisas horríveis tinham-lhe passado pela cabeça, cenários de tragédias às quais não saberia sobreviver. Um breve momento de terror, que felizmente não tinha passado de imaginação, disse a si mesma, lavando a cara com água fria. Sentia-se miserável, cansada e com sono. De manhã cedo teria de ir dar aulas e já devia algumas horas à cama, precisava de descansar. Deitou-se por cima das cobertas, tapando-se com uma manta, sem forças para desfazer a cama. Parecia-lhe que um trator a tinha atropelado, tudo lhe doía, da cabeça aos pés. Filipe Jr enroscou-se timidamente nela, ainda amedrontado com a cena dramática, cheio de sono e frio, obrigando-a a levantar um dos braços para ele se colocar por baixo à procura do calor. Finalmente a respiração de Isabel permitia ao pequeno cão acalmar-se e render-se ao cansaço, adormecendo quase em simultâneo, cão e dona, como se um feitiço os tivesse tocado. Nenhum dos dois acordou, quando a meio da noite João entrou em casa usando a chave guardada no vaso e se deitou junto deles, adormecendo também instantaneamente, sem pensar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Ouviu o despertador ao longe, com grande dificuldade, e durante alguns minutos não conseguiu levantar-se e desligar o aparelho. Sentia-se ainda derrotada e com sono, precisava de mais umas horas de descanso, pensou, abrindo os olhos pesados e procurando com a mão pelo cachorro, que estranhamente não se encontrava na cama. Levantou-se, vestiu o robe, foi à casa de banho e ficou horrorizada com o seu aspecto. Olheiras fundas e negras faziam um contraste ainda maior aos olhos inchados. Como poderia encarar a aula de yoga e as suas alunas com aquele aspecto?, perguntou-se desanimada. Teria de colocar maquilhagem, o que detestava, para parecer humana. Saiu do quarto, dirigiu-se à cozinha para fazer café, procurando com o olhar pelo cão, que parecia ter desaparecido. Encheu a cafeteira com água e procurou pelo pacote do café no armário, quando um vulto a fez virar-se repentinamente. A cafeteira caiu ao chão com estrondo, quando as mãos ficaram amolecidas com a visão de João com Filipe ao colo, que se debatia a tentar lambê-lo, histérico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não te quis acordar antes, cheguei durante a noite.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Como assim, chegaste durante a noite? - conseguiu dizer, com a garganta seca.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ontem lembrei-me de tudo, Isabel. - largou o cão e tentou puxá-la para si, mas Isabel cruzou os braços, fugindo-lhe. Em vez disso apanhou a cafeteira do chão e deu-lhe algum espaço. Já tinha imaginado que ela fosse reagir mal e não queria magoá-la mais.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- O que aconteceu ontem? Tentei ligar-te centenas de vezes... não imaginas as coisas que me passaram pela cabeça... - o choro rebentou-lhe atrapalhando-lhe as palavras - ... pensei que tinhas morrido... Disseste o meu nome. - João tentou abraçá-la novamente, mas ainda era cedo, não queria que ele lhe tocasse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Desculpa Isabel, é uma longa história, - não queria perturbá-la com o afogamento evitado pelo Filipe, o rapaz da receção - O telemóvel caiu e estragou-se e não tinha forma de te ligar de volta. Por isso vim embora.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- E a Nélia? Veio também? Levaste-a a casa, antes de aqui vires arrombar a minha porta? - bradou a sentir-se colérica, continuando a chorar sem parar. Agarrou num maço de guardanapos e limpou-se furiosamente, evitando novamente as mãos dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não... ela ficou lá. Deixei-a lá... mas não quero falar sobre essa tipa. Isabel, por favor, eu quero saber de ti. O que aconteceu contigo depois da morte do Filipe? - perguntou emocionado ao relembrar momentaneamente o dia em que encontrou o cão pendurado na sala de yoga, como um animal de abate, e que o levou a um esgotamento. - O Tiago? Ele atacou-te? O que aconteceu depois?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu matei-o. - disse friamente, enquanto algumas lágrimas lhe desciam pela cara e pescoço. - Não é preciso ficares preocupado. Está tudo resolvido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Mataste-o? - bradou, agarrando-a à força. Sabia que ela nunca iria correr-lhe para os braços, estava demasiado magoada com ele. - Desculpa, eu devia ter feito isso, devia ter sido eu a acabar com ele... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Fiquei louca quando acordaste na clínica e não me conheceste... - gemeu, agarrando-se finalmente a João, que a apertou com força contra si - , atraí-o para aqui e espetei-lhe uma faca da cozinha no peito...- concluiu, chorando o que restava para chorar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel... vamos sair da cozinha... - conseguiu dizer, depois de alguns minutos de silêncio e lágrimas - Aqui há muitas facas... - sorriu-se com a piada que lhe surgia inesperadamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Parvo... - Isabel soltou uma gargalhada, sem conseguir largar o abraço apertado. Limpou a cara à t-shirt dele, escondendo-se no seu peito, sentia-se com pouca coragem para o olhar. Estava feia, inchada e ranhosa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Anda, vamos sentar-nos aqui na poltrona. - arrastou-a suavemente para o cadeirão fofo e sentou-a ao seu colo. Amava-a tanto que só lhe apetecia gritar de euforia. Finalmente sentia a sua respiração acalmar, mesmo sem a olhar nos olhos sabia que sorria. Beijou-lhe o alto da cabeça, repetidamente, e esperou que Isabel o quisesse enfrentar. Ela foi gradualmente inclinando a cabeça até os olhos dos dois se encontrarem. João beijou-a e todo o seu mundo voltou a girar na rotação certa. Queria amá-la ali mesmo, mas Isabel separou-se do beijo olhando-o duramente por uns segundos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Quando foi a última vez que estiveste com ela? - perguntou-lhe secamente. - Não mintas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel... o que interessa isso? - aquilo não ia dar bom resultado, pensou, engolindo em seco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Responde. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ontem. - disse envergonhado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vou fazer o café, queres torradas? - perguntou sem denunciar qualquer tipo de emoção negativa, o que o confundiu.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim..., pode ser... mas, não estás zangada? - perguntou a medo a sentir-se desorientado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não posso estar zangada, não eras tu. Mas vais ficar de quarentena. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Como? - sorriu-lhe, divertido com a piada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- É isso mesmo... ainda ontem aquela... pessoa esteve contigo. Não esperas que me vá deitar hoje contigo, pois não? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel... Isabel... - olhou-a divertido. - Não me provoques que eu vingo-me.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-47338944499377808472020-09-07T02:14:00.002-07:002020-09-07T02:14:47.606-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 25<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: helvetica;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjiFMOsOJzjGvfuTMzcqdSMMWkNNQQhIr-ZccLLTPCm3_bOIUv0hsURDEYQWp67xSO5iHe4AgThVPt3QysXhF_iTW-WB3phDIN4JFSPsJurLC1TLEqiSTy_fRc2khmsPwyLWB1XQFjuhE/s400/f6b239b-25-07.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="400" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjiFMOsOJzjGvfuTMzcqdSMMWkNNQQhIr-ZccLLTPCm3_bOIUv0hsURDEYQWp67xSO5iHe4AgThVPt3QysXhF_iTW-WB3phDIN4JFSPsJurLC1TLEqiSTy_fRc2khmsPwyLWB1XQFjuhE/s320/f6b239b-25-07.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Quando lhe disseram que a sobrinha estava a viver com um médico em Coimbra nunca lhe passou pela cabeça que Nélia pudesse traí-la daquela forma. Rosário tinha as mãos e as pernas a tremer, e tentava equilibrar-se atrás da carrinha estacionada do outro lado da rua do prédio do Dr João. Esperava que um dos dois aparecesse na rua, ou na varanda, só para confirmar as informações que lhe tinha dado uma antiga amiga que conhecera enquanto trabalhara exclusivamente para o “Dr”, também ela empregada de longos anos de uma família do primeiro andar. Partilhavam histórias que animavam os seus dias, sempre que não se gostava de alguém do prédio ou de uma pessoa que frequentava a casa onde trabalhavam. Fátima telefonava-lhe desde que Rosário fora dispensada do seu trabalho, e semanalmente lá conversavam sobre o que se passava no prédio, como se ainda se encontrassem a meio do dia nas escadas comuns, enquanto gozavam da pausa de almoço e da ausência dos patrões. Uma amiga que estimava, e por isso, tinha em grande conta, nunca duvidaria da sua palavra. Falava-lhe numa Isabel de nariz empinado, mas Rosário só tinha conhecido a Isabel simpática e sorridente, que tinha feito um milagre e entrado naquela casa. Tinha poucas, mas boas memórias dela, mesmo ligeiramente magoada por ter sido demitida, porque sabia que a culpa da desgraça que assolara aquela casa tinha sido sua. Quando abriu a porta ao homem bem falante e ele lhe disse que ia levar o cão dali para fora, Rosário nem pensara duas vezes, ficara tão aliviada por se ver livre do bicho que nem refletira ou confirmara com o “Dr”. Ainda sentia uma leve azia todas as vezes que recordava a voz aflita do patrão ao telefone a perguntar-lhe pelo cão. Tinha muitos remorsos do que fizera, mas se aquilo que ali tinha ido confirmar fosse verdade, a sobrinha ia aprender uma lição, e não havia “Dr” nenhum que a fosse segurar. Encostou-se à carrinha, para descansar a coluna da posição em que estava há algumas horas a espreitar, mas nem precisou de se esconder, o carro do seu antigo patrão aparecia ao virar da esquina, e Rosário conseguiu vê-los aos dois, que nem a olharam, enquanto a viatura passava por ela devagar em direção à porta da garagem. Nélia estava sentada no lugar do “morto”, toda sorridente e bonita. Sempre fora uma estampa, concluiu tristemente, como se sempre tivesse previsto que a beleza da sobrinha fosse a sua maior maldição. Nunca se esforçara em nada, na escola, em casa, na vida, pensava que bastava vestir-se bem e arranjar-se e tudo surgia caído do céu. Ali estava a prova, de como uma rapariga tonta podia viver enganada, e como Rosário falhara com ela e com a irmã. Nélia podia estar iludida com a vida, mas não ia enganar o Dr João, pensou decidida. Contornou a carrinha e dirigiu-se à porta do prédio, tocando para a casa onde Fátima trabalhava, ganhando assim tempo para chegar primeiro ao apartamento e surpreender a sobrinha, já que o Dr João nem sequer se lembraria dela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olá César... - cumprimentou Isabel, sem grande entusiasmo ao ver chegar o psiquiatra. Nunca mais acabava aquela novela na sua vida, remoeu, guardando no jipe as caixas de frutas e legumes metodicamente ordenados com um sentido estético que a deixava enternecida. - Vou vender isto ao Botânico, há lá uma feira de produtos biológicos... - explicou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Curioso... - sorriu na direção das caixas - Ele é mesmo artista, não é? E mais curioso, sabes que ele deu-se a este trabalho todo para ir a essa mesma feira?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Onde queres chegar com essas “curiosidades”? - lançou a sentir-se enfurecer com aquelas insinuações. - Eu sei perfeitamente quais são as qualidade dele! Mas caso seja necessário lembrar-te, ele vive com a “Isabel”! Está mais feliz que nunca, segundo o Comandante Santos, aquele baboso com quem tive de falar. Ele estava particularmente enfeitiçado pela “mulheraça” do João! - bateu a porta da mala do jipe com força.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isabel, não fiques zangada, por favor. O Santos é um tolo, - explicou paternalmente - e o João ficou cheio de medo de se encontrar preso, está momentaneamente esperançoso com a segunda oportunidade que a vida lhe deu. - ironizou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então que faça bom proveito. - rematou - Eu estou momentaneamente em Coimbra, e só aqui vou ficar hoje porque tenho pena de deitar tudo isto para o caixote do lixo, que era o que devia fazer, se tivesse juízo. - encarou-o, continuando os seus lamentos catárticos - Mas sou uma parva, cada vez mais me convenço disso. Devia estar furiosa porque o João me sujou a casa toda e desarrumou mais que trinta miúdos deixados à solta num quarto de brinquedos. Tenho tudo de pantanas, a cama revoltada, é preciso lavar os lençóis, tirar a presença dele ali de dentro, aspirar, limpar o pó, e em vez de ir formalizar a queixa na PSP para ele aprender, só quero enfiar-me ali dentro e chorar agarrada à almofada! - berrou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- É por isso que te vou pedir um último favor. - agarrou-lhe nas mãos frias - Não vás já embora para Castelo Branco. Ele vai voltar, garanto-te. Eu conheço-o, não vai aguentar a rapariga muito tempo. Até acho que é agora, quando ele baixar a guarda com ela que tudo vai terminar. - sentia-se ligeiramente carrasco a dizer aquilo, mas era o que sentia verdadeiramente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então devo aqui ficar à espera que ele ande às cambalhotas com ela e se recorde de mim? - gemeu incrédula.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não... - mentiu - Aguarda só uns dias. Ele fugiu para aqui porque só se sentia bem neste local, sem saber porquê. A vida no seu apartamento era-lhe insuportável. Inconscientemente ele recorda-se do que passou aqui contigo, entendes? Quando descobri que era aqui que ele fazia a jardinagem secreta de que nos falou a mim e à Lisa fiquei felicíssimo. - explicou carinhosamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- César... eu sei que gostas dele como um filho, e por um filho fazemos coisas impensáveis. O que me estás a pedir é mais que isso, é cruel e impossível. Não vou sacrificar a minha felicidade por ele, por muito que me custe, desta vez vou pensar primeiro em mim. - entrou dentro do jipe e despediu-se com vontade de lhe passar com o carro por cima dos pés. Os homens conseguiam ser brutais, mesmo sem lhe bater.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tia? - Nélia engoliu em seco ao ver Rosário plantada à porta de casa de João, com ar de quem ali tinha ido tirar satisfações. Finalmente tinha descoberto onde vivia, lamentou-se a sentir-se entrar em pânico. João ficara na garagem à procura das malas de viagem e teria de a conseguir despachar antes de ele subir, ou lá se ia a sua viagem ao Gerês, e a promessa de uns dias de paixão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Nélia...., eu não queria acreditar quando a Fátima me começou a descrever a mulher que vivia com o Dr João... tinha de vir ver com os meus próprios olhos!! - começou, agarrando-a pelo braço, mas com vontade de lhe bater ali mesmo - O que é que tu fazes aqui?! E desde quando é que te chamas Isabel? Ham?! - elevou a voz enervada, sacudindo-a com força.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tia... por favor, eu posso explicar tudo. - olhava nervosa a porta do elevador - Mas vamos até às escadas do prédio, aqui podem-nos ouvir. - suplicou, já com as lágrimas a romper.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Anda lá! - resignou-se Rosário, também pouco confortável com a discussão ali no hall dos apartamentos. Seguiu a sobrinha e notou como a rapariga estava sofisticada, chique, certamente vivia sustentada pelo Dr, nem trabalho devia ter, não saberia fazer nada que pagasse aquelas roupas. Entraram no sector das escadas e Nélia fechou a porta depois de espreitar e se certificar de que João ainda não tinha chegado a casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Por favor, não estrague a minha vida!, o João acha que sou a Isabel, sim, e eu menti. - admitiu - Não lhe disse o meu nome verdadeiro porque sempre fui apaixonada por ele, essa é a verdade. - agarrou as mãos da tia carinhosamente - Desde o tempo em que a tia me contava histórias do seu patrão, sempre o quis conhecer, e foi o que aconteceu num bar aqui em Coimbra, há uns meses atrás. - explicou, com as lágrimas já a correr - Já nos deitávamos antes de ele conhecer a tal Isabel! - desviou o olhar da cara chocada com que a tia recebia as informações íntimas - Sim, eu vinha cá a casa de noite, mas saía antes de amanhecer, porque não me queria encontrar consigo, sabia que não ia entender esta relação. Mas juro-lhe que sempre gostámos um do outro, ele pedia-me para ficar, - mentiu, sem remorsos, teria de justificar a sua presença ali - eu é que nunca quis. Mas eu amo-o muito, nunca fiz nada com más intenções.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Rosário estendeu-lhe um lenço, sem saber o que dizer. Tinha ali ido para a desancar, e agora que ouvia uma explicação sincera ficava desarmada. - E ele também gosta de ti? - questionou-a meio incrédula, como se isso fosse impossível.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Claro, hoje vamos sair, vamos passar uns dias ao Gerês. - confidenciou fungando. - Ele ainda está muito baralhado, coitadinho. O médico mandou-o espairecer. - sorriu, satisfeita com a reação da tia, que parecia mais calma e resignada. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bem, Nélia, Deus me livre de estragar a tua vida, e se realmente gostam um do outro... - entrelaçou os dedos uns nos outros, envergonhada. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigada tia, não se preocupe comigo. - devolveu-lhe o lenço sujo - Só preciso que me faça um favor, - bateu as pestanas húmidas com as lágrimas - saia por aqui, não deixe que a vejam. O João não se lembra de si, mas não quero perturbá-lo, vou fingir que nada se passou. - concluiu com alguma frieza na voz. Sentia Rosário novamente submissa e era imperativo despachá-la sem que ninguém a visse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, claro, querida. - o olhar da sobrinha mandava-a descer imediatamente as escadas - Façam boa viagem, e telefona-me de vez em quando, a dar notícias do Dr... - pediu, já a descer obedientemente. Talvez houvesse alguma esperança para a rapariga, pensou respirando fundo. Não conseguia perceber como um Dr daqueles tão distinto podia engraçar-se pela sobrinha, mas se estavam felizes, era o principal. - Adeus!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Nélia respirou de alivio, quase que o seu dia acabava mal, mesmo antes de começar. Pensou rapidamente no que poderia dizer a João, se ele percebesse que tinha estado a chorar, ou andasse à sua procura. Um leve tremor nas mãos não a deixava pensar claramente, passou as mãos pelo cabelo, respirou fundo algumas vezes e saiu do vão das escadas, apressando-se a entrar no apartamento. Constatou que ainda estava escuro e sem sinais de João, e relaxou, tratando de se ir recompor na casa de banho. Ele deveria estar a chegar, e queria muito que a beijasse novamente como de manhã cedo quando o foi ver à esquadra. Passou uma base leve na zona dos olhos, eliminando qualquer vestígio de vermelhidão e passou um gloss nos lábios, ganhando instantaneamente coragem para o seduzir. Ajeitou o peito generoso na blusa e saiu para a zona comum da casa, onde já ouvia barulhos. Quando entrou na sala sentiu as mãos frouxas e um formigueiro na barriga, João olhava-a como nunca tinha sido olhada, estacou confusa, dominada pela intensidade com que ele a observava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- O que foi?... - perguntou ansiosa, com a respiração acelerada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Temos perdido tanto tempo, querida... - disse, caminhando na direção dela, e largando tudo o que trazia nas mãos. Sempre ali estivera aquela mulher e só agora a via. Isabel deu alguns passos atrás, o que o excitou, gostava particularmente de a ver desarmada, sem aquela arrogância que a caracterizava. Assim que a alcançou tirou a t-shirt e encostou-a a si, se Isabel continuasse assim, com o olhar perdido, talvez a conseguisse amar. Beijou-a devagar, em adoração, queria muito amá-la, sentia saudades daquilo, de fazer amor. Lembrava-se todos os dias do beijo que tinha dado a Marta, de como fora doce e forte, e queria conseguir fazê-lo com Isabel. Precisava disso. Conduziu-a ao quarto, cada vez mais convencido de que ia esquecer a pele quente e macia que sentira debaixo do roupão de Marta, a suavidade da sua boca e o cheiro a flores. O perfume de Isabel sobrepunha-se às suas memórias, e toda a voluptuosidade da namorada lhe quebrava a ideia da forma do corpo de Marta, trazendo-o forçosamente para aquele quarto cinzento. Olhou-a uns segundos, parando para assimilar tudo aquilo, mas Isabel era impetuosa, e parecia precisar ainda mais dele, o que o reconduziu ao momento. Despiram o que restava das roupas, e João decidiu não abrir mais os olhos, permitindo-se senti-la sem imagens, limitando assim um dos sentidos e concentrando-se no sexo. Sabia que não seria difícil terminar o que ele mesmo começara, e esforçou-se por corresponder, para não ser demasiado rápido e satisfazê-la convenientemente. Perguntava-se porque continuava a teorizar aquele momento, e racionalizar o que não era racional, abriu ligeiramente os olhos mas fechou-os logo de seguida, ligeiramente incomodado com a cara de prazer de Isabel. Aquilo não o excitava como devia, lamentou-se, mudando de posição pois estava quase lá e ainda era cedo. Tinha-a levado para o quarto, não a podia desiludir, pensou, retomando o ritmo. Isabel estremeceu debaixo de si e João suspirou de alívio, terminando também a sua prestação. Deixou-se ficar alguns segundos a prolongar a união dos dois, permitindo que ela se acalmasse e aproveitando o momento em que não tinha de fingir nada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- João, abraça-me com força... - pediu, enternecida com tudo o que tinha acontecido. Fora sem dúvida um ato de amor, como nunca experimentara antes. - Estás bem? - perguntou-lhe, preocupada com o silêncio dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, querida. - beijou-a na testa, da forma mais carinhosa que conseguiu, a sentir-se um traste. - Queres almoçar aqui em casa, ou comemos pelo caminho? - lançou, a tentar despachar a conversa melosa que antevia. - Ainda vai demorar um bocadito até chegarmos ao Gerês... posso preparar-te qualquer coisa...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu faço! - respondeu decidida e animada. - Mas antes vamos tomar banho? - sorriu-lhe provocadoramente. Agora que experimentara aquele tipo de sexo com sentimentos queria mais, muito mais. E ele também parecia querer, percebeu pela reação física instantânea que aquela pergunta lhe causara.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, claro. Vai andando que vou procurar toalhas para nós. - balbuciou com a garganta a secar. Não sabia bem porquê, mas o seu corpo parecia não corresponder à cabeça, racionalmente fugiria daquela proposta, mas a falta de intimidade dos últimos tempos pareciam dominar o seu sexo. Limpou a palma das mãos às coxas, enquanto Isabel desaparecia em direção à casa de banho, engoliu em seco e procurou as toalhas, enquanto respirava profunda e compassadamente. “Om... Shanti...” disse a si mesmo, surpreendendo-se com aquelas palavras. Mas pareciam funcionar, “Om...Shanti...Om...”, repetiu, já a caminho do duche. Entrou e a visão daquela mulher toda só o fez ficar mais ansioso. Isabel agarrou-se-lhe ao pescoço e calou as vozes estranhas, reclamando-o de forma demasiado intensa. Fez-lhe a vontade, esforçando-se por ser convincente e despachou o sexo. Queria mesmo comer qualquer coisa e conduzir durante umas horas. Certamente que Isabel não o iria perturbar pelo caminho, com um bocado de sorte adormecia e ele podia ouvir música e pensar. A ideia de ir ao Gerês passar uns dias surgira-lhe do nada, mas a cada minuto que passava tornava-se mais penosa. Já não tinha bem a certeza de que queria ficar longe de Coimbra com uma namorada apaixonada, e sem conseguir sentir nada por ela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olá João! Então?, ainda és vivo? - perguntou Salvador animado com o telefonema surpresa do amigo. - Por onde andas?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tudo bem, Salvador?, olha, estou a arrumar as malas no carro para ir ao Gerês passar uns dias...- explicou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ah, fazes bem, mudar de ares. Se pudesse ia contigo, estou farto desta merda toda! - ralhou, dramatizando com as folhas em cima da secretária onde fazia a contabilidade do bar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Pois... desta vez não vai dar... vou em passeio “romântico”, fica para a próxima, mas estou a ligar-te por outro motivo. - adiantou engolindo em seco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então? Diz lá!, Desculpa, só um aparte, ainda namoras aquela bomba loira? - perguntou curioso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, ainda, e o nome dela é Isabel. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- São todas, não é? - gozou - Mas diz lá, porque é que me estás a ligar?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bem, eu sei que andaste comigo na faculdade, a tirar psiquiatria. E estou a precisar de um conselho, porque não me recordo de nada. - começou por explicar meio encavacado com o assunto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu não estou autorizado a dar consultas, desisti do curso, mas se for só um conselho, sou homem para te resolver já a questão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não é conselho desses, é que... bem, tenho-me sentido mais alterado, já tomo medicação diária, mas acho que preciso de mais. Isto não está a funcionar. Pensei que pudesses dizer-me até quantos comprimidos de ansiolítico posso tomar por dia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Há uns muito bons, chamados sexo!, comigo funcionam, já experimentaste esses? - disse brincalhão, e desejoso de saber se a bomba realmente era assim tão explosiva como visualmente parecia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, já tomei dois desses hoje e não funcionou. - rosnou, a perder a paciência com as parvoíces do amigo. - Anda lá, posso tomar mais ou não?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bem, com duas doses de orgastriticum e ainda estás nervoso... não sei... - gozou, ficando no entanto surpreendido com aquilo. - Olha, manda-me por sms o nome do que tomas, e eu vou ver. Depois ligo-te a dizer, assim de cor tenho medo de estar a inventar e depois morres e eu fico a sentir-me uma merda. Mas, dizias tu, vais de lua-de-mel para o Gerês? Muito bem... vê lá se não tens uma overdose de mulher e te ficas lá numa cama de hotel com um sorriso de orelha a orelha. - provocou-o, sentindo uma ponta de inveja da sorte do amigo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Duvido... - disse secamente, nada disposto a pensar na cama de hotel. - Vou mandar-te então o sms, e despacha-te a responder, estou mesmo mal. Obrigado Salvador, agora tenho de desligar, a Isabel está a chegar ao carro. Tchau. - desligou o telefonema e colocou o melhor sorriso quando lhe abriu a porta cerimoniosamente. Sabia que ela gostava daqueles salamaleques, já tinha percebido, e estava decidido a apaixonar-se por ela, e para isso era importante mantê-la de bom humor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vamos? - perguntou-lhe enquanto colocava o cinto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, vamos. - Isabel esticou-se e exigiu-lhe silenciosamente um beijo apaixonado carregado de luxúria.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">João recompôs-se do beijo e desejou que Salvador se despachasse a enviar a resposta. “Om Shanti...Om....”, mentalizou, e limpou a palma das mãos às calças.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tu, o quê? - surpreendeu-se Elisabete ao ouvir as confissões do marido enquanto almoçavam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Lisa, não sei o que me deu...- balbuciou nervoso com o semblante zangado da mulher - Mas ela ainda gosta tanto dele, dá para perceber... se aguentasse por aqui mais uns diazitos... ele de certeza que vai “acordar” para a vida entretanto! - tratou de argumentar, tentando redimir-se - Sabes perfeitamente que ele vai procurá-la quando isso acontecer. Só queria garantir que ela não desaparecia sem deixar rasto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Francamente César! Isso nem parecem coisas tuas. Manipular situações e forçar acontecimentos... Sabes tão bem quanto eu que ele namora com aquela tipa, e não devem andar só de mãos dadas! E queres que a Isabel fique tipo freira no convento, à espera que o milagre se dê?, enquanto o João vive com outra? - berrou - Eu nem te reconheço... Sinceramente, nem sei como tiveste coragem de lhe dizer uma coisa dessas... - acrescentou já com um tom de desilusão que sabia que perturbaria o marido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Agora já está... - redimiu-se, constrangido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Pois está, está! - levantou-se e pegou no telemóvel, procurando o número de Isabel, e estendendo o aparelho ao marido, que ficou de olhos arregalados atónito de surpresa. - Vamos! Pede-lhe desculpa e diz-lhe o que sabes ser o mais acertado. César, a Isabel é uma mulher boa, não merece nada disto, diz-lhe isso. Diz-lhe para seguir com a vida dela, ela precisa disso. Não deixes que o amor que tens pelo João te ponha cego. - esticou mais a mão e o marido pegou no aparelho relutantemente, carregando no botão de chamada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Estou?, Isabel?, Olá, é o César... Sim, este telefone é o da Lisa... - levantou-se da cadeira, a sentir-se corar, desajeitado e comprometido. - Bem, estou a ligar-te para... lamentar o que te disse hoje cedo... sabes, falei sem pensar... e fiquei incomodado com isso, não ficava bem comigo próprio se não te dissesse que... sim, eu gosto muito do João, é um facto... mas também gosto muito de ti... e bem, deves seguir com a tua vida, mereces ser feliz... é claro que não deves ficar com esperanças de que o João volte a correr... e se recorde de tudo, pois claro. - atrapalhava-se cada vez mais, a sentir-se observado pela mulher.- E pronto, basicamente era isto que te queria dizer... espero que sejas muito feliz... e pronto... Serão entregues... claro, beijinhos também da Lisa para ti... e felicidades... adeus, adeus... até um dia.- desligou o telefonema encarando a mulher que sorria com malícia. - Então? Que mudança brusca é essa? Porque sorris assim?.... Lisa? O que foi? - sentia-se confuso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ai, que anjinho que tu és... homem de Deus... - soltou uma gargalhada sonora, satisfeita com o sucesso que tinha sido aquele telefonema. - Desculpa César, mas eu não sei como podes ser um psiquiatra tão aclamado... às vezes és um bocadinho lento, não? - deu-lhe um beijo na bochecha - Queres café?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Lisa, tu fizeste de propósito, não foi? Não ficaste nada zangada comigo, querias é que eu manipulasse a Isabel mas de outra forma, do modo reactivo... - foi pensando em voz alta, incrédulo com a mulher - Porque agora ela vai querer ficar... porque eu lhe sugeri que fosse ser feliz! - concluiu espantado - Lisa, tu és um génio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Isabel parecia não querer ceder à monotonia da viagem, colocando o rádio na MegaFM, estação que João descobriu odiar, e cantando a plenos pulmões músicas agressivas, com batidas excessivas e letras de pouco conteúdo. Um pouco à sua própria imagem, concluiu resignado, enquanto se tentava abstrair de toda aquela energia cansativa. Estaria a ficar velho demais para aquela animação toda?, perguntou-se, quando o aviso de posto de gasolina próximo lhe trouxe uma alegria súbita. - Vamos parar agora a seguir, ok? Preciso de ir à casa de banho e beber uma água. - informou, sorrindo-lhe a contragosto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Fixe! Estou mesmo a precisar de um café! - exclamou animada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">João nem queria imaginar o que seria Isabel com mais cafeína..., suspirou, enquanto entrava na zona da restauração e procurava um lugar de estacionamento. Parou o carro e Isabel saiu disparada, deixando-o ligeiramente para trás, o que se mostrou útil, pois o seu telemóvel apitou em sinal de nova mensagem e João aproveitou a solidão para ver com calma o que diria Salvador sobre a dosagem dos comprimidos. Para seu espanto não era o amigo que o contactava, mas “Ganesha”, o que lhe provocou um estremecimento involuntário das pernas. Olhou nervoso em volta, para se certificar de que Isabel não estava por perto e limpou as palmas das mãos nas calças, sentindo um sorriso a florescer no rosto, pela primeira vez no dia. Abriu a mensagem e ficou alguns segundos a assimilar tudo o que sentia. Nunca uma foto de caixas de courgetes, tomates e alfaces lhe parecera tão entusiasmante. Ela tinha ido substituí-lo na feira, voluntariamente, e sem sequer terem combinado nada. O que significaria aquilo? Era ela, a Isabel Fontes Pereira e Castro, a Ganesha. Um barulho no vidro sobressaltou-o, e Isabel olhava-o amuada, aborrecida por estar à espera.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então? Vens ou não vens? - perguntou impacientemente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, sim... - saiu do carro, colocou o telefone no bolso e caminhou obedientemente atrás dela, cheia de atitude.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Pede um café para mim, vou à casa de banho! - mandou, dando-lhe um beijo em remissão pela rispidez e deixando-o só.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Um café, uma água... e pode ser uma queijada daquelas, mas a mais queimada que tiver, por favor. - despachou a compra e tornou a olhar a foto que Ganesha lhe tinha enviado. Nesse momento recebeu outra, e abriu-a rapidamente, tornando a olhar em volta para se certificar de que Isabel ainda não estava por perto. Desta vez as caixas estavam vazias, e um boneco de smile simbolizava o sucesso das vendas, traduziu. Ficou estupidamente feliz, orgulhoso da jardinagem que andara a fazer e que produzira aquilo tudo. Aquele contacto dela só podia significar uma reviravolta na situação entre os dois. Não sabia bem o que deveria dizer em resposta, e num ímpeto, fotografou a queijada e escreveu “a celebrar” como legenda, adicionando um smile. Carregou no enviar e escondeu o telefone imediatamente, ao ver Isabel a aparecer ao longe. Comeu a queijada que lhe pareceu uma delícia, como nunca tinha provado na vida. A sua disposição melhorou significativamente, mas não durou muito tempo, depois de Isabel lhe dar a mão e o olhar apaixonada, cravando-lhe uma culpa funda que o acompanhou durante o resto da viagem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Um hotel despertou-lhe a atenção, e decidiu ir saber informações sobre condições e vagas, estacionando o carro e deixando Isabel a retocar a maquilhagem que parecia nunca ser suficiente. Entrou na receção e um funcionário animado cumprimentou-o com algum à vontade, como se já se conhecessem antes.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bom dia! Em que posso ajudar? - perguntou o rapaz alegre.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olá bom dia, tem vagas? Queria ficar uns dias aqui pelo Gerês, precisava de um quarto com cama de casal. - explicou, sem perceber o sorriso demasiado franco do outro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ah, sim, claro. Penso que temos um excelente quarto ainda disponível, deixe-me só confirmar. - disse, concentrando-se no computador. - Sim, temos, também vai precisar da cama extra para o “Filipe”? - perguntou, satisfeito consigo mesmo e a sua memória prodigiosa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não... - balbuciou - Desculpe, eu já aqui estive antes? - perguntou confuso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, não se recorda? Veio com uma senhora bonita e um cão. O Filipe. - explicou, a sentir-se baralhado. Teria feito confusão e estaria a cometer uma indiscrição?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ok, não interessa. - concluiu, tentando concentrar-se no que ali tinha ido fazer. - Vou ao carro buscar as malas, reserve então esse quarto. - Tirou da carteira o cartão de cidadão e estendeu-lho para formalizar a reserva. Isabel entrou nesse momento na receção e agarrou-se à cintura de João possessivamente, olhando depois em volta e dirigindo-se ao WC sem sequer dar os bons dias. - Não era esta a senhora bonita da outra vez, pois não? - perguntou ao rapaz corado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- E como era a outra senhora bonita?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Morena, mais pequena, não tão... - pigarreou desconfortável - Bem, mais magra, mais sorridente, assim um tanto, vá, digamos, excêntrica.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Excêntrica? - perguntou divertido com a descrição de Ganesha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, sabe, roupas largas, tipo hippie, mas não da forma maltrapilha, se é que me entende.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Claro, compreendo. Completamente diferente desta senhora que veio hoje comigo. - acrescentou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, completamente diferente... - confirmou, corando violentamente assim que Isabel reapareceu na receção.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então? Ficamos aqui? - perguntou, tornando a enlaçá-lo e deixando-o embaraçado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim querida, estamos só a terminar o pagamento, podes ir até ao bar, se quiseres, tomar qualquer coisa. Eu trato de tudo. - disse-lhe, fingindo-se descontraído com aquelas demonstrações de afecto..</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- É só assinar aqui, senhor. - pediu profissionalmente o rapaz. - Precisa de ajuda com as malas?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, obrigado. E diga-me uma coisa, esse tal cão, como era? Pequenino? - continuou o questionário assim que Isabel se retirou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não! Era enorme! Mas muito bem comportado. Coitadinho, depois daquele acidente lá nas piscinas naturais só queria comer e dormir. E recuperou bem? A pata ficou boa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não me recordo. Fiquei amnésico há uns tempos atrás. - confessou, sem complexos. - E por falar nisso, confirme-me só o nome da minha companhia nessa altura. Deve ter aí registado, não?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, claro. - disse prestativo - Mas não se recorda de nada? Extraordinário... nunca tinha ouvido falar de uma coisa assim... - percorria os registos do verão enquanto falava - Aqui está!, Dr João Marques e Marta, mais extra de cama de cão “Filipe”, obrigou-me a menina Marta a acrescentar. Ela não queria que o tratassem por cão. - sorriu divertido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vou então ao carro, obrigado pela ajuda. - caminhou pensativo, meio perdido nos seus quebra-cabeças, cabisbaixo, de volta ao carro. Seria assim tão complicado perceber o que tinha acontecido a Marta? Se ali tinha estado no verão com ela, e com o cão, onde encaixava Isabel naquilo tudo? Fechou a mala e olhou o hotel que parecia mais familiar, agora que descobrira que não era a primeira vez que o visitava. Parecia que o seu subconsciente o levava pela mão e direcionava a locais e pessoas que já tinham feito parte da sua vida. Tirou uma foto à fachada do hotel e enviou-lhe sem legenda. Não sabia o que haveria de dizer, ficaria à espera do seu contacto para ir percebendo o que ela queria. Desejava que o quisesse, como Isabel, por quem não conseguia sentir nada. Uma azia subiu-lhe à garganta quando o verbalizou a si mesmo em confirmação. Todo o seu corpo lhe dava alertas sobre o que era certo e errado, e enganar Isabel não iria ser certamente fácil.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-4100686289625204442020-09-04T01:56:00.000-07:002020-09-04T01:56:01.728-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 24<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: helvetica;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaz1FRNx9s8Tg_Jf4jW-Ki5hgQ-JWScHY9HoOLoGDWpC5c5Fi390tmfU5vOZMX7G0gKS_pk-9aYlyHn_9VTW3wD-LCv9XTmuioKP27gjtJJzA04Q9ohmdyPBOle5fSR9yhdD5AjPosaKY/s660/Engenheiro-Agr%25C3%25B4nomo-foto-Marcelo-Andrade.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="440" data-original-width="660" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaz1FRNx9s8Tg_Jf4jW-Ki5hgQ-JWScHY9HoOLoGDWpC5c5Fi390tmfU5vOZMX7G0gKS_pk-9aYlyHn_9VTW3wD-LCv9XTmuioKP27gjtJJzA04Q9ohmdyPBOle5fSR9yhdD5AjPosaKY/s320/Engenheiro-Agr%25C3%25B4nomo-foto-Marcelo-Andrade.jpg" width="320" /></a></span></div><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i><br /></i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><i>- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> Acordou sobressaltado, com a sensação de culpa, como se tivesse cometido um erro. Que raio de sonho... aquele miúdo aparecia-lhe outra vez, mas agora era seu irmão, vira-o quase perfeitamente, e uma família à beira rio a fazer um piquenique, todos alegres, mas demasiado longe para que os conseguisse analisar. Levantou-se e foi tomar banho, pensando naquele pormenor do avô engenheiro agrónomo, seria aquilo uma recordação ou só imaginação? O que teria acontecido à sua família?, ainda era novo, deveria ter pelo menos os pais vivos, ou tios, primos... Aquelas dúvidas assombravam-no, naturalmente, desde que recuperara a consciência e começara a pensar mais claramente. À medida que os remédios do internamento iam sendo mais espaçados e menos fortes tudo aquilo o perseguia. E mesmo passado bastante tempo desde que tivera alta, ainda não sabia nada sobre si, nem havia resposta em sua casa, álbuns, cartas, postais, nada. Aquele sítio parecia asséptico e alienígena, e isso consumia-o cada vez mais. Precisava de calor, de cores, de um pouco do que o fazia sentir a casa da Ganesha. Acabou o banho e decidiu vestir a roupa mais prática que encontrasse. Ia voltar à jardinagem voluntária, não queria ali ficar nem mais um minuto. Levaria as coisas para fazer o café, pão, fiambre, e algo para almoçar. Tinha visto lá no quintal umas beringelas a passar do ponto, serviriam para assar, só precisava de levar queijo mozzarela e uns orégãos. Tomates maduros também lá havia, e tinha mesmo de os comer, o frio começava a dar cabo de tudo. Depois de muito procurar pelos armários da casa, encontrou um chapéu estranhamente parecido com o do sonho, senão idêntico, com aspecto de ser uma recordação, com bastantes anos e marcas de uso. Colocou-o na cabeça e sentiu-se animado com aquele dia. Reuniu tudo o que precisava para se manter durante o dia na quinta e só por prevenção, e porque poderia ficar muito cansado e dar-lhe o sono, colocou a medicação da noite no saco. Voltou atrás e meteu roupa interior e algumas t-shirts também, e se se sujasse? Teria de ter roupa para depois trocar... Mas se ia lá tomar banho teria de levar o seu gel de banho, e escova de dentes... podia ser necessário... Estava quase a sair de casa quando se lembrou de que tinha deixado a "ganesha" no seu antigo quarto, onde agora dormia a namorada sozinha. Entrou pé ante pé, pegou na estatueta e saiu, satisfeito por se ter lembrado daquele objecto. Seria suficiente aquele café?, perguntou-se, imaginando que tinha ali uns bons dias longos de trabalho e precisaria de se manter bem ativo. Pegou em mais dois pacotes ainda fechados, guardou-os e saiu, fechando a porta devagar, suspirando de alívio. Como é que alguma vez podia ter sido feliz ali? Era impossível... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia! - acenou ao sorridente vizinho que todos os dias passava pelo portão da quinta no que parecia a João ser uma mistura de curiosidade, desconfiança e passeio higiénico. Trazia consigo um cão grande à trela, talvez para não se sentir tão desprotegido, já tinha uma certa idade, e todos os dias se demorava um pouco mais na passada, atrasando-se propositadamente, a ganhar coragem de esticar a conversa com aquele jardineiro empenhado. João sabia que aquilo era de loucos, estar a tratar de um jardim de uma casa abandonada, viver lá dentro como se tudo lhe pertencesse, mas a sua vida não era normal em nenhum sentido, aquele era só mais um pormenor excêntrico. E fazia-lhe bem, não queria voltar para o apartamento, lá aborrecia-se. Ainda não tinha aparecido a polícia, por isso, mantinha-se descansado e internamente absolvido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Essas courgetes têm crescido que é uma maravilha! - comentou o velho, sorrindo-lhe e estacando do outro lado da grade à espera de conversa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois têm! Crescem com uma rapidez, se as regar bem, então... não quer levar umas? Já não sei o que fazer a tanta courgete... - sorriu, esfregando a testa com as costas da mão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Também lá tenho, obrigado. Sabe o que podia fazer? Todos os sábados há um mercado livre de agricultura biológica no Jardim Botânico. Porque não vai lá despachar isto tudo? Não deve ser só courgetes que este terreno dá a mais... - sugeriu.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso é uma excelente ideia! - exclamou, poisando as mãos no cabo da enxada e sentindo-se animado com aquela sugestão. Detestava a ideia de deitar fora toda aquela abundância. - Talvez vá lá amanhã, há aqui tanta coisa que se vai estragar daqui a uns dias... - pensou em voz alta, olhando em redor. - Obrigada pela sugestão.... Sr...?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Joaquim. - esticou a mão por dentro da grade a formalizar aquela apresentação e à espera de um nome de volta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, prazer. - respondeu, satisfazendo a curiosidade do "seu" vizinho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, então bom trabalho! - acenou em despedida – Vamos, Fiel! - continuou a sua caminhada matinal, ligeiramente aliviado por não sentir má impressão do rapaz. Talvez fosse um empregado da menina Isabel, embora achasse difícil que um jardineiro viesse trabalhar de BMW, e não um qualquer, um carrão demasiado vistoso, coisa para custar o valor de uma casa... E mais que as posses do rapaz, o que realmente o intrigava era o facto de que muitas vezes se apercebera de que ele pernoitava ali. Conhecia a casa, só tinha um quarto, dormiria ele no quarto da patroa? Era um mistério cada vez mais complicado. O melhor seria tirar as suas dúvidas diretamente com os Fonte Pereira e Melo, não queria ser cúmplice de nada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabelinha, o seu pai pediu para avisar de que quer falar consigo, no escritório. - murmurou gravemente Adelaide, como se o local da conversa fosse o presságio de algo muito sério. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada Dazinha. Sabe do que se trata? - perguntou, terminando o café aromático que a consolava daquele frio de fim de outono de Castelo Branco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É claro que não! - explicou, retomando as suas tarefas na cozinha, sob o olhar da sua menina que finalmente recuperara o apetite e comia satisfeita o lanche caprichado. - Apenas recebeu um telefonema de Coimbra, eu atendi e passei-lhe a chamada. - olhou-a discretamente, sabia que aquele pormenor a iria incomodar. - Era o seu vizinho, o Sr Joaquim. Deve ser alguma coisa sobre a sua casa. Não se preocupe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Afinal sabias qualquer coisita. - gracejou, sorrindo-lhe provocadoramente. - Obrigada, estava maravilhoso o café. - deu-lhe um beijo de fugida e respirou fundo para ir enfrentar a tal conversa. O pai era sempre muito reservado e raramente desperdiçava tempo, se a chamara teria com certeza um bom motivo. Quantas vezes tinha desejado ser filha de alguém mais simples e acessível, menos importante e ocupado. Só lhe sobravam sempre as conversas difíceis ou os raspanetes.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou? João?, posso saber onde andas?!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Isabel, boa tarde, tudo bem? - ironizou, detestava aquela falta de educação da namorada. - Estou quase a chegar a casa. Já falamos. - desligou sem cerimónias, aborrecido. Isabel interrompia sempre os seus momentos de transe e sonho acordado, enquanto ouvia algumas músicas no carro, parecia que fazia de propósito, só para chatear. Ultimamente deixava-se perder nas suas fantasias, entusiasmado com a satisfação que retirava do trabalho no jardim. Só se sentia mais desanimado quando era inevitável ir dormir ao apartamento. Tinha prometido ao César que jantariam com ele e com a Lisa, e já estava ligeiramente atrasado, perdera imenso tempo a organizar os produtos que levaria no dia seguinte para a tal feira que o vizinho sugerira. Ainda não tinha decidido se ia contar essa sua atividade comercial ao jantar, talvez fosse melhor guardar para si mesmo, a namorada podia estragar-lhe os planos com uma birra qualquer, mas de bom agrado cancelaria todos os planos da noite para dormir na cama dela e continuar a fingir que aquela era a sua casa e que a Marta voltaria de uma breve ausência para visitar familiares. Ele não podia deixar o jardim abandonado, então ficara, mas já estava cheio de saudades, e a casa começava a ficar ligeiramente caótica sem ela, pó nas estantes, roupa para lavar, tinha de ganhar coragem e arrumar tudo antes que ela voltasse. Estacionou o carro e suspirou, desligando o motor do veículo ao mesmo tempo que parava com o sonho agradável. - Vamos lá, Dr João.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro, fico a aguardar então, obrigado Santos. - desligou o telefonema so o olhar curioso da filha e acenou-lhe que se aproximasse. - Senta-te Isabel. Desculpa só ter podido receber-te a esta hora, mas valores mais altos de levantam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Boa tarde pai, o que se passa? A Adelaide disse-me que queria falar comigo. - obedeceu à ordem e colocou a sua melhor pose. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabes quem era ao telefone? - lançou, enquanto endireitava papéis que estavam na sua frente espalhados na secretária, sem a olhar diretamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não pai, quem era? - se não a olhava era porque a ia informar de algo que não gostaria de ouvir. Já começava a ficar farta daquele paternalismo do século passado e da postura obediente que tinha de manter. Como sentia saudades da sua casa em Coimbra, quando era obrigada a conviver com o Sr Dr Fontes Pereira e Castro. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O Comandante Alberto Santos, na PSP de Coimbra. Um antigo conhecido meu do tempo da faculdade – esclareceu – Ele vai amanhã mesmo ver o que se passa lá no sítio onde moras quando estás em Coimbra. Pelos vistos anda lá um sujeito a apropriar-se da tua casa, usando-a como se fosse dele. Recebi um telefonema do Sr Joaquim preocupado com a situação. - enumerou com autoridade, como se o assunto estivesse arrumado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Um sujeito? Mas o Sr Joaquim sabe quem é? Como se chama? - por momentos temeu que o Janota lá andasse a arranjar o jardim e que fosse prejudicado com a impetuosidade do pai.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, mas certamente é um nome falso. - rematou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Meu Deus... - enlouqueceu de vez, pensou, sentindo as bochechas a aquecer e um remoinho a crescer no estômago. - Mas o que disse exatamente o Sr Joaquim? Como assim, a apropriar-se da minha casa? - gaguejou, a tentar disfarçar o mais possível o seu choque.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Anda para lá de enxada na mão, de volta do jardim, mas o mais grave é que ele usa a tua casa. Como entrou, não faço ideia, mas o Sr Joaquim garante que ele dorme lá de vez em quando. Deve ser um daqueles parasitas hippies, sem respeito pela propriedade alheia. Mas o Alberto já está ao corrente de tudo, não te preocupes, amanhã cedo acaba a ousadia do tipo. Depois tens de lá ir formalizar a queixa, e ver os prejuízos, mas para já vamos ver se é apanhado em flagrante. - explicou, olhando-a a terminar simbolicamente a conversa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ha... pois, claro, aguardemos então. Obrigada – levantou-se meia dormente e saiu do escritório, sem saber o que fazer. O seu instinto dizia-lhe que telefonasse ao João e esclarecesse aquilo tudo, mas a história parecia-lhe tão excêntrica que lhe custava acreditar que fosse ele a andar de enxada na mão. Podia ser uma grande coincidência, e o maluco ter inventado o nome de João para calar o Sr Joaquim. Faria uma figura de idiota se lhe ligasse e ele se risse daquela sugestão apalermada de que andava a brincar aos jardineiros. Ele nem sequer sabia distinguir uma erva daninha de uma flor... Caminhou sem perceber até ao quarto, fechou a porta e pegou no telemóvel desligado que mantinha na gaveta da mesa de cabeceira. Ligou-o e uma série de notificações sonoras de tentativas de contacto e mensagens escritas caíam sem parar. Janota encabeçava a lista dos mais persistentes, para sua angústia e tinha de admitir, desilusão. Devia-lhe um telefonema, mas João desistira dela, e era só nisso que conseguia pensar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Qualquer que seja o motivo que te fez rejuvenescer assim, parabéns!, estás de facto com muito melhor aspecto! - exclamou César, colocando mais vinho no copo – Afinal conta lá, mata-nos a curiosidade, andas a fazer corrida? Pareces mais bronzeado, até mais tonificado! - acrescentou bem disposto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, nada disso, ando a fazer jardinagem. - respondeu, não adiantando muito mais e continuando a comer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>César e Lisa entreolharam-se perdidos, aquilo era uma novidade. Isabel também parecia espantada e isso ainda os intrigava mais.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Jardinagem? - exclamou Lisa numa tentativa de continuar o tema e saber mais – Isso é muito interessante. E onde fazes tu jardinagem?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, isso é segredo, é o meu refúgio, se vos disser também vão querer ir para lá e acaba-se o meu sossego! - gracejou, fugindo à verdade que o fazia sentir-se desconfortável. Ninguém iria achar correto ele estar a invadir a casa da Marta sem autorização.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E essa jardinagem dura dias e noites inteiras! - acrescentou Isabel, furiosa com as mentiras dele. Só podia andar com outra mulher, não havia outra explicação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sejas ciumenta, Isabel, - ironizou, ligeiramente picado com o rumo da conversa – sabes que só tenho olhos para ti. - concluiu, não esclarecendo a plateia sobre as noites que passava fora.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, e que tipo de jardinagem estamos a falar? - interrompeu César – Flores? Canteiros?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo! Agricultura também. César, acho que me vou virar para este ramo, descobri que tenho bastante jeito para a terra. Mas deixemos de falar de mim, como vão as aulas de yoga Lisa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olha, uma porcaria, para ser sincera! A nova professora não sabe nada, é uma convencida, todos os dias leva um conjunto novo, super colado ao corpo... deve ser para nos fazer sentir bem... - bufou, ofendida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querida, tu estás ótima! Não acredito que essa miúda tenha a tua forma! - elogiou César, sorrindo-lhe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A idade está a fazer de ti mentiroso... enfim!, - suspirou – não quero falar dessa "Sandra", que acho que é o nome dela. Já me basta as saudades que tenho da M... - calou-se repentinamente, chocada com a indiscrição que lhe ía saindo. - E sobremesa? Alguém quer? - levantou-se e comelçu a recolher os pratos, irritada consigo mesma.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu vou-te ajudar. - João levantou-se e pegou na travessa do que restava da "Lasanha de 6ª feira à noite", e caminhou atrás de Lisa. Entrou na cozinha e ganhou coragem para continuar a conversa que realmente lhe interessava – Diz-me uma coisa, lá na escola de yoga não estão mesmo à espera que a Marta volte? Ela despediu-se? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Lisa poisou os pratos na bancada, aproximou-se dele e fez-lhe uma festa na cara, maternalmente. Era tão bonito ver o amor que eles sentiam um pelo outro, e ao mesmo tempo tão triste que o destino os estivesse sempre a boicotar, pensou, enternecida – Querido, não percas a esperança, eu sempre soube que se conhecesses a Marta a irias amar. Ela é adorável e tu também, e desculpa a franqueza, aquela rapariga não faz o teu género, porque continuas a viver com ela?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ela não tem família, se a mandar embora de minha casa fica no olho da rua... nós dormimos em quartos separados, não há nada entre nós, nem tenho vontade de que isso aconteça. - esclareceu – Mas então foste tu que nos apresentaste? A mim e à Marta? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, o César vai-me matar se souber que estou a contar-te coisas... - encostou ligeiramente a porta – mas não, vocês conheceram-se por casualidade lá na clínica onde tu trabalhavas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, porque ela era lá enfermeira, certo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum... não, porque ela fazia lá voluntariado na altura e cruzaram-se um dia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mais uma mentira na história... - lamentou-se – Então e onde entras tu nisto tudo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu fiz um jantar aqui em casa e convidei-a, tu já vinhas cá todas as sextas-feiras, e deu logo para perceber que estavam caidinhos um pelo outro. - sorriu sonhadoramente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então e a Isabel? Eu não namorava já com ela? - tudo o que lhe iam dizendo fazia sentido, menos aquela namorada, parecia deslocada na sua história.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, tu conhecias a "isabel" das tuas noitadas, acho que tinham alguma intimidade, mas isso não interessa nada, não entendes? Tudo é factual, são só factos. Aquilo que a tua amnésia tirou, também pode ser visto como positivo. Concentra-te no que vais sentido e acredita nisso. Se esta rapariga não te diz nada, não tens obrigação nenhuma em viver com ela. Resolve isso, a Marta vai voltar, eu tenho quase a certeza, e se não voltar, metes-te no carro e vais buscá-la! Mas acaba esta farsa primeiro. - deu-lhe as mãos em apoio moral, sentindo-se aliviada e esperançosa. - Agora é melhor pegares nessas taças e ires para a mesa, para não levantarmos suspeitas. - piscou-lhe o olho e tratou de desenformar o pudim de ovos. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada Lisa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porquê?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por seres sincera comigo. - acrescentou – Não sei se consigo fazer tudo o que me sugeriste assim de repente... não quero que a Isabel passe dificuldades, mas vou tentar encontrar uma solução para ela. Mal ou bem, tem sido a minha companhia, e não fugiu para lado nenhum quando eu precisei. Há sempre esta dúvida aqui dentro, sabes?, porque fugiu a Marta? Isso não é amor, é cobardia. - saiu da cozinha e Lisa ficou angustiada com aqueles raciocínios. Era óbvio que sem se lembrar de tudo não iria perdoar o abandono súbito da verdadeira Isabel. César tinha razão, meterem-se na memória dele era pior, ou ele se recordava de tudo de repente, ou tinham de respeitar o rumo atual das coisas. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. Polícia de Segurança Pública, Comandante Santos. Posso entrar?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, claro, entre. - João sentiu as pernas estremecer ao perceber que tinha chegado ao fim a sua fantasia, mas ser logo visitado pelo Comandante é que não estava à espera. - Posso ajudá-lo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deve! Estão lá fora alguns colegas meus a recolher informações para a proprietária desta quinta, mas queria falar consigo em privado, antes de sairmos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, faça o favor. - indicou-lhe um lugar no sofá e sentou-se no cadeirão, sem perder a compostura.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Primeiro, qual é o seu nome? - pegou num bloco e caneta e esperou a resposta de mão em riste. Já não fazia aquilo há muito tempo, temia que o rapaz percebesse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João Marques. Sou amigo da proprietária, a Marta, não entendo o que se possa estar a passar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sr João Marques, a proprietária desta casa e terreno é a Sra Isabel Fontes Pereira e Castro, e foi ela quem nos denunciou que havia um homem desconhecido a viver na sua casa, que recentemente abandonou para ir viver com a família. Não sei quem é a Marta, deixemo-nos de mentiras. - olhou-o interrogativamente – Porque é que arrombou a porta desta casa? O que realmente anda aqui a fazer? Tem alguma justificação válida e coerente para estar a invadir propriedade alheia? É que me parece que se meteu em trabalhos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel?... - era a segunda pessoa que o desmentia e chamava a Marta de Isabel, mas desta vez com apelido, e pomposo. Mas quantas Isabéis havia na sua vida? A namorada, a da mala de quem se recordara no bar e agora a do roupão e beijo escaldante. Levantou-se do cadeirão, confuso, dirigindo-se às molduras da estante, olhou-a nas várias situações ilustradas, nas aulas de yoga, com um cão enorme, agarrada a uma senhora de idade, pegou numa delas e mostrou-a ao polícia que o observava com alguma desconfiança e cautela. - Esta não é a Marta? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Meu Sr, acalme-se, assim não vamos a lado nenhum. Como compreende, eu nunca vi a Sra Isabel Fontes Pereira e Castro, não lhe sei responder. Sente-se, por favor. Porque é que está a viver nesta casa? - começava a suspeitar que dali iam até à urgência da psiquiatria e não para a esquadra.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu ia vender os legumes ao Botânico... - foi o que conseguiu responder, de moldura na mão, atónito. Mas ela tinha feito queixa dele... porquê?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, acho que não tenho mais perguntas. Por favor acompanhe-me até à esquadra, preciso de recolher o seu depoimento oficial e pedir uma avaliação técnica. - levantou-se e fez-lhe sinal para que saísse da casa, fechando tudo e trancando a porta, guardando a chave no bolso. - Este é o seu carro? - perguntou espantado com a viatura – Quer levá-lo até à esquadra? Talvez seja melhor... empreste-me a chave que faço esse favor. - entrou no bmw satisfeito, adorava um bom carro, sempre desejara comprar um daqueles, mas nunca conseguira convencer a mulher.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou?... Sim, sou eu... Como assim, preso?... Claro, vou aí imediatamente. - César desligou o telefonema furioso. - Preso! Agora foi preso!! - berrou, olhando para Lisa com cara de poucos amigos. - Às vezes pergunto-me porque nunca tivemos filhos, aí está a resposta! Para não passar por coisas destas! É por estas e por outras que um casal decide conscientemente viver sem crianças. Para ter paz de espírito! Mas nem assim, bolas! - deixou a mulher sozinha a tomar o pequeno almoço e saiu disparado para o quarto. - O João está a passar todas as marcas! Ainda o vou internar outra vez, e compulsivamente!! - gritou na direção da sala. - Sinceramente, e dá o meu número de telemóvel para o ir socorrer! Ele vai ver, vai ouví-las! - praguejava enquanto se vestia atabalhoadamente – Quase com 40 anos, caramba, um homem feito. - entrou novamente na sala, deu um beijo à mulher, que o observava com algum humor, pegou nas chaves e saiu, batendo a porta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Então era assim que se sentiam os presos..., pensou, amargurado com a sensação de não saber o que iria acontecer. Por muito que pensasse, não compreendia porque ela tinha feito queixa de si à polícia. Era óbvio, mesmo na sua cabeça, que o seu comportamento era excêntrico, mas não se sentia criminoso, afinal só tratava do jardim, e da casa... sim, dormira lá um par de vezes, mas sem intenção de invadir nada, apenas se sentia bem ali, e inconscientemente desculpava-se por estar a ocupar a cama dela. Pensara várias vezes na hipótese de ela voltar de repente a Coimbra e o encontrar a babar a sua almofada... mas isso só o divertia, nunca pensou que fosse crime. Imaginara uma mulher que não existia, uma relação e intimidade que não eram a realidade. A realidade era aquela cela, aquele silêncio, o cheiro a bebedeiras mal curadas e cigarros. Estava na altura de aceitar a sua miserável condição de amnésico insatisfeito com a vida e resolver o que era possível resolver. Esquecer a quinta da Marta, talvez pudesse vender o seu apartamento e comprar para si mesmo uma casa com espaço, terreno, as suas próprias enxadas e regadores. Ainda não sabia o que fazer com a namorada, duvidava que ela quisesse viver ao estilo fazendeiro, mas isso seria um ponto de viragem, uma possível solução para aquela vida que não lhe dizia nada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, o que aconteceu? - Nélia apareceu repentinamente, terminando abruptamente as suas teorias, visivelmente preocupada, o que o alegrou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, acho que o meu trabalho de jardinagem não era propriamente legal... - explicou encavacado. Levantou-se e aceitou a mão que entrava fraternalmente pelas grades, era boa aquela sensação de que alguém se importava com ele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas já te disseram mais alguma coisa? Vais ficar aqui muito tempo? O Dr César está a conversar com o Comandante, acho que se conhecem, não te preocupes.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada... e desculpa. - confessou, sentindo uma necessidade estranha de a abraçar. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querido, o que importa agora é que saias daqui. - Aquela prisão tinha-a sobressaltado mais do que imaginara. Para além dos problemas logísticos que certamente teria com o namorado longe e apenas contactável em horas e dias determinados, tinha ficado preocupada com ele. Podia ser uma porcaria de homem, mas era tudo o que tinha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> <span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não veio aqui ninguém falar comigo, sinceramente não faço ideia do que se vai passar... - esticou-se o mais que conseguiu e espremeu-se contra as grades, abraçando-a, consolando a sua amargura e medo. Isabel parecia diferente, mais doce e confortável com ele. Seria o facto de estar preso e vulnerável que a amolecia? Talvez, ela era uma mulher difícil, pouco carinhosa e distante, e aquele abraço era uma boa surpresa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se quiseres vou lá falar com o guarda. Alguém tem de nos dizer alguma coisa! - Aquele momento cúmplice tinha de ser fechado com chave de ouro, pensou. Se não aproveitasse a vulnerabilidade dele ali, preso e amedrontado, perderia uma oportunidade brilhante de o conseguir agarrar emocionalmente. Olhou-o bem perto, não seria um sacrifício assim tão grande beijá-lo, passou-lhe a mão nos cabelos carinhosamente e ficou à espera que ele o fizesse. Estava na cara que ele a desejava naquele momento, e tal como ela pensara, João deu-lhe o beijo possível no meio das grades frias. Um beijo que podia amolece-la e transformar as suas intenções, pensou angustiada. Tentou libertar-se gentilmente, mas ele queria mais, sentiu, deixando-se levar. Conseguia perceber porque a outra tonta o amava, ele era irresistível quando estava empenhado em alguma coisa. Seria difícil pará-lo, se não estivessem barrados e talvez fosse isso o que a estivesse a excitar. Um calor começava a invadi-la, amolecendo-lhe os membros, que começavam a pender dormentes, enquanto João assumia a dominância, beijando-a com demasiada vontade. Não podia perder o controlo daquilo, pensou, logo perdendo o raciocínio outra vez. Queria-o preso a si, sem dúvida, mas sem gostar dele. Aquilo é que não podia estar a acontecer... separou-se ligeiramente dele a ofegar, engolindo em seco e fugindo com o olhar. João pegou-lhe gentilmente no queixo e tornou a apertá-la contra si, obrigando-a a esticar o momento. Não queria olhá-lo, era demasiado bonito assim apaixonado por si. Pela primeira vez sentira-se amada e era intenso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então?... porque é que estás a chorar? - limpou-lhe uma lágrima que caía devagar pela cara de Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por nada... - fungou, tentando separar-se e fugir daqueles braços.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te preocupes... não torno a magoar-te, prometo. - sentiu aquelas palavras verdadeiramente, beijando-a novamente. Aquela cumplicidade aquecia-lhe o peito quase tanto como quando abraçara Marta. Podia ser feliz, decidiu.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É como lhe digo, Santos, o rapaz não é perigoso, apenas anda baralhado, e tem tido alguma dificuldade em recuperar a memória. Não há necessidade de formalizar a queixa, pois não?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu não tenho intenção nenhuma de arrastar isto, já tenho processos que cheguem que nunca vão dar em nada. - confessou – Mas a proprietária fez queixa, só se ela desistir é que posso deixá-lo ir. - mentiu, tentando encontrar argumentos para a detenção.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu acho estranho ela ter telefonado para a polícia, eles conhecem-se, isso não é nada típico da Isabel... - matutava em voz alta – Tens a certeza de que foi ela?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, não vais abrir a boca sobre isto, mas eu precipitei-me um bocado, digamos. - confessou, coçando a cabeça preocupado - Passei por cima de algumas etapas, para fazer o favor ao Fontes, o pai dela, - acrescentou – foi meu colega. Como não sabia de nada do que se estava a passar, nem conheço o João, pareceu-me apenas um pai preocupado com a integridade fisica da filha. Mas ela não formalizou a queixa, de facto...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, então está tudo resolvido. Eu falo com ela, não te preocupes. Tens a minha palavra de que ele nunca mais volta ao local do "crime". - disse com humor – Ele precisa é de retomar as consultas e passar uns tempos longe de Coimbra, desanuviar a cabeça. Afinal não fez nada de mal, concretamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quer dizer, invadiu uma casa sem autorização... - acrescentou com alguma preocupação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto, mas já devolveu a chave, não foi? Eu mantenho-o afastado. Tens a minha palavra!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Só não quero o Fontes a chatear-me porque soltei o rapaz. - confessou preocupado, enquanto eliminava os papéis na destruidora de papel, formalizando o fim do processo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Isabel fala com o pai, eu certifico-me de que o faz. - sorriu, satisfeito com o poder de persuasão que o estatuto de antigos vizinhos de infância lhe dava ali no gabinete do Comandante da PSP. O João tinha muita sorte, pensou, se não fosse o Santos teria sido impossível resolver aquela salganhada sem tribunal nem advogados. - Posso ir lá vê-lo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, vamos buscá-lo, sendo assim já não há motivo para ele estar preso... - suspirou, aliviado com menos um suspeito sob a sua alçada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigado Santos, - deu-lhe uma leve palmada fraterna nas costas enquanto se encamihavam para o interior da esquadra – agora outra coisa, também recebeste aquele convite para o jantar dos antigos moradores do "Bairro"? Acho que desta vez vou, e levo a Lisa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Recebi, sim. Mas não devo levar companhia... - confessou abatido – A Manuela deixou-me.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixou-te? Eh pá, não sabia... lamento. Mas isso foi há pouco tempo? Ainda noutro dia a Lisa me disse que a encontrou não sei onde e estiveram a tomar café. Não comentou nada disso...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, foi o mês passado... ainda nem acredito que ela teve coragem de cumprir as ameaças. - sorriu envergonhado, assumindo a culpa das suas fraquezas físicas. - As mulheres são tramadas... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois são... por isso é que eu nem sequer penso certas coisas, a Lisa lia-me logo os pensamentos e matava-me durante a noite. - brincou, desanuviando a conversa, mas agradecendo interiormente ser tão bem casado. Se tivesse vontade de trair a mulher sentir-se-ia um miserável, como o amigo lhe parecia naquele momento. - Pede-lhe desculpa e apanha juízo, já estás a ficar velho, pá! Já viste o que era teres de aturar uma daquelas? - sussurrou apontando para Nélia, que enlaçava o João como uma lapa. Sabia que um dia o João ia acabar por ceder, aquilo era muita mulher para não se reparar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>O Comandante olhou-o com humor, era de facto perigoso haver mulheres daquelas. Devia ser crime usar roupas sugestivas com um físico daqueles. - Já não tinha capacidade para isto... - gozou – Sr João Marques, vai ser solto, afinal houve uma desistência da queixa. - mentiu, abrindo a porta – Está tudo resolvido, mas está proibido de se aproximar da quinta da D. Isabel Fontes Pereira e Castro. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Obrigado. - deu a mão a Isabel, sorrindo-lhe, esperançoso com aquele recomeço e súbita liberdade, depois de algumas horas de medo. Isabel Fontes Pereira e Castro... registou o nome na memória, mais tarde iria pesquisar sobre aquele nome tão pomposo. Mas antes, queria chegar a casa depressa e aproveitar o presente. Acabava de ter uma nova oportunidade de ser amado e amar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-44576620616807862732020-09-03T02:03:00.002-07:002020-09-03T02:04:36.902-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 23<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCFEd2ceWpsYu2CSIO0_5IrYhFUvyMir-vd7lf9L6XI4bNPXm3s5LnwE6c3QTk-Y1ght5F0LwJ7iUqlS2cn5UVhD3metFjjTgFHHUJtRn9nMksZ-9tQVVOz587wN_neaSpCGideV3PZE4/s227/images.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="222" data-original-width="227" height="222" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCFEd2ceWpsYu2CSIO0_5IrYhFUvyMir-vd7lf9L6XI4bNPXm3s5LnwE6c3QTk-Y1ght5F0LwJ7iUqlS2cn5UVhD3metFjjTgFHHUJtRn9nMksZ-9tQVVOz587wN_neaSpCGideV3PZE4/w227-h222/images.jpg" width="227" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> - Bom dia João, posso entrar?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá bom dia, Dr César, claro, entre. - esforçou-se por sorrir, sentia-se miserável e abatido como nunca tinha sentido, ou pelo menos que se lembrasse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está tudo bem? - questionou-o, desconfiado do semblante carregado. - Estou de saída para ir para a clínica e decidi vir ver-te antes, espero não estar a incomodar assim tão cedo. - Sentou-se familiarmente no sofá, fazendo-lhe sinal para se sentar também.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, fez bem. Café?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se não der muito trabalho, aceito. - sorriu-lhe, mais com vontade de abraçar um filho em sofrimento, que manter aquela conversa de circunstância.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não dá trabalho nenhum, acabei agora mesmo de fazer uma chaleira. Descobri que gosto muito de café "brasileiro", daquele que se faz com filtro, sabe? - explicou, enquanto se dirigia à cozinha e preparava duas chávenas e açúcar num tabuleiro. Era estranhamente doméstico, o que não combinava nada com aquela casa tão sofisticada e artificial. Gostava de se distrair na cozinha, ocupava-lhe a cabeça. Tinham passado duas semanas desde que saíra abruptamente de casa da Ganesha e nunca mais tinha conseguido deixar a sua casa, como se estivesse em isolamento. Escondia-se de si mesmo, talvez. Pegou no tabuleiro pronto e foi ocupar o seu lugar junto do psiquiatra que o visitava regularmente e de quem já gostava como figura paterna, a única que até então surgira na sua breve vida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cheira muito bem! A Lisa também adora o café assim de manhã. - disse, apreciando o primor com que João elaborara o tabuleiro, um perfeccionista, quando gostava do que estava a fazer, acrescentou para si mesmo. - Está ótimo! - confessou, depois de provar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estive a ler aqueles livros que me trouxe, sobre psiquiatria, os do curso, e acho fascinante. Mas... não tenho a certeza se é isso que quero fazer na minha vida. Acho que não tenho saúde mental nem para mim, quanto mais para "vender" aos outros. - recostou-se no sofá, levando o café à boca e apreciando o cheiro. - Gosto muito mais de cozinhar. - riu-se.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, a psiquiatria nunca foi a tua paixão, era o teu trabalho. - confessou, olhando-o hipnoticamente – Gostavas que te pusesse à prova? Gostavas de fazer hoje o psicodrama? Tenho tempo agora de manhã.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Preferia sinceramente que me dissesse porque me sinto vazio na minha vida. Custa-me aceitar que vivi esta fantochada e gostava disto. - olhou sugestivamente para a zona dos quartos, onde Isabel ainda dormia. - Já concordámos que iria esperar um tempo para que a memória voltasse naturalmente, mas já não tenho mais paciência, César. - poisou a chávena e desviou o olhar do do médico, que parecia entrar-lhe pela cabeça a dentro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como já falámos anteriormente, isto é uma fase, a tua mente encontrou esta forma de sobrevivência, se assim o podemos chamar, fechou-se ao que a estava a colocar em perigo, mas tudo continua aí. Não te preocupes demasiado, só tens de te proteger do que conversámos. - baixou o tom de voz, de forma cúmplice. - Não podes tomar atitudes definitivas nesta tua nova realidade. - olhou para o corredor em frente – Tem calma, aprende a conhecer-te, vai explorando as tuas capacidades e gostos. - apontou para o café – Como vês, tens mais prazer a fazer café que a ser psiquiatra. Isso é muito importante, porque a vida às vezes impõe-nos carreiras que não são o que deveríamos fazer, mas a que acabamos por nos resignar. Eu por exemplo, adoro ser o espertalhão que sabe tudo sobre os outros, gosto de dar conselhos, de me meter nas cabeças alheias, vou trabalhar com gosto todos os dias. Já a fazer café, sou uma nódoa, e nem vamos falar em refeições quentes, nunca tive capacidade. Distraio-me a pensar num paciente qualquer, e lá se vai o estufado. - sorriu, descontraído. - Nesta vida, que é curta e incerta, temos de fazer o que nos dá prazer. Tu tens agora a oportunidade de escolher algo melhor para o teu futuro. Felizmente não tens problemas de dinheiro, o que já é uma sorte. Vai fazer uns cursos, sai de casa. Se continuares aqui fechado não vais sentir-te nem melhor, nem mais realizado, e um homem tem de fazer, criar, suar, senão morre entupido! Dá uma hipótese a ti mesmo, ouve o que o João tem para te dizer, sai, vai caminhar, ver pessoas, comprar ingredientes ao hipermercado e depois convida-me a mim e à Lisa para jantar um dia destes. - levantou-se e estendeu a mão a João, que se levantou e o abraçou comovido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigado. Vou fazer isso. - acompanhou-o à porta e deixou-o sair, respirando fundo. Sim, o César tinha nascido para ser psiquiatra, ele não.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia escutou a conversa dos dois homens atrás da porta, como habitualmente, sempre que César aparecia para ver o namorado. Temia que o médico abrisse a bocarra, mas estranhamente não o fazia. Era um mistério para ela o facto do médico continuar a deixar João na ignorância, mas um alívio. A vida a dois era já penosa o suficiente, sem a confrontação com a verdade. A única vantagem que tinha ao estar ali a aturar aquele depressivo era o poder económico de que usufruía, mas mesmo isso já a começava a aborrecer. Entusiasmava-se sempre quando percebia que podia comprar fosse o que fosse, mas ainda não tinha saído da loja, já o tédio se instalava, e ao chegar a casa e se deparar com aquele fantasma, mais chateada ficava com a sua vida. Vestiu-se com a roupa de ginástica, como todas as manhãs e rezou para que ele não a quisesse acompanhar. Não o suportava, e isso era cada vez mais notório entre os dois. Felizmente João mudara-se para o quarto de hóspedes, por livre e espontânea vontade, senão, tinha-o feito ela. Era uma situação que começava a pesar-lhe no corpo, parecia que aquele parvo lhe sugava a alegria de viver, sempre de trombas e sorumbático. Calçou as sapatilhas de treino, passou por ele, deu os bons dias e avisou que ia demorar. Só voltava para almoçar, e mesmo isso não sabia se lhe apetecia. Bateu a porta, depois de lhe pedir dinheiro, a derradeira humilhação diária, e uma emoção estranha invadiu-a, trazendo-lhe umas lágrimas de frustração, enquanto premia o botão do elevador. A porta deslizou, e apressou-se a limpar as provas da sua fraqueza, colocando o seu melhor ar, com medo de testemunhas. Um homem enorme saiu do elevador com demasiada pressa e esbarrou nela, e para sua surpresa reconheceu o segurança do bar que frequentava, que a olhou com algum desprezo, como habitualmente acontecia com algumas pessoas. Era invisível, e raramente a olhavam com interesse, a menos que vestisse um decote ou mini saia. Entrou no elevador, sem grande interesse no que faria por ali o homem, carregou no botão do rés do chão e suspirou, quando uma mão estacou a porta de fechar, surpreendendo-a.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sente-se bem? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como? - perguntou surpreendida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pareceu-me que estava a chorar. Precisa de alguma coisa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ham?... Não, não, é alergia. - apressou-se a explicar, mentindo. Não estava habituada a baixar a guarda, o que a incomodava bastante.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, desculpe, então. Bom dia. - largou a porta, que começou a fechar, e Nélia carregou no botão de abrir, como reflexo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada, na mesma. - disse, sem jeito, carregando no botão de fechar logo de seguida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota ficou cismado com aquele semblante da tipa que agora vivia com o João. Devia andar triste, as coisas entre os dois não andavam bem. Isso não era favorável, claro, mas tinha ali ido para descarregar a sua frustração pessoal, e tirar satisfações, não ficar preocupado com uma vigarista. Bateu à porta vigorosamente, tentando recuperar o estímulo negativo que o tinha levado até casa do seu rival, esperando sinceramente que ele fosse arrogante e mal educado, apetecia-lhe muito dar-lhe uns safanões e libertar-se daqueles nervos. Isabel tinha-o abandonado fazia já quase duas semanas, precisava tirar a limpo se continuavam a comunicar ou se também se tinha afastado dele. Era uma questão que o consumia. Deu mais dois murros na porta, que abriu de repente e tal como desejara, João olhava-o com desdém.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso saber o que é que queres daqui? - lançou, genuinamente espantado com aquela visita matinal.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Queria dizer-te meia dúzia de coisas. Já percebi que estás sozinho, ótimo. - avançou com agressividade na sua direção e João afastou-se para o deixar entrar, fechando a porta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, como vai a Marta? Tudo bem, ou ela já ganhou juízo e já te deixou? - ironizou João que odiava aquele segurança, a ponto de perder o bom senso e provocá-lo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Marta não conheço, mas a Isabel voltou para Castelo Branco. Pensei que soubesses. - sentou-se descontraidamente no sofá, olhando-o com gozo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João ficou baralhado com aquela resposta, detestava aqueles enigmas parvos que não conseguia entender. - Despacha-te, tenho que sair. Vieste aqui exatamente para quê?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quero saber se depois daquele dia em que estiveste de madrugada em casa dela tornaram a falar ou a ver-se.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é da tua conta, mas não. Nunca mais a vi, tentei ligar-lhe, mas o telemóvel está no voice mail e o fixo ninguém atende. De vez em quando ainda tento ligar, confesso. - sentou-se de frente para o homem enorme, com vontade de o esmurrar, mas ligeiramente satisfeito por saber que ela o tinha deixado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabes João, eu amo-a. - confessou – Acho que nunca gostei tanto de uma mulher. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que não somos assim tão amigos para me vires confessar essas merdas. - disse com rispidez. Era só o que lhe faltava, ouvir declarações de amor daquele troglodita pela mulher que o perseguia nos sonhos. - Não me interessa nada disso. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E queres saber quem é que lixou tudo entre mim e ela?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Estou-me borrifando para ti. - para ela não, acrescentou para si mesmo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois é, tu, meu merdas. Estava tudo bem, antes de a teres perseguido. - acusou-o, de dedo em riste, já numa posição que qualquer homem entenderia como ameaça.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que é que vieste aqui fazer? Bater-me? - perguntou-lhe, enfrentando-o e colocando-se também numa posição agressiva – Levaste uma tampa e agora queres arranjar um bode expiatório. Pois eu acho que ela foi muito inteligente em se pirar. Aquilo não é mulher para ti, amigo. Lamento informar-te... - uma mão alcançou-lhe a cara, esmurrando-o com um pouco mais de força que tinha imaginado, desorientando-o. João recuperou a visão e mediu-o, perdendo a noção do perigo e lançando-se ao segurança, queria matá-lo por ter beijado aquela mulher e sabia lá o que mais tinha feito com ela. Embrulharam-se como dois cães, enraivecidos, rolando pelo chão numa luta passional e crua, como se a vida dos dois dependesse de quem vencesse aquela batalha. João limitava-se a proteger a cara e tentar alcançar alguma zona do corpo de Janota para despejar a sua frustração e ódio. Não sentia nenhum dos murros que o segurança lhe dava, a adrenalina mantinha-o anestesiado e focado na luta, quando a porta de casa abriu e Nélia gritou aflita, chocada com a visão da sala de pantanas e ensanguentada. Os dois homens pararam subitamente e largaram-se ofegantes, com Janota a recuperar mais facilmente, levantando-se meio trémulo do chão, envergonhado com o olhar da namorada de João, que se mantinha no chão a respirar com dificuldade, visivelmente mais ferido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota dirigiu-se à porta e não conseguiu encará-la, saindo rapidamente da casa, tinha dado uma tareia naquele pomposo, mas só lhe souberam bem os primeiros murros, e se soubesse que teriam testemunhas nunca o faria. Não tinha medo de represálias, mas o olhar da mulher incomodara-o, fazendo-o sentir-se culpado. Olhou-se no espelho do elevador e deu graças por estar pouco marcado. O Salvador ia-se passar, se descobrisse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixa estar, estou bem. - balbuciou João, afastando Isabel de si, não queria ajuda, talvez merecesse aqueles murros, pensou. Uma experiência de que não se recordava, mas certamente que já não seria a primeira vez que andava à porrada. Doíam-lhe as costelas, e o nariz. Colocou-se de joelhos, cuspiu um bocado de sangue para o chão e agarrou-se ao sofá para se levantar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Andaram à porrada porquê? - questionou-o, ainda em choque com aquilo tudo – João, responde. Não é melhor irmos ao hospital?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é preciso, estou bem. - Uma dor lancinante nos pulmões obrigou-o a ajoelhar-se novamente. Talvez não estivesse assim tão bem, pensou. - Se calhar é melhor ir às urgências. - deu-lhe um braço para se apoiar e levantou-se o mais devagar que conseguiu, sustendo a respiração. - Acho que tenho alguma costela partida. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E chamar a polícia? Foste atacado em casa! - exclamou decidida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, deixa, ele também levou. E não vai voltar... Ai... - gemeu, agarrando na carteira à entrada e nas chaves.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas porque é que ele veio cá? Chatearam-se? O que é que ele queria?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tirar satisfações sobre a Marta. - sussurrou com esforço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu logo vi... - bufou contrariada. - Sempre essa tipa, e tu humilhas-me assim, andando à porrada por causa de outra mulher? - aquilo era demais, pensava, ofendida. - Olha, chama-a para te ir levar ao hospital. - entrou novamente em casa e fechou a porta com força na cara de João, que cambaleava ligeiramente espantado com a sua reação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel... - gemeu. Não queria acreditar que o ia deixar sozinho a conduzir até ao hospital. A porta do elevador abriu e uma senhora soltou um grito ao deparar-se com o jovem médico de cara pisada e ensanguentada. - Não se assuste, tive um pequeno acidente em casa, nada de especial. - apressou-se a explicar, enquanto a mulher deslizava para fora da cabine em pânico. - Adeus, bom dia. - disse-lhe, deixando-a fugir. - Ai...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>César correu até à urgência da clínica, desesperado por saber o que se passava agora. Ligaram-lhe para o gabinete dizendo que o seu paciente 5 estrelas tornava a entrar nas urgências, mas desta vez com traumatismos vários. Ainda ficava ali estendido um dia, com um enfarte, se o João não parasse de o surpreender, lamentou-se, arfando pesadamente no seu débil passo de corrida. Tinha de se exercitar, decidiu frustrado. Procurou pelo amigo e foi encontrá-lo sentado numa maca, de tronco nu e faixas enroladas a pressionarem as costelas. Mas que raio teria acontecido naquelas poucas horas em que tinha deixado a casa dele?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, o que se passou? Estás bem?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Andei à porrada. - esclareceu, fazendo um esgar de dor ao tentar levantar-se.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- À porrada?? - exclamou, ajudando-o a erguer-se. - Mas alguém te atacou?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O Janota foi lá a casa assim que saíste, detesto aquele gajo. - gemeu, aceitando a ajuda do médico para vestir a camisola.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Aquele segurança enorme? Tu estás mais doido do que eu imaginei. - ralhou paternalmente. - Mas porque é que se chatearam a este ponto? - fez uma careta de preocupação ao ver os hematomas na cara de João a testemunhar a tareia que este tinha levado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele não gostou do que ouviu. Foi para lá dizer-me que amava a Marta e eu fui o culpado de ela o ter deixado. - bufou, a recomeçar a sentir a raiva a crescer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quando uma pessoa pensa que já viu tudo, os quarentões decidem lutar por uma miúda... - gozou, achando piada à ideia de ver dois homens adultos engalfinhados por causa do amor. Ajudou-o a calçar-se e deu-lhe uma palmadinha leve nas costas, apoiando-o na sua dor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- César, um homem é um homem. E não é por ele ter 100 kilos de força que pensa que me vou ficar a ouvi-lo falar dela. Ai... - gemeu, apoiando-se no médico enquanto caminhavam para fora do gabinete – Acreditas que a Isabel não me veio trazer? Deixou-me vir sozinho a conduzir até aqui. - lamentou-se.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> <span style="white-space: pre;"> </span>- Tu és mesmo inocente, ou parvo. Andas à porrada com outro homem por causa de uma mulher e queres que a tua namorada te traga ao hospital? Aí estou com ela. - gozou, mesmo não suportanto a tipa, era óbvio que tinha razão. Mas também era bem feito para ela, devia ser humilhante saber que o homem com quem vive ama outra pessoa. - Queres que te leve a casa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Tenho o carro no estacionamento. Mas obrigado. - Deu-lhe um aperto de mão e respirou fundo caminhando dificilmente até ao carro. Ainda queria passar em casa dela, confirmar que estava mesmo abandonada, matar um pouco as saudades daquele momento que tiveram. Sempre que a recordava, de roupão e chinelos, fechava os olhos e revivia aquele abraço por dentro da roupa, a sensação maravilhosa de sentir o seu corpo junto do seu. Imaginava como seria pele com pele, sedosa, aquele perfume simples do seu cabelo. Era uma tortura doce, que o consolava sempre que se sentia mais desesperado, sozinho naquele quarto de hóspedes para onde tinha fugido. Conduziu lentamente, percebendo pela primeira vez como seria ter 80 anos e pouca ou nenhuma capacidade de rotação no tronco e pescoço para enfrentar o trânsito de uma cidade. Da próxima vez que um reformado o estivesse a empatar teria mais paciência, decidiu, gemendo com a dor de costas. Era tramada aquela falta de mobilidade, sentia-se um velhote viúvo, a fugir do lar para ir espreitar a antiga casa onde vivera momentos felizes, só que no seu caso tinham sido fugazes minutos de prazer, e não uma vida a dois com milhares de recordações. Encontrou facilmente a rua dela, tão misteriosa como seria de esperar, parou no portão e ergueu-se dificilmente de dentro do carro, resmungando como um idoso rabugento. A dor era uma merda, bufou para si mesmo. Forçou o portão fechado e caminhou arrastando os pés levemente, devagar, aproveitando para apreciar à luz do dia todo o quintal ainda bem arranjado, mas já com sinais de natureza abandonada. Algumas ervas cresciam onde antes ela perdia tempo e energia a cuidar de flores, plantas e vegetais. Pensou que talvez devesse arrancar algumas ervas daninhas, não tinha mesmo nada que fazer. Não conseguiria baixar-se, mas talvez com uma pequena enxada resolvesse o problema. Decidiu procurar ferramentas enquanto ia analisando os locais do jardim onde deveria intervir. Talvez houvesse uma garagem na parte de trás da casa, ou arrecadação, onde ela guardasse os materiais de jardinagem. Passou por um tanque, sorriu ao imaginá-la de roupão a lavar roupa, e logo a sua imaginação erótica dominou os seus pensamentos, possuindo-a ali mesmo, em cima de umas roupas ensaboadas, com água a chapinhar por todo o lado e o cãozito dela a saltitar nervoso em volta deles. Deixou o casal apaixonado para trás e continuou a caminhada dolorosa pelo caminho de pedra em volta da habitação. Um grande monte de lenha cortada e arrumada metodicamente surpreendeu-o, aquilo era trabalho de homem, nunca que ela teria capacidade física para aquele serviço, pensou, ciumento. Certamente tinha sido o parvalhão do troglodita, resmungou chateado, continuando sem parar. Uma pequena casota de madeira parecia ser o local ideal para as ferramentas, e tal como imaginava, ali estava ao fundo. Debateu-se com a fechadura, forçou-a e conseguiu retirar uma pequena enxada para começar o seu trabalho. Sim, aquilo era excêntrico, mas não lhe apetecia nada voltar para aquele apartamento cinzento e aturar a Isabel. Um monte de terra desordenado chamou-lhe a atenção e suscitou-lhe a curiosidade. Parecia uma sepultura caseira, daquelas que se faziam aos animais domésticos, aproximou-se e percebeu que ali devia estar o tal cão falecido de que ela lhe tinha falado. Uma tentativa de cruz a marcar o local pendia torta, e João endireitou-a, utilizando a enxada para reorganizar a terra em volta e deixar a sepultura mais digna. Parecia que tinham ali andado animais a esgravatar, até um pouco de osso se denunciava. João tentou tapar os restos mortais, e um tecido colorido surgiu debaixo da terra, comprovando que ali jazia um cão, era uma coleira, constatou, tirando-a gentilmente. Ajoelhou-se e colocou-a na cruz, tapando e moldando a terra. "Filipe", dizia na coleira, ela tinha dado um nome de pessoa ao cão, pensou curioso. - Bem, Filipe, sempre tiveste mais sorte que eu. Descansa em paz. - levantou-se e começou a sua tarefa auto-imposta de jardineiro voluntário. Não sabia se alguma vez já o tinha feito, mas não deveria ser tão difícil assim, raspar as ervas que não pertenciam à cultura pretendida. Era muito quintal para trabalhar de uma só vez, mas começaria pela frente da casa, a parte mais visível da rua. Parou no tanque e experimentou a torneira, funcionava. Pelo menos se lhe desse a sede não morreria ali. Analisou o jardim e decidiu começar pelas flores, estavam amontoadas com uma certa ordem que lhe conferiam uma beleza que parecia natural e selvagem, mas notava-se que tinham sido plantadas propositadamente. Tirou a camisola mais grossa, mandou-a para o alpendre e lançou-se à velocidade possível por causa das dores nas costelas. Era uma atividade que requeria algum jeito, mas passado uns minutos João já conseguia minimizar o esforço e encontrou formas e técnicas de melhorar os resultados, distraindo-se ao ponto de nem ter percebido há quanto tempo ali estava naquilo. Deu uma olhadela geral ao espaço já limpo e ficou surpreendido com o avanço feito. Ficava de facto muito melhor depois de retiradas as ervas daninhas, pensou orgulhoso de si mesmo. Pôs a mão ao telemóvel no bolso para ver as horas e decidiu que por um dia bastava. A casa estava silenciosa, sem sinais de vida no interior, o que o desiludiu ligeiramente. Para terminar em beleza aquele dia excêntrico só mesmo se ela abrisse a porta e viesse com aquele roupão, sem nada por baixo, obviamente. Como isso não iria acontecer decidiu aventurar-se e tentar espreitar para dentro da casa, só para ter a certeza de que ela tinha abandonado a vida em Coimbra. Subiu os degraus, espreitou pela janela e tentou abrir a porta, que estava obviamente trancada. Uma ideia surgiu-lhe, seria ela daquelas pessoas que tem sempre uma chave de prevenção para o caso de se esquecer da dela? Procurou por cima da moldura de madeira da porta, debaixo do tapete de entrada, e quando levantou o vaso grande com um cacto ali estava ela, a luzir. Rasgou-se-lhe um sorriso pateta, não queria acreditar na sua sorte, abriu a porta e entrou a medo, com uma excitação crescente e irresistível. Havia eletricidade, constatou ao mexer nos interruptores, seria sinal de que voltaria um dia destes?! Caminhou pela casa, admirando tudo com calma e uma certa fascinação. A sala era acolhedora, nem muito vazia nem muito cheia, com uma decoração natural. Uma estante ocupava toda a parede em frente à porta da rua, percorreu-a com os olhos, era tanta literatura diferente, desde os clássicos aos mais esotéricos. Estatuetas daquelas bonecadas hindús decoravam alguns locais fazendo o contraste com as molduras clássicas e antigas de gente com bom ar, e ela. Sempre demasiado enigmática, às vezes até triste. Entrou sem pudores para a zona mais íntima da casa, não teria de se justificar a ninguém por estar a invadir uma casa alheia. Uma sala grande com ar de estúdio de yoga, sem espelhos, e de onde sentia uma vibração estranha e incomodativa. Fechou a porta por instinto, não gostava daquilo. Caminhou em busca do quarto dela, aquele santuário feminino onde a sua imaginação iria certamente explodir de tantos estímulos. Não estava enganado, ainda se sentia o cheiro dela ali, uma cama convidativa, macia, pormenores delicados e de bom gosto. Sentou-se nela e imaginou-a ali a dormir, sozinha, o segurança não encaixava naquele ambiente e nem sequer deveria caber na cama, era demasiado alto. A imagem dele ali a violar aquele espaço deu-lhe dor de barriga e estudou o armário para se distrair. Roupas simples, muitas saias, e um vestido preto que se destacava pelo género e textura. Retirou-o e analisou-o, era bonito, de marca, constatou ao ver a etiqueta, devia ser o que usara naquele dia no bar. Ficava-lhe muito bem, relembrou-se, colocando-o no sítio. Tinha voltado para Castelo Branco sem ele, pensou satisfeito, era sinal de que não ia frequentar bares. Aquela sensação de possessividade relativamente àquela mulher surpreendia-o, não tinha nenhum desses sentimentos pela namorada. Deu mais uma olhadela geral no quarto e voltou para a sala. Estava cansado e ainda mais dorido, procurou um local para descansar um pouco as pernas e escolheu uma poltrona que se lhe adaptou ao corpo de forma extraordinária, aquilo era uma maravilha, constatou descontraindo. Fechou os olhos relaxado, aquilo sim era vida, onde teria ela comprado aquilo? Uma luz acendeu-se na zona do quarto e João estremeceu, teria voltado? Ouviu um murmúrio de uma música familiar, numa voz de mulher, sim, a Marta tinha voltado, finalmente, pensou suspirando e fechando os olhos. Teria reparado na sua obra do jardim? Esperava que ficasse satisfeita e que o Filipe não lhe fizesse xixi nos crisântemos. Um cheiro a legumes salteados invadiu-lhe as narinas, estava cheio de fome, mas demasiado preguiçoso para se levantar e ajudá-la com o jantar. Estava ansioso para que ela lhe contasse como estava a família lá de Castelo Branco, ainda não os tinha ido conhecer, recriminou-se, se calhar estavam ofendidos com a sua falta de atenção, mas ela não o tinha convidado a ir, fugiu sem dizer nada. Marta aproximou-se dele, trazia o vestido preto debaixo do roupão, iria sair? Pegou numa manta e tapou-o, estava a dormir, constantou. Que pena, queria dizer-lhe que voltasse, mas estava a dormir. Ela saiu e fechou a porta, com demasiado barulho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João acordou sobressaltado com o frio, tinha adormecido e estava sem a camisola mais grossa, e ao contrário do sonho, ninguém o tinha aconchegado com uma manta. Tinha escurecido, quanto tempo teria dormido? Procurou o telemóvel e viu que era perto da meia noite. Como seria aquilo possível? Dormia sempre tão mal, à base de soporíferos, como se tinha deixado ficar ali tanto tempo? Aquele cadeirão era mágico, só podia. A barriga deu um ronco de fome e João decidiu voltar para sua casa. Trancou a porta e guardou a chave no bolso, não queria mais ninguém ali a entrar sorrateiramente como ele. No dia seguinte voltaria para continuar a jardinagem, tinha adorado mexer na terra, descontraíra-o. Mais uma coisa sobre si que descobria. Certificou-se de que tudo ficava arrumado e despediu-se mentalmente do sítio. Gostava muito de ali estar, agora teria de regressar à sua realidade, à casa fria e solitária que lhe diziam ser a sua. Seria possível a amnésia ter-lhe alterado os gostos? De psiquiatra dandy e mulherengo a homem do campo que gostava de estar na cozinha e a tirar ervas daninhas do quintal... Aquilo era demasiado estranho. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-11857045018099031162020-09-02T02:44:00.003-07:002020-09-02T02:44:47.603-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 22<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7HMecqQxJgpTIW2OCOkjQJHqSOyYcrJD_QaRVtrMBsS5VTOHo0nNGGu1rg5u6LviLBL3b-4WEj-wVuBAF7YVFJNFkNDMvZSchtaRoADf1qDzgdhXRlimdwYH0YwM94lEaZ4jAf7u9aK8/s610/e0396de728d3e57bd3ab395f1a76cf98--bedtime-stories--beds.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="592" data-original-width="610" height="379" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7HMecqQxJgpTIW2OCOkjQJHqSOyYcrJD_QaRVtrMBsS5VTOHo0nNGGu1rg5u6LviLBL3b-4WEj-wVuBAF7YVFJNFkNDMvZSchtaRoADf1qDzgdhXRlimdwYH0YwM94lEaZ4jAf7u9aK8/w390-h379/e0396de728d3e57bd3ab395f1a76cf98--bedtime-stories--beds.jpg" width="390" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> - Vamos sair hoje à noite? - perguntou João a tentar desanuviar o clima tenso e pesado que se sentia naquela casa depois dos dois terem feito amor. Nem a conseguia encarar, como iriam ali ficar os dois sozinhos a jantar e a ver as horas passar até um deles ter sono?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pode ser. - finalmente uma boa ideia, pensou aliviada. - Também podíamos jantar fora... não há aqui nada para comer. - explicou, olhando com desprezo o interior do frigorífico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Excelente! Vou-me arranjar, estou habituado a jantar cedo, por causa dos horários da clínica. - fugiu do campo de visão dela e encaminhou-se ao quarto, fechando a porta. Passou as mãos pelo cabelo e sentiu a pequena cicatriz da orelha a raspar na sua mão, o que o fez sorrir ao recordar o acidente com a tesoura e a enfermeira. Apanhou o livro do "Sexo Tântrico" do chão, de onde caiu um pequeno pedaço de papel que voou para debaixo da cama, obrigando-o a colocar-se de gatas para o apanhar. Pegou nele curioso e sentou-se na cama, "Marta... professora de Yoga...e um número de telefone fixo...". Marta, disse a si mesmo, matutando, novamente aquele nome, sexo tântrico, ganesha, yoga...aquilo não podia ser coincidência, concluiu excitado. Pegou no telemóvel para marcar o número do cartão de visita mistério e reparou com desconfiança que tinha feito uma chamada para o contacto "ganesha", durante alguns minutos. Talvez o tenha feito sem querer, pensou a sentir-se culpado e confuso. Só esperava que não tivesse sido na hora do sexo desconfortável... Só lhe faltava mais essa. Pôs esse pensamento de lado e marcou o número fixo, ficando ligeiramente nervoso com aquele compasso de espera a ouvir os toques do outro lado da linha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou?... Estou sim?.... Quem fala?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João ficou mudo, sem reação, conhecia aquela voz, sem sombra de dúvidas. Desligou automaticamente o telefonema e deixou-se ficar estático sem saber bem o que fazer a seguir. Que raio de confusão era aquela... perguntava-se ansioso. A voz que ouvira era a da enfermeira de castelo branco, que se chamava Marta e lhe dissera a dada altura na conversa que também era professora de yoga. Mas porque fingira que não o conhecia? Se tinha um livro dela em casa e um cartão pessoal deveria ter tido contacto com ela anteriormente... matutava. Precisava descobrir a morada associada àquele número fixo, talvez fosse a casa dela. Iria lá e tiraria tudo em pratos limpos, decidiu, guardando o livro e o cartão na gaveta da mesa de cabeceira. Agora era hora de ir sair com a sua namorada... disse a si mesmo, mais para se encorajar que outra coisa qualquer. Precisava urgentemente de recuperar a intimidade com ela, aquela convivência não estava a ser nada fácil. Pareciam não ter tema de conversa, e para além dos seus atributos físicos, não vira nada nela que o pudesse cativar. Seria ele um homem fútil antes do acidente?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Elisabete poisou as compras no tapete de entrada para procurar a chave de casa e estacou surpreendida ao ouvir vozes masculinas do outro lado da porta. Não estavam à espera de visitas, só lhe faltava mais essa, o dia já estava a correr mal desde que chegara à aula de yoga e Isabel não aparecera. Não lhe atendera o telefone, e estava genuinamente preocupada com aquele desaparecimento súbito da professora. Sabia que a vida de Isabel não tinha sido fácil nos últimos tempos, mas não gostara nada da sensação de ignorância e espanto que teve de comungar com as outras colegas. Algo de grave teria de ter acontecido, Elisabete só queria era já ter conhecimento prévio, para não ser apanhada de surpresa. Para não interromper o marido continuou à procura da chave, mas teve de desistir, a neura atrapalhava-a e pressionou a campainha com força, já a descarregar a fúria no botão, sem dó nem piedade. A menopausa devia estar eminente, pensou derrotada, encostando-se à parede, cansada e afogueada. A porta abriu passado uns momentos e Elisabete estava prestes a soltar em cima de César o desagrado pelo enorme tempo de espera, doíam-lhe as mãos do peso dos sacos e estava atrasada para começar a fazer o jantar. Deu-lhe o beijo da praxe e espreitou por cima do ombro do marido, para ver quem estava sentado na sala. O segurança enorme levantou-se e sorriu-lhe amigavelmente, desarmando-a automaticamente, o que deixou César divertido. Adorava ver a líbido da mulher a dominá-la e as suas lutas internas por reprimir os seus pensamentos mais atrevidos. Ela pensava que conseguia disfarçar, mas era tão genuíno que não podia ficar ciumento sequer. Apenas achava graça, e não raras as vezes Elisabete usava-o para se redimir dos seus ímpetos mais animalescos, o que no final era positivo para os dois. Sabia que já não era o homem de antigamente, e a mulher mantinha-se em forma, saudável, e se a queria acompanhar fisicamente sem ginástica ou outra atividade, tinha de dar a mão à palmatória. Estava gordo e barrigudo, flácido e velho, mas amava-a e ela a ele. Disso não havia dúvidas. Fechou a porta a sorrir e imaginou como seria a sua noite, doce e sensual, quando ela lhe pedisse aquela massagem nos pés... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Boa noite. Peço desculpa vir incomodar a esta hora... - explicou-se Janota meio envergonhado com aquela invasão. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não incomoda nada. - cumprimentou-o com dois beijos – Passou-se alguma coisa com a Isabel? Ela hoje não apareceu na aula...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, foi precisamente por causa dela que aqui vim falar com o Dr César. - confessou gravemente – Ela ficou muito abalada com uma situação hoje de tarde... bem... eu já contei ao Dr o que foi... - sentia-se ligeiramente encavacado com o tema ao falar dele com uma senhora tão distinta. Não tinha coragem de dizer tudo aquilo novamente em frente a Elisabete.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, querida, senta-te. O Janota veio conversar comigo porque está muito preocupado com a Isabel... E com razão. Esta situação está a descontrolar-se, já está a ganhar contornos sádicos e a miúda não merecia nada disto. - enumerou, tirando três copos de whisky do armário e enchendo-os ligeiramente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mau, podem explicar-me o que aconteceu? - disse frustrada com aquele secretismo todo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Resumidamente, o João estabeleceu contacto com a Isabel através de sms, pelos vistos deram-lhe o telemóvel lá na clínica e ele deve ter conseguido maneira de o carregar. Certamente deveria estar a tentar perceber quem era a pessoa que mantinha contacto com ele pelo telemóvel, antes do internamento. Isto sou eu a imaginar, claro... - explicava César, pensativo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E...? - resmungou Elisabete impaciente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E... parece que a coisa estava encaminhada, segundo a Isabel, mas depois, aparentemente ele telefonou-lhe e quando ela atendeu percebeu que não havia ninguém do outro lado da linha a falar, apenas ouviu durante uns segundos o que lhe pareceu ser sexo. - concluiu, dando um gole na bebida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que vaca... - sussurrou – Desculpem, mas isto está na cara que é coisa da tal Nélia. - Elisabete detestava cada vez mais aquela vizinha nova. - Não percebo o que leva aquela rapariga, tão nova, bonita, a prestar-se a um papel destes... Mas ela não vê que a qualquer momento o João recupera e vai ser uma bronca de todo o tamanho?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu estou-me a borrifar para os problemas dessa tipa, - interveio Janota – só não quero a Isabel exposta a estas cenas. Já chega. Se vissem como ela estava, qualquer dia faz as malas e pira-se para Castelo Branco. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, e o que acha que podemos fazer para a ajudar? - Elisabete sabia que Janota tinha medo que a Isabel largasse tudo e fugisse para a sua terra natal, ele amava-a, estava na cara, e era mais um problema para adicionar aos outros tantos da sua professora de yoga e amiga. - Ó César, não achas que devias sentar-te com o João e acabar com esta palhaçada toda? - ralhou com o marido, que no fundo tinha o seu quê de culpa naquela situação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem... não sei se isso será o melhor..., não é Dr? - gemeu Janota preocupado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Elisabete olhou-o duramente, calando-o automaticamente, e dirigiu o seu olhar recriminador para o marido, exigindo-lhe uma resposta. - Vocês os homens... Acham certo eles andarem a sofrer quando podíamos acabar com esta confusão toda conversando com os dois? César, eu sei que a tua preocupação é a questão clínica do passado do João, ele pode parecer restabelecido, mas ainda precisa de tempo para enfrentar problemas, blá blá blá... - escarneceu – Mas isto está a ficar descontrolado. Daqui a nada ele engravida esta gaja e acabou-se! Achas certo? Achas que ele te vai perdoar? - virou-se para o segurança – E tu Janota, já percebemos que gostas da Isabel, e muito, mas tens de ter cuidado para não deixares esses sentimentos toldarem-te o bom senso. - levantou-se, pegou nos sacos das compras e dirigiu-se à cozinha deixando-os no sofá. – Agora pensem bem no que querem fazer e depois digam-me, que eu vou fazer sopa. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>César teve vontade de beber os outros copos de whisky ainda intactos, a mulher tinha razão, como sempre. Tinha de preparar um discurso e uma explicação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Raios partissem naquilo tudo, pensou João furioso ao perceber que a tal Ganesha devia estar chateada... Não queria ser injusto com a namorada, mas tinha quase a certeza de que ela tinha percebido os seus contactos secretos com outra mulher e tinha feito de propósito ao telefonar no exato momento em que estavam na cama. Não se sentia com autoridade para lhe pedir satisfações, afinal ele tinha culpa também, mas parecia-lhe extremamente ordinária aquela abordagem. Já tinha tentado mandar sms, telefonado, e nada. A sua deusa hindú não lhe respondia nem dava cavaco. Terminava ali o seu breve affair com alguém que lhe parecera mais interessante que a loira sentada ao seu lado no carro. A parva mantinha-se com um sorriso vitorioso e cínico, rosnou para si mesmo em pensamento. Como é que algum dia podia ter convidado uma tipa daquelas a viver consigo...? lamentava-se, procurando estacionamento perto do bar onde ela sugerira ir depois de jantar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vais ver que vais gostar! - disse-lhe animada com o ar frustrado dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não posso beber nada. - respondeu sem vontade nenhuma de ali estar com ela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, eu bebo por ti. - gracejou, rindo-se mais do ar de chateado dele que de outra coisa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Saíram do carro mantendo sempre distância física, e encaminharam-se para a entrada do bar, onde estava Janota à porta, com cara de poucos amigos ao perceber quem eles eram. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Boa noite. Tudo bem? - perguntou João estendendo a mão ao segurança. Sabia que eram amigos, fora uma das visitas que recebera no hospital, e estranhou o desprezo dele sem explicação. Talvez fosse uma exigência profissional, pensou, deixando de lado essa preocupação. Entrou depois de Isabel e procurou com o olhar o outro amigo, Salvador, que lhe sorriu de forma bemmais entusiasmada e franca. Várias pessoas o cumprimentaram, certamente velhos conhecidos, e João cumprimentou-os de volta, sem reconhecer ninguém.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá João! Seja bem-vindo ao mundo dos vivos! - gracejou Salvador genuinamente feliz com aquela visita.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Salvador. Obrigado. - apertou-lhe a mão com vigor – Deixa-me apresentar-te a minha namorada, a Isabel. - disse, depois de uma leve cotovelada da companhia feminina. - Gosto deste espaço, está bem decorado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, por acaso quando comprei isto tu ajudaste-me a arranjar o bar. Estás a ver aquele canto ali? - apontou para uma zona de estar mais íntima, com cadeirões, pufs e mesas baixas – Foste tu que deste a ideia! Querias um espaço mais sossegado para as tuas amigas! - piscou-lhe o olho, divertido, como que insinuando que João era mulherengo. - Mas isso foi antes de assentares, claro. - corrigiu.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah.. pois. - conseguia imaginar-se ali com a Ganesha, a ter uma conversa de pé de orelha que o pusesse louco. Era mais o seu estilo, concluiu. Isabel pegou num vodka laranja e foi dançar, deixando-os sozinhos e João sentou-se ao balcão e pediu um sumo. Aquilo ia ser a maior seca de sempre, mas pelo menos a namorada não parecia precisar dele para se divertir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>-É muito enérgica ela, não? - perguntou Salvador, a perceber claramente que João não tinha nada a ver com aquela companhia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É... parece que gosta de dançar... - respondeu, dando um gole no sumo que lhe soube a fel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Salvador olhou repentinamente para o telemóvel e pareceu bem preocupado com algo que lia, olhando para a porta ansioso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem João, isto hoje parece que vai animar! - soltou, afastando-se e dirigindo-se a outros clientes sem explicar o que queria dizer com aquilo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel fazia caras e gestos ao som da música, centralizando todas as atenções masculinas sobre si. Não era uma mulher discreta e sabia utilizar bem os seus atributos físicos para captar atenções. Não, não era o seu género de mulher. Para si a beleza tinha de estar presente, claro, mas aquele tipo de beleza que não precisa de se expôr, que não invade o espaço de ninguém, que simplesmente é. Talvez Isabel lhe fosse tão desagradável aos olhos porque no fundo não tinha substrato, pensava. Era fútil e não tinham quase nada em comum que o interessasse. Olhava em volta, a tentar identificar alguém com as características que gostava na mulher, quando uma silhueta se destacou à entrada do bar. Janota colocou-se no seu campo de visão, tapando a mulher e João voltou-se de novo para Salvador, resignado. Pediu outro sumo e tornou a olhar a pista, sorrindo a contragosto a Isabel, que lhe acenava e lançava beijos animada. Um breve instante de luzes mais psicadélicas cegou-o momentaneamente, e quando conseguiu voltar a observar a pista viu Janota a beijar possessivamente a tal mulher bem feita. Ficou a olhá-los, tão apaixonados, e sentiu uma leve inveja daqueles sentimentos fortes que arrebatam as pessoas. O casal voltou-se na sua dança erótica e João viu-a, ali, a balouçar no ombro da mulher, a mala vermelha de Isabel. A boca secou-lhe, poisou o copo com a mão frouxa, e apoiou-se no balcão, sentindo uma dormência na cara que o deixou ligeiramente aflito. Isabel... mas qual Isabel? Perguntava-se desesperado, a namorada? Não... não era dela que se tinha lembrado... O casal soltou-se e João cruzou o olhar lunático com a namorada do segurança. Era a enfermeira, disse a si mesmo quase sem conseguir respirar. Abriu o colarinho do pólo e tentou disfarçar o seu espanto, sorrindo-lhe envergonhado. Janota e a enfermeira aproximaram-se dele, com o segurança mais determinado que a companhia feminina, que parecia contrariada. A mala balouçava batendo-lhe na anca suavemente, João percorreu-a com o olhar, desceu para as suas pernas, maravilhosas, constatou, as da foto da mensagem. Sim, era ela, a Ganesha, tinha a certeza. Mas onde é que entrava a mala de Isabel naquilo tudo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá João, tudo bem? - perguntou a enfermeira estendendo-lhe a mão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> <span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, como vai? - decidiu naquele instante deixá-la perceber apenas que reconhecia a enfermeira. - Também por aqui?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já se conheciam? - perguntou Janota dissimulado. - Não sabia que conhecias o Dr João, querida!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim.... do hospital. - explicou a corar ligeiramente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João percebeu que ela também não ficava indiferente à sua presença ali, e gostou da sensação de a ter incomodado. Aquele segurança não fazia nada o género dela, tão delicada e com um ar tão fresco. Até o cheiro a sabonete que vinha do cabelo dela o começava a deliciar. Sim, aquela era uma mulher que poderia facilmente ser o seu tipo, concluiu. - Sente-se aqui um pouco, para falarmos, o seu namorado deve ter que voltar para o seu trabalho. - sorriu vitorioso ao segurança que ficou furioso com as manobras educadas com que ele lhe tinha "roubado" a namorada. A enfermeira obedeceu e sentou-se ao seu lado, desconfortável com a altura do banco e a saia tão curta. - Podemos ir para ali, - apontou para o canto dos engates – vamos, se temos de esperar, que seja bem sentados. - conduziu-a até à mesa mais discreta e piscou o olho a Salvador, que sorria bem disposto. Sim, ele sabia que aquilo não estava certo, mas dentro de si estava corretíssimo. Tinha de conseguir perceber que tipo de relações cruzadas ali existiam entre eles todos. - Quer beber alguma coisa? - perguntou-lhe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, um chá, por favor. - respondeu quase em surdina.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Deixou-a e apressou-se a fazer o pedido a Salvador. - Faz-me um grande favor, ok? Vai dando vodkas laranja à Isabel, e não lhe digas onde estou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Voltou rapidamente para o canto discreto e colocou-se de forma a que a namorada não o conseguisse ver. - Marta, não é? - começou, enfrentando-a sem a deixar falar. - Primeiro, desculpa a cena do telemóvel, por favor, não fui eu que telefonei. - confessou corando. - Eu nem sei o que pensar... não entendo nada do que se está a passar aqui. Podes por favor explicar-me quem és, ou melhor, o que é que nós somos um ao outro?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa João, devo ter-te dado a impressão errada. Nós não temos nada de íntimo um com o outro, o meu namorado é o Janota, como pudeste ver. - explicou, sorrindo-lhe só com a boca. - Foste meu aluno de yoga, sim, por isso te dei o Ganesha, a estátua do elefante, mas não temos nada um com o outro. - mentiu, colocando açúcar no chá mecanicamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem... desculpa, não queria insinuar nada... só me pareceu que... - gaguejou constrangido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não há nada a desculpar. - mentiu novamente – É compreensível que andes baralhado, claro. E a orelha? Ficou boa? - desconversou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. - mexeu-lhe instintivamente, sentindo a pequena cicatriz – Desculpa, mas porque é que no hospital não me disseste que eras minha professora de yoga? - voltou à carga – E estas fotos? Que conversas são estas que mantivémos pouco tempo antes de ficar internado? - pegou no telemóvel e percorreu os sms, mostrando-os rapidamente - E o que é que me aconteceu, caramba? Quem é aquela mulher ali? - apontou para a pista – Porque é que estás a chorar? - pegou-lhe nas mãos, nervoso. Nada daquilo fazia sentido. - Por favor, explica-me o que somos um do outro. Se não quiseres mais nada comigo, eu compreendo, mas diz-me o que já tivemos,... quem sou eu? - suplicou-lhe, apertando-lhe mais as mãos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João.... - gemeu, tentando soltar-se das suas mãos. O seu orgulho não a deixava escancarar toda a verdade como queria. Aquela mulher ali por perto, com a chave de casa dele na carteira e ar arrogante tirava-lhe a coragem. - Desculpa, mas estás a confundir tudo. Eu tenho de ir, o Janota está à minha espera, pode não gostar de me ver aqui sozinha contigo. - tentou levantar-se, sempre de mãos dadas, quase a ceder à força que João fazia no sentido contrário.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Diz-me porque é que me mandaste as fotos das tuas pernas? Achas que eu sou parvo? Eu sei que tínhamos um caso. Porque é que eu traía a minha namorada contigo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Achas-me com cara de amante de alguém? - respondeu-lhe enraivecida com aquelas insinuações despropositadas. - Larga-me já as mãos. - ordenou. - Não temos nada um com o outro. Mandei-te as fotos por engano, pensava que estava a mandá-las para o Janota. Pronto, está explicado. - mentiu, quase a explodir de raiva e tristeza.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não foi isso que eu quis dizer! Ninguém me diz nada! - gritou de volta, enfurecido consigo mesmo ao perceber a tristeza dela. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É preciso ter muita lata! - berrou Isabel de pé, olhando-os furiosa, e interrompendo o momento dos dois.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda bem que chegou, o seu namorado precisa de respostas! - enfrentou-a levantando-se e colocando-se bem perto de Nélia. - Talvez esteja na hora de se sentarem e conversarem sobre quem são, como se conheceram, etc. - escarneceu – Boa noite. Pegou na carteira e saiu disparada. Péssima ideia, péssima ideia, recriminou-se, nunca aqui devia ter vindo. E aquele Janota, atrevido, a beijar-me assim em público sem me ter pedido autorização... Parvalhão... Passou pela porta sem sequer abrandar o passo. - Parvalhão! - berrou-lhe, sem lhe dar hipótese de conversa e dirigindo-se ao carro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, já te pedi desculpa, estávamos só a conversar. - disse pela centésima vez.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A partir de agora se queres conversar, conversas comigo! - gritou descontrolada batendo a porta com demasiada força e fazendo João encolher-se com medo de que ela lhe espatifasse o motor do vidro do carro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Devagar! - ralhou chateado. - E não é preciso a vizinhança toda ouvir a nossa conversa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ai não gostas de escândalos, é? - ironizou, olhando-o provocadora. - Pois talvez comece a fazer umas peixeiradas para a vizinhança saber quem tu és!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João deu meia volta e entrou novamente no carro. Mais um bocado e dava-lhe uma galheta. Estava a perder a paciência e não queria ser preso por violência doméstica. Acelerou no carro e deixou-a a esbracejar no meio da rua, colocando o som do rádio bem alto e avançando em direção à liberdade e paz de espírito. Conduziu sem destino, andando sem nexo pela cidade quase vazia, acalmando-se à medida que diminuía a velocidade e aumentava a distância de casa. Parou num semáforo e distraiu-se a explorar o GPS do monitor, ainda não tinha tido tempo para tentar perceber como funcionava aquilo. Procurou o Menu e encontrou Últimos Destinos, carregando curioso. A última morada aparecia-lhe tão clara que não teve qualquer dúvida. Era a morada dela. Carregou em Ir e deixou-se guiar pelas informações do GPS, com as mãos a suar de excitação. Iria só espreitar o local, decidiu, tinha imensa curiosidade por satisfazer. Avançou por ruas que não se recordava de conhecer, uma zona da cidade já afastada, e que parecia demasiado inóspita. Para sua surpresa estava recentemente acaltroada, o que o descansou, aquele carro era pouco prático para caminhos menos recentes. A excitação que crescia dentro de si deixava-o como um miúdo, e não conseguia acreditar na explicação dela de que tinha enviado as fotos por engano. Sentia-se sempre demasiado entusiasmado quando o assunto era Ganesha, ou melhor, Marta. Parou o carro no portão e ficou sem saber o que fazer. Já não eram horas para visitar ninguém, e certamente que ela já estaria a dormir. Uma luz acendeu na casa e João aproveitou a deixa e saiu do carro, trancando-o. Abriu o portão, certificando-se de que não ouvia cão nenhum e encaminhou-se devagar até à porta, respirando cada vez mais dificilmente. Já ali tinha estado, sabia-o, e mesmo sem recordações, sabia que gostava daquele local. Bateu à porta e ficou à espera, respirando profundamente, enquanto aguardava nervoso. Uma fresta abriu e Marta surgiu do outro lado, tão bela e infantil, com um robe e chinelos abonecados e fofos, olhando-o nervosa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João?... O que é que fazes aqui? - perguntou nervosa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso entrar? - perguntou, já entrando, sem lhe dar hipótese de responder negativamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas.. eu já estava deitada. - gaguejou, a sentir-se amolecer com a energia vinda dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não me convenceste, eu sei que gostamos um do outro. - agarrou-a, apertando-a, como no poliban, era ela, aquele corpo tão natural, Marta agarrou-lhe nos cabelos possessivamente e beijou-o, cegando-o. Um chiar estridente fê-los soltarem-se abruptamente, e João viu um pequeno cachorro debaixo dos pés deles, aflito. Sorriu-lhe e pegou-lhe, abrançando-a com o braço livre. Continuaram o beijo, mais calmo e Marta tirou-lhe o cachorro da mão, poisando-o na cozinha por trás de uma grade que lhe restringia os movimentos e o condicionava ao espaço. Abriu o robe e deixou-o abraçá-la por dentro do tecido, mais junto ao seu corpo, sentindo-o melhor e mais profundamente. Tinha sonhado tanto com aquele momento... João tirou os sapatos, o casaco e retomou o abraço, beijando-a com mais paixão ainda. Sim, aquele era o seu sítio. Porque aquilo fazia todo o sentido, era o seu sítio, a mulher que desejava nos seus sonhos noturnos e diurnos. Pegou-lhe em peso e libertou-se, amando-a toda naquele beijo, como se precisasse dela para respirar. Marta amolecia vencida nos seus braços, como se também ela esperasse há muito por aquele momento. Só podiam ser amantes, pensou, ligeiramente incomodado. Olhou-a curioso, seria sempre assim tão forte entre os dois? - Porque é que não somos namorados? - perguntou-lhe, abraçando-a com força. Marta não respondeu, ficando em silêncio, pensativa. Algo mudou na energia que os unia e João ficou confuso, olhando-a à espera de uma explicação. - Diz-me, sempre fomos amantes?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Ela libertou-se, fechou o robe e deixou-o sem resposta, o que lhe provocou uma fúria crescente, não entendia porque é que ela se mantinha tão secretista. - Não entendes que estou confuso? Podes explicar-me por favor o que se passa aqui? Quem és tu afinal? - o telemóvel começou a tocar dentro do bolso das suas calças, e João verificou com ansiedade que era Isabel a ligar-lhe. Desligou a chamada e concentrou-se novamente na mulher amargurada e triste que o olhava em silêncio. O telemóvel retomou o som de chamada e João atendeu, nervoso. - Sim? - lançou bruscamente, sempre sem tirar os olhos dela, tão bela e desiludida. Uma dor quente invadiu-lhe o peito, - Já vou. Não se passa nada. - respondeu ao questionário da namorada – Vim dar uma volta, a ver se te acalmavas. - Marta olhava-o sem reagir, virou-lhe as costas e abriu-lhe a porta de casa, convidando-o em silêncio a sair. - Isabel, agora não posso falar. Já conversamos. Até já. - desligou o telefonema e dirigiu-se à porta, fechando-a com estrondo. - Não vou sair assim.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta apanhou os seus sapatos e o casaco do chão e devolveu-lhos, abrindo novamente a porta, sempre em silêncio. João fechou-a novamente, sentia-se a perder o norte, desorientado com o que sentia por ela. Como podia gostar tanto de uma pessoa que nem conhecia, ou se recordava...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sai. E não voltes. Por favor. - abriu-lhe a porta – Esquece-me. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>O telemóvel tornou a tocar no seu bolso, e João saiu, de sapatos na mão, ficando do lado de fora da porta, a olhar para o escuro da noite, a sentir-se miserável e humilhado. Calçou-se quase em andamento, mantendo-se firme na ordem que recebera. Vestiu o casaco, acelerou o passo e pontapeou uma pedra que se lhe atravessou no caminho. Abriu o portão e deu de caras com Janota, dentro do carro estacionado, ao escuro, como se estivesse à espera que ele saísse da casa para entrar. Quis ir partir-lhe a cara, precisava de andar à porrada, pensou, enquanto decidia se entrava no seu próprio carro ou enfrentava o segurança. Ficou uns momentos a medir o homem que saía do carro nas calmas e caminhava na sua direção em desafio. Seria uma luta desigual, lamentou-se, ao comparar os físicos dos dois, mas o que lhe faltava em músculo sobrava-lhe em fúria e ódio. Odiava aquele Janota e o facto de ele ter aquela mulher, que devia ser dele. O segurança parou bem perto de si, e ficaram a olhar-se uns segundos, só a mostrar o quanto se detestavam mututamente. Janota sorriu provocadoramente, entrou no portão, fechou-o e disse: - Então adeusinho!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João cerrou os punhos com toda a força que tinha, sem se virar para trás, apanhando coragem para desistir e dar-se por vencido. Entrou no carro e acelerou derrapando com o carro ao estilo dos policiais americanos. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É isto que agora vais ser? Amante deste tipo? - perguntou Janota possuído pelo ciúme de os imaginar intimamente momentos antes de ele chegar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é da tua conta! - respondeu-lhe furiosa com aquela abordagem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, pensa bem, ele tem uma namorada que vive com ele. Se lhe começas a abrir a porta de casa, antes de esclareceres tudo primeiro, vais ser a "outra"! - argumentou, preocupado com o avanço que João fazia na vida de Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu sei isso tudo, mas desculpa, são assuntos meus. - apressou-se a explicar. Começava a ficar aborrecida com aquelas opiniões do amigo. Sentia-o demasiado possessivo relativamente a ela e um fantasma de Tiago ameaçava a espreitar, regelando-a.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu sou apenas teu amigo, estou preocupado. Encontrei-o à saída, o que foi que se passou? Ele já aqui estava há muito tempo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Janota, eu também tenho uma pergunta para ti. Ou melhor, duas! Porque é que me beijaste no bar? E porque é que estás aqui na minha quinta a espiar quem entra ou sai, às 2h00 da manhã?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não estava a espiar. - respondeu ofendido. - E beijei-te para mostrar ao João que não precisas dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele nem sabe quem eu sou! - berrou-lhe – Sente-se atraído por mim, pensa que sou a enfermeira que o visitou, nunca o esclareci de nada sobre nós! E quem és tu para achar que te deves meter e mostrar seja o que for ao João? Estou farta! Farta disto tudo, farta de Coimbra, farta desta montanha-russa de emoções e de escândalos! Não gosto de me sentir vigiada, - apontou-lhe o dedo – fugi de Castelo Branco para ser livre! Sabes o que é que eu passei antes de me vir esconder aqui? Deixei de obedecer a um pai, que nunca me bateu, para receber ordens de um namorado e ser espancada por um marido. Consegui libertar-me disso tudo e encontrar-me novamente nesta casa, neste local, mas agora nem aqui me deixam em paz! Eu amo-o, percebes? Ele é o meu homem, disso não tenho dúvidas, e não vou querer mais ninguém! Mete isso na tua cabeça. E desculpa se tinhas esperanças relativamente a nós dois, mas isso nunca vai acontecer. Adoro-te, és um bom amigo, o melhor que já tive, mas estás a piorar tudo. - gemeu, já a sentir-se quase prestes a rebentar em choro. - Estou farta... não quero mais isto. Sai por favor, preciso de descansar. - pediu-lhe, derrotada e exausta com todas aquelas emoções.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, por favor, desculpa-me. - tentou abraçá-la, ouvindo um pequeno rosnar vindo da cozinha, a avisá-lo de que não deveria forçá-la a esse gesto. Janota olhou o cão com raiva, voltando-se novamente para ela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sai. Está tarde. Por favor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota saiu e Isabel trancou a porta, aliviada. Pegou no pequeno cão e beijou-lhe a cabeça.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada por me defenderes. - sorriu-lhe e levou-o para o quarto. - Amanhã vamos embora daqui, isto está a ficar perigoso e ainda és muito pequeno para andar à luta com um homem tão grande. A mamã adora-te, sabias? - deitou-se e deixou Filipe enfiar-se também dentro dos lençóis junto a ela. - Só hoje, porque mereces. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p><p><span style="white-space: pre;"> </span></p><p><span style="white-space: pre;"> </span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-68930223126739367932020-09-01T01:59:00.002-07:002020-09-01T01:59:19.437-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 21<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhFbLtbQtS5bc9EI5fDyamT3INvvubGBi-8uF7s0rZYw3BrCbvgNMuA8MkwSnmS4pUj5-A6zTPXSUGlZzuOo4YxORHHQ_bvg933xWSf-3eZ-DHZch6M5lMJBCLVTF7kLNaUyogeYSL4hJ0/s800/730d05_40bf40ebe11e42fca16a1dbb32321446_mv2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="798" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhFbLtbQtS5bc9EI5fDyamT3INvvubGBi-8uF7s0rZYw3BrCbvgNMuA8MkwSnmS4pUj5-A6zTPXSUGlZzuOo4YxORHHQ_bvg933xWSf-3eZ-DHZch6M5lMJBCLVTF7kLNaUyogeYSL4hJ0/s640/730d05_40bf40ebe11e42fca16a1dbb32321446_mv2.jpg" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> - Mas o que foi que aconteceu com o meu namorado? - berrou Nélia descontrolada ao se aperceber que João estava sob o efeito de calmantes e não poderia assinar o papel que tinha trazido do banco para conseguir ter acesso à conta do médico, como tinham combinado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O paciente teve um episódio grave de ansiedade durante a manhã, esteve agitado toda a noite e foi necessário medicá-lo para ele descansar. - explicou sem sequer a olhar – Acho que por hoje já não será benéfico mais visitas, ele não deve acordar tão cedo. - lamentava aquela recaída no amigo, mas o ar desiludido e furioso da bisca dava-lhe um certo gozo. Alguma ela devia andar a tramar, para ficar tão decepcionada com o facto de João estar inconsciente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O Sr acha-se muito esperto, não é? - disse, com o dedo espetado na direção da cara do diretor da especialidade – Sabia que ele ia assinar hoje os papéis do banco e drogou-o para ele ficar incapaz! - berrou, sem medir o tom de voz ou se importar com quem pudesse ouvir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Menina, não fazia ideia de que tinha papéis para assinar, mas ainda bem que o paciente está adormecido, não sei se esses documentos seriam benéficos para ele. - esclareceu, sorrindo – Mas ainda bem que falou nisso, há aqui algumas regras que deveria saber, uma, é que o paciente não se encontra capaz de assinar nada, ele não se recorda de nada, a assinatura é por isso considerada invália oficialmente, enquanto eu não lhe der alta. Outra regra é que eu estou a perder a paciência consigo, e mais uma piadinha destas e proíbo-a de visitar o paciente. Terei de explicar ao João o porquê, mas não é só a menina que sabe mentir. Ou dá meia dúzia de passos atrás nas suas intenções, ou acaba aqui esta palhaçada. - agarrou-lhe no dedo que continuava na sua direção e baixou-o, sem desviar o olhar do dela, que lançava faíscas de ódio. - Agora, se nos faz a todos um grande favor, retire-se e volte amanhã. - agarrou-lhe no braço e fez questão de a encaminhar até à porta, fechando-a sem culpas na cara de Nélia, espantada com a ousadia do médico. Deu uma olhadela à enfermeira que fingia estar ocupada com a tensão arterial do paciente e sorriu-lhe comprometido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu não ouvi nada, Sr Dr. - descansou-o, arrumando o aparelho medidor de tensão arterial.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigado Helena. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel perdia-se nos seus tristes pensamentos, enquanto afagava o pequeno Filipe que dormia profundamente no seu colo. Olhava para a janela da sala, de onde se podia ver parte do jardim e ao fundo o tanque, onde tantas vezes se lamentara e dissera impropérios alto e bom som, nos seus queixumes pessoais de pouca sorte quando lavava roupa à mão com água fria. Um leve sorriso nostálgico surgiu-lhe, quando relembrava Filipe, o primeiro, a saltitar em volta dela, nos dias de calor, à espera que uma ou outra gota de água fresca "voassem" para ele caçar. Como eram fáceis esses tempos, como tinham sido felizes naqueles cinco anos, antes de aparecer João, e reaparecer Tiago... Seria quase impossível esquecer o ex-marido, aquilo que tinha sofrido, mas mais difícil seria esquecer como João sabia amá-la, física e psicologicamente. Todo o seu corpo se arrepiou ao imaginá-lo novamente a entrar pela sua casa a dentro, sorridente, a invadir todo o seu espaço de sons e alegria. Ironicamente, ele é que era o doente com depressão, quem deveria precisar de ânimo, mas para ela sempre fora o contrário. A sua vida tinha sido colocada em pausa, depois de fugir de Castelo Branco, estava em banho-maria até o conhecer. O estado zen em que vivera sempre a satisfizera plenamente, à medida que as feridas de Tiago iam sarando devagar e Isabel recuperava a sua fé no futuro. João entrou-lhe pelo portão da quinta a dentro e a Marta viu aí a sua oportunidade de sair de cena. O que ela não esperava é que tudo voltasse aos tempos do casamento, que aquelas sensações de medo regressassem, e a assombrassem de novo. Muitas vezes se mantivera ali naquele cadeirão, onde João gostava de se sentar, com Filipe no colo, em compasso de espera, a olhar o jardim, na esperança de que ele aparecesse. Se o cão levantava uma orelha e denunciava algum som estranho rezava para que não fosse apenas o Janota, ou a Elisabete, sentindo-se péssima logo depois, por perceber como era ingrata com aqueles dois amigos, sempre presentes para a animar. Mas quem ela queria mesmo era ele... e isso só confidenciava a Filipe. O cão levantou a cabeça de repente, olhou a porta e saltou-lhe do colo, abanando-se até à porta, excitado. Isabel sentiu novamente aquela bolha de esperança, mas ao contrário dos primeiros tempos, afastou-a do peito e levantou-se, caminhando até Filipe e abrindo a porta a Janota, que a visitava diária e religiosamente antes de ir trabalhar, trazendo-lhe alguma normalidade ao dia longo e tristonho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, então? Apanhaste trânsito? - questionou Salvador, espantado com o atraso do colega e amigo segurança, sempre cumpridor das suas tarefas e escrupuloso nos seus horários.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, desculpa, devia ter-te avisado, mas quando tentei ligar vi que tinha o telemóvel sem bateria. - explicou-se, meio encavacado com a sensação de estar a falhar, coisa que detestava – Fiquei mais um pouco com a Isabel, ela precisava de uma lenha mais miúda para acender a lareira, e eu estive a cortar e distraí-me com as horas. Já ligaste as câmaras? Hoje vai ser outra daquelas noites, não é? Vou trocar-me. - disse, deixando Salvador sem tempo para lhe responder.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum, hum... parece-me é que eu sou o único aqui que não acho piada à vida do campo... - ironizou, lamentando que o segurança estivesse demasiado apegado à amiga em comum. Ainda se ia magoar, e com um corpanzil daqueles, teria muita massa corporal para sarar. Precisava de o abordar, delicadamente claro, sobre o facto de ele estar a apaixonar-se pela Isabel e pela ideia de ser o macho alfa da quinta, o protector da frágil donzela, que todos os dias parecia precisar de algo diferente, não que ela o pedisse, sabia-o, mas que Janota inventava para justificar as suas idas diárias a casa de Isabel. Aquilo ainda ia dar porcaria, quando João acordasse do estado desmemoriado e reclamasse a mulher, ela iria a correr para ele e o segurança ficava sem tarefas para ocupar os dias, para além de um grande desgosto e desilusão. Tirou um fino e bebeu-o quase de um gole, na tentativa de ganhar coragem para a conversa difícil mas necessária. Janota surgiu ao fundo da sala bem animado e enérgico, com uma daquelas t-shirts pequenas e justas que lhe acentuavam sempre os argumentos em qualquer discussão. Imaginou como seria levar um murro daqueles braços e a ideia tirou-lhe logo o rancor de se meter nos assuntos dos outros. Ainda não era a hora de o aborrecer, e o rapaz andava tão satisfeito... pensou cobardemente, sorrindo-lhe de longe. Guardaria a conversa para uma outra altura, ele já era grandinho o suficiente para saber no que se estava a meter...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João lia um jornal para distrair a cabeça, já começava a ficar farto daquele quarto. Há alguns dias que se sentia plenamente restabelecido, e não entendia as reservas do médico em deixá-lo ir para casa. Mesmo que não recuperasse a memória, tinha ainda que continuar a sua vida, e ali fechado seria bem mais difícil. Fechou o jornal aborrecido, não lhe interessava nenhuma daquelas notícias, queria era passear, ver coisas, apanhar sol, conhecer a sua casa e as suas recordações por lá espalhadas. A enfermeira entrou naquele momento com o jantar, sempre profissional e sorridente, poisando-o na mesa, juntamente com os comprimidos da noite e começou a sua rotina de check up.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sente-se bem? Algum desconforto? Quer algum outro jornal... um livro...?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, queria. - disse, lembrando-se de algo – Será que conseguia trazer-me o meu telemóvel? Eu devia ter um certo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem... eu não sei se o Dr César iria concordar. - disse meio confusa com aquele pedido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porquê? Já me disseram que terei alta nos próximos dias. E terão de me devolver o telemóvel. Não acha que tenho o direito de ter curiosidade?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Mas em todo o caso, certamente que o aparelho está desligado, sem bateria. Já não é utilizado há tanto tempo...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto, então não é preciso ter receios. Traga-me o telefone ainda hoje, por favor. - um certo autoritarismo surgiu-lhe na voz, surpreendendo-o, talvez aquele fosse um hábito antigo, dar ordens. Parecia ter resultado, a enfermeira saiu do quarto meio espantada, como se fosse sua secretária particular. Já tinha pensado como fazer relativamente ao carregamento da bateria do telemóvel. Tinha conversado com um outro paciente numa das tardes de jogos de damas, e o rapaz tinha comentado com ele que possuía um carregador dos chineses que dava para todos os aparelhos. Vangloriara-se daquilo durante todo o jogo, ao ponto de João se vir embora aborrecido com a conversa amalucada, e afinal ainda ia dar jeito, pensou satisfeito. Talvez houvesse pormenores interessantes nas mensagens, estava curioso por ver o que conseguiria descobrir. Só esperava não ter o telefone bloqueado com códigos... pois não se lembrava nem tinha forma de o conseguir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>A enfermeira entrou momentos depois, mais rapidamente do que João previra, e deu-lhe o aparelho moderno meio contrariada. Notava-se que não tinha a certeza de estar a tomar a decisão certa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada. É de facto um telemóvel muito bonito! - agradeceu, olhando-o de várias perspectivas. - Prometo que só o ligo quando o César me deixar, e também não tenho cá o carregador, não fique preocupada. - sossegou-a, sorrindo-lhe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, uma boa noite então, já mando vir recolher o seu tabuleiro. - retirou-se mais descansada. Se o chefe lhe cobrasse aquilo estava tramada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João esperou alguns momentos que o caminho ficasse livre, aproveitou para engolir a sopa rapidamente e deu duas garfadas rápidas na vitela assada, excitado com a possibilidade de descobrir alguma coisa sobre si. Engoliu um dos comprimidos e o soporífero guardou-o no bolso do robe, para não adormecer antes de concretizar o seu plano. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Senta! - ordenou com voz firme. - Lindo menino! - atirou-lhe um biscoito e voltou-se assustada ao ouvir o som de notificação de mensagens do telemóvel, que estava quase sempre em silêncio. - Espera Filipe, deixa-me ver quem é... - uma sensação de medo invadiu-a, recordando-se da mensagem de Tiago, e a imagem horrenda do cão. Pegou no telemóvel e ficou em apneia ao ver o nome de João no remetente do sms. Que brincadeira estúpida era aquela? As mãos tremiam-lhe, sem coragem para abrir a mensagem, e duas lágrimas caíram-lhe, largando o aparelho e fugindo da sala, cobardemente. Seria a Nélia a gozar com ela? Só podia, João não tinha acesso ao telemóvel há semanas, raciocinava. Mas porque é que não a deixavam em paz?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João limpava o suor da palma das mãos nas calças do pijama, excitado com aquela descoberta. Não tinha qualquer conversa gravada com o número de telefone da Isabel, e estranhamente estava não atribuído, mas uma tal de "Ganesha" mandava-lhe fotos maravilhosas de umas pernas, e rira-se bastante tempo com a conversa que lera. Num acesso de coragem, e porque não tinha nada a perder, mandara uma mensagem de volta a dizer "Olá", na esperança de que aquela pessoa respondesse de volta e ele conseguisse perceber de quem se tratava. Os minutos passavam dificilmente, desesperando-o, acedeu à internet e procurou o significado de ganesha, ficando ainda mais confuso com os resultados. Um elefante hindú? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá vizinha! Tudo bem?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá... como está? - disse a contragosto, aborrecida com o facto de ter de dar conversa à chata da mulher que falava sempre pelos cotovelos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então o nosso Dr? Ainda está sem memória? - perguntou Elisabete dissimulada, afagando o braço de Nélia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, mas a melhorar. Qualquer dia volta para casa. - olhou o relógio a fingir pressa para ir a qualquer lado e se poder livrar do questionário.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe,... eh, - deu a entender que já não se recordava do nome.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel... - grunhiu incomodada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso! Desculpe, Isabel, deve estar com pressa para ir visitar o namorado, claro. Mande-lhe os meus cumprimentos, e as melhoras! E um bom dia para si também.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigados, adeus. - soltou-se da mulher e dirigiu-se o mais depressa que podia para o carro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- "Obrigados"... - bufou Elisabete com escárnio. Não gostava nada de sentir desprezo pelas pessoas, mas aquela tipa era mesmo uma ordinária da pior espécie, matutava, enquanto se encaminhava para o prédio do lado. Se já se tinha visto, uma bronca daquelas achar que alguma vez o João podia gostar dela, ou sequer viver com ela... Tinha de ir arranjar-se para a sua aula de yoga e tentar descobrir se a Isabel, a verdadeira, comentou consigo mesma, ainda continuava imune ao charme do segurança matulão. Ela não conseguia perceber como isso era possível, Janota era um homem impressionante e dava imenso jeito ali pela quinta. Sorriu com os seus devaneios de meia idade, ao imaginar-se no alpendre a debitar ordens ao musculado, que partia lenha obedientemente, e ainda lhe sorria de volta apaixonado. Abriu a porta do prédio com um sorriso palerma no rosto e ao ver o seu reflexo na porta de vidro corou ligeiramente com os seus pensamentos. Ai se o César sonhasse... Entrou em casa e deu de caras com o marido ainda de robe, todo desgrenhado e de olheiras, com um aspecto miserável de barba por fazer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A minha investigadora privada já tem novidades? - brincou, sentando-se à mesa do pequeno almoço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A tua sorte é seres sempre um galanteador, senão ias ver! - gozou, lançando-lhe um beijo de longe e continuando o seu caminho até ao quarto, sem conseguir parar de sorrir. Duvidava que o matulão, quando chegasse à idade do marido fosse assim tão encantador. Os esteróides deviam dar-lhe cabo da inteligência, e homem velho e burro é que não! </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, amor! Estás pronto para voltar para casa? - ronronou Nélia ao entrar no quarto, fingindo-se emocionada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas... é hoje? - perguntou ansioso. - Ninguém me disse nada... - confessou meio desiludido com o facto de ninguém o ter avisado. Sentia-se de mau humor e irascível, e aquela ida repentina para casa não o punha mais calmo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Devias estar a pular de alegria! - sentenciou – Afinal, vamos recuperar este tempo perdido, viajar, fazer compras, ir jantar fora a sítios elegantes... - o seu imaginário não parava, só com as possibilidades que aquele namorado lhe trazia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa Isabel, claro que estou entusiasmado, só que não me apercebi que era já hoje, apanhaste-me de surpresa. - explicou, começando a ajudar na arrumação das poucas coisas pessoais que tinha no quarto e na casa de banho. Isabel deu-lhe uma roupa lavada trazida de casa e apressou-o a ir fazer a sua higiene matinal. - Ainda vou demorar, se quiseres podes ir ao bar da clínica beber café... - sugeriu João desejoso que aquela companhia saísse dali e o deixasse sozinho. Não percebia porquê, mas aquela namorada era sempre estranha e inconveniente. Baralhava-o muito o facto de não ter qualquer sentimento positivo quando ela estava por perto. Isabel saiu e João tornou a pegar no telemóvel, sentia-se bastante frustrado por ainda não ter recebido nenhuma resposta do sms enviado à "ganesha" na noite anterior. Sabia que era também isso que o punha de tão mau humor, aquela centelha de esperança de que houvesse uma mulher com pernas bonitas e sentido de humor à espera de um contacto dele esfumava-se e a sensação de vazio crescia, bem como um leve desespero ao imaginar-se numa casa com Isabel. Ainda não descobrira nada de positivo e excitante no seu passado recente que não conseguia recordar, e algo dentro de si se recusava a aceitar que aquela era a sua namorada. Tudo isso misturado com a culpa que aqueles sentimentos lhe provocavam tornavam o regresso à vida normal num martírio. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Antes de entrar no banho tornou a mandar um sms ao contacto misterioso em acto de desespero, fosse o que Deus quisesse. "Olá, preciso de saber quem és". Esperou alguns minutos por uma resposta e desistiu, ainda mais amargurado com a sua realidade. Tinha de se deixar de palermices românticas e admitir a verdade, tinha uma namorada bonita, sem nada na cabeça, mas haveria com toda a certeza um motivo para a ter escolhido e viverem juntos. Poisou o telemóvel e entrou no banho. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel sobressaltou-se novamente com o som do aparelho, cerimoniosamente poisado desde a noite anterior do seu lado esquerdo da cama, como uma presença simbólica de João durante a noite. Não percebia porque estava tão reticente em responder à mensagem, pensara nisso até adormecer de cansaço, com algumas tentativas escritas de resposta, mas que acabava sempre por apagar antes de carregar no "enviar". E se não fosse ele?, e se fosse?, qualquer uma das hipóteses a destabilizava, causava-lhe arritmias, suores frios e palpitações. Mas agora ali estava novamente uma mensagem "Olá, preciso de saber quem és"... Tão suplicante quanto a sua vontade de lhe ligar de volta. Filipe saltou para cima da cama e deitou-se perto do telemóvel, a olhá-lo com desconfiança, não entendia porque a dona suspirava com aquilo na mão, fez uns sons guturais e abanou a cauda com entusiasmo, olhando alternadamente para Isabel e para o telefone. - Achas que devo responder? - perguntou ao cão, que ladrou nesse exato momento como que a dizer-lhe que sim. - Bem... se tu achas, e tens um sexto sentido, eu vou arriscar. Se for a tal Nélia a tentar por-me louca destruo o telefone e pronto. Anda cá, - pegou no pequeno cão e sentou-o no seu colo, à medida que ia escrevendo alguma coisa que lhe parecesse adequada – Não me deixes sozinha agora, vamos ver se é o meu João ou não. - carregou no enviar e tapou-se com os lençóis por cima da cabeça. Não queria que nada a visse corar de raiva e desespero quando chegasse à conclusão de que estava a ser gozada pela "outra".</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entraram em casa de João e Nélia esforçou-se por tornar aquela presença masculina o mais natural possível para si mesma. Tinha estado algum tempo a viver ali sozinha, já construíra uma Isabel sofisticada e rica na sua cabeça e adorava aquele seu apartamento chique, mas só para si. Agora que o dono regressava à casa teria de se mentalizar de que o seu pequeno filme teria outras personagens e já nem tudo estava sob o seu controlo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não imaginava a minha casa nada assim... - confessou meio desiludido, ao analisar por alto a sala e a cozinha. - Sempre pensei que fosse mais acolhedor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que te apetece comer? Mando vir qualquer coisa num instante. - apressou-se a dizer, ignorando os lamentos dele, não estava com a mínima pachorra para conversas filosóficas. Tinha fome e já passava bastante da hora de almoço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Qualquer coisa, tanto faz. - respondeu, deixando-a ficar sozinha na sala a tratar do "comer", e aproveitando para analisar o resto da casa em paz. Bastava uma distância dela para se sentir logo mais calmo, constatou taciturno. O telemóvel vibrou e um arrepio na barriga percorreu-o, deixando-o meio dormente no baixo ventre. Só podia ser "ela". Esquivou-se educadamente para a casa de banho mais distante que encontrou na casa, a do quarto principal, que pela lógica seria o seu e trancou a porta. Sentou-se na sanita com as mãos a suarem e abriu a mensagem engolindo em seco. "Olá, sou a Ganesha, como te sentes?", leu várias vezes, respirando fundo com aquele contacto de quem já tinha perdido a esperança. Porque não dizia ela um nome normal... perguntava-se ansioso, mas levemente excitado com o suspense da situação. Teria de lhe devolver o sms de forma a que a conversa se prolongasse. Olhou em volta e deu consigo a imaginar-se a tomar banho com uma mulher que apenas lhe aparecia de costas na sua imaginação. Não lhe conseguia dar um rosto, mas a silhueta era quase palpável. Seria aquilo só imaginação? Olhou para o aparelho na mãos e pigarreou – Vamos a isto... "Sinto-me bem, confuso, não conheço nenhuma Ganesha. Qual é o teu nome verdadeiro?" - carregou no enviar e continuou o seu pequeno filme erótico imaginário, concentrando-se no poliban moderno, e no seu banho a dois. Percorria-a com as mãos, explorando as curvas suaves e naturais do seu copo de mulher, tão simples comparado com a volúptia que já percebera debaixo da roupa insinuante da sua namorada espampanante. Estranhamente mais cativante, natural, sem pretenciosismos nem melhoramentos artificiais. Simplesmente mulher, pequena, delgada, de cabelos castanhos, mãos finas que lhe agarravam possessivamente nos cabelos, encostou-a à parede, cada vez mais enlouquecido com o seu corpo, e ela respondia-lhe com a mesma ânsia, tentado subir-lhe para as ancas, levantou-a em peso e olhou-a profundamente, penetrando-a o mais devagar que conseguia. Tentou ver-lhe a cara, mas o êxtase que sentia não o deixava pensar claramente, só queria fazê-la perceber o quanto a amava, e sentir aquele amor de volta. Apertava-a com força, como se toda a sua vida dependesse daquele orgasmo eminente, tão perto e intenso, quando a porta sofreu um abanão e Isabel o trouxe à realidade como se alguém lhe desse um murro no estômago e o acordasse daquele sonho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>-João?! Queres molho agridoce? - esganiçou-se Nélia do outro lado da porta trancada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não... - bufou, frustrado com o choque do coito interrompido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sem molho agridoce, por favor. Sim, para ontem! - ralhou ao telefone, afastando-se novamente para a sala.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João encostou-se na parede e respirou fundo, olhou o telefone e nesse mesmo instante recebeu outra mensagem, colocando-se logo em sentido e limpando novamente as palmas das mãos suadas às calças. "Confuso porquê? Para ti sou a Ganesha. Não precisas de saber mais... por agora" Sorriu de orelha a orelha, aquilo era ainda mais excitante que a foto das pernas da mulher mistério que já tinha visto milhares de vezes desde o dia anterior. Aquela mulher devia conhecê-lo, tinha toda a certeza, só podia estar a fazer de propósito com aquele mistério todo. Mais um bocado e tinha de tomar um banho de água fria, pensou divertido. "Ah... mas depois da foto que aqui descobri eu QUERO que me digas mais... (por favor?)", enviou e bebeu água da torneira do lavatório, para se acalmar. Saiu da casa de banho, foi espreitar a namorada e certificou-se de que a mesma estava distraída e não achava estranho ele ainda não ter aparecido na sala. Disse-lhe que ia tomar um banho, mais um..., vestir uma roupa mais confortável e trancou-se novamente na casa de banho. Despiu-se rapidamente e exibiu orgulhoso toda a sua excitação ao espelho, sentindo-se bem animado com a vida, pela primeira vez há muito tempo. Uma leve culpa de estar a trair a namorada tentava entrar na sua cabeça, mas João não se sentia minimamente ligado à mulher que batia portas na cozinha. No fundo, e para sua desculpa interna, ele nem a conhecia. Mas a Ganesha era diferente, trazia-lhe uma sensação de paixão que o fazia querer ser solteiro, livre e desimpedido. Não podia ser coincidência. Se ele tinha uma amante hindú teria de haver um motivo muito forte, e a Isabel tinha de ter defeitos que o levassem a olhar para outra, dizia a si mesmo. Entrou no banho, sempre de olho no telefone, tornou a imaginar aquele corpo junto ao seu, tão sedoso, a escorregar facilmente no seu, a espuma a cair devagar pelas curvas suaves, a beijar-lhe as nádegas... o telemóvel apitou e João tirou o sabão rapidamente, secando-se a seguir atabalhoadamente, só o suficiente para não estragar o telefone. "Se pedes assim, com tanta educação... Já estás em casa?" um arrepio fez-lhe regressar a excitação, será que ela iria propôr aparecer-lhe ali...? em sua casa? Teria de encontrar uma forma de se livrar da namorada, disse a si mesmo decidido. "Estou. Estive a tomar banho,... e acho que eras tu que me estavas a esfregar as costas..." riu-se com a sua ousadia. Saiu para o quarto em busca de uma roupa lavada, sempre sem tirar o sorriso do rosto, abriu todas as gavetas que lhe pareciam um local coerente para arrumar boxers, vestiu a roupa interior e continuou a abrir portas e gavetas, sem saber bem o que vestir, confuso com tanto fato e tão pouca coisa prática para andar por casa. Uma gaveta resistia em abrir, e João precisou usar de toda a perícia dos dedos para desentalar o que lhe parecia ser um livro a trancar a abertura, abrindo-a com esforço. Pegou no livro, bastante curioso, achava aquele um sítio bizarro para guardar literatura, junto às camisolas de inverno, ficando meio perplexo a ler a capa "Sexo Tântrico"... abriu-o e algo em si estremeceu ao ler escrito a lápis "Marta 2012". Já era a segunda Marta que lhe surgia na sua recente vida consciente, não poderiam ser a mesma, com toda a certeza, pensava confuso. Um quebra cabeças complicava-se a cada dia que passava, havia uma Isabel, uma Ganesha, uma Marta enfermeira e uma Marta que lhe emprestara aquele livro. Outra mensagem surgia no telemóvel poisado em cima da cama, e João sentou-se com o livro numa das mãos e o telefone noutra, cada vez mais intrigado com aqueles factos novos. "Quando saíres do banho vai até à estante embutida do lado esquerdo. Na prateleira mais alta, ao fundo, encontras-me." Deu um salto automático, como se fosse aquela uma ordem inquestionável, percorreu a prateleira com a mão e algo duro e frio lhe surgiu bem ao fundo, como se ali tivesse sido colocado propositadamente escondido do campo de visão. Pegou-lhe e deixou-se ficar uns segundos a olhar a pequena estátua de um elefante cheio de braços, uma mistura de fofice com excentricidade, uma imagem que já tinha visto quando fez a pesquisa da palavra "ganesha" na internet. Teria sido ela a colocar ali a estátua? A ideia de que já ali tinha andado no seu quarto aquela mulher misteriosa era tão excitante que tornou a fechar-se na casa de banho para continuar a conversa. Pensou no que lhe haveria de dizer... tinha tantas perguntas que seria difícil escolher uma. "Já aqui estás na minha mão... O que queres de mim?" Engoliu em seco e poisou a imagem no lavatório, desfolhando o livro que lhe parecia um ótimo prenúncio para toda aquela realidade hindú que surgia na sua vida. Posições e teorias sobre como prolongar orgasmos, durante horas!, constatou maravilhado, parecia o sonho de qualquer um, se com a mulher das pernas bonitas, claro. Já tinha pensado várias vezes como faria para lidar com a intimidade com a namorada, que mesmo bonita e sexy não lhe parecia nada o seu género de mulher. Não que lhe parecesse um castigo, afinal já há muito tempo que estava sem sexo, segundo a lógica, mas tinha-se apanhado diversas noites a matutar nessa questão. Os beijos ocasionais que Isabel lhe dava não o faziam sentir nada de especial, e para ser sincero consigo mesmo a massagem da enfermeira Marta tinha-o arrepiado mais... Mas talvez estivesse na hora de perceber se a namorada o conseguiria fazer esquecer a amante, pensou decidido. Iria aproveitar aquela excitação que sentia para tirar as suas dúvidas. Saiu da casa de banho e deixou tudo espalhado pelo quarto, tinha um objetivo em mente e teria de se despachar antes que lhe passasse o rancor. Entrou pela sala e abraçou Isabel, que se sobresaltou com aquela abordagem tão atípica. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabes o que gostava de experimentar? - disse-lhe ao ouvido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, acho que consigo adivinhar... mas assim? Antes de comer? - reagiu confusa e ligeiramente contrariada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O almoço ainda deve demorar a chegar... - sussurrou antes de a beijar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia correspondeu o beijo o mais naturalmente possível, pensado em mil e uma formas de conseguir safar-se daquela. Não esperava nada ter de começar logo naquele dia as funções de namorada. - João, ainda estás fraco.... - ronronou tentando libertar-se dele suavemente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu aguento. - puxou-a por um braço e encaminhou-a ao quarto, sentando-se na borda da cama e apertando-a contra si. - Tens de me mostrar como é que antigamente fazíamos isto. - desafiou-a sorrindo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, mas rápido. - disse secamente, sorrindo de volta contrariada. Deitou-o para trás e dedicou-se o mais que conseguiu a fingir excitação, representar papéis sempre tinha sido uma das suas atividades favoritas, mas aquele era difícil, ainda não se esquecera da humilhação que passara naquele quarto há algum tempo atrás. Continuou a sua cena de casal apaixonado, e sentia-o já bem dominado, aquilo seria mais rápido, constatou aliviada. Tirou a camisola e usou de todos os seus atributos para o enlouquecer, resultava sempre, olhando em volta indolentemente. Viu bem perto da cabeça dele o telemóvel a vibrar, aproximou-se do aparelho, certificando-se de que João estava distraído e abriu a mensagem que tinha chegado. "Quero que voltes para mim... procura-me" Uma raiva apoderou-se dela, cegando-a, num ciúme azedo que lhe invadiu a garganta. O nojento tinha estado escondido às mensagens com outra e agora aliviava-se nela... novamente usada como uma puta, pensou amargurada, enquanto João lhe despia as calças e a roupa interior. Carregou no botão de chamada e colocou o telemóvel novamente na cama, agora era esperar a sonsa atender e estava resolvida a questão. - João... agora, agora! - gemeu Nélia, fingindo-se a enlouquecer de prazer, caprichando nos sons. João obedeceu-lhe e fizeram amor como se não houvesse amanhã, sem inibições de qualquer espécie, levados pelo calor do momento. - Diz o meu nome! - gritou Nélia acelerando o ritmo dos dois propositadamente, já consciente de que a chamada estava a ser ouvida há alguns segundos. - Isabel... - sussurrou meio a contragosto. - Mais alto! - grunhiu alternado com sons de prazer teatralizados – Isabel!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota entrou na sala e sentou-se no cadeirão em frente a Isabel que chorava silenciosamente no sofá. Não sabia bem o que dizer, mas suspeitava que o motivo teria o nome de João. Isabel colocou o telemóvel na mesinha no meio dos dois e olhou para o chão sem conseguir encarar o amigo. Janota estendeu-lhe a mão e puxou-a suavemente para si. Queria consolá-la, tirar-lhe aquela dor do peito, aquele homem do coração. Sentou-a no seu colo e deixou-a chorar, sem dizer nada. Estaria sempre ali para a ajudar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p><p><span style="white-space: pre;"> </span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-86176946539831359032020-08-31T02:38:00.001-07:002020-08-31T02:38:09.536-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 20<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQwQmiexz21Xuuah5yikCwXuDmMavoN7hB2BxLlQ0yTk__g0rNPParw56Og_7d2Wh2iYYpWLNg6I_3vyeKkNFjy5dGSXfwU7GbRa8xk5_VGbRuf2OsVOUwJhgi1Kwfv9gYkLoerQximOc/s1024/11767514426_a2de589cc4_b.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="683" data-original-width="1024" height="274" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQwQmiexz21Xuuah5yikCwXuDmMavoN7hB2BxLlQ0yTk__g0rNPParw56Og_7d2Wh2iYYpWLNg6I_3vyeKkNFjy5dGSXfwU7GbRa8xk5_VGbRuf2OsVOUwJhgi1Kwfv9gYkLoerQximOc/w410-h274/11767514426_a2de589cc4_b.jpg" width="410" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Há muito tempo que não acordava tão esperançosa com o futuro. A ideia de visitar João na clínica, lhe cortar o cabelo como prometido, conversar com ele, era tão doce, que lhe iluminou o início da manhã, como já não acontecia há meses. O dia de chuva que se adivinhava, frio e desconfortável não a incomodavam minimamente. João esperava-a, iriam estar juntos, e felizmente a amnésia não o tinha transformado em ninguém diferente. Continuava o mesmo, pensava satisfeita, apenas não se recordava de nada, nem das coisas boas, nem das más, e isso poderia nem ser assim tão negativo. Tinha fantasmas terríveis que o assombravam desde adolescente, libertara-se de tudo, agora Isabel teria de o conquistar, uma vez mais. Isso parecia-lhe um pequeno preço a pagar pela paz de espírito que a perda de memória provocara. Se havia coisa que tinha aprendido com a Dazinha era aquela forma positiva de transformar uma situação dramática numa possibilidade de novas perspectivas. "Só não há solução para a morte, menina Isabelinha!", diria ela, resolvendo o problema instantaneamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Fechou o jipe e encaminhava-se para o edifício da clínica, quando viu Nélia estacionar o carro de João e estacou confusa. Estaria a ver bem?, seria um carro igual?. César apareceu no seu raio de visão, no que lhe pareceu serem minutos, depois da assombração com a loira espampanante. Isabel saiu do transe e correu até o alcançar, a sentir uma nuvem agoirenta a cobri-los, na eminência de uma carga de água. - Dr César!- gritou, temendo dar de caras com a mulher no átrio da clínica.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel... - sussurrou desanimado. Tivera pesadelos com aquela situação, até a mulher o obrigar a tomar um chá calmante a meio da noite. Teria de explicar à verdadeira Isabel que não fora capaz de lidar com a outra, e agora João vivia uma mentira.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr César... - arfou com o esforço da corrida – Conhece aquela mulher? Aquele é o carro do João, não é?, ou estou doidinha?!... É que me parece mesmo o carro... - lançou sem parar, já com as pernas a tremer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel... temos de conversar... - confessou, agarrando-lhe paternalmente no antebraço e conduzindo-a para o elevador, enumerando mentalmente o seu discurso e pedido de desculpas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querido... bom dia! - ronronou Nélia ao entrar sem bater, interrompendo uma conversa entre João e uma enfermeira que o medicava antes do pequeno almoço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Isabel... - esforçou-se por sorrir – Aqui tão cedo? - Uma estranha sensação invadiu-lhe o peito, deixando-o levemente aborrecido com a visita da namorada. Tinha pensado em dormitar um pouco antes do corte de cabelo prometido pela enfermeira albicastrense. Não sabia se Isabel ali estava só de passagem ou se ficaria algum tempo, o que o deixou amuado. Sentia-se sem paciência para conversas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vim ver como te sentes, se precisas de alguma coisa... tenho ginásio agora de manhã, mas não queria deixar de te ver primeiro... - ronronou, encostando-se a ele sem cerimónias e pudor, sem se importar com a presença da enfermeira que arrumava os seus utensílios bastante corada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel... - olhou a enfermeira envergonhado, tudo aquilo lhe parecia não ser bem o tipo de comportamento que gostava. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, a senhora enfermeira está habituada a ver esposas apaixonadas com saudades, não está? - olhou-a com firmeza e um certo atrevimento, sem se afastar do médico constrangido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>A enfermeira saiu sem responder, deitando um olhar duro à visita tão mal educada, e deixou-os a sós, apressando-se por ir alertar o Dr César dos novos desenvolvimentos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto, já estamos sozinhos. - sorriu-lhe satisfeita – Queria mesmo falar-te em privado. - disse, modificando o tom de voz, denunciando um tema mais sério – Sabes aquele cartão que eu tinha da tua conta bancária? Olha, perdi-o... e agora preciso de levantar dinheiro para pagar o ginásio e não consigo... Eu avisei-te que devias ter-me posto como 2ª titular da conta, afinal, foi lá que depositaste o dinheiro que fizeste com a venda do meu apartamento. - recriminou-o, fingindo-se ofendida com a ação – Eu logo vi que isto podia dar problemas... tudo bem que íamos comprar uma casa os dois, e metade sou eu que vou pagar, mas eu podia ter-te dado o dinheiro só na altura... agora estou de mãos e pés atados. Explicas-me como vou sobreviver até tu voltares para casa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel... - reagiu estupefacto com toda aquela informação estranha e confusa – Eu não sei o que dizer... bem, o melhor é fazer-se outro cartão e tiras o diheiro... não sei... - conseguiu dizer, perante aquela mulher tão aborrecida. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho bem, e vou tratar disso ainda hoje! Vou ao banco e de lá peço ao gerente para te ligar, assim explicas-lhe que estás internado e eu trato de tudo, trago-te depois os papeis para assinares e resolvemos isto num instante! - beijou-lhe a boca, lentamente, deixando-o dormente e confuso, e saiu vitoriosa, sorrindo de costas para o médico desmemoriado. Aquilo era tão fácil que até dava vontade de rir! Conseguira em alguns dias o que andara anos a imaginar, ser mulher de um médico cheio de dinheiro, a fazer vida de dondoca, com a vantagem que nem tinha de o aturar enquanto estivesse no hospital. Afinal a vida nem era assim tão madrasta, sofrera muito até ali chegar, e tinha todo o direito de usufruir daquele momento, o seu momento.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por favor, desculpa-me... - murmurou desanimado sem saber o que dizer mais.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ela não se chama Isabel... o nome dela é Nélia, eu já a "conhecia". - acrescentou às informações que César lhe tinha dado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A culpa é minha, eu não soube enfrentá-la, fiquei com receio de a abordar logo no quarto, por causa do João, não o queria confundir ainda mais....</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não... isto é tudo demasiado complicado e cada vez me convenço mais de que o João não é o meu futuro, o universo parece conspirar contra isto, e eu estou cansada César... - confessou, largando uma lágrima.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não digas isso, por favor Isabel, o João precisa de nós, não o podemos deixar ser enganado desta forma! Eu sei lá o que esta tipa psicótica pode fazer? Tu tens de me ajudar a resolver isto. - suplicou, sentando-se mais perto de Isabel e pegando-lhe nas mãos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- César, eu prometi ao João que lhe cortava o cabelo hoje, trouxe a tesoura e vou cumprir a promessa. Mas será uma despedida. Não quero, nem posso lutar contra uma loira demasiado vistosa com intenções pouco claras. Ela entrou nisto para ganhar, e eu já tive a minha dose de psicopatas na vida. Vou voltar para Castelo Branco daqui a uns meses, depois de a escola arranjar uma substituta para dar as minhas aulas, e chega. Tenho andado a pensar em vários cenários e soluções, e este é o mais seguro para mim, para a minha sanidade mental. - levantou-se, abraçou César, que se mantinha calado com a surpresa e a abraçou de volta, como se precisasse ele de ser consolado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu... não sei o que dizer... - murmurou emocionado e a sentir-se estupidamente fraco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não tem de dizer nada, apenas prometer-me que o vai defender e ajudar, estar atento para ela não o tratar mal, pelo menos enquanto estiver vulnerável. Depois, se ele quiser ficar com ela já é uma escolha, e cada um faz o que quer da sua vida. - rematou pragmaticamente e com um certo desdém na voz. Saiu da sala, dirigiu-se à casa de banho mais perto e lavou a cara com água fria, na tentativa de se acalmandar o suficiente para conseguir entrar no quarto de João. Olhou-se demoradamente ao espelho, perdendo momentaneamente a lucidez, como se olhasse alguém estranho e não se reconhecesse. Um arrepio percorreu-a dos pés à cabeça, matar Tiago tinha sido mais fácil que o que estava prestes a fazer, constatou com pavor. Não queria deixá-lo, queria lutar por ele, devia entrar pelo quarto a dentro e beijá-lo, contar-lhe tudo o que a sua memória perdera, dizer-lhe que o amava e recuperar a sua vida. Mas o medo congelava-lhe as pernas, mantinha-a em pausa física, como se temesse que Tiago não tivesse de facto morrido, e a apanhasse no corredor, segundos antes de ela entrar no quarto de João. Obrigou-se a respirar cadenciadamente, como tantas vezes explicara aos outros nas suas aulas, sentou-se no chão da casa de banho para corrigir a postura do tronco e assim o oxigénio chegar mais eficazmente ao cérebro, sem se permitir chorar, porque sabia que no momento em que começasse, teria de berrar e espernear, e ali não era o local. Um último sacrifício para conseguir cumprir a promessa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João levantou-se devagar, ainda meio zonzo das horas intermináveis que passava deitado durante o dia, e ligeiramente enjoado com o efeito da visita matinal da namorada. Era estranho como a Isabel parecia tão doce nos seus pensamentos, mas pessoalmente lhe dava sensações tão negativas, matutou com culpa. A sua vida era uma incógnita, e sabia que teria de dar algum crédito às pessoas que diziam conhecê-lo, porque elas o iriam ajudar a melhorar, mas os seus instintos não o deixavam confiar a cem por cento naquela mulher em particular. Seria correto aquilo que sentia?, perguntava-se angustiado, quando a porta abriu ligeiramente e uma voz familiar surgiu pouco segura.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. Posso? - Isabel espreitou para dentro do quarto, com uma leve esperança de que ele estivesse a dormir e pudesse observá-lo um pouco, antes de se afastar de vez de João. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, bom dia! - respondeu animado, ajeitando-se rapidamente para se certificar de que estava minimamente apresentável.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vim terminar o serviço. - puxou da tesoura de dentro do bolso da bata emprestada que pedira a uma enfermeira do piso. - Acha que é boa hora? Posso voltar depois, se preferir...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, estava mesmo à sua espera. - apressou-se a dizer, sentando-se no fundo da cama satisfeito com a visita prometida. - Vejo que hoje trouxe a bata, afinal não é nenhuma maluca fugida da ala feminina. - gracejou, curioso com o semblante abatido da enfermeira que lhe parecera reservada, mas otimista no dia anterior.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Muito bem. - esforçou-se por sorrir, sem conseguir sentir de facto alegria – Vamos lá então tratar dessa juba de leão! - encaminhou-se para a casa de banho do quarto, colocou o banco na posição ideal e procurou por uma toalha de rosto para colocar nas costas de João, sempre sendo observada em silêncio, o que a deixou dormente e incomodada. - Então, mudou de ideias? - disse, tentando acabar com o momento estranho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, claro, vamos a isso. - sentou-se, deixou que Marta lhe colocasse a toalha nas costas, e ficou a olhá-la no espelho, sem saber bem porquê. - É engraçado, parece que a conheço de outro local... já ontem tive esta sensação...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, - mentiu – isso é impossível. - rematou sem se alongar – Agora vou só molhar ligeiramente o cabelo para o corte ficar mais certo. - esfregou água nas mãos e passou-as pelo cabelo de João que emitiu um som de prazer com a súbita massagem capilar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> <span style="white-space: pre;"> </span>- Isto é mesmo bom... Marta, mas que vocação perdida aqui nestes corredores. Porque não é massagista a tempo inteiro? Eu ia diariamente pagar por uma massagem destas. - sorriu de olhos fechados.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Gosto mais de dar injeções a maluquinhos. - gracejou, a sentir-se amolecer contra as costas de João, que desatou a rir com a piada, descontraído pelos dedos experientes de Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- As suas injeções são assim tão boas? Quero experimentar isso! - brincou, abrindo os olhos e notando um rubor súbito nas bochechas da enfermeira. - Desculpe, não a queria ofender. - tratou de se redimir, pensando que talvez aquela troca de palavras a pudesse estar a incomodar ou deixar desconfortável.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não se preocupe, eu estou habituada a que os meus pacientes fiquem relaxados, até na língua. - concentrou-se em pentear o farto cabelo e analisar os ângulos em que teria de cortar mais, para que a sua cara ficasse proporcionalmente bem enquadrada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, a culpa é sua. - rematou satisfeito ao ver que ela não se deixava intimidar com a brincadeira. - Agora por favor não se vingue no meu cabelo... não quero ficar um Anhuca!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Logo se vê. - deu a primeira tesourada com prazer, retomando a concentração e permitindo-se aproveitar o momento em que ali estavam encostados, de forma íntima, como se nada tivesse acontecido e ainda fossem namorados.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já lhe disse que acho que gosto de cães? - lançou, decidido a conversar o máximo que pudesse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, já disse. Mas se quer a minha opinião, não saia daqui a correr e a ir adoptar um cachorro! Esses animais enquanto são pequenos dão muito trabalho, precisam de muita paciência, tempo, disponibilidade, e vão sujar-lhe a casa toda. Se ainda tivesse um quintal, podia lá deixar o cão, mas...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como sabe se eu tenho ou não um quintal?... Eu não sei. - exclamou espantado com a observação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro que não sei, apenas deduzi pelo aspecto das suas mãos cuidadas... - apressou-se a esclarecer, fingindo-se naturalmente concentrada no corte e desviando a cabeça de forma a que ele não tivesse acesso direto à sua imagem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João observou as suas mãos, curioso com a perspicácia dela, que já olhara tempo suficiente para si para fazer deduções. - Hum... de facto não devo fazer muita jardinagem..., mas não deixa de ser surpreendente como as enfermeiras hoje em dia são dotadas. É massagens, cortes de cabelo, investigação... - gozou, procurando o seu olhar e virando ligeiramente a cabeça, quando uma dor fina e insuportável o atacou na orelha esquerda e o fez gritar, afastando-se automaticamente das mãos de Marta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe, por favor, desculpe... - gaguejou Isabel, horrorizada com a tesourada que dera na orelha de João, que sangrava sem parar. Pressionou a ferida com a toalha, em pânico. - mas porque é que se mexeu? - berrou nervosa, com as mãos a tremer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Agora a culpa é minha? - gemeu, olhando-a espantado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espere, vou chamar ajuda. - disse sem pensar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vá mas é buscar uma agulha e linha e ponha-me isto novamente no sítio! - ralhou, com a dor a abrandar rapidamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixe-me ver... - retirou suavemente a toalha e percebeu que o corte não era tão grave como o grito dele fizera parecer. - João, acho que não é preciso linha..., vou buscar um penso, já volto. - saiu apressada, sem sequer lavar o sangue das mãos, a sentir o coração na boca. Recordou rapidamente o que deveria fazer para parecer minimamente profissional quando lhe limpasse a ferida e colocasse o penso e procurou pelo material necessário num dos carrinhos que estava no corredor. Voltou a correr para o quarto, fechou a porta e respirou fundo. Aquilo não podia estar a acontecer... "apanha-se mais depressa um mentiroso que um cocho!", diria a Dazinha, e ela tinha sempre razão. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou à espera! - resmungou, enquanto tentava ao espelho observar a ferida que parecia já não sangrar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já aqui tenho tudo. - disse, erguendo uma quantidade enorme de gazes e adesivos, e obrigando-o a sentar-se novamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tem a certeza de que é preciso isso tudo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quem é que é aqui a enfermeira? - exclamou, disfarçando o embaraço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como quiser... - disse, levantando as mãos em desistência. - Também não vou ao "Pírulas" hoje... não há problema de ficar ridículo....- acrescentou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel olhou-o espantada, tinha tido um flash de memória sem se aperceber. Uma bolha de oxigénio formou-se no seu peito, invadindo-a de esperança, o que a fez sorrir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que é o "Pírulas"? - perguntou confuso com aquela sua afirmação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que é um bar na Praça... - respondeu, ficando estupidamente à espera que toda a memória aparecesse de repente e ele a beijasse com saudade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, não me recordo de nada disso... - murmurou abatido com o acontecimento que o deixava mais angustiado que esperançoso. Temia ficar tolo, sem recuperar a memória de forma eficaz, apenas tendo uns vislumbres do que tinha sido. Isso seria pior que nascer de novo, como tinha sugerido Marta no dia anterior. - Pode deixar-me sozinho?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas... e o resto do cabelo? - uma azia desceu-lhe pela garganta, junto com uma vontade enorme de chorar. Terminaria ali a sua relação com ele? Depois de lhe dar uma tesourada numa orelha e o deixar como um mendigo de cabelo desordenado..?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe, tem razão, termine o corte, por favor, acho que preciso de descansar... - murmurou, sem a conseguir olhar. Sentia-se a descer a pique para uma angústia sufocante, com o desespero a tomar-lhe conta dos pensamentos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu prometo que sou rápida... - gemeu, a sentir os nervos a descontrolarem-lhe os movimentos das mãos, que cortavam a um ritmo cada vez mais rápido. - Por favor, desculpe-me, não fique chateado, foi só de raspão, eu faço-lhe um penso perfeitinho e daqui a uns dias já nem se nota... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não faz mal, eu também não devia ter mexido a cabeça... - murmurou abatido, sem vontade de continuar a conversar. - Eu mesmo faço o penso, deixe estar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu já tive um cão, já lhe tinha dito, era um companheiro... - fungou, tentando não se deixar levar pela tristeza de tudo aquilo, pelo desespero que via no olhar dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum, hum... - disse, sem emoção, olhando o infinito, sem lhe prestar grande atenção. Até o simples facto de se sentir excitado perto daquela enfermeira o fazia sentir-se mal. Seria assim tão canalha, que preferia a companhia de uma estranha à da sua namorada? Porque nada fazia sentido, nada do que sentia o acalmava ou elucidava do seu passado. Deu uma última olhadela nela, e viu-se obrigado a desviar o olhar, porque a vontade que tinha era a de a abraçar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span> - Pronto, está feito. - sacudiu os cabelos do pescoço e dos ombros e arrumou tudo, para disfarçar a tristeza. - Pode deitar-se agora, se quiser, deve precisar de descansar. Depois quando estiver mais bem disposto tome um banho, para tirar os restantes cabelos que aí ficaram.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João obedeceu, arrastou-se para o quarto e deixou-se cair na cama, virando-se para a parede, para esconder o choro que o começava a ameaçar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel ficou estática a olhá-lo, sem saber o que fazer. Queria tanto abraçá-lo e dizer-lhe que o amava, mas não conseguia desobedecer a César. Aproximou-se o mais que conseguiu da cama e respirou fundo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João? Posso ajudar? Quer que chame o médico? - sussurrou emocionada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João manteve-se em silêncio, sem coragem para lhe pedir que ficasse e lhe desse a mão. Tinha medo, muito medo do que pudesse vir a recordar ou não, mas ela não o podia ajudar, não o conhecia, não sabia nada sobre a sua antiga vida, era uma enfermeira simpática, ponto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou embora, então... - reprimiu um soluço de choro, apertando os lábios. - As melhoras, e trate de se pôr bom e arranjar o tal cão... - deu meia volta e saiu, fechando a porta e correndo dali para fora. Não era assim que tinha imaginado a despedida, com João de costas voltadas para ela, em sofrimento, sem precisar dela. Procurou por César no gabinete do médico, mas nem esse parecia importado, tendo-se esfumaçado no ar. Chegou à rua sem se aperceber do caminho que tinha feito, com a cabeça pesada e confusa, procurou pelo jipe e entrou, acelerando até casa, em piloto automático, tinha de rebentar num local seguro e sem testemunhas. Uns sons agoniantes saíam-lhe desgovernados da boca, como que uns lamentos guturais que precisam de se libertar, e temeu não conseguir conduzir até casa, tal era o estremecimento do seu corpo, sempre que tentava silenciar os gritos. Parou o carro desajeitadamente na entrada da quinta, saiu a correr e dirigiu-se à campa de Filipe, onde se sentou agarrando nos joelhos enquanto os sons ganhavam força e a faziam temer o pior. Tinha de abraçar o seu cão, pensou enlouquecida, começando a esgravatar a terra com os dedos, furiosamente. Sim, estava a enlouquecer, mas já nada importava, apenas precisava de ver o seu Filipe e chorar agarrada a ele. Não conseguia que as lágrimas saíssem de outra forma, constatou, escavando mais e mais, à procura do cadáver do cão. Umas ossadas surgiram, revelando os restos mortais já bastante deteriorados, numa imagem que a fez parar e soltar a primeira lágrima. O seu amor reduzido a meia dúzia de ossos, o bebé que ele tinha morto, o seu filho, João, o cão, tudo ali morto e enterrado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel! - um grito ao longe chamou o seu nome, segundos antes de perder a consciência.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>Senta! Não... Senta! - disse, de dedo espetado em direção a Filipe, que estava mais interessado no biscoito – Ai, que guloso... se não aprendes não levas o doce! Vamos, temos de praticar agora, enquanto ele não chega, já sabes que depois o papá irrita-se contigo a saltitar de um lado para o outro... Tiago? Olá... estava a ensinar o Fili...- Tiago passou pelos dois furioso, sem os olhar, trazendo aquela energia agressiva que modificava o ambiente de um local – Vamos, Filipe, vai lá para fora, acabou a brincadeira. Vai!</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Filipe... pára... - resmungou, acordando com dificuldade ao sentir o nariz frio do cão no seu pescoço. - Deixa-me dormir... - ralhou, quando subitamente teve consciência do que dizia e levantou o tronco – Filipe? - olhou pelo quarto e não o viu, como seria previsível, mas barulhos vindos da cozinha deixaram-na em alerta, não se recordava bem de como tinha ido parar à cama, nem trocado de roupa.. seria ele? Um ardor de felicidade subiu-lhe pelo abdómen em direção à garganta, com a ideia de que João tinha tido alta, se recordara de tudo e estivesse a fazer-lhe chá com torradas. Correu até à cozinha e estacou ao ver Janota de avental, um homem enorme de luvas de cozinha e faces coradas com o esforço de cozinhar. A felicidade que sentiu apanhou-a de surpresa, e abraçou instintivamente o grande segurança que não sendo o João, era com toda a certeza o segundo homem por quem nutria amizade e carinho. Era graças a ele que ainda estava viva, e isso não conseguiria nunca esquecer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, então, sentes-te melhor? - disse naturalmente, como se ter uma pequena mulher agarrada ao seu tronco fosse a coisa mais normal do mundo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Janota... o que fazes aqui? - perguntou, largando-o e facilitando-lhe os movimentos atabalhoados com as panelas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, isso é uma história grande, que te vou contar durante o almoço... se algum dia conseguir terminar uma destas tuas receitas esquisitas de comer sem carne... - explicou, sorrindo-lhe encavacado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estive a dormir desde ontem? - sobressaltou-se, retirando-lhe uma das panelas das mãos e ajudando no cozinhado. - Não me lembro de nada...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que estas coisas verdes já estão cozidas... vamos para a mesa? - escorreu a água da panela, ficando completamente camuflado no vapor da água quente e provocando um riso em Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, tenho muita fome... - espreitou a outra panela e verificou se a massa já estava pronta – Acho que isto já está. Vamos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Sentaram-se na mesa exterior, onde corria uma brisa agradável de um dia solarengo de outono, e Isabel lançou-se na refeição, sendo observada por Janota que exibia um sorriso paternal de satisfação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mastiga devagar, ainda ficas com dor de barriga.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Diz lá, o que foi que aconteceu ontem? - perguntou, depois de comer algumas garfadas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem... ontem vim até aqui para te trazer uma prenda... e quando cheguei não te encontrava em lado nenhum da casa, por isso fui dar a volta lá atrás ao quintal e vi-te no chão de gatas a mexer na terra... - explicou, tendo cuidado nas palavras, com todo o tato que conseguia ter para não a deixar perturbada. Se lhe dissesse textualmente aquilo que vira certamente que ela ficaria envergonhada. - ...depois, desmaiaste. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel corou, ao recordar o surto que tivera junto à campa de Filipe, e pousou os talheres, nervosa. Não sabia que tinha sido vista naquela situação, e podia imaginar o choque dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, estás sempre a ver-me nas piores figuras... - gracejou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso imaginar o que te levou a ficares nervosa daquela maneira... mas sentes-te melhor? - desconversou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim,... mas, e ficaste cá durante a noite?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu e o Dr. César e a Elisabete... só o Salvador é que não pôde, ficou no bar. O Dr deu-te um comprimido, por isso dormiste tanto... de manhã cedo foram-se todos embora e eu fiquei para ver quando acordavas.- explicou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que vergonha... - pousou as mãos no colo e desviou o olhar do dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vergonha é roubar! Mas diz-me lá, gostaste da prenda? - Disse mais animado e aliviado por já ter explicado tudo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas o que é? Onde está? - respondeu curiosa com a surpresa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não viste? Esteve toda a noite em cima de ti... Espera, vou procurar. - levantou-se e voltou rapidamente de dentro de casa com um cachorro irrequieto que lhe cabia na mão enorme. - Aqui está! Estava com medo que não fosse boa ideia, mas o Dr garantiu-me que ias gostar!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Oh... meu...Deus... - exclamou a sentir lágrimas de alegria nos olhos – Janota.... que coisa mais fofa... - pegou-lhe reverencialmente e deu-se a cheirar, satisfeita com aqueles cumprimentos que só um cão bebé conseguia dar. - Quem é a coisa mais linda da mamã?! Quem é, quem é? Sim... é o meu... - olhou repentinamente para o sexo do animal, para confirmar se era macho ou fêmea – o meu Filipe!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda bem que gostas... estava com algum medo que fosse um bocado cedo para substituir o Filipe. - explicou, recostando-se na cadeira e recomeçando a comer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não... - disse a sorrir com os beijos e fungadelas no pescoço – todos os cães são únicos, têm uma personalidade própria, e o meu Filipe foi um cão excepcional... - relembrou, emocionada – Vivemos muita coisa juntos, boa e má, sem ele nunca tinha aguentado o que aguentei – confesosu – e aqui o Filipe Júnior vai ser um bom cãozinho e só fazer xixi e cocó cá fora na rua, certo? - olhou o cachorro que se contorcia de excitação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois... sobre isso... acho que o teu Júnior já marcou a casa em todos os sítios possíveis e imaginários... e o pior é que não é macho verdadeiro, ele agacha-se para fazer xixi, como as cadelas e nunca sabes se está só sentado ou se já está a molhar a carpete outra vez...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Enquanto são pequeninos não levantam a perna... aqui o tio Janota não percebe nada de cãezinhos fofinhos, pois não? Mas o menino vai ser lindo e não sujar a casa, é preciso é muita paciência e salsichas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Salsichas? - perguntou curioso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, não há nada que não consigas ensinar a um cão se tiveres salsichas no bolso. Acredita. - explicou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que também fazia umas habilidades por umas salsichas... - sentenciou divertido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e figiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apoderou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João! Acorda! </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-37356705157256833882020-08-28T01:36:00.003-07:002020-08-28T01:36:28.872-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 19<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: helvetica;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKo461BvakjXkxzlbbbNwbxhNJJfuC8AUv5bnNJ9w9-tYw9LoM8CwfS-4g77n2VA6nkaN6cEeJ-LFHhFvbiePvjYKwXOpQmnyoLlriksfgrFCWUKLQ3Wh63vUMUL4h-j_kj4s7LqGHRHo/s1300/o-gato-na-varanda-e-o-facebook-a-janela.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="866" data-original-width="1300" height="273" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKo461BvakjXkxzlbbbNwbxhNJJfuC8AUv5bnNJ9w9-tYw9LoM8CwfS-4g77n2VA6nkaN6cEeJ-LFHhFvbiePvjYKwXOpQmnyoLlriksfgrFCWUKLQ3Wh63vUMUL4h-j_kj4s7LqGHRHo/w410-h273/o-gato-na-varanda-e-o-facebook-a-janela.jpg" width="410" /></a></span></div><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Posso entrar? – perguntou docemente depois de bater na porta entreaberta do quarto de João.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. Boa tarde. – respondeu meio espantado com a visão daquela mulher vistosa que lhe sorria familiarmente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João… meu amor… - choramingou, aproximando-se da cama devagar, enquanto avaliava a reação dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe, conhecemo-nos?<span style="white-space: pre;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sou eu, a Isabel. – disse mentindo descaradamente e sentando-se na cama de forma íntima.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel…? – aquele nome não lhe parecia totalmente desconhecido, mas, ou a proximidade física entre os dois estava a ser demasiado rápida, ou a memória daquela cara não existia simplesmente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querido… estive no estrangeiro quando tudo aconteceu… não fazia ideia de que tinhas sofrido um acidente… quando cheguei hoje a nossa casa e não te vi fiquei em pânico! – explicou, agarrando-lhe nas mãos suadas dos nervos, o que a deliciou – Mas não te preocupes, agora vai ficar tudo bem!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João endireitou-se na cama, para respirar melhor e afastar-se do cheiro do perfume da mulher, que o enjoava ligeiramente, com uma ansiedade a crescer-lhe no peito. Esperara por aquela visita durante vários dias, quando a consciência do que lhe tinha acontecido permitiu o surgimento de várias questões práticas sobre o seu passado. Mas, ao contrário do desejado, não sentia nada ao olhar nos olhos da mulher que se identificava como seu amor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe… mas explique-me com calma quem é… - conseguiu dizer com a boca a secar-lhe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, eu não devia ter entrado assim nervosa. Estive tanto tempo sem te ver… e quando soube que estavas aqui… felizmente o acidente não te magoou… - disse, observando-o com cuidado – Eu sou a tua namorada, Isabel. Vivemos juntos há algum tempo, eu sei que não te lembras de nada, o Dr. César explicou-me. – acrescentou, no exato momento em que o médico entrou no quarto e interrompeu o seu discurso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. – exclamou confuso ao ver uma mulher de mãos dadas com João, que parecia aterrorizado – O que é que passa aqui? – Não se recordava de ter autorizado aquela visita, ou sequer de alguma vez a ter conhecido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, Dr. – disse João – Esta é a Isabel. – explicou, surpreendido com o visível espanto do médico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Isabel? – virou-se instantaneamente para ela, à procura de uma resposta para toda aquela loucura. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, a Isabel, não se recorda? Falámos ontem ao telefone. Sou a namorada do João. – encarou-o firmemente, estendendo-lhe a mão – Prazer em conhecê-lo pessoalmente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Prazer. – respondeu gravemente, a sentir-se ferver de raiva com aquela situação lunática. – Pode por favor acompanhar-me ao meu gabinete? Precisava mesmo de conversar consigo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia levantou-se, beijou João na boca e fez-lhe uma festa carinhosa, sossegando-o.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu volto já amor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Faça favor. – César abriu-lhe a porta e sorriu a João, para não o alertar ainda mais. Sabia que não tinha disfarçado o nervoso daquele encontro e seria ainda mais difícil explicar-lhe tudo depois de perceber o que quereria aquela mulher misteriosa que se intitulava macabramente de Isabel, utilizando o nome das duas mulheres do passado de João. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Caminhou em silêncio até ao fundo do corredor, seguido por Nélia que não demonstrava qualquer constrangimento com aquela conversa privada e fazia a sua primeira análise do que estava a acontecer. Uma oportunista sem escrúpulos, gritava-lhe a sua vozinha interior. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sente-se por favor. – ordenou, tomando o lugar em frente do outro lado da grande secretária cheia de processos clínicos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada. Então? O que queria conversar?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sou amigo do João há vários anos. Ele teve uma mulher chamada Isabel e tem de facto uma namorada também com esse nome, e nenhuma delas é a senhora. Quer explicar-me o que vem a ser isto?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia sorriu indolentemente e recostou-se na cadeira, observando o psiquiatra nervoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, lá porque nunca me viu antes, não significa que eu não faça parte da vida dele. Nós temos uma relação, que começou antes dessa tal suposta namorada. Se ele nunca lhe contou é porque tencionava manter-me em segredo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, nunca mencionou conhecer uma terceira Isabel. E eu duvido que isso seja verdade. – respirou fundo e continuou – Menina, eu não sei o que pretende com esta abordagem, mas tenho de a avisar de que está a comprometer o tratamento e a recuperação ativa do paciente. Ainda não lhe falámos sobre detalhes do passado que ele esqueceu momentaneamente porque aguardamos que recupere sozinho, sem influências. Aquilo que fez pode ser altamente prejudicial! – disse já exaltado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então deixam um homem já quase recuperado, pelo que pude perceber, completamente às cegas, à espera que se dê um milagre e ele se lembre de quem era? Parece-me bastante cruel. – ironizou – Cruel e pouco correto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe mas não tem qualquer legitimidade para tecer considerações sobre o que é correto ou não no tratamento do paciente. Como já lhe disse, não a conheço de parte nenhuma.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, já me disse, e eu repito-lhe também: Eu e o João temos uma relação. Eu tenho provas. – tirou o telemóvel da carteira, procurou as fotos dos dois na cama e mostrou ao médico, sem pudores.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso não prova nada. – uma azia ameaçou aparecer com aquela visão que sabia que ela utilizaria também com João.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quer apostar?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Minha menina, eu não vou permitir que faça o que está a pensar! O João não namora consigo. Se andaram enrolados meia dúzia de vezes isso não lhe dá o direito de querer assumir um lugar que não é seu! – berrou, dando uma palmada na mesa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos ver se não dá! – respondeu sorrindo – Ele deve estar ansioso por retomar a vida que deixou pendurada e que ninguém o deixa lembrar. – levantou-se e saiu apressadamente do gabinete deixando César embasbacado, voltando ao quarto o mais rapidamente que conseguiu. O médico não teria hipótese de a desmentir, principalmente porque temia confundir ainda mais o amigo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João saía do quarto de banho, amparando-se nos móveis, ainda pouco certo nos movimentos, quando Nélia apareceu bruscamente e se lançou nos seus braços, emocionada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que saudades… tive tantas saudades tuas… - levantou a cabeça e procurou o seu olhar, beijando-o com paixão, no exato momento em que César entrava de novo no quarto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe Dr… - disse João envergonhado com aquela indiscrição da namorada. – Já conversaram tudo?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, mas fica para uma outra altura. – rematou o médico, olhando Nélia duramente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querido, agora deita-te, ainda estás fraco. – encaminhou-o para a cama com suavidade – Dr, onde estão as coisas pessoais do meu namorado? – perguntou com os olhos sorridentes, deixando-o encurralado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Guardadas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então pode pedir que as tragam? Precisava de usar o carro, o meu está na oficina, ainda não o fui buscar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Preciso da autorização do paciente, e nas condições atuais não podemos colocar-lhe essa responsabilidade… - explicava, a tentar safar-se da situação e negar o pedido da mulher, que infelizmente parecia astuta o suficiente para conseguir o que queria.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe Dr, mas parece-me um pouco de zelo profissional a mais. Afinal, isso são pormenores de protocolo! Eu preciso de usar o carro e estão lá as chaves! Não achas João?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Se ela precisa do carro, dr… - concluiu assarapantado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto, está a ver? Peça lá a uma funcionária que traga tudo o que é do João, inclusive a roupa que trazia quando deu entrada. Eu levo para casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. – resignou-se furioso, levantando-se e fingindo-se convencido. Sentia-se a perder o controle de tudo aquilo, a aquela maluca agia demasiado rápido, sem lhe dar hipótese de pensar como poderia reverter a situação sem prejudicar João. Caminhou nervoso pelo corredor, e pensou em telefonar para Isabel, perguntar-lhe se saberia quem era aquela mulher misteriosa, mas iria simplesmente magoá-la com aquela história surreal. Calma, dizia a si mesmo, era preciso ter calma para não piorar tudo. Pegou nos pertences de João e colocou-os num saco da clínica, suspirando. Quase quarenta anos de profissão e nunca tinha lidado com uma excêntrica daquele calibre. Lisa saberia como lidar com ela, lamentou-se, porque não conseguia ele calar a matraca à loira sabichona?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel fechou a porta de casa de João e limpou uma pequena lágrima que teimava em querer sair desde que se encaminhara para a saída. O medo de nunca mais ali voltar invadia-a, tornando-a ansiosa e frágil. Sabia que estava a dramatizar, era uma questão de tempo até João recuperar a memória, mentalizava-se, colocando a chave na caixa do correio, como Rosário pedira. Todas as suas roupas, saco de viagem, vestígios diretos e indiretos da sua breve presença na casa foram meticulosamente retirados, e Isabel sabia que era para o bem de João. César estava certo, não poderiam criar uma realidade alternativa na sua mente, contando-lhe pormenores importantes do passado esquecido, simplesmente porque iriam colidir positiva e negativamente com o que o seu subconsciente bloqueava. Quando ele se lembrasse, deveria estar o menos influenciado possível, para conseguir lidar de forma saudável com os sentimentos que todas as memórias lhe trariam. Isabel sabia-o, percebia e respeitava a sua opinião profissional, e deixou apenas Ganesha, discretamente arrumado numa prateleira superior, praticamente invisível, para o guardar durante a noite, assim que regressasse a casa. Saiu do prédio e dirigiu-se ao jipe, acelerando nervosamente. Já estava atrasada para a sua aula da tarde e ficar por ali era torturante. Felizmente tinha o yoga para a ajudar, suspirou agradecida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Esperou que Isabel desaparecesse na rua e saiu detrás da carrinha estacionada, correndo até à porta do prédio e apressando-se a retirar da caixa do correio a chave da tia. Se tudo corresse como planeara desde a clínica até ali, nunca mais a Rosário entraria naquela casa e essa era uma das primeiras coisas a providenciar, afastar a empregada de João e do seu apartamento. Entrou em casa e sorriu de orelha a orelha, com uma satisfação que lhe fazia inchar o peito. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, realizada e optimista. Na sua cabeça nada poderia correr mal, era tão fácil que dava vontade de gargalhar. A vingança mais fria que poderia ter imaginado, assumir o lugar de Isabel, deitar-se na sua cama, conduzir o seu carro, usufruir de todas as mordomias chiques que João nunca lhe dera a oportunidade sequer de desejar, expulsando-a de casa como se fosse um pedaço de esterco sem utilidade. Iria ocupar o seu lugar na vida dele, usá-lo enquanto a sorte lhe permitisse, organizar-se financeiramente, introduzindo-se naquele meio social requintado, e se João recuperasse a memória, depressa encontraria outro possível namorado rico a quem se encostar. A vida tinha-lhe sido até então madrasta, estava na altura de mudar as regras e fazer-se esperta. Esperar pela bondade do destino ficava fora de questão, nem que para isso tivesse que se transformar em Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podes por favor explicar-me isso tudo com calma? – Elisabete esforçava-se por entender o discurso atrapalhado e nervoso do marido, que lhe ligara antes de chegar a casa, o que era raro e sinal de problemas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Lisa, o João está a ser vítima de burla, entendes? Estava lá uma mulher no quarto que assumiu ser a “Isabel”, a namorada, me enfrentou descaradamente, sem papas na língua… - gemeu, a sentir-se patético à medida que verbalizava tudo aquilo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tem calma, demoras muito a chegar? Não é melhor falarmos em casa, tomas um banho, jantamos e explicas-me tudo com tempo? Vamos, não há nada que não se possa resolver, anda. Conduz com calma que eu vou terminar o jantar. – disse carinhosamente, transformando a neurose do marido automaticamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, sim… tens razão, já vou a caminho. – confessou, respirando fundo – Até já. – desligou o telefone e concentrou-se no trajeto, olhando-o com mais atenção que o costume. Fazia aquela estrada, ida e volta, há vários anos, mas só quando ficava realmente preocupado é que lhe prestava atenção, procurando nos seus pormenores uma âncora para o desespero. Agarrava-se à enormidade das árvores à sua volta, estudando a sua forma, para não pensar em nada do que assistira naquele fim de tarde. A Lisa saberia desdramatizar tudo aquilo, encontrar uma solução prática e tirar-lhe aquele peso da culpa, pensou, aliviado com a perspectiva de chegar a casa. Não poderia nunca ser Psiquiatra se não estivesse casado com ela, admitiu, recordando-se de lhe ter pedido um dia que fosse sua e nunca o deixasse, por puro egoísmo, a que muitos chamavam de amor. Sem ela não seria nada, amava-a, ou melhor, precisava-a mais que tudo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>“… quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…”</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João acordou sobressaltado com aquele breve sonho, efeito da digestão do jantar com mais uma dose de comprimidos variados, a nova sobremesa do hotel de cinco estrelas a que estava confinado, sem data para sair. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma criança nos sonhos, pensava curioso, nem aquele cheiro a pão fresco, mas César alertara-o de que os sonhos noturnos poderiam ser confusos e pouco credíveis. Era necessário deixá-los aparecer, sem que isso se transformasse num factor de mais angústia. Havia remédios para não sonhar, informaram-no numa das visitas consulta, mas só seriam necessários se ele não lidasse positivamente com essas manifestações do inconsciente. Como estava farto de medicamentos, esforçava-se para não sucumbir à angústia que o rosto indefinido do menino lhe provocava. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>E também havia Isabel, a bela mulher que aparecera naquela tarde, trazendo-lhe mais um raio de esperança. Era nela que teria de pensar, como um objetivo claro para a sua recuperação total. Iria visualizar a sua cara antes de voltar a adormecer, na tentativa de sonhar com ela. Estava farto de ser prisioneiro do passado, queria dedicar-se ao futuro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>César abriu a porta de casa e sentiu automaticamente metade do peso sair-lhe de cima. Dias de trabalho duros eram sempre difíceis de ultrapassar, mas por vezes dava por si a desejá-los, só para sentir aquele alívio quando entrava em casa e recebia aquela energia positiva que Lisa colocava em tudo, nos pequenos pormenores. Uma flor diferente no hall, aquela velinha acesa em honra da Sagrada Família que os olhava da sapateira da entrada, o cheiro de um ambientador por cima da mesa de café no centro da sala que se misturava com o odor a pele gasta dos sofás já a pedir reforma, mas que teimosamente iam ficando por serem os únicos anatomicamente adaptados ao casal. Tudo aquilo o curava, menos naquele dia. Sentou-se no seu lugar, como habitualmente, à espera que Lisa aparecesse de uma das divisões, enquanto ele remoía nas suas dores, sentindo-se especialmente em baixo. Uma mistura de frustração com medo, que não conseguia bem explicar, apertavam-lhe a barriga. Levantava-se do sofá quando Elisabete lhe surgiu por trás, abraçando-o com um braço e colocando-lhe um copo generosamente servido de whisky, com duas pedras a dançar, tilitando.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como é que sabias que ia mesmo agora buscar um? – perguntou espantado com a clarividência da mulher.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Muitos anos, meu querido. Já tenho o Doutoramento em maridos psiquiatras. – brincou, sentando-se do seu lado intimamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, é verdade, eu tenho muita sorte. Não sei como é que os meus colegas aguentam aquelas mulheres de vinte e poucos anos,… não é que estejas velha, - sorriu-lhe atrevido – mas és como eu, andamos na mesma rotação. Acho que já tinha pirado se não fosses tu. – confessou, pegando-lhe na mão e dando-lhe um beijo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso é verdade, tens mesmo muita sorte! – gracejou – Agora explica-me lá o que te deixou assim tão cabisbaixo, velhote!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não percebi bem o que aconteceu. A imagem que ilustra é um grande trator a arrebanhar tudo e todos, passando por cima sem dó nem piedade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixa-te de ilustrações, - disse curiosa – conta-me tim tim por tim tim o que viste. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, quando cheguei ao final da tarde ao quarto do João, entro e vejo uma mulher loira, vistosa, sentada à sua beira na cama, de mãos dadas com ele. – começou a explicar – Fiquei naturalmente surpreso com a cena, nunca a tinha visto, e o João parecia também estupefacto, coitado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, ele ficaria estupefacto com qualquer coisa, não se lembra de nada… - acrescentou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro. Mas a tipa tinha qualquer coisa no olhar que assusta, sabes? Apresentou-se como a “Isabel”, namorada do João. Acreditas? – exclamou infamado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum… Sim, e que mais? – perguntou, de olhar fixo no nada, concentrada nos pormenores do discurso do marido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Chamei-a logo ao gabinete, para tentar perceber o que é que ela queria… Confrontei-a com a verdade, que sabia que ali havia esquema e ela não negou nem confirmou. Apenas me esclareceu que era conhecida do João e mostrou-me as provas dessa relação… umas fotos nojentas dos dois na cama. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como eram as fotos? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como eram as fotos? – perguntou escandalizado com a curiosidade da mulher.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim! Como estavam? Deitados, de bruços, de cócoras… diz lá!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O João deitado, de olhos fechados, e ela em várias posições… a fotografar, com o braço estendido, assim. – demonstrou como deveriam ter sido captadas as fotos, pela lógica da perspectiva.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E depois? O que disseste quando as viste?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O óbvio, que aquilo não provava nada! E ela desafiou-me, literalmente, levantou-se e saiu disparada de volta para o quarto dele… Quando a consegui alcançar, já a apanhei aos beijos com ele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Esperta… E o João? Embasbacado, não? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Coitado, com cara de quem não sabia onde se meter… Mas o pior não sabes… - acrescentou gravemente – Ela pediu os pertences pessoais dele na sua frente, chaves do carro, casa, roupa, e não nos deu outra hipótese senão obedecer-lhe. Como é que íamos explicar depois ao João que não podíamos dar as chaves à “namorada”, sem transformar aquilo num problema ainda maior?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que loucura… E agora a tipa deitou a mão à casa e ao carro? – perguntou, sem precisar de uma resposta – Será que está lá neste momento?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei, espreita aí da varanda e vê se há lá luz. – disse sem emoção na voz, bebendo mais um gole.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Elisabete obedeceu energicamente, olhando discretamente para o prédio ao lado e confirmando que a tal “Isabel” estava em casa do João. Uma ideia surgiu-lhe, seria arriscado, mas precisava tentar ajudar o seu amigo e resolver a trapalhada que o marido não tinha tido coragem de fazer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não há luz nenhuma… - mentiu, fechando um pouco do estore para dissuadir o marido de confirmar o que ela dizia – Bem, deixa-te estar aí a terminar o teu whisky, relaxa, que eu vou lá abaixo ver o correio e já venho. Podias ir tomar um banho, o jantar está quase pronto, e já continuamos a conversa. – beijou-o na cabeça e saiu em direção à porta de casa, sem demonstrar qualquer constrangimento.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está bem. – disse, engolindo o resto da bebida de uma só vez. A ideia do banho animava-o, e precisava de jantar rapidamente, senão o whisky tomar-lhe-ia conta do juízo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Elisabete bateu a porta de casa e apressou-se a dirigir-se ao prédio do lado, onde a tal mulher se encontrava, a ocupar uma casa que não lhe pertencia. Não sabia bem o que lhe iria dizer concretamente, mas precisava de a ver ao vivo, dirigir-lhe algumas palavras para tentar entender com que tipo de pessoa o João teria que lidar, e consequentemente, todos eles. Tocou a uma campainha ao acaso e pediu educadamente para lhe abrirem a porta do prédio, inventando uma desculpa coerente. Ninguém desconfiava de uma voz de mulher aflita, comprovou, ao ouvir o som da porta automática a abrir prontamente. Subiu as escadas, evitando o elevador, na tentativa de ganhar tempo para se preparar, sentindo-se ligeiramente nervosa. Agora não poderia desistir, e teria de ser rápida, para que César não desconfiasse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Colocou o ouvido delicadamente junto à porta de casa de João, parecia-lhe ouvir música um pouco estranha e agressiva, daquelas que passavam na rádio do café perto da escola de yoga. Tocou à campainha e fez o seu melhor ar, certa de que a rapariga iria estudar a imagem pelo óculo e esperou um instante antes de premir novamente o botão, insistindo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim? – uma voz em alerta soou do outro lado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim? Vizinha? Desculpe incomodar, mas estou muito aflita! – disse fingindo-se com um problema grave.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia abriu uma nesga da porta, desconfiada daquela visita repentina, mas já tinha denunciado a sua presença, não poderia deixar a mulher sem resposta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que aconteceu?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe querida, mas moro aqui ao lado, e acho que o meu gato saltou para a sua varanda… estou tão aflita, posso ir lá ver se ele está bem? – choramingou, já entrando pela casa, desaustinada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro… - reagiu sem hipótese – Mas tem a certeza de que o gato veio para esta varanda? – perguntou, abrindo a porta de vidro e espreitando para o local já escurecido da noite.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ai, meu Deus… não está aqui! – exclamou, deitando as mãos à cabeça – Eu vi-o saltar… não me digam que caiu lá para baixo!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenha calma, os gatos têm muitas vidas! Sente-se um pouco, pode ser que tenha saltado novamente para a vossa varanda… - Nélia esforçou-se por ser simpática, afinal iria morar ali por uns tempos, não queria ser mal falada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada… - fungou, tirando um lenço do bolso e fazendo de conta que limpava uma lágrima dos olhos – Podia dar-me um copo de água? Estou muito nervosa. – pediu, tentando perceber se ela já era íntima do local, observando-a a procurar o armário correto dos copos e analisando todas as movimentações da loira espampanante. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Aqui tem. Beba. Vou espreitar melhor a varanda. – Nélia deixou-a a recompor-se, não lhe apetecia nada ficar a dar conversa a mulheres com chiliques da menopausa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É muito atenciosa… - suspirou, assim que a rapariga voltou da varanda – Desculpe invadir assim a sua casa… deve estar atrasada já com o jantar, não é? – comentou, devolvendo-lhe o copo e mostrando intenção de sair – O Dr deve estar a chegar…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eh… sim, ia agora começar a fazer o jantar. – mentiu, começando a ficar incomodada com o seguimento da conversa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Engraçado, nunca a vi aqui no prédio. Está cá há pouco tempo, de certeza.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, sim. Mudei-me apenas há algumas semanas… Mas quase nunca saio de casa. O João não quer que eu trabalhe. – inventou, tentando encaminhar a mulher para fora do apartamento.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, faz muito bem. Uma rapariga assim tão bem apessoada, é normal que ele tenha ciúmes e a queira guardar! – gracejou, dando-lhe o braço e deixando-se levar até ao corredor. Já tinha percebido o que queria e feito a primeira abordagem à mulher. Já não era uma total estranha para a suspeita de burla, e isso seria importante.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada, mas agora tenho de ir fazer o jantar…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, querida. Obrigada pela sua simpatia, vou procurar o “Tareco” na casa da outra vizinha. Adeus, e espero vê-la mais vezes! – deu-lhe um par de beijos e deixou-a fechar a porta, antes de se lançar em direção a sua casa. O marido já devia estar pronto do banho e a lasanha tinha ficado no forno por esquecimento. Seria uma catástrofe!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas onde é que tu te meteste? – exclamou César aborrecido, à luta com as luvas de pano com que tentava tirar o jantar do forno.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, a Dona Perpétua apanhou-me lá em baixo e não se calava! – mentiu, tirando-lhe tudo das mãos e puxando a travessa com facilidade para a mesa já posta na sala. – Vamos, que isto está no ponto! – disse animada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cheira muito bem… Mas não tenho assim muito apetite.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem penses em fazer-me uma desfeita dessas. Nada de depressões imaginárias, tens de comer, e este é um dos teus pratos favoritos! Vamos, dá cá o prato! – ordenou, tomando as rédeas da situação, ali quem mandava era ela, como uma mãe de substituição, mantendo a família na ordem. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>César obedeceu e deixou-a encher o prato, sorrindo ligeiramente, afinal, era muito bom ter alguém que gostava dele ao ponto de o querer alimentar como uma criança. Serviu os copos de vinho e lançou-se na Lasanha, adiando um pouco o resto da conversa sobre João. Lisa tinha aquele dom, o de o chamar à realidade mais básica, puxando-o daqueles planos mais abstratos e angustiantes dos pensamentos. Comer era um dos seus trunfos, e se ela cozinhava bem, pensou satisfeito.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)<br />(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-37007282101720423332020-08-27T02:20:00.001-07:002020-08-27T02:20:11.873-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 18<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_r-9JIUEnxejeHOKZHhOA2vIAYCyIC7YNkuVyaS8qNShSD9PjjKeuiA-BoogpFi5BTC2xfSKOc_TjhyKuDErJUhvZ4RxgoDq2HIXi2pgnRZsqiL-pI1v4WNWP8djnIiOmotuovZg3Z5E/s602/barba-irritada-descubra-o-que-fazer-para-tratar-2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="410" data-original-width="602" height="262" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_r-9JIUEnxejeHOKZHhOA2vIAYCyIC7YNkuVyaS8qNShSD9PjjKeuiA-BoogpFi5BTC2xfSKOc_TjhyKuDErJUhvZ4RxgoDq2HIXi2pgnRZsqiL-pI1v4WNWP8djnIiOmotuovZg3Z5E/w386-h262/barba-irritada-descubra-o-que-fazer-para-tratar-2.jpg" width="386" /></a></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Amnésia? Como assim? Não se recorda de nada? – perguntou Nélia, surpreendida com as novidades que a tia contava enquanto arrumava a cozinha depois do jantar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pobrezinho, diz que foi do choque de ver o cão morto… - lamentou-se, sentindo uma pontada de culpa com aquele trágico acontecimento – Se eu sonhasse que aquele homem era um criminoso… - fungou, limpando os olhos com o pano da loiça – parecia tão sério…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A tia não tem culpa de nada! – exclamou exagerando no tom indignado – E o Dr está na melhor clínica privada de Coimbra, - acrescentou com escárnio – com os preços daquilo até podem devolver a memória a um morto!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nélia! Por favor,… isso lá são coisas que se digam…. O Dr João não está morto! – benzeu-se, olhando reverencialmente para o tecto da cozinha. – Amanhã tenho de o ir ver… coitadinho, sem família que tome conta dele. Já falei com o médico, o Dr César, e ele disse que agora já podemos vê-lo. Já lá vão três semanas… e nada… - explicou, referindo-se à recuperação da memória do patrão – mas já é seguro receber mais visitas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se quiser posso ir consigo… - sugeriu, fingindo pouco interesse – Pode ficar emocionada e precisar de ajuda. – sentia uma curiosidade mórbida em ver o aspecto com que o homem arrogante que conhecera estava, depois de quase um mês a calmantes e outras drogas, num quarto de hospital.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada querida, - surpreendeu-se coma simpatia da sobrinha – gostava muito de não ir sozinha. Aqueles sítios provocam-me calafrios…. – confessou, recordando a época negra em que a irmã e mãe de Nélia fora internada compulsivamente na Psiquiatria dos Hospitais de Coimbra.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então fica combinado. Precisa de ajuda? – perguntou cinicamente, depois de quase tudo estar limpo e arrumado pela tia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixa estar, vai descansar, eu termino isto aqui. – respondeu, passando o pano maquinalmente no balcão imaculado. Suspirou e esfregou mais um pouco, matutando naquela sobrinha que por vezes ainda a conseguia surpreender positivamente. Talvez a idade lhe estivesse a trazer juízo, concluiu, pondo aqueles pensamentos angustiantes de parte, ao mesmo tempo que poisava o pano. Desligou a luz da cozinha e despediu-se da santinha que a velava no corredor da casa, dirigindo-se ao quarto, num ritual antigo que a mantinha segura e em paz. Não conseguiria dormir sem a proteção da “Nossa Senhora de Fátima”, ou sequer passar por ela sem a admirar por breves segundos, tão linda e pura, de olhos tristes e empáticos, testemunha de tantos anos de sofrimento e dores, sempre ali para a consolar. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João acordou com as vozes animadas que enchiam o corredor, ainda confuso com o último sonho que o perseguia há várias noites consecutivas. Uma mulher morena de tranças enormes embalava um pequeno elefante com variados braços, que o rodeavam com carinho, silenciando-o. A pequena criatura chorava de mimo, ou outra criancice qualquer, exigindo colo, como os pequenos bebés humanos, e apenas se acalmava quando ela lhe satisfazia o pedido. Uma voz melodiosa adormecia a cria elefante, entoando sons de uma língua estranha, mas familiar, sem sentido, que o acordavam sempre que tentava acompanhar a canção, ficando com a música presa naquele limbo de sonho e consciência, desaparecendo da mesma forma rápida com que lhe surgia no sono. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Reconhecia a voz de barítono do seu médico, bem como o falsete da mulher dele, que trabalhava como voluntária no hospital e lhe fazia companhia durante algumas horas por dia. Uma presença agradável que o serenava, por já a sentir familiar. Tentava perceber o que falavam, e uma terceira voz mais moderada entrou na conversa, contrastando com o tom feliz do casal de meia idade. Gostava do som com que a mulher terminava as frases, musicando certas palavras, deixando-lhe claro de que tinha um sotaque diferente do que normalmente ouvia no hospital. Recordava-se de já a ter ouvido antes, mas não sabia bem onde, surgindo-lhe de repente a imagem de uma enfermeira pálida que vira há algumas semanas no seu quarto, mas que misteriosamente nunca mais aparecera. Desde que tinha recuperado a consciência suficiente catalogava caras, nomes, sons, feitios, como exercício mental de memória, na esperança de se recordar de si mesmo, da pessoa que fora antes de ter acordado naquele quarto. Tudo lhe era dito com cautelas e reservas, como se o seu passado desconhecido o pudesse transtornar, e esse facto angustiava-o bastante. O que teria acontecido de tão grave na sua vida para que ninguém se atrevesse a contar-lhe? Temeriam que enlouquecesse ou não aguentasse a verdade? Chamava-se João, não tinha parentes, era psiquiatra, pela lógica e como ainda não tinha aparecido para o visitar, não tinha mulher ou namorada, filhos muito menos. Um miserável sozinho no mundo, com dinheiro para pagar a diária daquela clínica cara. Era tudo o que sabia de si mesmo. Uma coisa era certa, sentia-se incompleto, não pela falta de pai ou mãe, que já de si era triste, mas uma parte de si parecia ter sido arrancada. Talvez a sua mulher falecera e isso o levara até aquele quarto de hospital, matutava por vezes. Só isso explicava a sensação de saudade que o corroía. Saudades de um corpo, de uma mulher que um dia deveria ter tido. Porque sentia falta dela, e isso crescia dentro de si, como um balão de ar que lhe sufocava o coração de dia para dia. Não precisava de pai nem mãe, mas queria-a de volta, mesmo que apenas o nome de uma pessoa que existira em tempos. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bom dia! – César interrompeu os seus pensamentos, inundando o quarto de animação, seguido por Elisabete e a enfermeira desaparecida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bom dia. – respondeu, sentindo-se ligeiramente encavacado com a presença pouco habitual da mulher bonita que se mantinha pouco à vontade sem saber onde colocar as mãos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Como passaste a noite? Tudo calmo? – questionou-o, com um brilho diferente no olhar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bem. – desviou o olhar do médico para a enfermeira que ruborizou de uma forma que lhe agradou subitamente. – Já não vinha aqui há bastante tempo. – disse-lhe, endireitando-se na cama.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Hum… sim, estive de férias… - inventou Isabel à pressão, sem saber o que dizer. Não esperava que ele lhe falasse diretamente, nem a olhasse durante tanto tempo seguido. César convencera-a a entrar, seguro de que ele não iria estranhar a sua presença, mas o quente que sentia crescer nas bochechas denunciava o seu nervosismo, lamentando ter seguido o seu conselho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Queria mesmo falar com uma enfermeira. – iniciou, sem perceber porque continuava a querer manter conversa com aquela técnica de saúde em especial – Acha que já posso começar a tomar banho num chuveiro normal e ir até à sala de convívio? Estou farto destas paredes e de me darem banho de gato… - resmungou, desejoso de que ela o autorizasse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Acho que sim… ainda não se levantou daí? – perguntou espantada, olhando interrogativamente César.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Bem, só agora é que as doses dos remédios permitem essas movimentações, por isso sentes essa necessidade. – explicou, olhando João satisfeito com as súbitas exigências do amigo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então, por favor, se tiver tempo hoje, precisava apenas de ajuda para o caso de me sentir tonto. Pode cá passar em alguma altura do dia? – questionou-a, desejando que fosse ela a monitorizar as suas atividades e não uma trombuda qualquer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Pode ser agora mesmo! – respondeu César, antes que Isabel se esquivasse – Vamos Elisabete, o João precisa mesmo de um banho, fazer a barba à homem e deixar esta cama por algumas horas. – apressou-se a puxar a mulher para fora do quarto, sorrindo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Depois de uns segundos que pareceram horas a Isabel, João deixou de a olhar e começou a levantar-se, mostrando grande dificuldade nos movimentos, o que a despertou daquela perplexidade momentânea. Tinha imaginado tudo naquela manhã, enquanto se dirigia à clínica para o ver, depois de três semanas em Castelo Branco fechada em casa, menos que lhe iria dar banho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Desculpe, eu ajudo-o. – disse numa gaguez nervosa, apressando-se a ajudá-lo a levantar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Talvez seja melhor ir com calma… - sugeriu João ao sentir-se tonto quando ela o agarrou. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, claro, desculpe… - sussurrou, respirando fundo para se acalmar. Depois de tanto tempo longe dele, estar tão perto e não o poder abraçar nem beijar era difícil de aguentar. Teria de se forçar a representar aquele papel de enfermeira imposto. – É natural sentir-se tonto, está deitado há demasiado tempo… - consolou-o, sentando-se calmamente a seu lado na cama – não é preciso ter pressa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Como se chama? – perguntou curioso, olhando-a mais de perto. Era uma mulher bonita, sem aliança, constatou, depois de analisar as suas mãos delicadamente poisadas nas pernas. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ha…. Marta. – saiu-lhe sem pensar, fugindo com o olhar para a casa de banho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ok Marta, vamos lá então? – estendeu-lhe a mão para se apoiar e tentou novamente levantar-se devagar, ficando surpreendido ao notar duas grandes cicatrizes nos seus pulsos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, com calma. – disse-lhe, corando automaticamente quando o viu olhar as marcas do seu episódio dramático com Tiago.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">João disfarçou o espanto da descoberta íntima sobre a enfermeira e continuou a caminhada pouco estável até ao quarto de banho que ainda não utilizara, cada vez mais ansioso com a ideia de se lavar com água corrente. Isabel entrou na frente, dando-lhe os braços como apoio e obrigou-o a sentar-se num banco para se restabelecer da tontura que aquele pequeno percurso lhe provocara.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Temos tempo… fique aqui que vou buscar-lhe um pijama lavado. - disse-lhe com ternura, emocionada com o ar desconcertado e frágil que ele mostrava naquele pequeno esforço de dar meia dúzia de passos de pé.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado. – um leve pânico invadia-lhe a garganta. Nunca pensara que o regresso às simples atividades diárias lhe custasse tanto. Estava amorfo, sem vitalidade, com os músculos atrofiados de tanto descanso. Uma antiga sensação de boca seca apoderou-se dele, juntamente com o ritmo cardíaco descontrolado. Sabia que já tinha sentido aquilo antes, mas isso não o consolava, apenas o transtornava mais. Uma dormência forte crescia-lhe nos braços, enervando-o cada vez mais, ao mesmo tempo que temia desmaiar a qualquer momento.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Estes pijamas são horríveis… - comentava, tentando descontrair o ambiente, quando o viu na mesma posição aflitiva em que ficara quando tivera o ataque de pânico no Gerês. Ajoelhou-se nervosa e segurou-o na mesma posição em que o socorrera naquele dia. – Calma, não se preocupe, é apenas um ataque de pânico. – disse-lhe com a voz mais controlada que conseguiu – Respire comigo, afaste os braços e as pernas, inspire até encher a barriga, expire apertando-a o mais que conseguir… inspire… expire… inspire… expire… é normal isto acontecer… inspire… expire… - continuou, com o ritmo cadenciado da voz, massajando-lhe os braços lentamente, de forma a diminuir a dormência. Manteve-se alguns minutos naquele exercício, cada vez mais segura de que estavam a conseguir controlar aquelas reacções involuntárias. O fresco dos azulejos arrefeceu devagar o corpo tenso de João e o seu olhar ficava cada vez mais consciente, olhando-a diretamente, como se procurasse nela a calma que lhe faltava. Isabel sorriu-lhe fraternalmente, continuando a massagem, sem desviar o olhar, mantendo-se firme na sua técnica natural de restabelecer uma pessoa descontrolada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Como é que fez isto? – perguntou-lhe com a voz fraca, olhando na direção das suas cicatrizes, realmente curioso com aquelas marcas tão feias.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- É uma história triste e muito longa… - desconversou, sem no entanto se incomodar com a pergunta indiscreta. Ao contrário dele, ela ainda se lembrava de como era fácil conversarem, como se sentiam bem e confortáveis um com o outro. – Vamos levantar o tronco com calma. – incitou-o, ajudando-o a içar-se do chão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Desculpe, não tenho nada a ver com isso. – limpou o suor da testa com a palma da mão e respirou fundo várias vezes, sentindo-se mais restabelecido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Um dia conto-lhe. – acrescentou, confessando uma verdade que não poderia explicar. Tinha esperança de que ele acordasse um dia, chamasse por ela e recuperassem de novo a recente vida em conjunto que fora interrompida com o surto do dia do massacre de Filipe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Combinado. – disse-lhe sorrindo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vou colocar o banco dentro do chuveiro, assim é mais seguro. – levantou-se decidida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Mas vou tomar banho na mesma? – perguntou surpreendido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">-Claro, a crise já passou. E nada como um duche para nos fazer sentir melhor. – respondeu. Ligou a água, depois de colocar o banco estável e ajudou-o a retirar a camisola. João apoiou-se no chão e levantou-se, despindo o resto da roupa meio envergonhado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não se preocupe, não é nada que eu já não tenha visto. – tornou a confessar, sorrindo-lhe e encaminhando-o para o banco. Iniciou o banho molhando-o, enquanto analisava o estado fraco e mais magro que o antigo corpo vigoroso perdera naquelas semanas de estado vegetativo. Um ardor crescia-lhe na garganta, ameaçando umas lágrimas de tristeza, e Isabel engoliu a sua mágoa, concentrando-se em esfregar o champô no cabelo demasiado comprido. – Precisa de um corte. – sugeriu, caprichando na massagem capilar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isso é muito bom… - sussurrou a sentir-se deliciado com a destreza dos dedos experientes da enfermeira.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tenho um curso de massagista clínica. – disse, cada vez mais satisfeita com o facto de lhe poder estar a tocar novamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ah, está explicado… Porque é que não tem bata de enfermeira?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- eh… eu ainda não tinha iniciado o turno quando entrei no seu quarto. – conseguiu dizer sem gaguejar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vai molhar a roupa toda. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não faz mal, depois visto a bata. – brincou, passando água morna na cabeça ensaboada e continuando a massagem com a mão livre.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tinha razão, sinto-me muito melhor. – confessou, pegando na esponja e lavando o resto do corpo que a enfermeira ainda não tinha esfregado, poupando-os aos dois a embaraços. Uma sensação demasiado erótica crescia dentro de si e tinha a certeza de que se ela o massajasse da mesma forma pelo tronco abaixo ficaria muito mal visto. Não queria ofendê-la, principalmente porque ela poderia nunca mais lá voltar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vamos só tirar o sabão do corpo e já está. – felizmente ele tinha tomado a iniciativa de se lavar, seria bastante desconfortável colocar-se de gatas para lhe esfregar as canelas, suspirou aliviada. Passou o chuveiro por todo o corpo e terminou o banho, apressando-se a colocar uma toalha em cima do homem completamente nu que parecia cada vez mais encavacado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado. – João deixou-a secar-lhe o cabelo, enquanto passava rapidamente a toalha, a sentir-se corar como um miúdo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Fazemos a barba? – perguntou-lhe, ajudando-o a sair da cabine de duche.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não sei se ainda tenho forças para isso… - confessou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu faço. Não se preocupe. Sente-se aqui em frente do lavatório. Isto não deve ser nada do outro mundo. – gracejou, animada com o facto de prolongar aquela intimidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Nunca fez a barba aos pacientes? – perguntou surpreendido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, claro… - sentia-se corar indecentemente, como uma criança a quem apanham uma mentira. Preparou os utensílios necessários e colocou-se por trás dele, adivinhando que lhe seria mais confortável encostar-se nela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Se não se importar, precisava de me apoiar… </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Claro, se sentir alguma tontura diga. Vou fazer isto rápido, acho que precisa de comer e descansar um pouco na cama.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado. – encostou-se no corpo dela que se mantinha de pé e relaxou instantaneamente. Era uma mulher magra mas onde não se notavam os ossos, constatou agradado. Sentiu o queixo a ser inclinado para cima e automaticamente a sua cabeça ficou apoiada no peito dela, sem pudores. Deveria sentir aquelas manobras de uma forma profissional, mas em vez disso, um prazer familiar invadiu-o, colocando-o num estado de dormência idêntico ao pré-sono. Concentrou-se no respirar dela, mantendo-se de olhos fechados, deliciado com tudo aquilo. Desejou que a barba lhe crescesse meio metro todos os dias, e essa ideia fê-lo sorrir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então, está a rir de quê? Estou a fazer-lhe cócegas?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, nada disso. – respondeu, mantendo o sorriso – Posso confessar uma coisa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim. – um nó no estômago trouxe-a de volta à realidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Marta, nunca uma enfermeira me fez tão bem a barba… - disse, sentindo-se divertido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Isso é porque eu não sou uma enfermeira na realidade. – confessou brincado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não é?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, sou uma paciente da ala feminina com demasiado tempo livre. Devem andar neste momento à minha procura. Por isso, nada de me denunciar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Você é demais! – reagiu divertido com o sentido de humor dela. Teve a noção nesse exato momento de que facilmente poderia gostar de uma mulher como ela. Pelo menos já tirara uma das dúvidas do seu inconsciente, não era gay.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Acho que está a ficar perfeito! Dê uma olhadela no espelho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">João abriu os olhos e surpreendeu-se com o ar rejuvenescido que a sua cara transmitia. Ficava melhor sem barba, reconheceu, olhando alternadamente para a esquerda e para a direita.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigado, ficou muito bem. E tem razão, preciso de cortar o cabelo, acho que nunca o usei assim tão grande.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então amanhã se quiser eu corto-lho. – ofereceu-se automaticamente, iniciando a limpeza do local para disfarçar o embaraço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Enfermeira, massagista, barbeira… que mais é que sabe fazer?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Também dou aulas de yoga. – confessou, ajudando-o a regressar ao quarto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu não sei bem o que fazia para além de ser psiquiatra…. E mesmo isso já não devo poder exercer nunca mais, se não recuperar a memória… - lamentou-se, sentindo uma azia nervosa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não se martirize com isso agora. A memória vai voltar naturalmente, - disse, desejando ardentemente ter razão – com calma vai começar a relembrar pequenas coisas. Precisa é de ter alta daqui e voltar aos locais familiares, a sua casa, ver as suas coisas…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- E se nunca me lembrar novamente? – perguntou-lhe com o olhar nervoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Se nunca se lembrar, começa tudo de novo. – respondeu naturalmente sorrindo-lhe – Já viu o que é poder renascer sem a carga de passado que acumulamos ao longo dos anos? Ficar livre de medos irracionais que temos, não sabemos bem porquê, esquecer as pessoas que nos magoaram, o mal que fizemos aos outros? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Visto assim, nem parece tão mau… - concluiu – Não sabe nada sobre mim?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, - mentiu, para não desobedecer às orientações clínicas de César, que ainda queria aguardar pela recuperação natural do doente – e mesmo que soubesse, não poderia dizer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Então, se não podemos falar sobre mim, falemos sobre si. – sugeriu, com vontade de continuar à conversa com a enfermeira. – Pode ser?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, claro. O que quer saber? – sentou-se no fundo da cama, ansiosa com o facto de ser obrigada a mentir-lhe ainda mais. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Coisas banais… O nome já sei. É daqui de Coimbra?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, sou de Castelo Branco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ah, daí o sotaque.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu tenho sotaque? – fingiu-se ofendida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Tem, mas é bonito.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Devia ouvir a minha mãe falar, é ainda mais bonito. – disse, corando com o elogio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- É casada?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, divorciada. – engoliu uma bola de ardor que a queimou até ao estômago.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Solteira?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, tecnicamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Filhos?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não. – outro ardor queimou a garganta ainda em brasa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não me diga que vive sozinha no meio de gatos? – brincou, tentando desanuviar o ambiente. Percebera que o tema divórcio e filhos lhe era desconfortável, e o antigo psiquiatra dentro de si parecia dar-lhe uma palmada na cabeça avisando-o de que estava a ser indiscreto e insensível.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não. Vivo sozinha, mas não tenho gatos nem cão. Já tive um arraçado de boxer, mas faleceu. Ainda estou a ganhar coragem para arranjar outro. Faz-me muita falta, tenho saudades de ter uma companhia saltitante e leal. – confessou, sentindo-se deprimir com aquelas lembranças.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu acho que gosto de cães. Não sei se alguma vez tive um, ou se tenho lá em casa algum a morrer de fome à minha espera… mas se não tiver, também vou arranjar um. Pelo menos não fico a falar para as paredes, sozinho. – gracejou, ficando a matutar no termo “faleceu” que ela utilizara para definir a morte de um animal de companhia. Devia gostar muito desse cão, para o considerar falecido e não morto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- São uma grande companhia, de facto. – concluiu, ganhando coragem para se despedir. Não podia ficar por ali o dia todo e tinha aulas para dar. – Amanhã trago a tesoura?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Sim, por favor. – respondeu prontamente – E obrigado uma vez mais.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- De nada. Agora descanse. – levantou-se e acenou timidamente para se despedir, saindo do quarto com uma sensação de estranheza nos membros todos. Fisicamente era difícil aquela nova forma de estar junto dele, a distância formal, a necessidade não satisfeita de o beijar, o tratamento na terceira pessoa, e sempre a mesma energia a rodeá-los, como um íman invisível… seria apenas ela a sentir aquela vibração? Precisava de voltar amanhã, e de falar com o Dr César, para arranjar uma bata emprestada, comprar uma tesoura de cortar cabelo, enumerava distraída caminhando pelo corredor, quando uma mão lhe estacou a marcha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Menina Isabel! – exclamou Rosário deliciada por reencontrar a namorada simpática do seu patrão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Olá Rosário, como vai? – cumprimentou de volta, estranhando a companhia espampanante e loira da empregada de João, que parecia manter-se estrategicamente de costas, de uma forma muito indelicada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Vai-se andando, como Deus quer. Venho visitar o Dr João. Já esteve com ele? Como é que ele está?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Está bem. Mais animado, já se levantou…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- E não se lembra ainda de nada?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não, e por favor, não podemos baralhá-lo com muitas recordações. O Dr César quer que ele se vá recordando naturalmente. – explicou, receosa de que ela mencionasse algum pormenor dramático do que tinha acontecido antes do internamento.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Claro, claro. Não se preocupe, vou dizer-lhe quem sou, mas não conto nada. – sossegou-a. – Deixe-me apresentar-lhe a minha sobrinha… a N… - parou a meio do nome, procurando por ela confusa, sem a encontrar – Onde é que a cachopa se meteu?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Rosário, tenho de ir. Depois falamos, ainda preciso ir ao apartamento buscar as minhas coisas que por lá ficaram.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu arrumei tudo. Lembrei-me que quisesse levá-las… - confessou, corando com a insinuação de que Isabel teria de sair de casa do patrão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Obrigada, posso lá passar hoje?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu hoje não vou lá, agora já não há necessidade de ir todos os dias… Mas fazemos assim, fica com esta chave, vai lá e depois deixa-a na caixa do correio. – sugeriu de forma prática.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Perfeito. Então adeus.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Adeus menina Isabel. E que tudo lhe corra bem. – procurou novamente pela sobrinha no corredor e desistiu de esperar, entrando no quarto, não sem antes se benzer. Não poderia esquecer-se de ser cuidadosa com as palavras. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Isabel saiu em direção a casa dele, quanto mais depressa resolvesse aquilo melhor. Não poderia esperar muito mais, João recuperava a olhos vistos e rapidamente voltaria para casa. Meteu-se no jipe e acelerou, decidida a apagar todos os vestígios de si mesma do apartamento, apenas considerando deixar Ganesha de olho, como talismã, para o orientar e proteger. Arranjaria outra para a sua casa, João precisava mais que ela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p><p><br /></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-29124826702426119822020-08-26T03:09:00.003-07:002020-08-26T03:09:57.092-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 17<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwoQv1B4y8KGi4KarudAfwbz6TcUhmfAbuhyhuEQyTf-B8_74ohOxYp15WIjwne5JS8XPqBiAVCeJNJFSbCxHLlODVaXPh2fOR57m5hePadS_n6LyuWxphSoMG_glZ01ZRdggHKM3uR2M/s645/1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="427" data-original-width="645" height="271" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwoQv1B4y8KGi4KarudAfwbz6TcUhmfAbuhyhuEQyTf-B8_74ohOxYp15WIjwne5JS8XPqBiAVCeJNJFSbCxHLlODVaXPh2fOR57m5hePadS_n6LyuWxphSoMG_glZ01ZRdggHKM3uR2M/w410-h271/1.jpg" width="410" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> - Isabel, Salvador, Janota. Como estão? – cumprimentou César gravemente à porta do quarto de João na clínica onde trabalhavam. Esperava ansioso pelos três, e apreensivo pela reação de Isabel quando lhe contasse o que acontecera depois de João acordar. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia César. Passa-se alguma coisa? – perguntou Isabel, estranhando o semblante preocupado do psiquiatra, e percebendo que ele fazia consciente ou inconscientemente uma barreira física entre eles e a porta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, - pigarreou desconfortável – o João dormiu calmo, já acordou, está bem disposto. Um pouco confuso, mas isso é normal, a medicação ontem foi forte e mesmo ele não está habituado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, posso vê-lo agora? – perguntou ansiosa por abraça-lo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, antes de entrares, queria ainda dizer-te outra coisa. Não fiques assustada, mas ele pode não te reconhecer. – disse, olhando-a com carinho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como assim? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele não se lembra quem é. Parece que o choque de ontem lhe provocou algum tipo de amnésia momentânea. Ainda estamos a discutir isso aqui com os colegas de psiquiatria e neurologia no gabinete da especialidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Amnésia?... Mas isso costuma acontecer nestes casos? – perguntou nervosa. Sentia que César não conseguia disfarçar o incómodo que aquela situação lhe causava profissionalmente. Algo de errado se estava a passar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é habitual, mas aconteceu. Ainda é muito recente, o quadro médico dele ainda não estabilizou, pode ser momentâneo, ou… Bem, não importa o que poderá acontecer, não vale a pena estarmos a divagar, agora só peço que as visitas sejam rápidas e sem desconfortos para o paciente. Por favor não perguntem “não me conheces?” e coisas do género. Entrem, cada um por sua vez, eu irei convosco. Se ele não vos reconhecer, improvisamos, mas não o podemos deixar ansioso. Ele precisa de estar calmo e de descansar. – explicou, falando para os três amigos que se mantinham atentos e meio desconcertados. – Isabel, queres ir primeiro?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, por favor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entraram no quarto meio escurecido, João dormia novamente, aparentemente calmo e o mesmo homem do dia anterior. Isabel travou a vontade de o beijar e abraçar, limitando-se a observá-lo, como César pediu, sentindo-se demasiado emocionada e frágil. Sabia que não poderia chorar, nem demonstrar emoções que o pudessem abalar, e esforçou-se por obedecer às orientações do médico. Pelo menos nada de fisicamente grave lhe acontecera, como Filipe, que fora sacrificado em nome de toda aquela loucura psicótica de Tiago… João estava ali, seguro, longe do seu ex-marido, acompanhado por médicos, mesmo que não a reconhecesse, nem a beijasse com a paixão que ela imaginara que ele faria. Estava vivo e isso era o suficiente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada César… - deu a mão ao psiquiatra, reforçando a sua gratidão e inconscientemente procurando um ponto de apoio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Senta-te um pouco. Pode ser que ele acorde entretanto. – dirigiu-a ao pequeno divã em frente à cama, sem a largar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que digo, se ele não se lembrar de mim?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dizemos que és enfermeira, estás a monitorizar os aparelhos a pedido do médico. – respondeu naturalmente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João acordou naquele momento, ou parte dele, abrindo os olhos, mas não reagindo às duas presenças do quarto, como se fossem invisíveis. Isabel sentiu o coração disparar, quando ele cruzou o olhar com o seu, ficando abalada por não sentir a alma dele lá dentro. Alguma coisa não estava certa…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá João. Como te sentes? – perguntou, da forma mais profissional que conseguiu encontrar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá. Sinto-me bem, acho. – respondeu com a voz fraca e arrastada – Quem és?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Enfermeira aqui no piso. Pediram-me para monitorizar o teu sono. – respondeu com dificuldade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr., tenho dor de cabeça. – disse, voltando-se para César e ignorando Isabel, como se ela não existisse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou pedir que lhe deem alguma coisa. Já volto. – olhou para Isabel, que se mantinha paralisada no divã, e saiu apreensivo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tens sede?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Fome?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Só tenho dor de cabeça. – respondeu laconicamente, sem sequer a olhar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel sentiu as lágrimas a invadirem-na, e pediu licença para sair, fugindo do quarto o mais rápido que conseguiu. Passou pelos dois amigos, esbracejando para que não a agarrassem, tinha de sair daquele prédio, respirar ar puro, gritar, fazer qualquer coisa que a libertasse daquela dor. Tiago tinha conseguido matá-lo também, pensou desesperada. Mais uma vez conseguira dar-lhe cabo da vida, destruir tudo o que lhe era querido. Um filho, João e Filipe… Chegou à porta da rua e olhou em volta, com uma raiva que aumentava a cada momento. Ele devia estar a observar, a espiá-la, aquele doente mental, e Isabel desejava que naquele momento isso fosse verdade. Ficou uns segundos a analisar a rua e teve a certeza de que era ele num carro estacionado ao fundo da rua. Chamou um táxi e pediu que a levasse a sua casa, iria resolver aquilo de uma vez por todas. Ou um ou outro sairiam de lá vivos, disse a si mesma. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tal como imaginou, o carro seguiu-a até à quinta, mantendo sempre uma distância constante. Isabel pagou e entrou em casa, deixando a porta apenas no trinco, para que ele entrasse com facilidade. Não queria mais entraves, dar-lhe-ia o que ele tanto queria, a sua vida, se assim fosse a vontade do Destino. Largou a mala no sofá, descalçou-se, passou pela cozinha e entrou na sala de yoga, sentando-se de frente para Shiva e Ganesha, orando à sua proteção, enquanto esperava. Já não sentia medo, apenas raiva, e estava cansada de fugir. Não poderia andar toda a vida com aquele fantasma a persegui-la, aquilo não era viver, era ser uma presa. Se João já não se recordava dela, seria muito mais simples Isabel desaparecer. Se não podia viver com ele, também nunca poderia viver com mais ninguém, nem queria. O seu egoísmo levara a tudo aquilo, ao desfecho dramático do dia anterior, e não poderia permitir que mais ninguém sofresse por causa de Tiago. Estava na hora de ser altruísta, acabar de vez com ele e a única forma que sabia ser eficaz era acabar com o objeto da sua obsessão. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tiago entrou em silêncio, excitado com aquela reviravolta. Isabel chamava-o, não fugia. Encostou a porta e trancou-a, colocando uma cadeira em posição de tranca, limitando ainda mais a tentativa de entrada de terceiros. Queria privacidade total. Tinha imaginado aquele reencontro todos os dias antes de adormecer, agora parecia-lhe quase um sonho, sentia-se excitado e nervoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Espreitou para a sala onde no dia anterior tinha morto o cão e viu-a, serena, sentada de costas, sem medo, o que o arrepiou ligeiramente. Não estava acostumado a ser apanhado de surpresa, ela deveria estar a implorar que não a matasse, ou a fugir como um rato enjaulado. Só assim teria o controle da situação. Se ela não reagia era estranho, mas sedutor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Isabel. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel manteve-se de costas, de olhos abertos fixos nas imagens danificadas de grafiti vermelho, sem reagir à voz, propositadamente. Conhecia-o tão bem que podia imaginar o que a sua mente depravada estava a pensar. Deveria estar confuso, excitado, e pronto a atacar. Respirou mais algumas vezes, para se acalmar, agora não havia volta a dar. Ia ser o último encontro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu disse olá! – reforçou meio alterado, dando alguns passos incertos na direção dela, que se voltou nesse momento, mantendo-se sentada e olhando-o com ódio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu ouvi. Ainda bem que vieste. - observou-o a, sem mostrar fraqueza, queria que ele não reagisse, para lhe dar tempo para conseguir concretizar o que tinha imaginado - Estava a preparar-me para fazer uma coisa muito importante, e queria muito que estivesses presente. Senta-te por favor! – disse, sem emoção na voz. Tiago obedeceu confuso, colocando-se a uma distância de segurança por não saber o que se iria passar a seguir. Normalmente era ele que tinha o controlo da situação, e deixava que Isabel se lhe adiantasse por curiosidade mórbida. Isabel tirou uma faca debaixo das pernas e mostrou-lha sorrindo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És tu que gostas de esfaquear coisas, não é? Pois vou-te oferecer um presente. – pegou na faca e as mãos tremeram-lhe ligeiramente, temendo não ter coragem para acabar com tudo – Nunca percebi porque me odiavas tanto, o que fazia de mal para que me quisesses bater, pensava que era a culpada de tudo o que me acontecia, mas hoje percebi que não, - começou a explicar, deixando uma lágrima cair sem conseguir evitar mostrar as emoções – o teu objetivo é matares-me, porque não és uma pessoa normal, és um monstro. E os monstros escondem-se debaixo das nossas camas, à espera que caiamos no sono, para nos atacarem. Cobardes e maus, como tu. - ameaçou cortar o pulso ao vê-lo mexer-se na sua direção e conseguiu mantê-lo em espera, continuando o seu discurso – Um dia gostei de ti, quis ser tua, faria tudo por nós, até levar porrada, e nem isso te satisfez. Mataste tudo o que um dia amei, e desta vez conseguiste matar até o que restava de mim, a minha vontade de continuar, a força de lutar contra ti. Foi-se tudo. - Sentia os nervos crescerem dentro dele, que começava a tremer no lugar, desorientado com a imagem da faca na pele dela, e uma vontade mórbida de o ver sofrer deu-lhe a coragem que lhe estava a faltar. Fez um golpe rápido no pulso esquerdo, que começou automaticamente a verter sangue, pegou com essa mão na faca e repetiu o gesto no pulso direito.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não!!! – berrou, lançando-se na direção dela, em pânico, depois de recuperar do choque daquela visão. Tentou agarrar-lhe na faca, mas Isabel foi mais rápida e aproveitou o embalo dele para enterrar a faca no centro do peito de Tiago, que arfou violentamente e lhe caiu em cima, de olhos abertos e assustados.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span> O peso do corpo sufocava-a, como uma sentença de morte que iria chegar para eles os dois, ali sozinhos na sala, sentindo-se cada vez mais fraca. Fechou os olhos, visualizou a imagem de João e respirou fundo, finalmente teria paz.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Salvador e Janota pararam o carro atrás do de Tiago e correram até à casa, que estava trancada. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu disse-te que ela ia fazer um disparate! – berrou Salvador, histérico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota rebentou a porta com facilidade e entraram aos tropeções na sala, dirigindo-se à sala de yoga, onde certamente ela estaria.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - Janota arrancou Tiago de cima dela, a tremer das mãos, para analisar o que se teria passado. Ela tinha-o morto, concluiu. – Chama o INEM! Tentativa de suicídio e uma morte. Ela está viva. – Rasgou dois pedaços da t-shirt e fez um garrote improvisado nos braços dela, para que não se esvaísse enquanto esperavam os paramédicos. – Isabel… estás a ouvir-me?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Salvador encostou-se à parede, longe do cadáver e sem manter contacto visual com Isabel, que parecia estar a morrer. Era demasiado terrível tudo aquilo, todo aquele sangue. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como é que aguentaste isto toda a vida? – perguntou a Janota, a sentir um vómito eminente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Empresta-me a tua t-shirt. – ordenou, sem explicar o que tinha em mente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas para quê? – perguntou confuso e cada vez mais nauseado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Preciso de apagar as impressões digitais dela da faca. Anda, dá-me a tua t-shirt virada do avesso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Salvador obedeceu e Janota limpou o cabo da faca ainda espetada no peito de Tiago, provocando um vómito no amigo que fugiu da sala para o ar fresco da rua. Friccionou a mão direita de Tiago, depois de se certificar pela lógica da posição do relógio, nos ângulos em que seria normal alguém exercer força para aqueles golpes, virou-o ligeiramente de lado, de costas para ele e Isabel e concentrou-se novamente em prestar auxílio a ela. Ao longe o som da ambulância crescia, abrindo-lhe os pulmões e relaxando-o. Se ela fosse forte, ainda resistiria, tinham chegado a tempo de a salvar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, não te preocupes, não vais morrer…. – consolou-a, mantendo-se a pressionar os braços, reforçando o bloqueio dos garrotes.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>A ambulância saiu disparada em direção ao hospital, ficando no local do crime a polícia e as duas testemunhas que encontraram os corpos e alertaram as autoridades. Salvador vestia a t-shirt ensanguentada por dentro, mas como Janota previra, ninguém notou, o que facilitou à polícia imaginar uma sequência de acontecimentos. “Isabel fizera queixa do ex-marido no dia anterior. Alegadamente a sua casa teria sido vandalizada por Tiago. No dia seguinte ela volta ao local do crime, ele segue-a , corta-lhe os pulsos e suicida-se a seguir. Parecia simples, faltava apenas a confirmação dos testes periciais. A ameaça escrita na parede da sala onde tudo acontecera ajudava a compreender a loucura de todo o crime. Um novo relacionamento amoroso da vítima feminina despoletara aquele desfecho dramático, mas felizmente os amigos de Isabel apareceram a tempo de a ajudar a sobreviver.” </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acompanhem-nos à esquadra por favor. Ainda é preciso formalizar o vosso depoimento, só depois disso poderão ir ter com a vítima ao hospital. – informou o polícia secamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, só temos de avisar alguns familiares e amigos próximos do que aconteceu que possam ir ter com ela ao hospital. – interveio Salvador, pedindo autorização formal para divulgar entre César e os pais de Isabel a condição física dela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com certeza, apenas seja discreto nos pormenores, por favor. – respondeu o polícia afastando-se dos dois e encaminhando-se para a casa dando-lhes um momento de privacidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tens cá uma prosápia… - brincou Janota já mais restabelecido do choque.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu acho é que mais uma vez não vou abrir o bar… ainda vou à falência por causa destes dois… - lamentou-se, sabendo que nada era mais importante que os amigos, e fazia dinheiro suficiente para encerrar portas vários meses seguidos. – Agora vamos avisar o César e tentar descobrir o contacto da família dela lá de Castelo Branco. Ainda tenho de pensar como contar uma coisa destas sem que as pessoas fiquem desesperadas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O número dos pais eu arranjo, dá-me uns minutos. Vai falando com o César.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok… vamos a isto. – pegou no telemóvel e procurou o contacto do psiquiatra. Teria de recorrer aos seus serviços se o seu dia a dia continuasse assim agitado. Era demasiado sangue, e o cheiro da sua camisola poderia comprová-lo, mortes eminentes, cadáveres…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como?! – exclamou o psiquiatra chocado com o que Salvador lhe dizia. – Peço desculpa João, tenho de ir atender um caso urgente.- Despediu-se à pressa e saiu do quarto da clínica, correndo em direção às urgências, onde Isabel deveria dar entrada a qualquer momento. Porque teria tentado matar-se, perguntava-se confuso, aquilo não era típico do seu tipo de personalidade. Não compreendia como se podia ter enganado relativamente a Isabel. Mais um diagnóstico errado a um amigo e uma quase morte. O que se andaria a passar com as pessoas? Ou seria ele a chegar à altura da reforma e o universo a dar-lhe sinais claros de demência?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entrou na ala de urgências da clínica e pediu informações sobre a chegada de Isabel. Tinha sido encaminhada para o bloco, os cortes precisavam de suturas profundas e talvez levasse uma transfusão para estabilizar o organismo que ficara enfraquecido com a perda de sangue. Esperou ansioso pela saída da paciente da sala de operações e ficou aliviado ao perceber que não fora utilizada anestesia geral. Isabel vinha consciente e aparentemente normal, apesar das ligaduras nos pulsos e dos tubos que a acompanhavam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Isabel. Pregaste-nos um grande susto… - disse-lhe carinhosamente, fazendo um festa no seu cabelo. – Queres companhia até ao quarto? Acho que vais aqui ficar hoje, por causa da transfusão. – informou-a calmamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como quiser. – respondeu sem forças. Os braços picavam-lhe arrepanhados e quentes e uma dor de cabeça afundava-se com o mal estar geral do corpo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então vamos. – olhou a funcionária que transportava Isabel e deu-lhes passagem para o elevador que dava acesso aos internamentos, seguindo-as de perto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ala psiquiátrica? Outra vez? – escarneceu Isabel ao ver o botão que a senhora premia e que correspondia a essa especialidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te preocupes, é só um procedimento normal nestes casos. Amanhã revemos o caso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Façam o que entenderem. – pouco lhe importava de facto o que lhe pudessem fazer. Apenas queria certificar-se que Tiago não sobrevivera. Depois disso tinha toda uma nova página em branco para recomeçar de novo. Só temia alguns dos medicamentos a que fora sujeita da primeira vez, em Castelo Branco. Eram angustiantes, provocavam uma dormência sufocante na mente e retiravam liberdade de movimentos. Se pudesse ali ficar sossegada em silêncio seria muito bom. Precisava de paz e de tempo para se habituar à sua nova condição de solteira. Sem ex-marido nem namorado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>As funcionárias do piso colocaram-na o mais confortável possível, cheias de cuidados e simpatia, possivelmente por estarem a lidar com uma paciente amiga do grande Diretor da especialidade para a qual trabalhavam e Isabel agradeceu a gentileza com um sorriso caloroso e sincero. César não pôde deixar de reparar nos modos agradáveis de Isabel e compreendeu o fascínio de João por ela, era uma mulher genuinamente simpática e empática. E para compreender o amigo era necessária muita boa vontade. João tinha uma carapaça de arrogância que nem todos conseguiam ultrapassar, e só se revelaria a alguém que o impressionasse. Isabel era bonita, bem educada e gentil. Daquelas mulheres que antigamente nasciam em casas de algum nível aristocrático e que não haveria aos pontapés nos bares que ele frequentava de noite. Elisabete previra essa química entre os dois, quando os tentou juntar, e como sempre, estava certa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>A última enfermeira saiu e César sentou-se perto de Isabel, queria tirar a limpo o que se tinha passado e perceber aquela atitude extrema de Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podemos falar um pouco? – perguntou calmamente olhando-a com amizade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. Ele morreu? – respondeu com a pergunta que a preocupava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. – disse sem emoção.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel fechou os olhos e respirou fundo. Não tinha sido em vão o seu quase sacrifício.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu matei-o. – confessou, com sentimentos díspares a invadirem-na.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é isso que a polícia pensa, e talvez seja melhor assim. Isabel, porque cortaste os pulsos?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- César, aquele homem nunca ia deixar-me em paz. Já não tenho nada que me prenda a tudo isto, ele matou tudo o que me era importante… - uma lágrima caiu-lhe do rosto chegando à almofada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O João não está morto. Para de pensar assim. Apenas está momentaneamente confuso. Se o Salvador e o Janota não chegassem a tempo tinhas morrido também. – explicou, tentando demonstrar empatia com a sua atitude.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Primeiro foi o meu filho… ele bateu-me tanto que eu abortei… depois a minha liberdade, depois o Filipe, o João enlouqueceu, não acha que são motivos suficientes para eu dar cabo daquele homem? – disse exaltada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tinhas todos os motivos e mais alguns para o quereres morto, mas se sais por aí a dizer isso, vais presa. Por favor, acalma-te, e o João não está louco. Já te expliquei. – disse com firmeza.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acha que ele se vai lembrar de tudo?... De nós?... – perguntou mais resignada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho. Mas temos de lhe dar tempo. – respondeu – Porque é que fizeste isto a ti própria? – insistiu.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quando saí da clínica ia doida, sentia uma raiva dentro de mim que não tem explicação… Não sei, pus nas mãos de Deus… Sabia que ele me iria seguir até casa, esperei por ele, e quando se sentou à minha frente o olhar dele ainda me deu mais convicção. Todos os mortos ali espelhados naquela loucura… queria fazê-lo sofrer, ter medo, vingar-me, talvez. – explicou, chorando em silêncio – Depois ele lançou-se sobre mim e eu aproveitei o descontrolo dele e virei a faca na sua direção. Na verdade, foi só porque ele caiu em cima de mim que morreu. Eu só tive de segurar a faca… Não, não estou arrependida, se me vai perguntar isso. Faria tudo de novo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não digas isto a ninguém, por favor. Já chega de castigos, não achas? Matar ou ver morrer outra pessoa sem lhe prestar auxílio, mesmo que a odiemos e tenhamos muitas razões para lhe querer mal, é sempre errado, e sabes disso. É hipocrisia dizer-te isto, mas a polícia e os tribunais é que deveriam ter esse papel, mas como sabes, nem sempre funcionam. Lançaram sobre ti essa responsabilidade, e só por isso, eu entendo. Condeno, mas entendo. Se me perguntassem se faria algo semelhante, talvez o fizesse. O desespero não é um bom conselheiro. – deu-lhe a mão em solidariedade com as lágrimas de tristeza e choque – Compreendes?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. Por favor, não avisem os meus pais. Não quero que se preocupem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que já o fizeram. E Isabel, os amigos e família servem para nos ajudar a superar os momentos difíceis, não tens de carregar tudo sozinha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Talvez vá então até casa, em Castelo Branco. Não sei se aguento ver o João a olhar-me como se eu fosse transparente. – disse, fungando mais um pouco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Fazes bem, eu estarei aqui todos os dias a cuidar dele, e se houver alguma melhora telefono-te. Cuida de ti agora, e já sabes, o Tiago tentou matar-te e suicidou-se de seguida. É isto que vais dizer. Combinado?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim… Posso pedir só mais uma coisa?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por favor não os deixe drogarem-me. Não quero calmantes, nem coisas do género. Prefiro chorar tudo o que preciso e deixar a dor passar. – pediu, agarrando-lhe com força na mão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem. Eu vou dar essa ordem. Mas se mudares de ideias, manda-me chamar. – levantou-se, beijou-lhe a testa e despediu-se.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>“ De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus.”</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não o leve!! Não! – gritou João, que acordou desesperado coberto de suor. Uma voz de mulher contava-lhe uma história em sonhos, sem rosto nem nome. Uma angústia sufocante apertava-lhe o peito, tirando-lhe oxigénio, como se se afogasse lentamente. Os enfermeiros subiram a dose do calmante, aliviando-lhe a dor, e depois de alguns minutos, retomou o seu sono induzido e involuntário. O último pensamento que teve foi o anjo, que lhe sorria, sorrindo feliz, em direção a Deus.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-26070588151904606452020-08-25T01:57:00.002-07:002020-08-25T01:57:20.906-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 16<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvFLhozwFapWJbA9s2pRksB-SEUUHseN5DBI9QSR-8_NXLqo7RdYgm9FpbeFayVF_GOSjkDSHHa_RH6r_oyKQVI9MSAPorWcHDnoS5otlYnM4W1SuCyWb9oiYdQflT8yStPqOyYtfZfCw/s235/o0ntxj.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="235" data-original-width="215" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvFLhozwFapWJbA9s2pRksB-SEUUHseN5DBI9QSR-8_NXLqo7RdYgm9FpbeFayVF_GOSjkDSHHa_RH6r_oyKQVI9MSAPorWcHDnoS5otlYnM4W1SuCyWb9oiYdQflT8yStPqOyYtfZfCw/s0/o0ntxj.jpg" /></a></div><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Entraram em casa de João, Isabel descalçou-se à entrada e deixou-se cair no sofá, exausta de tantas emoções. Demoraram quase toda a tarde na esquadra, entre declarações, conversas formais e informais, com uma visita a casa de Isabel para recolha de provas, fotos, impressões digitais e outros dados importantes para a investigação que se iria iniciar depois de apresentada a queixa contra Tiago. João mantivera-se imperturbável, sem recuar nas suas intenções, exigindo que os polícias olhassem todos os cantos da casa, numa versão dura e implacável de si mesmo, que a preocupou ligeiramente. Sabia que ele tinha os seus próprios fantasmas por resolver, sofria com eles, e ela tinha-lhe trazido mais um para o ensombrar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Esticou-se no sofá, e procurou com o olhar por Filipe, que estranhamente ainda não a tinha vindo cumprimentar. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Onde está o Filipe? – perguntou-lhe sem se mover.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou ver na varanda. Deixa-te estar. – respondeu-lhe, deixando-a a descontrair. Devia estar de rastos depois daquilo tudo. Tinha muita força mental para lidar com os problemas, dizia a si mesmo surpreendido. Já tinha visto pessoas desabarem por muito menos, mas ali estava ela, apenas abatida e cansada. Nada de histerismos, nem descontroles, e suspeitava que o motivo era ele. Não que se achasse importante ao ponto de a conseguir ajudar a manter o equilíbrio, mas tinha a impressão de que ela o estava a tentar proteger, engolindo a dor e forçando-se a lidar com os problemas de forma minimamente controlada. Não sabia bem se isso era positivo ou não, se não seria injusto para Isabel estar preocupada com ele num momento daqueles. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Olhou a varanda e ficou surpreendido por não encontrar o cão estendido ao sol, como seria de esperar. Uma leve dor de barriga invadiu-o, deixando-o desconfortável. Onde se teria metido o animal? Fingiu naturalidade ao passar por ela em direção ao quarto, para não levantar suspeitas desnecessárias e fez uma pequena prece para que Filipe estivesse esparramado na sua cama a sujar-lhe a colcha toda de pelos. Abriu a porta e não o encontrou também. Um nervoso miudinho fê-lo abrir freneticamente todas as divisões da casa, sempre vazias e silenciosas. Passou as mãos pelo cabelo e respirou fundo, onde estaria o cão? Isabel surgiu atrás de si, olhando-o interrogativamente e reagiu instantaneamente à energia vinda de João, que já respirava aceleradamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não está em lado nenhum, pois não?... – gemeu, sentindo-se a gelar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - agarrou-a pelos braços, apoiando-a em si, enquanto pensava no que fazer e no que poderia ter ali acontecido. – Tem calma, deve haver uma explicação. Vou telefonar à Rosário. – sem a largar encaminhou-se para a sala e sentaram-se no sofá, enquanto ligavam para casa da empregada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou? – atendeu Nélia descontraidamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou? – aquela voz parecia-lhe familiar, mas dedicou pouco tempo a pensar nisso. – A Rosário está? É o João Marques, precisava de falar com ela com urgência por favor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, sim, um momento… - sobressaltou-se com aquela coincidência e fingiu um tom de voz mais grave, correndo a chamar a tia que atendeu prontamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, Dr? O que se passa? – perguntou nervosa. Sabia que aquela visita à hora de almoço lhe parecera estranha. Só temia que tivesse feito asneira ao confiar no homem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Rosário. Onde está o Filipe? – perguntou de chofre a sentir-se cada vez mais desconfiado de que ali havia esturro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O dono apareceu aí em casa e disse que tinha combinado consigo para o levar… - respondeu com a voz fraca ao detetar no patrão nervosismo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dono? – berrou – Mas qual dono? – uma dor aguda começou a nascer-lhe na cabeça, estalando à medida que a respiração se apressava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ai valha-me Deus… Não me diga que aquele homem me mentiu… - choramingou Rosário que se sentou a desfalecer numa cadeira que tinha por perto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que lhe disse ele exatamente? – forçou-se a ser prático, não seria prudente gritar com a empregada, afinal parecia ter sido enganada. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que era o dono do animal, e que tinha combinado consigo ir buscá-lo para o levar ao veterinário, sabe, por causa da pata partida… e eu realmente achei estranho o cão rosnar, mas ele trazia açaime e tudo para lhe pôr, e disse que o cão era perigoso… - tinha ficado aliviada quando o homem o levara dali, pensou angustiada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como era ele? O que tinha vestido? – perguntou automaticamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem… muito elegante. Bem parecido. Moreno, de barba escura, óculos, meio calvo… - explicou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Até amanhã. – desligou o telemóvel sem mais conversa, mantendo Isabel agarrada a si, de olhos rasos de água, sem reagir. Pela descrição de Rosário tinha-o visto de manhã, e não tinha sido por coincidência. Quase lhe batera no carro, assustando-o de propósito, matutava furioso com a ousadia do traste. – Isabel, tem calma. Tudo se vai resolver. – disse-lhe, tentando encontrar o seu olhar, que parecia perdido. – Eu vou tentar encontrá-lo. Vamos, ficas com a Elisabete e o César. – concluiu, levantando-a e encaminhando-a para fora de casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por favor, não. Eu quero ir. – suplicou, desesperada com a ideia de ficar sozinha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu vou apenas a tua casa certificar-me de que ele não o levou para lá e vou direto à polícia. Prometo que tenho cuidado. – explicou, continuando a caminhada sem abrandar o passo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, não, por favor, não podes ir sozinho… - começou a implorar já a sentir-se descontrolada com a ideia de que desaparecesse também como o cão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não vou sozinho, vou telefonar ao Salvador e ao Janota, se te sentes mais segura assim. Pode ser? – perguntou-lhe, abraçando-a no elevador.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, por favor, não vás sozinho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não vou sozinho, prometo. – beijou-lhe a cabeça e dirigiram-se para o prédio do amigo, subindo até ao primeiro andar pelas escadas, aceleradamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Deixou-a com Elisabete, angustiado com o farrapo em que Isabel se tinha transformado, desde sua casa até ali, cada vez mais furioso com aquele psicopata que não os deixava em paz. O seu lado racional dizia-lhe para ir diretamente à polícia, mas se o traste tivesse feito algum mal ao cão, iria expô-lo em casa de Isabel, e ele não podia permitir que ela o visse ou descobrisse, sequer. Telefonou aos dois amigos, como lhe prometera e combinaram encontrar-se na quinta de Isabel, quem chegasse primeiro esperava no portão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabes o que vai acontecer quando lá chegares, não sabes? – perguntou César gravemente, temendo que João tivesse uma nova crise.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sei. Ele matou o cão, quer amedrontá-la e perturbar-me. – respondeu, acelerando a fundo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Achas que estás capaz de lidar com isto?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- César, por favor, não sou nenhuma menina de escola. – resmungou chateado com a insinuação de que não teria capacidade de lidar com tudo aquilo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois não, mas pelo menos trouxeste os comprimidos de SOS? – perguntou de forma prática.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim… - resignou-se, pois sabia que o amigo tinha razão. Já sentira as primeiras palpitações ao telefone com Rosário, esperava que o cão não tivesse sido maltratado. Gostava dele, e a crueldade gratuita seria difícil de engolir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Fizeram o restante caminho em silêncio, até chegarem à entrada da casa, onde já esperavam Salvador e Janota, que parecia diferente, com uma postura de ataque iminente, como se estivesse em alerta para o pior, o que o acalmou um pouco. Era bom saber que não enfrentaria aquilo sozinho, e se desmaiasse teria alguém para o ajudar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Onde está a Marta?, quer dizer, a Isabel? – perguntou Janota com cara de poucos amigos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Calma, ela está com a mulher do César. – apontou para o amigo que saía do carro. – Obrigado por terem vindo. Não era preciso tudo isto, só vim procurar o Filipe, que desapareceu de minha casa, hoje pela hora do almoço… - explicou, entrando pelo portão e sendo seguido pelos três homens.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas fugiu? – perguntou Salvador.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Em princípio deve ter sido o ex-marido da Isabel que o levou. A minha empregada disse que apareceu lá um homem a dizer que tinha combinado comigo ir buscá-lo, que era o dono…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Filho da mãe… - rosnou Janota, cada vez mais desconfiado de que aquilo não ia terminar bem. – João, deixa-me entrar primeiro, por favor. – pediu-lhe, afastando-o da porta e assumindo o controle da investigação informal. Entrou silenciosamente na casa escurecida e fechada há alguns dias, sem detetar sinais de presenças humanas. Inspeccionou as primeiras divisões, em silêncio, olhando tudo pormenorizadamente, como tinha aprendido nos treinos da sua antiga profissão, tentando não dar ouvidos à sua intuição que o enervava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João não conseguia aguentar aquele ritmo lento de Janota, e lançou-se até ao local que sabia interiormente que seria o escolhido por Tiago para deixar algum outro “recado”. A porta da sala de prática estava trancada, o que o fez arrepiar-se dos pés à cabeça e estacar, parando por um momento para raciocinar. Colocou o ouvido na porta, espreitou pela fechadura, mas não conseguia perceber o que se teria passado lá dentro. Um cheiro estranho e acre surgiu de uma maneira agressiva, e os três homens surgiram por trás de João, tentando perceber o que seria.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sangue. – disse Salvador com a garganta seca ao olhar para os pés, que pisavam sangue vindo debaixo da porta, e que continuava a sair sem parar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ajudem a abrir! – suplicou João, que forçava a fechadura nervoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>-Calma, deixem-me passar. – ordenou Janota autoritariamente. Posicionou-se de lado e dirigiu toda a sua força contra a porta, rebentando com facilidade o encaixe de madeira, escancarando a porta com estrondo. – Foda-se…. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entraram os quatro devagar, olhando incrédulos e horrorizados a cena dantesca na sala de yoga. Filipe pendia do candeeiro de teto, a sangrar, como um animal de abate, pendurado pela pata partida e enfaixada, com a expressão vazia dos cadáveres, ainda com restos de líquidos corporais a saírem por um golpe profundo ao longo da barriga, girando em câmara lenta. João caiu de joelhos no chão coberto de sangue, apoiando-se com as mãos, a sentir a sala à roda, como se girasse com o cão, e uma dor na barriga perfurou-o violentamente, fazendo-o vomitar sem controlo, num movimento repetitivo e convulso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ajudem-me a levá-lo daqui para fora! – berrou César, que o puxava por debaixo das axilas, tentando arrastá-lo sem sucesso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>César, Salvador e Janota agarraram-no em peso e tiraram-no da sala, levando-o até à rua, por sugestão do psiquiatra que escorria suor, empalidecido e transtornado. Temia que aquilo fosse demais para o amigo, que João não se levantasse mais voluntariamente, se mantivesse em posição fetal, até conseguirem chegar a um hospital e receber ajuda especializada. As mãos tremiam-lhe quando puxou pela cara de João, procurando o seu olhar, pedindo-lhe que lhe respondesse a questões simples, trazendo-o para a realidade imediata. O amigo mantinha-se apático e perdido, sem reagir, e Salvador não esperou a ordem de César, chamando o Inem imediatamente ao perceber o que tinha acontecido. João entrara no buraco negro das depressões, todas aquelas emoções provocavam-lhe um esgotamento nervoso, teriam de agir depressa para que não se afundasse demasiado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota deixou-os com João na rua e tratou de limpar o local do crime. Sabia que ali tinham ido sem polícia para que Isabel não soubesse o destino que o psicopata dera ao animal, e ele iria terminar aquela tarefa. Tirou o cão do teto, trouxe-o para a parte de trás da casa e depois de procurar na garagem encontrou uma pá, abrindo uma cova e enterrando o corpo. Marcou o local com uma estaca velha e voltou para dentro de casa. A pior parte estava concluída, enquanto houvesse cadáver a testemunhar o crime aquela sensação de enjoo não lhe permitia pensar com clareza. Havia ainda muita limpeza a fazer, lamentou-se, agradecendo logo de seguida aquele sangue ser de cão e não de humano. Há muitos anos que não se via em situação semelhante, e prometera a si mesmo que terminaria com aqueles filmes de terror no seu dia-a-dia. Pediu a Deus que aquele fosse o último e tratou de pôr mãos ao trabalho, aquela sala teria de ficar imaculada. Alguém tem de o fazer, suspirou para si mesmo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já está quase tudo limpo… - surpreendeu-se Salvador ao entrar na sala de yoga, depois de César ter acompanhado João na ambulância até à urgência da clínica. Sentia-se como se tivesse sido atropelado por um camião, com dores em todos os músculos, e admirou aquela tenacidade do segurança que não se abalava com as desgraças alheias e fazia sempre o que ninguém tinha coragem, o que tinha de ser feito. – Como é que conseguiste isto? Parece milagre… - exclamou meio afónico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Experiência. – respondeu pragmaticamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Janota, desculpa ter-te deixado sozinho a limpar… e o cão? – olhou o local onde estivera horas antes Filipe a sangrar para morrer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Enterrado. Já só falta o corredor e arranjar a moldura da porta. – enumerou, passando por Salvador com o balde, para trocar por mais água limpa e lixívia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tu tens um estômago de aço… - concluiu, olhando-o orgulhoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, apenas sei separar as emoções dos acontecimentos. E fui treinado para isso. – explicou, passando novamente por Salvador já com outro balde e retomando a limpeza.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho de te aumentar. – disse em voz alta, sorrindo com amizade para Janota.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel percorria a casa em passo lento, de braços cruzados a rodear a cintura, num autismo propositado, se parasse e desse corda à sua imaginação enlouquecia. Aquela espera corroía-lhe o peito e cada vez se sentia mais desesperada. Obrigava-se a respirar compassadamente, exigindo o mínimo de controlo ao seu corpo, que lutava para que ela caísse e esperneasse, libertando toda a tristeza e frustração.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porque é que eles não telefonam nem atendem os nossos telefonemas? – perguntou a Elisabete que se mantinha na sala de pé a olhar para fora da janela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei querida… Mas as piores notícias são sempre as primeiras a chegar, não é? – consolou-a, pouco certa do que estava a dizer. Se o marido ainda não as tinha tranquilizado com alguma explicação era porque estava demasiado ocupado com algo muito grave. Engoliu em seco e voltou-se de novo para a rua, que começava a escurecer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Talvez… - sussurrou, retomando a caminhada pelo apartamento. Entrou para o corredor dos quartos, quando uma voz masculina surgiu do hall de entrada, provocando-lhe um arrepio. Lançou-se na direção da entrada da casa com o coração na boca e estacou ao ver César sujo de sangue nas roupas e sozinho. – O João?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, o João ficou na clínica. – disse com a voz cansada, sentando-se de seguida.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que aconteceu? – Sussurrou emocionada, chegando-se até Elisabete que lhe deu as mãos em solidariedade. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O cão estava lá, mas morto. – suspirou a meio para a deixar respirar – Mas o João não aguentou ver. Ele foi-se abaixo. Eu temia que isto pudesse acontecer… Tivemos de o levar para a clínica. – explicou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas foi-se abaixo como? Explique-me, por favor… - implorou, já sem segurar o choro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele tem uma depressão desde os 14 anos, já sabes o que lhe aconteceu com certeza. Nunca recuperou totalmente da morte do irmão, depois foi a mãe que se suicidou. Ele manteve-se sempre em negação, resistia à terapia, era-lhe muito duro falar. – uma culpa profissional acompanhava-o desde essa altura, que mantinha escondida, lamentou-se César – Depois a relação com a mulher, Isabel, nunca foi a perfeita. E quando não estamos bem connosco, não conseguimos estar com outros. Havia muita tensão e divergências entre eles… enfim, depois ela adoeceu e ele assumiu a morte dela como penitência pelas suas falhas como marido. Nunca o consegui convencer do contrário…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas e hoje? O que foi que o fez piorar? O que é que ele tem? – exclamou nervosa e impaciente com aquele discurso interminável.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tem calma, ele agora está bem. O João teve um esgotamento nervoso quando viu o cão morto. Havia muito sangue… Não interessa os pormenores. – retraiu-se de lhe fazer uma descrição do horror que tinham presenciado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Esgotamento? – perguntou derrotada – Eu quero vê-lo, por favor. Onde é que ele está?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hoje não pode receber visitas, tem de descansar. Não valeria a pena lá ires, - explicou paternalmente – está medicado, não vai acordar. Amanhã eu vou contigo. Prometo que tudo se vai resolver, ele vai ficar bem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim querida, deixemo-lo descansar. E tu também tens de dormir. Ficas aqui connosco?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Vou dormir em casa do João. Preciso de ficar sozinha… Mas obrigada… - soltou-se de Elisabete, pegou no seu telemóvel e arrastou-se para fora do apartamento, como um zombie.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espera Isabel, toma, trouxe as coisas pessoais dele. Deve aí estar a chave de casa. – César estendeu-lhe um pequeno saco que trazia no bolso do casaco e analisou-a rapidamente. Parecia em choque, mas consciente. Não haveria perigo de ficar sozinha. – Promete que trancas a porta e não a abres a ninguém. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Obrigada. – olhou o saco e desceu as escadas, contando os passos, como fazia em pequena, sentindo aquela estranheza na perna que pisava mais vezes o chão. Sabia que a sua mente procurava distrações que a mantivessem operacional, pelo menos até conseguir chegar a casa, depois logo se veria o que lhe aconteceria. Contou dezenas de degraus, ficando com um número ímpar a incomodá-la, viu ao longe um degrau para subir para o passeio do outro lado da rua e fez os cálculos até lá chegar, de forma a compensar a outra perna e terminar aquela dormência. Resolveu a sua incómoda matemática de passos e entrou no prédio, voltando rapidamente atrás para se certificar de que não tinha visto o carro dele ao longe. O coração disparou numa correria atrapalhada, quando a razão lhe disse que João estava sob medicação no hospital, ao mesmo tempo que o carro parou ao seu lado e Salvador lhe sorriu com compaixão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Isabel. Viemos trazer-te o carro. Já sabes o que aconteceu? – perguntou a medo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. Obrigada, podes estacionar na garagem? Acho que não o vou usar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro. O Janota vem aí também, queres um pouco de companhia?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, obrigada, prefiro ficar sozinha… - respondeu olhando Janota que se aproximava já depois de estacionar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, como estás?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei. Obrigada por terem ido com ele. Vou tentar descansar, se não se importam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espera. Deixa-me só certificar-me de que não há ninguém na casa ou no prédio, pode ser? Também podemos aqui dormir, se quiseres. Para não ficares sozinha, pelo menos hoje. – sugeriu, com Salvador a acenar positivamente de dentro do carro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acham que não seria abusar da vossa paciência? Há lá muitos quartos… - a ideia de não ficar sozinha em casa animou-a um pouco. Poderia isolar-se no quarto, mas sabendo que haveria pessoas nas divisões ao lado, prontas a ajudar, se fosse caso disso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro que não, já tínhamos falado sobre isso os dois. – explicou, referindo-se a Salvador.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então tudo bem. Acho que aceito. – suspirou e abraçou Janota, que a encaminhou para o prédio, deitando uma olhadela à rua.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> <span style="white-space: pre;"> </span>Entraram em casa de João e Isabel mostrou-lhes os quartos que poderiam ocupar naquela noite, pedindo licença para se ir deitar. Sentia-se morta por dentro, como se estivesse a ser presa por dois ou três cordéis invisíveis, comandados por outra pessoa qualquer. Fechou a porta do quarto, trancando-a de seguida e despiu-se, entrando no duche. Manteve-se vários minutos debaixo do chuveiro intenso, de olhos fechados, apoiando-se com uma das mãos na parede por sentir as pernas bambas meio adormecidas. Sabia que estava no limite das suas forças, terminou o duche e apressou-se a sair da cabine que lhe trazia cada vez mais recordações daquela manhã. Como podia a sua vida ser tão cínica e cruel, perguntava-se, lembrando-se do corpo dele a comprimi-la contra a parede, as suas mãos grandes a explorá-la sem pudores, a sua boca exigente e sensual. Quebrou nesse momento, deixando-se cair no chão, agarrada aos joelhos, chorando descontrolada. A imagem dele numa cama de hospital, adormecido pelas drogas, em letargia, consumia-a, estrangulando-lhe a garganta. Foi surpreendida pelo som do telemóvel, poisado na cama que interrompeu a sua crise de choro, obrigando-a a voltar à realidade. Embrulhou-se na toalha, apressou-se a chegar até ao aparelho, pegando-lhe com as mãos trémulas. Uma breve esperança de que fosse algum contacto dele surgia-lhe no coração, insuflando-o. Abriu a mensagem do número desconhecido e não conseguiu travar um grito histérico, largando o telefone como se esse queimasse. Caiu no chão de joelhos, sem parar de gritar, e arrastou-se até à porta, abrindo-a para fugir do espaço fechado que a começava a sufocar. Janota e Salvador apareceram no mesmo instante, sobressaltados, procurando pelo motivo dos gritos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel! O que foi? – Salvador ajoelhou-se na sua frente, segurando-a.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O Filipe… ele vai-lhe fazer o mesmo… - soluçou descontrolada, tentando soltar-se dos braços que a ajudavam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Janota pegou no telemóvel, viu a foto do cão esventrado, e a legenda que se seguia: “Este já está. O teu namorado é o próximo”. – Eu vou matar este gajo… - rosnou, apagando a mensagem automaticamente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Salvador pegou em Isabel que se debatia, colocando-a com dificuldade na cama.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Calma Isabel, por favor tem calma. Ninguém vai fazer aquilo ao João. Nós prometemos-te. Janota, agarra-a, vou ver se o João aqui tem algum calmante. – deixou-os e vasculhou a casa de banho do amigo, encontrando um remédio que seria eficaz para acalmarem Isabel, voltando logo de seguida para o quarto. – Toma este comprimido. Vais sentir-te melhor… - pediu, sabendo que teria de a forçar a engolir o remédio. – Vamos, abre a boca, por favor. Janota, abre-lhe a boca. – ordenou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Achas mesmo necessário isto? – perguntou incomodado com aquelas manobras violentas numa mulher frágil.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ela está em crise de nervos, não vês? Não se vai acalmar por si só. Vamos, abre-lhe a boca! – disse já a perder a paciência.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, desculpa, mas é para teu bem. – Janota obedeceu ao amigo e colocaram-lhe o comprimido à força no fundo da garganta, deitando-lhe depois um pouco de água na boca aberta pelas mãos do segurança, que tentava não a magoar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Mantiveram-se com ela enquanto o corpo esperava pelo efeito do remédio, e repentinamente Isabel adormeceu, amolecendo automaticamente, caída na cama. Salvador e Janota respiraram fundo e deixaram-na coberta, com a toalha ainda em volta do seu corpo, por pudor em coloca-la mais confortável. Saíram, deixando a porta aberta por precaução, não fosse ela acordar durante a noite e precisar de ajuda. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que dia… - suspirou Salvador, sentando-se derrotado no sofá – Vê se ele aí tem alguma coisa forte que se beba, por favor… Acho que preciso de anestesiar a cabeça…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Whisky? – perguntou Janota, espreitando o bar sofisticado da sala.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Serve, tem de servir… </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel acordou devagar, com uma sensação de vazio mental que a angustiou. Tinha dormido artificialmente, depois do calmante que Salvador e Janota a obrigaram a tomar, devido à sua reação descontrolada com a mensagem de Tiago. Sabia que a tortura psicológica era um dos seus fortes, já não era novidade para si ter de lidar com as chantagens promovidas a medo, mas a imagem de Filipe, morto de forma tão cruel, deixara-a enlouquecida. Como podia alguém ter coragem de fazer semelhante barbaridade a um animal? Apenas para a magoar e assustar… lamentou-se chorando agarrada à almofada de João. O cheiro dele consolou-a minimamente, e deixou-se ficar uns minutos naquela posição, imaginando que ele tomava banho para ir trabalhar e tudo ainda estava como antes. Filipe precisaria de ir à rua e depois tomariam o pequeno-almoço… Alguns barulhos vindos da sala interromperam-lhe as divagações e Isabel obrigou-se a levantar-se e arranjar-se. O corpo estava estranhamente pesado e dormente, ainda efeito do remédio demasiado forte para ela, mas queria visitar João na clínica ainda de manhã. Tinha de cuidar dele, ajudá-lo a recuperar do esgotamento que ela também provocara… Não sabia bem como se tratavam essas doenças, quanto tempo precisaria para recuperar, se ficaria com algumas mazelas… Nada disso era mais importante que o ver e abraçar, pedir-lhe desculpa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entrou na sala e os dois amigos já bebiam café com Rosário, que parecia ter estado a chorar, de olhos inchados. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. – disse Isabel sentando-se à mesa e esforçando-se por sorrir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, como te sentes? – perguntou Salvador, incomodado com a abordagem violenta da noite anterior – Dormiste bem?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mais ou menos… estou ainda meio drogada. – respondeu, deitando um olhar de compaixão à empregada que fungava virada para o lava-loiças - Rosário, não fique assim, a culpa não foi sua. Aquele homem é louco, ele é o culpado disto tudo… E eu, por o ter trazido para as vossas vidas. Desculpem-me… - disse sem emoção. Não tinha nem força para chorar, surpreendeu-se. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pára com isso. – exaltou-se Janota – Nem tu, nem a senhora têm culpa. Vamos lá ver se nos entendemos! Aqui, somos quanto muito, vítimas de um psicopata. Ninguém tem culpa de esse homem ser doido! </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim Isabel, o Janota tem razão. E este doido quer perturbar-nos. Já conseguiu pôr toda a gente destabilizada, mas não pode continuar a infernizar-vos, temos de acabar com isto. Agora vamos comer e depois vamos à clínica ver o João.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Rosário rebentou num pranto sonoro, fugindo para a casa de banho, ao ouvir novamente que o seu patrão estava internado, e tudo aquilo porque se precipitara e não confirmara com ele se a história do homem bem-parecido era ou não verdade. Fora descuidada, desejosa por se ver livre do animal, lamentou-se chorando. Quem poderia adivinhar que houvesse na vida real homens tão maus… aquilo era pior que as novelas a que assistia de noite, era a realidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-78925975964561397032020-08-24T02:51:00.003-07:002020-08-24T02:51:49.580-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 15<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6LhVsJtzvB2KuMazBDPSeIEp9RkzhW49Si2Y7y86AvaKYOKt5HF9p6wm4jMWXla1tMqvgkSZhJHxY5EHPa7C9W9sE2AohnOb-os2kmLsLqwOKNr1gIy13a7Dg5NU4JSqFDpxeIaqUecs/s585/prisao.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="425" data-original-width="585" height="272" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6LhVsJtzvB2KuMazBDPSeIEp9RkzhW49Si2Y7y86AvaKYOKt5HF9p6wm4jMWXla1tMqvgkSZhJHxY5EHPa7C9W9sE2AohnOb-os2kmLsLqwOKNr1gIy13a7Dg5NU4JSqFDpxeIaqUecs/w374-h272/prisao.jpg" width="374" /></a></div><span style="font-family: helvetica;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Minha Nossa Senhora! – exclamou Rosário, horrorizada com a confusão da casa, normalmente impecável e limpa. Parecia que por ali tinha passado um furacão, lamentava-se surpresa. Poisou a sua carteira no armário da entrada e começou a colocar tudo nos devidos lugares, bufando. – Mas o que lhe terá passado pela cabeça? Será que entrou em casa com os copos? – perguntava em voz alta, quando se erguia com uma moldura na mão e viu Filipe a olhá-la em silêncio, sem se mexer – Jesus Cristo, Virgem Santíssima… - sussurrou com a garganta seca, a entrar em pânico. O cão não se movia, continuando o seu “scanner” perturbador, e Rosário encostou-se trémula à porta de casa, chamando pelo patrão com a voz quase em surdina. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel dormitava na cama, depois de ter sido acordada por João na casa de banho a tomar duche. Era muito barulhento, constatava satisfeita, a deixar-se preguiçar. Batia portas, dava encontrões em tudo e deixava cair o champô com toda a força nos pés, praguejando alto e bom som. Hábitos de quem vivia sozinho há muito tempo, matutava, sentindo-se apaixonada por tudo o que lhe dizia respeito, até os pequenos defeitos. Sentiu uma necessidade urgente de o ir surpreender no banho e abraçar, quando ouviu uma voz trémula e pouco definida a chamar por João, lembrando-se repentinamente da empregada dele e de Filipe, que ficara isolado do lado de fora do quarto toda a noite. Levantou-se num pulo, vestiu a primeira coisa que lhe apareceu no chão do quarto e correu a socorrer a senhora que deveria estar em pânico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe, esquecemo-nos do Filipe… - abordou-a, agarrando na coleira do animal que se mantinha impávido a amedrontar a mulher empalidecida. – Bom dia, chamo-me Isabel. – estendeu-lhe a mão, sorrindo e sendo cumprimentada de volta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia menina, eu é que peço desculpa, devia estar a descansar. Mas tinha receio que o cão me mordesse. – conseguiu dizer no meio do espanto por dar de caras com uma mulher ali dentro. Nunca tal tinha acontecido em todo o tempo que ali trabalhava. Sabia sempre dizer quando o Dr. recebia visitas femininas, mas estas nunca ali pernoitavam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu vou levá-lo para o quarto. – disse, arrastando o animal pesado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou fazer o pequeno almoço para o Dr., gosta de torradas e café?, é o que ele toma sempre! – perguntou decidida a agradar a rapariga simpática.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Qualquer coisa. Obrigada, até já. – encaminhou-se para o quarto e fechou a porta, feliz por ainda ouvir a água na divisão do lado. Agora com outra pessoa em casa as suas intenções esmoreciam, não se sentia confortável com a ideia, matutava enquanto se despia, mas tinha mesmo de tomar banho, e talvez ele já estivesse a acabar, dando-lhe espaço para ela se arranjar. Entrou numa nuvem de fumo que cegava completamente e tacteou o espaço para encontrar a pega da porta do chuveiro, entrando silenciosamente, excitada como uma criança mal comportada que regozijava com alguma partida prestes a surpreender. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deves ser telepática, estou há que tempos a pensar nisto. – brincou, agarrando-a.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porque não me acordaste antes? Estás aqui a gastar água há “horas”, desnecessariamente. – gozou Isabel, entrando para debaixo da pressão do chuveiro moderno. – Só acordei porque fazes imenso barulho e o Filipe estava a amedrontar a tua empregada, coitada, estava aflita com medo dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Rosário já chegou? Bolas… - reclamou, chateado, beijando-lhe o pescoço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, porquê? – esforçava-se por se manter consciente e a respirar, com a água a cair-lhe diretamente na cabeça e o corpo amolecido sem forças.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso quer dizer que já só temos uma hora… e para o que eu tinha imaginado é pouco tempo. – explicou, encostando-a à parede fria de azulejo, comprimindo-a contra si. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E se ela ouve? Fico sem jeito… - confessou, envergonhada com a ideia de que terceiros os pudessem ouvir, mas sem capacidade de se opor às intenções românticas dele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estão duas portas a separarem-nos dela, e eu prometo não gritar. – gozou, elevando-a.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, sem gritos não tem piada… - lamentou-se divertida, saltando-lhe para as ancas e beijando-o. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Exibicionista… - provocou-a, sentindo-se a aquecer a água que lhe caía em cima.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Destruidor do meio ambiente… - devolveu-lhe, sorrindo, já com os pensamentos a girar perdidos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu reciclo o lixo! – disse, beijando-a novamente e cada vez com mais intensidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas esbanjas água! – advertiu-o, fechando a torneira e agarrando-se à parede atabalhoadamente, à procura de estabilidade para o corpo, dominado pelo ritmo cada vez mais intenso de João.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum hum… sou um mauzão. – gozou, beijando-a com paixão. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cala-te… - suplicou, a sentir-se noutra dimensão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Sentaram-se à mesa e Rosário parecia incomodada sem saber como se comportar, com aquela presença estranha ao pequeno-almoço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já tomou café? – perguntou Isabel, decidida a acabar com o ambiente esquisito.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, quer dizer, sim. – corrigiu embaraçada, procurando um pano para esfregar alguma superfície e se distrair enquanto eles não saíssem de casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Rosário, sente-se por favor. Faça-nos companhia. – pediu João, relembrando-se de que Isabel não era snob nem conseguiria ignorar a presença de outra pessoa enquanto comiam.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, com licença. – sentou-se aliviada com o facto de que a namorada do patrão não ser nenhuma dondoca arrogante, o que lhe dificultaria muito a vida e o trabalho. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dás-me boleia para Celas? – perguntou Isabel, que se lembrou naquele momento de que não tinha o jipe com ela e dava aulas de manhã.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Achas que não há problema ires trabalhar? – uma leve azia subiu-lhe à garganta com a ideia de a deixar durante o dia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho de ir, - começou a explicar, ligeiramente envergonhada com a atenção que Rosário dava à conversa – mas podemos almoçar, se quiseres… - sugeriu, corando com um apalpão debaixo da mesa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Combinado. – descontraiu ligeiramente e continuaram a refeição, incluindo a empregada na conversa, que se prontificou a fazer lanches para os dois, se precisassem, e adiantar o jantar, se fosse caso disso. Isabel e Rosário gostaram imediatamente uma da outra, e a primeira não confessou que era vegetariana ao vê-la tão entusiasmada com a receita de jardineira que “era a preferida do patrão”.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Despediram-se os três e o casal saiu, com Filipe amuado na varanda, por não ter ainda liberdade de movimentos. Isabel compadecia-se do cão, que não estava habituado a espaços fechados, mas João prometeu-lhes que iriam espairecer de tarde, deixando-a mais descansada. Queria que eles se sentissem bem consigo, que Isabel ponderasse nunca mais voltar sozinha para a casa na quinta. Amava-a e nunca se sentira tão bem a viver com uma mulher. Não tomava o rol de comprimidos desde que tinham saído para o Gerês, simplesmente não se lembrava da necessidade de os tomar, e ela era a responsável por isso. Puxou-a para um beijo apaixonado enquanto o elevador descia até ao rés-do-chão, e só se soltaram quando uns vizinhos reformados que entravam na cabine os alertaram de que já tinham chegado ao destino.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Peço imensa desculpa… - disse Isabel corada até às orelhas, puxando João de dentro do elevador.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estão aqui, estão a proibir que andemos juntos no elevador na próxima reunião de condomínio! – brincou, divertido com o ar escandalizado da vizinha. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que vergonha… </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vergonha é roubar e ser apanhado. – concluiu, puxando-a novamente para outro beijo, enquanto passavam mais vizinhos idosos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda vamos presos por atentado ao pudor, ou expulsam-te do prédio. – disse, encaminhando-o para o carro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mudo-me para tua casa e tens de me aturar, afinal, tu é que és a culpada do meu comportamento irracional. – explicou com naturalidade, entrando no carro e sendo imitado por Isabel.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És muito arrogante. – provocou-o, adorando aqueles modos pomposos com que ele falava, tão cheio de si. Era enternecedor, não sabia explicar bem porque aquilo lhe dava tanto prazer. Talvez fosse o facto de ela saber que ele era o homem mais doce e romântico que conhecera, mas que só o revelava a ela, em momentos privados, e que toda sua superioridade exterior escondia intenções dissimuladas de alguém que na realidade pensava primeiro nos outros. Leonino como ele só.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Arrogante não, prático! Não me vais deixar na rua da amargura, ou vais? – perguntou, fazendo ar de escandalizado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro que não. – a imagem da sua sala de prática vandalizada perturbou a sua boa disposição, trazendo-a de volta à realidade. Se quisesse regressar a casa teria de enfrentar o seu fantasma e tomar decisões.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ei!, não fiques assim. Nós vamos resolver isto. – prometeu-lhe, beijando-lhe a mão ao vê-la subitamente abatida – E já que falamos nisso, Isabel…, não achas que seria prudente registar na polícia o incidente da sala de yoga? Se ele não pode chegar perto de ti e te entrou pela casa a dentro, para escrever ameaças, é bom que isso se saiba, para que eles iniciem um processo de averiguação. – sugeriu, tentando manter um tom de voz pouco dominador. A sua vontade era obriga-la a obedecer, seguir os seus conselhos à força.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Talvez tenhas razão… - confessou, aliviada por tê-lo na sua vida. Da primeira vez que enfrentara Tiago fizera-o sozinha, em péssimas condições psicológicas, e conseguira sobreviver. Com João a seu lado seria bastante mais fácil. – Vais comigo à esquadra? – perguntou a medo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro. Eu sou testemunha, não penses sequer em ir sem mim. – disse-lhe, sabendo que ela precisava dele naquele momento mas que não gostaria de ter de o pedinchar. Já a conhecia tão bem que parecia que conviviam há vários anos, sem segredos ou aspetos de personalidade que surpreendessem um ou outro. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está bem, quando quiseres ir, vamos. – concluiu, sorrindo-lhe agradecida. Romântico, pensou enternecida, romântico e altruísta…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Trouxeste o telemóvel? Assim quando eu terminar as consultas de manhã venho buscar-te. – disse-lhe, enquanto encostava o carro junto ao prédio onde Isabel dava aulas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Trouxe, mas eu vou lá ter. – informou-o, abrindo a porta do carro e saindo para rodear o carro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vais deixar-me assim, sem uma despedida em condições? – lamentou-se, ligeiramente frustrado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, mas se fico aí dentro aos beijos contigo perdemos a hora. – explicou divertida, dando-lhe um beijo leve pela janela do lado do condutor, mas rapidamente sendo puxada para um segundo beijo mais demorado. – Vês? – pigarreou, tentando aclarar a garganta, que ficara presa com aquele arrebatamento sensual. – És um perigo… </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A menina é a culpada. – brincou, retomando o ar sério logo de seguida – Se mudares de ideia, eu venho buscar-te. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel afastou-se em direção ao prédio, sorrindo-lhe, e João ficou a certificar-se de que não havia ninguém suspeito por perto a vigiá-la. Fingiu estar a mexer no telemóvel, com os óculos escuros postos, e olhou todos os carros e homens nos passeios, tentando detetar algum comportamento estranho. Sentia-se a entrar numa espiral de mania da perseguição, mas não queria saber, o que não podia era ser descuidado e permitir que o traste a perturbasse novamente. Poisou o telefone e arrancou, tendo de travar a fundo logo de seguida para não embater num carro que se lhe atravessou à frente inesperadamente. O homem parecia assustado e confuso, e pediu-lhe desculpa por gestos, submissamente, libertando a estrada e permitindo que João retomasse a marcha. Respirou fundo do susto e encaminhou-se para o trabalho. Tinha de prestar mais atenção à estrada, concluiu nervoso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tiago precisava de o tirar do caminho, e a ideia de o assustar animou-o ao ponto de desistir parar o carro e ir buscar Isabel dentro do prédio puxada pelos cabelos. Talvez brincasse primeiro com os nervos do rapaz, durante algum tempo, só pelo gozo de o chatear. Ela estaria sempre ali à espera de ser castigada pela sua ousadia, mas o seu novo pretendente teria de aprender que não se mexe no que é dos outros. Primeiro o homem e o cão, depois, quando ela já estivesse devidamente perturbada, não hesitaria em voltar para si, a bem ou a mal. Desejava que ela lutasse, que não fosse fácil, assim teria muito mais prazer, suspirou, relembrando-se de como era delicioso bater-lhe. Ela também gostava, Tiago sabia-o, e naquele dia, em que juraram perante Deus que nada os separaria, Isabel dissera no altar que sim, mesmo depois de já ter levado a primeira de muitas bofetadas. Ele sabia cumprir promessas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, Diana. Se alguém me ligar, por favor passe-me a chamada. – pediu à secretária, que se surpreendeu com o ar fresco e bem disposto do chefe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>-Bom dia Dr. Sim, claro. Espera uma chamada de alguém em especial? – perguntou de forma prática, havia sempre imensos pacientes que tentavam contactar o médico durante o dia. – É só que não o queria estar a interromper sempre que alguém precisa de saber quantos comprimidos pode tomar, ou… - começou a explicar, ficando corada logo de seguida com o sorriso do médico, que nunca tinha reagido a nada do que ela dissesse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, esqueci-me desse pormenor. Só atendo a “Ganesha”, a Isabel, ou a Marta. – disse, entrando no gabinete satisfeito com o ar escandalizado de Diana. Sentia-se especialmente divertido, leve e com menos dez anos em cima. E tudo aquilo sem um único fármaco. Tinha de repensar as prescrições que fazia habitualmente aos seus pacientes, seria de facto necessária tanta droga? Problemas emocionais gerados por vidas conflituosas, frustradas, madrastas, que os ensinavam na escola a medicar com anestesiantes, compensado depois com estimulantes e finalizando com soporíferos, tudo devidamente legal e acessível economicamente. Seria aquele o caminho para a cura mental, ou apenas um adiar de problemas? Decidira-se pela psiquiatria por se sentir compelido a tratar nos outros aquilo que nunca tinha conseguido resolver dentro de si, e que vira matar a mãe, depois da morte de Filipe. Conscientemente sabia que as suas reações físicas à dor da perda e da culpa poderiam ter uma explicação neurológica, e aprendera a lidar com isso, à força de comprimidos estratégicos, fazendo as suas próprias experiências pessoais, até encontrar uma dose certa e o menos prejudicial possível. Lia todas as bulas, pesquisava os componentes, origens, efeitos a médio e longo prazo, tentando assim resolver o problema principal que lhe dominava a vida, sentir demais. Esse era o seu diagnóstico privado e secreto, o facto de amar demais, pensar demais, temer demais, numa angústia sufocante, que as drogas anulavam à superfície. Cresceu até à idade adulta acompanhado pelos frascos, conheceu Isabel, namorou, casou, e as doses cresceram com ele, ela morreu e já não havia remédio que o trouxesse totalmente de volta. César dizia-lhe que um dia teria a sua “noite negra”, que o corpo se fartaria de ser obrigado a reagir emocionalmente de forma artificial, e que lhe iria cobrar todas as lágrimas e gritos que João lhe negava, sempre que engolia mais um comprimido. Mas cada vez acreditava mais que o amigo se enganara na profecia profissional, Marta apareceu na sua vida, e com Isabel trouxera-lhe a cura, sem que o fundo do poço se tivesse revelado. O psiquiatra dentro de si levantava a sobrancelha em dúvida, e João olhava-o com desprezo. Se havia um poço no seu caminho, já o tinha ultrapassado e deixara ficar para trás. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Foi interrompido pelo bater leve na porta, pôs de lado os seus raciocínios e iniciou mais uma manhã de trabalho. Sentia-se especialmente esperançoso e positivo. Iria almoçar com ela, jantariam juntos, e no final do dia, dormiriam abraçados. Não havia melhor remédio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span> </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta, graças a Deus voltaste! – exclamou Elisabete ao entrar na sala de yoga e ver a sua professora preferida de volta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, sim, foram apenas umas mini-férias. – explicou sem jeito, incomodada com o facto de que Elisabete a tratava pelo nome fictício e isso lhe soar estranho e indelicado, não queria que a amiga ficasse zangada quando descobrisse que tinha sido enganada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O César ontem disse-me que estás em casa do João… - disse baixinho de forma cúmplice – desculpa estar a ser indiscreta, mas fiquei tão feliz… não imaginas como sonhei com isto. Algo me dizia que vocês podiam dar certo… - continuou excitada – e não é que estava certa? O João é um amor, queria tanto que ele encontrasse uma mulher em condições…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, bem… obrigada. Eu também o acho um amor… - sentiu-se corar, ao ver o resto da classe atenta às palavras de Elisabete que falava um pouco alto demais com a emoção.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, estou a encavacar-te… vamos mas é à aula, depois falamos. Queres ir beber um chá quando sairmos?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Também queria falar-lhe sobre um assunto… mas não tem a ver com o João. – sossegou-a ao ver a ansiedade a surgir-lhe nos olhos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem querida. Vou para o meu lugar, elas já me estão a olhar de lado. – deu uma espreitadela incomodada às colegas que esperavam na sala, de caras pouco sorridentes – Invejosas… - disse entre dentes, encaminhando-se para o fundo da sala.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>Só mais três pacientes, mentalizava-se, assim que o obsessivo compulsivo bateu a porta, aquilo era demais para uma manhã, lamentava-se, rodando a cabeça na tentativa de descontrair os músculos do pescoço. Devia haver profissões consideradas de desgaste emocional, com direito a mais tempo de férias que o que dizia a lei. Como era possível recuperar a saúde mental em menos de um mês, dividido durante o ano, se apenas num dia de trabalho João se sentia a rebentar pelas costuras… Olhou o telemóvel antes do próximo paciente entrar e enviou um sms a Isabel “estou farto de aqui estar… vamos tirar férias?”. A porta abriu-se e uma senhora entrou desmotivada. João poisou o aparelho e cumprimentou-a de sorriso forçado. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, o que vais beber? – Elisabete questionou bem disposta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pode ser um chá de laranja canela. – respondeu sorridente, sentindo o telefone vibrar na carteira. Elisabete pediu licença e levantou-se para ir aos lavabos, deixando Isabel à vontade para ver a mensagem em privado. Abriu o sms e no mesmo instante sentiu-se descontrair com a ideia de estar alguns dias longe com ele, talvez na praia, a aproveitar o resto de verão. Respondeu-lhe no mesmo momento, “sim, por favor…”, poisando o telemóvel na mesa quando Elisabete voltou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel!? Estou? Isabel? – João atendera a chamada dela, mas parecia que se tinha enganado e carregado nos botões sem querer. Ouvia barulhos, mas ninguém respondia de volta. – Isabel? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto, precisava mesmo de me refrescar, hoje foi puxado! – gracejou, sentando-se confortavelmente de frente para a sua professora.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, abusei um bocadinho. Mas andei a preguiçar estes dias e precisava de puxar por mim. – explicou sorrindo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E então querida? O que me querias falar?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem… não sei por onde começar. – pigarreou, organizando as ideias – Primeiro, o meu nome não é Marta. Inventei esse nome porque ando “fugida” de um ex-marido abusivo, com quem estive casada dois anos e namorei muitos mais. – confessou, calando-se automaticamente com a presença do empregado que colocava os pedidos na mesa. – Deve estar confusa com o motivo porque lhe estou a contar pormenores pessoais da minha vida, mas como estou numa relação com o João, e ele já sabe da verdade, não faz sentido encontrarmo-nos todos um dia e a Elisabete me chamar de Marta… </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro querida. Mas não precisas de me contar nada, se não quiseres… - César já lhe explicara por alto os problemas da nova namorada do amigo, mas Elisabete sabia ser discreta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Preciso sim. Tenho de o fazer, porque a Marta vai desaparecer, já cumpriu o seu papel e agora preciso de encarar a minha realidade, se quiser ficar com o João. – explicou, bebendo um pouco do chá.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu compreendo. De facto, sem resolveres primeiro a questão do teu passado não podes avançar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Precisamente. Eu conheci o Tiago ainda no liceu. Andámos juntos na faculdade, todos esperavam que nos casássemos um dia. Mas a dada altura ele transformou-se, começou a ser violento verbalmente, destratava-me num minuto, fazíamos amor no outro. Era estranho e complicado. Eu comecei a questionar o futuro de tudo aquilo e ele apercebeu-se, daí para a frente foi o caos. Um dia deu-me uma bofetada tão forte que me apanhou de tal forma de surpresa que não tive reação. Nem chorei, fiquei apenas perplexa, a olhá-lo. Ele caiu-me aos pés, implorou que o perdoasse,… enfim… era um louco e eu não quis acreditar na minha intuição. Engravidei sem querer e casámos. Foi o maior erro da minha vida. Porque é que disse que sim no altar, perante toda a família e amigos, se aquele homem me batia? Perguntei-me várias vezes nos momentos pós tareia. Pensei muitas vezes em deixá-lo, mas ele ameaçava-me que me tiraria o filho, fugiria com o bebé se eu o fizesse. Aquele filho ainda não tinha nascido e eu já estava no meu limite emocional, mas não podia sequer imaginar ficar sem ele, o meu Filipe (esse era o nome que já tinha escolhido)… - Isabel parou a confissão, procurando um lenço na carteira para limpar as lágrimas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querida, por favor, não relembres esses assuntos… não é preciso contares-me nada. – suplicou Elisabete já a chorar também, entregando um lenço a Isabel e limpando-se com outro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, por favor, deixe-me dizer isto tudo. – respirou fundo e continuou – Vínhamos de um jantar com os meus pais. Tudo correra com relativa normalidade, pelo menos para mim. Mas sem que eu me apercebesse, fiz algo de errado durante a noite, nunca compreendi o quê. Só quando entrei no carro e ele trancou as portas, acelerando a fundo é que notei que tinha cometido alguma falha. Perguntei-lhe o que se passava, mas ele continuava a conduzir que nem um louco, sem me falar. Nunca tive tanto medo na vida… Se não estivesse grávida tinha-me lançado do carro em andamento… Levou-me para os arredores de Castelo Branco (onde vivíamos) e bateu-me dentro do carro. Ao início aguentei a fúria dele, pensando que seria como das outras vezes, ele dava-me umas lambadas, uns puxões de cabelo, e acalmava. Mas não,… da cara passou para a barriga, e dali fui parar ao hospital. Só me lembro de acordar e vê-lo esmurrado e ferido na cara, como se tivesse sofrido algum acidente, a olhar-me de lágrimas nos olhos. Os meus pais choravam com ele, e eu fiquei sem bebé. – Elisabete deu-lhe as mãos, fungando, e olhando noutra direção, sem a encarar. Isabel recompôs-se mais um pouco e continuou. Nunca tinha falado abertamente sobre aquilo com ninguém para além de dois ou três polícias e pessoas no tribunal. – Quando me disseram que o acidente de carro que tinha sofrido provocara um aborto, fiquei cega, levantei-me da cama, arranquei os tubos todos e lancei-me em cima dele. Queria matá-lo, e conseguiria fazê-lo naquele momento, mas ao contrário de mim, várias pessoas o protegeram da “louca”. Ele bateu-se para fingir um acidente… chorou ao meu lado a representar, depois de ter espancado a sua mulher e matado o seu próprio filho… Deram-me calmantes, durante vários dias, e depois, quando voltei para casa pedi o divórcio, pois naquele momento eu já não tinha medo que ele me matasse. Já não me importava, só queria que ele desaparecesse da minha vida. E se para isso eu tivesse de morrer, que fosse. Ironicamente ele não foi preso, nunca consegui provar que me batia, que me tinha espancado naquela noite, todos queriam que me calasse. Nessa altura pensei em suicídio, elaborei vários planos, mas não tive coragem. Não conseguiria magoar a minha mãe e a Dazinha (a minha ama que ainda hoje vive com os meus pais). O Tiago já tinha causado sofrimento suficiente naquela família, não lhe iria dar mais aquele prazer. Consegui o divórcio à força, uma ordem de proibição de contacto, mas ele safou-se. À saída do tribunal, ameaçou-me, disse que nunca me deixaria em paz, que me mataria se o trocasse… e eu fugi, mudei a minha vida toda e vim para Coimbra, começar tudo de novo, com a Marta. Estive estes cinco anos em paz… embora não houvesse um único dia em que não me lembrasse do meu filho que ele matou, nunca mais tive notícias dele… até ontem. – Isabel bebeu mais um pouco de chá, engolindo com esforço.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas esse homem apareceu ontem? – perguntou aflita.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ontem eu e o João chegámos do Gerês e quando entrámos na minha sala de yoga estavam lá escritas na parede ameaças… ele forçou a entrada, sabe que eu tenho outra pessoa, deve andar a vigiar-me desde sempre… - arrepiou-se com a ideia e poisou a chávena.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que horror… mas já foram à polícia, certo? – exclamou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… fiquei demasiado chocada ontem, não tive capacidade… - confessou envergonhada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas querida, tens de fazer queixa dele! Um monstro desses não pode andar por aí impune.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu sei. Mas não queria envolver o João nos meus problemas… - fungou, limpando novamente os olhos – O Tiago é um estigma meu, que tenho de resolver sozinha. Não conseguiria viver se ele fizesse mal ao João.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Aí eu não concordo contigo. É certo que o Tiago faz parte do teu passado, mas se o João já sabe, e quer estar contigo, está a aceitar esse problema também. Não acredito que ele vá permitir que tu lides com isto sozinha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei… ainda é tudo muito recente. Ele mal me conhece e eu a ele… Não deveria ser assim o início de uma relação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é de facto o que normalmente acontece, mas é a vossa realidade. – resumiu pragmaticamente, dando-lhe novamente a mão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="white-space: pre;"><span style="font-family: helvetica;"> </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>João conduzia possuído, rua abaixo, rua acima, tentando perceber onde é que ela estava. Mantinha a chamada em alta-voz desde que Isabel ligara sem querer, e quando ouviu a voz dela não conseguiu desligar o telemóvel. Sabia que não era correto, mas pediu licença ao paciente e saiu até a um local sossegado na clínica, ficando paralisado ao ouvir a descrição que ela dava a Elisabete. Sabia que ela estava a chorar, precisava de a ir ver, de a abraçar, ela tinha estado grávida e o ex-marido provocara-lhe um aborto com porrada… Sentia-se a explodir de raiva, capaz de o matar com as próprias mãos, se o visse à frente. Secretamente desejava encontrá-lo, mas sabia que isso seria improvável, portanto apenas lhe restava consolá-la. Viu-a dentro do café, sentada com Elisabete e parou o carro abruptamente, cruzando o olhar com ela. Isabel percebeu que ele vinha perturbado, olhou instintivamente o telemóvel e pegou-lhe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João? – disse com a voz trémula.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos embora, dá um beijinho à Lisa e vamos dar uma volta. – pediu-lhe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Isabel obedeceu, e João saiu do carro, ajudando-a a entrar. Acenou adeus à amiga perplexa no café e dirigiu para longe dali, levando-os sem rumo definido. Assim que as ruas se tornaram menos povoadas, encostou o carro, tirou os cintos dos dois e puxou-a levemente para o seu colo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Desculpa, ouvi tudo… telefonaste-me sem querer… não consegui resistir quando me apercebi de que ias contar alguma coisa sobre ti… - confessou, olhando-a nos olhos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Não faz mal, iria contar-te tudo mesmo… assim já está. Não tenho de o repetir. – deveria sentir-se zangada com aquela invasão de privacidade, mas o facto é que estava aliviada. Aquele gesto de a ir procurar preocupado deixou-a de tal forma emocionada que não conseguiu culpá-lo. – Eu amo-te muito. Obrigada por me teres ido buscar. – beijou-o e deixou-se ficar enroscada nele, em silêncio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Se não fizeres queixa dele eu vou matá-lo. – avisou-a depois de uns minutos de silêncio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Quê?! – sobressaltou-se.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- É isso mesmo. E depois vais ter de esperar por mim 25 anos e ir à cadeia todas as semanas levar-me os comprimidos. – acrescentou, desanuviando um pouco a conversa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ah, pensei que estivesses a falar a sério… Por favor, não quero mortes nenhumas…</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Eu estou a falar a sério. Ou vais agora comigo à polícia ou assim que eu o encontrar, mato-o. E isso vai-me dar a pena máxima. – olhou-a sério, beijando-lhe a boca seca.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Está bem… Mas prometes-me que não fazes nada que te possa prejudicar? – perguntou receosa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">- Ele está-me a prejudicar neste preciso momento, e eu ficarei para sempre prejudicado enquanto ele andar solto, ou vivo. Entende uma coisa Isabel, eu amo-te. Esse homem fez-te muito mal, não pagou por isso, e ainda voltou a ameaçar-te depois de tudo o que se passou. O que queres que eu faça? Que finja que ele não te entrou pela casa a dentro e rabiscou as paredes? Que fique à espera que ele te mate? Porque acredita que se ele for esperto, primeiro vai tentar fazer-me mal a mim, porque sabe que agora não estás sozinha. Se ele tentar aproximar-se de ti terás alguém ao teu lado. Agora eu sei que ele vai atacar quem te está próximo, e espero que o faça cara a cara. Por isso, ou vamos agora à polícia e tentamos resolver isto através da legalidade, ou ficamos calados à espera do próximo passo dele, e aí, eu mato-o.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Isabel mergulhou a cara molhada no pescoço de João, chorando tudo o que reprimira no café, embalada pelos braços dele. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(direitos reservados, AFSR)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">(imagem, internet)</span></p>Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-32645332544211309412020-08-07T01:47:00.001-07:002020-08-07T01:47:52.051-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 14<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzYC2nIG3Q04igA9VQNMo-7shxjTC9iNp_nhJ10pDeL0_fbcrV0yzgYrthwkdYE_dOO7v59t1t-LOXxnIJplFnohCKT80cObhlPPUgfVwOf4regyDsvHxFYd2jSUgxNmRW386jaI20WcQ/s1600/violence-against-women-e1490318964683.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="675" data-original-width="1000" height="216" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzYC2nIG3Q04igA9VQNMo-7shxjTC9iNp_nhJ10pDeL0_fbcrV0yzgYrthwkdYE_dOO7v59t1t-LOXxnIJplFnohCKT80cObhlPPUgfVwOf4regyDsvHxFYd2jSUgxNmRW386jaI20WcQ/s320/violence-against-women-e1490318964683.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A casa continuava igual, como Tiago se lembrava da primeira vez que forçara a entrada, alguns anos antes. A idiota era descuidada, não trancava as janelas, tinha a mania que ainda vivia no Solar, onde alguém sempre atento lhe trataria da segurança e comodidade, constatou com desprezo. Entrou calmamente, observando tudo pormenorizadamente, à espera de ver sinais claros de que já enfiara outro homem na cama. Estava tudo limpo e arrumado, a cama só tinha uma almofada, o que o tranquilizou um pouco, talvez estivesse a imaginar coisas, concluiu. Espreitou na pequena casa-de-banho, uma escova de dentes, um champô de mulher, sabonete de glicerina, como ela gostava, nada de presenças secundárias por ali. Caminhou até à cozinha, inspecionando tudo, sentiu uma raiva a crescer-lhe no peito ao observar as duas chávenas no escorredor, o estupor já bebia chá com ela… Abriu o cesto da roupa suja, tirou peça por peça, tudo de mulher, concluiu satisfeito, cheirando-as num instinto doentio de saudades. Guardava a roupa novamente, quando umas calças se soltaram embrulhadas no meio de uma das suas longas saias, sentiu-se corar de fúria, eram demasiado grandes para ela as usar, de homem, rosnou. – Vaca… - soltou, dirigindo-se à sala de prática, disposto a vingar-se. Tirou da sua mochila a lata de tinta vermelha em spray, abanou-a e deixou-lhe o recado. Curto e grosso. Ela iria entender.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João estacionou o carro à porta da casa de Marta, retirou Filipe do banco traseiro, e seguiu-a até casa, observando a sua elegância natural de mulher confiante. Ainda não tinham tido oportunidade de falar sobre o que estava a acontecer com os dois, mas já percebera que ela não era muito dada a esclarecimentos teóricos sobre os seus sentimentos. Isso angustiava-o um pouco, mas por outro lado, deixava-o numa expectativa excitante. Poisou o cão no seu cesto da entrada, fazendo-lhe uma festa e entrou em casa, tirando os sapatos à entrada, como ela fazia. Era um hábito diferente, mas que curiosamente o fazia sentir-se confortável e relaxado. Marta levou o seu saco de viagem até ao quarto, arrumou o que estava limpo e levou a roupa suja para o cesto na cozinha. Franziu o sobrolho ao ver a tampa torta, levantou-a e espreitou, sentindo uma azia estranha. Seria imaginação sua, ou a última peça que lá pusera era o pijama e este não aparecia no cimo da roupa? João surgiu distraindo-a das suas paranóias, e trazia consigo uma energia que lhe pôs o cérebro em pausa, apagando tudo. Mais uma vez não falaram nada, absorvendo apenas a química que os envolvia, e que já tinham adiado bastante tempo. João pegou nela e levou-a instintivamente para a sala de prática, sem saber bem porquê, parecia-lhe o sítio ideal para terminar aquele dia, sob o olhar sábio e protetor de Ganesha. Marta abriu a porta com o braço livre, e o outro a rodear o pescoço de João, que a beijava apaixonado. Sentiu-o a baixar-se até ao chão, sentar-se em posição de lótus, mantendo-a no colo, e sorriu interiormente, afinal ele tinha lido o livro, pensou satisfeita. Fez uma pausa, olhando-o apaixonada, a sentir-se completamente rendida, em êxtase, pronta para lhe dizer que sim, que também o adorava, quando João ficou subitamente hirto, com os olhos furiosos, a fixar a parede, sobressaltando-a.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta, o que é isto? – sussurrou, fazendo-a voltar a cabeça para o local.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- AH…. – engoliu o grito de horror, agarrando os braços de João à procura de apoio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João abraçou-a, a sentir-se ferver por dentro, sentia-a a desfalecer em silêncio, sem explicar o que poderia ter ali acontecido, queria berrar e abaná-la, mas primeiro tinham de sair dali. A imagem grotesca, desenhada na parede a cobrir os deuses hindus, acompanhada de palavras de ódio e ameaças, eram demasiado fortes para aguentar. Fugiram para a rua, sentando-se nas escadas da entrada, com a garganta seca, um ao lado do outro. Marta olhava o infinito em transe, sem se mexer, parecia pensar em algo muito triste ou terrível, concluía João, sem saber o que fazer para que ela reagisse. Abraçou-a, encostando a cabeça dela no seu peito e deixaram-se ficar assim, até que Marta se decidisse a falar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Foi Filipe quem quebrou o silêncio, ladrando, dando sinal, e sobressalto-a novamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele nunca ladra… - levantou-se em pânico, a imaginar que Tiago estivesse por ali, escondido a observá-los, pronto a atacar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>-Marta, para. Olha para mim, tem calma. – pediu João, a ver materializar-se noutra pessoa aquilo que ele vivia diariamente, a ansiedade, o medo a espalharem-se por todo o corpo. - Vamos embora daqui. – disse decidido. Sentou-a no chão, ao lado de Filipe, entrou em casa e tornou a encher o saco dela com roupas ao acaso. Entrou na sala de prática, pegou na pequena estátua de Ganesha intacta e colocou-a também no saco, bem como a mala vermelha, a tal que o levara até ali e que estranhamente aparecia naquele momento, ou estivera sempre com eles?, perguntava-se confuso, caminhando para a rua. Levou-os para o carro, meteu o cesto de Filipe na mala e trancou a casa. Marta continuava sem reagir, apenas seguindo-o com o olhos, pálida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hoje ficas em minha casa, ok? Temos de perceber o que aconteceu aqui. – disse-lhe, beijando-lhe a mão. – Não tenhas medo, tudo se vai resolver.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Agora era só esperar que ela tivesse juízo, que voltasse para casa sozinha e deixasse de o ver. Tinha sido bastante claro cinco anos antes. Ou ela ficava com ele, ou estava condenada a morrer sozinha. E Tiago teria todo o prazer de se certificar disso, que Marta morreria. Fugira de Castelo Branco para Coimbra, com uma identidade nova, como se isso fosse o suficiente para que ele não a descobrisse, recordava-se sorrindo. Era mesmo estúpida e ingénua, dissera-lhe à saída do tribunal. Não havia sentença nenhuma que os separasse, muito menos que lhe garantisse a liberdade que ela desejava. Bastara-lhe um mês para a encontrar, a ela e ao maldito cão, que devia ter afogado junto com os outros, lamentava-se furioso. Dar-lhe-ia um par de dias para que ela regressasse a casa, e apanhasse juízo, se isso não acontecesse, resolveria o assunto à sua maneira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou fazer um chá. – disse João, beijando-lhe a cabeça. Era Psiquiatra, mas uma vez mais não conseguia usar nada do que aprendera para a ajudar. Deveria ser capaz de a fazer falar, de a pôr confortável o suficiente para que saísse daquele estado catatónico. Sentia-se furioso e alterado, não conseguiria o distanciamento necessário para a trazer de volta. Uma ideia surgiu-lhe e telefonou a César. Talvez o amigo a conseguisse trazer de volta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, não me sinto bem… - sussurrou sem forças, sentindo um desmaio iminente. Há alguns anos que não vivia aquelas sensações de terror, mas reconhecia a reação do seu corpo às lembranças da sua vida com Tiago.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Calma, já chamei o César, ele vai saber o que fazer. – pegou nela ao colo e levou-a para o quarto, cada vez mais nervoso com tudo aquilo. A impotência voltava, pensou angustiado ao lembrar-se de Isabel a morrer. Não aguentaria perder Marta, disse-lhe o seu inconsciente, não sabia bem porquê, só a conhecia há menos de duas semanas. Isabel fora sua mulher e namorada durante mais de uma década, mas morrera e ele continuara vivo. A ideia de que Marta lhe definhasse nos braços era muito mais aterradora. – Queres o chá?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… ainda não. – respondeu-lhe com dificuldade. Fica aqui comigo, por favor. – pediu-lhe, abraçando-o. Não era de Tiago que tinha medo, do que ele pudesse fazer-lhe, mas sim de que tudo aquilo fosse impossível, que tivesse de o deixar, para o proteger. Poderia ir à polícia, denunciar o ex-marido, ele estava proibido de chegar perto dela, mas e se ele entretanto atacasse João, se descobrisse onde morava o homem que ela começara a amar? Essa angústia corroía-a por dentro, a indecisão do que deveria fazer. Percebera a mensagem na parede: “O que foi que te avisei? Puta Ordinária”. Deveria andar a espiá-la novamente, insistia naquela loucura, nunca mais iria ter paz, ser feliz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>César chegou rapidamente, receoso do pedido de ajuda do amigo, que deveria estar muito mal para o chamar, concluiu gravemente. Bateu à porta e aguardou nervoso, temia o dia em que não chegaria a tempo para João. Este abriu a porta energicamente, para espanto de César, que pensava encontra-lo abatido e desesperado, achando-o apenas desesperado, mas carregado de energia positiva, a reação proactiva a um problema, o vulgarmente chamado, fodido da vida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá César, obrigado por teres vindo. Preciso que me ajudes a acalmar a Marta. – disse-lhe de rompante, chamando-o até ao quarto, onde ela se mantinha deitada de lado a olhar a parede, sem se mexer.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ela parece calma. – sussurrou-lhe antes de entrar, feliz por não ter nas mãos nenhuma situação de histeria ou descontrole físico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ela parece-te calma. – explicou-lhe ao ouvido – Acredita que isto não é normal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixa-me falar com ela sozinho. – pediu-lhe, fechando a porta devagar e aproximando-se da cama, onde se sentou paternalmente junto dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta e César falaram durante bastante tempo, quase num sussurro que João não conseguia perceber. Ficou tentado em colocar o ouvido na porta, mas a estupidez da ideia travou-o, indo simplesmente sentar-se junto de Filipe, na sala, a consolar o animal e a si mesmo, fazendo-lhe festas e massagens que relaxaram os dois. João nunca tinha gostado de cães em particular, e sempre se sentira desconfortável junto deles, grandes ou pequenos, que reagiam instintivamente à sua energia negativa. Mas Filipe era um cão diferente, pensava distraído, parecia entender tudo o que se passava à sua volta, com um olhar astuto e cheio de personalidade, que transmitia os seus estados de espírito de forma honesta. Para além disso, emitia uns sons guturais que quase falavam, e como Marta tinha dito no momento de pânico em sua casa, aquele cão nunca ladrava. Parecia mesmo recusar-se a ser cem por cento animal, arranjando sons alternativos para se explicar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És mesmo giro, sabias? – disse-lhe João, já sentado no chão com o grande animal esparramado por cima de si, em posição adequada a ser massajado com eficácia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vocês são os dois muito giros. – comentou Marta que apareceu na sala, já com cores e lado a lado com César, que sorria sem vestígios de preocupação no olhar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, aqui está uma cena que sempre pensei impossível de ver, o João a brincar com um cão… - comentou César, que se mantinha naturalmente confortável mesmo depois da conversa com Marta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sentes-te melhor? – perguntou João, levantando-se com dificuldade debaixo do cão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, está tudo bem. – respondeu, abraçando-o sorridente e beijando-o como se fosse aquilo um hábito entre um casal já antigo. César respirou fundo, mostrando um sinal de alívio perante aquela demonstração de afeto e despediu-se dos dois.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Levas o Filipe à rua? Ele deve estar aflito. Eu vou tentar perceber como se usam estas coisas todas aqui na cozinha e tentar não nos matar com um jantar inventado. – deu dois beijos no psiquiatra, que corou ligeiramente, e encaminhou-se, com toda a graça e elegância que lhe eram características, para a cozinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Os dois médicos saíram de casa, com Filipe ainda no colo de João, que esperou ficar a sós com o amigo para tentar saber pormenores sobre a conversa entre ele e Marta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, César? Ela explicou-te o que aconteceu na sala de yoga de sua casa?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, contou-me que foi vandalizada. – disse calmamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E por quem? Ela não disse? Aquilo que lá estava escrito era pessoal. – exclamou inflamado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deve ser, mas como disseste e bem, é pessoal. – encarou-o sério.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás a brincar a comigo? – vociferou, poisando o cão no chão, num local onde o animal poderia estar sossegado. – Ela tem de chamar a policia e denunciar quem fez aquilo!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, acalma-te. Se chegas lá a cima a casa e te pões nestes termos a comandar o que ela tem ou não tem de fazer, garanto-te que sai porta fora e nunca mais a vez. – sentenciou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como assim? – uma acidez subiu-lhe até à garganta, ao imaginar que Marta desaparecesse da sua vida naquele momento – Ela disse que ia embora?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, não disse. – suspirou – Só estou a fazer deduções, João. Eu não te posso contar tudo aquilo que falámos, terás de ser tu a conversar com ela. Mas, em todo o caso, tenho de te alertar de que a Marta conseguiu sair de uma relação com um psicótico e vai reagir mal se a pões contra a espada e a parede. Independentemente de eu e tu sabermos que chamar a polícia seria o mais correto a fazer, também lhe sugeri isso, as mulheres que lidaram com homens possessivos e agressivos, e conseguiram livrar-se deles, tendem a ganhar um medo irracional a situações de confronto com os antigos companheiros. É natural, a polícia e o tribunal são meras formalidades, quando tu sabes que nenhuma dessas instâncias nada pode contra um maluco com a missão de te matar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele tentou matá-la? – disse quase sem voz, agarrando o braço de César para se apoiar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vai para cima, acalma-te, não a obrigues a falar hoje. – aconselhou-o, dando-lhe uma palmada suave do ombro – Descansem e amanhã é outro dia!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigado César. – conseguiu dizer, em jeito de despedida, abatido com o facto de não poder resolver tudo aquilo naquela mesma noite. Talvez estivesse mesmo a ser leviano e ingénuo ao pensar que o ir fazer queixa às autoridades resolveria o problema instantaneamente. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, é verdade… - César voltou-se para João a meio do seu trajeto até ao prédio do lado – Ela não é lésbica. – piscou-lhe o olho e sorriu, regressando ao seu caminho até casa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já desconfiava... – tentou sorrir de volta. Deveria estar aos pulos de satisfação com aquela confirmação de que Marta poderia gostar dele como homem, mas a azia não o deixava festejar. Sentia-se furioso com um tipo que não conhecia, o que lhe arrepiava ligeiramente os pelos na nuca. Procurou por Filipe, que se arrastava pelo pequeno passeio relvado, numa luta entre a tala da pata traseira, a procura de uma posição confortável em cima da pouca natureza que a urbanização lhe permitia, e uma comichão qualquer atrás da orelha. Decidiu esperar um pouco antes de subir, para pensar o que dizer, treinar a descontração que César lhe sugerira, mas que lhe parecia impossível de conseguir. O cão não parecia estar com pressa, e João sentou-se num banco a admirar aquelas manobras acrobáticas. Como era bom ser cão, pensou com alguma inveja. Pelo menos aquele cão, corrigiu, imaginando-o a dormir por cima da dona vestida com aquele pijama minúsculo que lhe vira há dois dias por baixo do robe. – Sortudo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta lutava com o micro-ondas demasiado sofisticado da cozinha ultra-moderna de João, carregando em botões atrás de botões, sentindo-se uma idiota por não conseguir perceber como se descongelava coisas sem ser ao natural, ou em água quente, como estava habituada na sua casa com os ritmos mais lentos. Não podiam ficar horas à espera que aquela mistela estranha aquecesse ao ar, lamentava-se, aborrecida com a ideia de que teria de lhe perguntar como se usava aquela geringonça, e detestava pedir favores, especialmente a homens. Quase se convencera a si própria de que teria de engolir o orgulho no que dizia respeito ao micro-ondas, quando subitamente a máquina decidiu colaborar e iniciou o processo de descongelar, ao mesmo tempo que a campainha da porta tocou, junto com um bater leve de nós dos dedos. Marta dirigiu-se à entrada e espreitou pelo óculo, já a embarcar em pensamentos neuróticos de perseguição. Confirmou que era ele e abriu a porta aos dois machos da sua vida. Esse pensamento fê-la sorrir e João ainda não tinha poisado Filipe nem fechado a porta, já ela se lhe tinha agarrado ao pescoço, beijando-o. O cão libertou-se do abraço de grupo com dificuldade, saltando nas três patas para o chão e procurando um sítio isolado para descansar, enquanto o casal esbarrava contra os objetos dispostos nas superfícies dos móveis modernos da sala. Encontraram o sofá, depois de várias caneladas na mobília, e caíram desamparados, sem notar que Filipe os olhava de orelhas em pé, surpreso com aquela súbita luta. Arrancaram os sapatos, as roupas, sem se descolarem um do outro, numa fúria desenfreada que começou a enervar o cão, que dava voltas sobre si mesmo, com a pata enfaixada ao pendurão, soltando uivos. Marta e João pararam para olhar o animal, que se arrastava na direção do sofá, gemendo de medo, sem entender o que se passava entre eles os dois, obrigando-os a isolarem-se no quarto e fechar a porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isto é como ter um filho, é preciso os papás se esconderem para darem uns beijinhos… brincou João, puxando-a para si.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pior… este vai-te arranhar a porta toda… - gracejou, acabando de despir o que ainda trazia no corpo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que vai valer a pena… o que é uma porta riscada perante uma mulher nua? – provocou João sorrindo à imagem de Marta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- “Uma mulher”? – reclamou ofendida com aquele termo pouco personalizado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A minha mulher. – atreveu-se a classificar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, assim está melhor. – sorriu-lhe afetada, queimando de alegria interiormente. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, ironicamente, no dia em que Tiago ressuscitara na sua vida. César tinha razão, a vida era uma caixa de surpresas, ninguém está certo de nada, mas podemos escolher o que fazer perante aquilo que nos vai surgindo, de bom e de mau. João era uma prenda do destino, uma oportunidade de ser feliz e de fazer felicidade com outro. Não iria afastá-lo, pelo contrário, se ele quisesse, e aceitasse o seu passado, iria pela primeira vez em muito tempo, lutar por manter essa felicidade. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E eu? – perguntou-lhe ao ouvido, interrompendo os seus pensamentos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tu? – questionou-o surpreendida, sem entender a pergunta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que sou eu para ti? – um aperto no estômago obrigou-o a olhá-la perante o seu silêncio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, tu és o meu homem. – disse, num rasgo de coragem inédito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah bom… - comentou aliviado, e estupidamente contente. Levantou-a do chão, enquanto a beijava apaixonadamente, sentindo-se tonto de tanta emoção. O seu corpo era ainda mais fácil de amar que a sua personalidade, o que o enlouqueceu. Tudo parecia de tal forma seu e familiar, sem constrangimentos ou dúvidas, simplesmente doce e sensual, numa combinação perfeita que o arrebatou. Como era possível que alguém não a venerasse ou beijasse os pés à cabeça? Como podia aquele traste ter-lhe batido e infernizado a vida? Não iria descansar enquanto aquele homem estivesse solto, ou vivo, concluiu vingativo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Prometes-me uma coisa? – pediu Marta procurando o seu olhar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei… - beijou-lhe o pescoço, descendo até ao ombro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te zangas comigo se eu te contar um segredo?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei… - continuou a descida, quase sem a ouvir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu não me chamo Marta… - confessou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah não?... – gracejou, sem parar de a beijar. Sabia bem quem ela era, mas queria que o dissesse espontaneamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu chamo-me Isabel… - conseguiu dizer, com medo de que ele achasse estranho ou bizarro ela ter o mesmo nome da ex-mulher falecida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum… - levantou a cabeça e olhou-a a sorrir, deliciado com o voto de confiança que ela lhe dava. – E posso tratar-te por Belinha?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não achas estranho?... – perguntou aflita.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. – apoiou todo o seu peso em cima dela, encarando-a – Eu já sei disso há alguns dias. Sei de várias coisas… andei a pesquisar. – confessou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E então? Queres ser namorado de uma mulher que vive uma vida dupla a fugir de um psicopata?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, se ela quiser, quero casar com uma mulher linda, boazona, livre e desimpedida, que ainda por cima sabe sexo tântrico! – disse-lhe reforçando as palavras com alguns beijos estratégicos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso não se diz assim… é cobardia… agora tenho de aceitar para tu não parares… - sentia-se a entrar em ebulição com aquela conversa de pé de orelha, carregada de estímulos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu consigo ser muito retorcido, ainda não viste nada. – ameaçou-a, voltando-a para cima de si. Sexo falante, aquilo era uma novidade, constatou divertido. Levantou-se e ficaram sentados um no outro, de cabeças coladas, encarando-se apaixonados.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podes chamar-me de Isabel? Eu queria ouvir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel. – beijou-a na bochecha – Isabel. – no canto da boca – Isabel. – no pescoço livre que ela lhe oferecia ao colocar a cabeça para trás. – Isabel. – no peito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Adoro-te. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-35766875947224873912020-08-06T01:44:00.000-07:002020-08-06T01:44:31.793-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 13<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZmAD-LMa2DaYfswutQb35V-bU3XtCe4_8FhVUDpJoJI62WuaqKTWcwNTM7-izvEYJc-ASL1dX0JyLEzBGGqNuAHsFGCoYCUf8fjiuSuM9lzoVECS-HelHUwRZizGR2_1ebYCmLu-VzoI/s1600/jurassic.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="395" data-original-width="600" height="210" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZmAD-LMa2DaYfswutQb35V-bU3XtCe4_8FhVUDpJoJI62WuaqKTWcwNTM7-izvEYJc-ASL1dX0JyLEzBGGqNuAHsFGCoYCUf8fjiuSuM9lzoVECS-HelHUwRZizGR2_1ebYCmLu-VzoI/s320/jurassic.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Não sabia bem quanto tempo já teria passado desde o momento em que Filipe caíra no poço, sentia-se completamente dormente e vazia. João acalmara devagar, e todas as esperanças de que o cão aparecesse a saltitar se tinham esfumaçado no ar. Chorara bastante tempo, pelos dois, pelo seu futuro sem Filipe, pela infelicidade que João trazia dentro dele, minando-o como um parasita silencioso. Alguma coisa despoletara nele a crise de pânico, mas Marta não conseguia perceber o quê, seria o facto do cão ter caído?, ela ter ficado com medo? Seria sempre assim a vida dele? Uma corda bamba de estados emocionais, que balouçava instável a tentar mandá-lo ao chão. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Passava-lhe os dedos no cabelo, consolando-o, quando João pareceu renascer, olhando-a com mágoa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Onde é que ele está? – perguntou abatido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei… - respondeu emocionada, sentindo as lágrimas a voltar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, por favor… - pediu-lhe com a voz fraca.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas desculpar o quê, João? Tu não foste o culpado de ele ter caído. – reagiu Marta puxando-lhe o queixo para que ele a encarasse.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se eu não tivesse entrado em pânico ele não tinha morrido. – confessou, limpando uma lágrima.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas como sabes que ele morreu? Pode estar apenas magoado, à espera que o encontrem. – disse Marta sem perceber o raciocínio dele tão derrotista.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas ele morreu, Marta, à minha frente, entendes? Bastava eu ter esticado o braço… - gemeu, colocando a cabeça nas mãos, poisadas nos joelhos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quem é que morreu, João? Diz-me. – pediu Marta, abraçando-o.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O Filipe… o meu irmão mais novo. – conseguiu dizer, olhando-a desesperado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Achas que consegues andar? Tens de ir deitar-te e descansar. Vamos. – beijou-o na cara, fazendo força para não chorar ainda mais.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, tenho de encontrar o Filipe. – disse-lhe decidido. Levantaram-se e começaram a percorrer o caminho da água, na esperança de que o cão tivesse sido arrastado pela corrente no meio das pedras.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta não estava certa de que caminhar rio abaixo fosse a decisão mais inteligente depois de se sofrer uma crise de pânico, mas sabia que João precisava de encontrar Filipe com vida, pelo menos aquele, pensou, engolindo em seco. O que teria acontecido com o irmão para se afogar?, que idade teriam?, há quantos anos ele viveria com aquela culpa? Não lhe admirava que tomasse tanto anestesiante. A dor emocional podia ser a mais difícil de ultrapassar de todas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos voltar, João, já andámos imenso, daqui a nada não conseguimos encontrar o carro. – disse estoirada da caminhada sinuosa entre os calhaus gigantes que ladeavam o rio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espera, - exclamou agitado – acho que está ali qualquer coisa. – correu de pedra em pedra, para alcançar a mancha cinzenta e peluda que se via ao longe, do outro lado da margem, saltou para dentro de água, conseguiu chegar ao animal e pegou-lhe com cuidado. Parecia bastante ferido, com uma pata torta, partida em dois, e a respiração ofegante e difícil.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É ele? É ele? – gritou Marta, saltando na pedra, a sentir uma felicidade e um alívio que lhe pareciam saltar da boca.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, conseguimos. – exclamou João, sorrindo de alegria por ter conseguido salvar o cão que ela adorava. – Ajuda-me a subir. – pediu, com dificuldade para trepar as pedras com o cão pesado nos braços. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta puxou-os com força, mas cuidadosa, para não magoar ainda mais o seu querido Filipe, que a olhava com tristeza.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Meu amor… - beijou o cão com carinho, ajudando João a sentar-se um pouco numa pedra mais alta e a recuperar as forças para conseguirem levar o animal até ao carro e procurarem um veterinário. Olhou o salvador da sua companhia de tantos anos e beijou-o também com força. – Obrigada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabes a cão molhado. – brincou João fazendo uma careta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Conseguiram encontrar um veterinário com serviço de urgências 24 horas, e Filipe estava a ser observado com Marta e João do seu lado, abraçados. Já lhe tinham feito rx e o médico preparava-se para lhe colocar uma tala na pata partida. Felizmente não batera com a cabeça ou as costelas, o que teria sido mais difícil de tratar, explicou o veterinário que já tinha visto de tudo naquele rio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas ele pode ir já connosco? Não precisa de vigilância? Tem a certeza de que só magoou a pata? – perguntava João nervoso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está tudo bem. – acalmou-o o veterinário sorrindo – Agora só precisa de comer, descansar, um comprimido para as dores e mimos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada Dr. – agradeceu Marta, guardando a receita para os analgésicos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João pegou paternalmente no cão, levando-o até ao carro e acomodando-o com cuidado, para não o magoar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vês? Isto é o que acontece quando não tens juízo… - ralhou Marta na brincadeira, entrando para o carro e colocando o cinto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vais ficar de castigo um mês! Nada de dormir na cama da dona, agora só na almofada do chão. – acrescentou João – E não me olhes assim, estás com a pata partida, não consegues saltar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me fales em cama…estou estoirada. – disse Marta com o olhar cansado e inchado de tantas horas a chorar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos já tratar disso. – acelerou em direção ao hotel.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>O funcionário da receção acorreu a abrir-lhes as portas ao ver o grande animal ao colo, ferido. Pareciam ter saído do filme o “Parque Jurássico”, descabelados, sujos e em estado catatónico. Aquela natureza selvagem do Gerês não era para todos, concluiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Boa noite, precisam de alguma coisa? Magoou-se muito?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, precisamos de comer, podia levar-nos ao quarto um bule com chá de Camomila e umas torradas? – respondeu João, que carregava o enorme cão nos braços e amparava Marta, já a dormir em pé.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É para já. – disse o rapaz saindo apressado.<span style="white-space: pre;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Entraram no quarto e João poisou o cão na almofada gigante que tinham colocado no chão, sentando-se estoirado na cama, com os músculos dos braços a tremer do esforço. Marta abraçou-o de pé, encostando a cabeça dele ao seu peito, afagando-lhe o cabelo, carinhosamente. O momento fraterno durou apenas segundos, quando João a abraçou de volta, percorrendo-lhe o corpo com as mãos, suavemente, num movimento lento e sensual. Um bater na porta trouxe-os para a realidade, quebrando o momento, e Marta aproveitou para se soltar dele, não sem antes lhe sussurrar ao ouvido: “já volto, não saias daí…”, dirigindo-se à casa de banho para tirar a sujidade de cima e pensar um pouco sobre o que estava prestes a fazer. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João levantou-se para receber o serviço de quartos e colocou a ceia na mesa do quarto, a sentir uma dormência nervosa carregada de expectativa sobre o que estava para acontecer, esforçando-se para não invadir o banho dela. Filipe perseguia-o com o olhar, atento aos seus movimentos neuróticos, com curiosidade, abanando a cauda, como se o entendesse nos dilemas masculinos. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Também gostas dela, não é? – perguntou-lhe João suspirando. – Eu compreendo-te.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta surgiu enrolada num robe fofo, com os cabelos molhados e de aspeto bem mais recomposto, sorrindo-lhes e sentando-se à mesa, servindo-se de chá.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu espero por ti, vai tomar banho. Só não gosto do chá muito forte. – disse-lhe com o olhar quente que derreteu os ossos de João, aparvalhado com a beleza dela tão simples acabada de sair do duche. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Decidiu esticar um pouco as pernas, deitando-se na cama, exausta e fechou os olhos momentaneamente, ouvindo-o a mexer-se na divisão ao lado, imaginando o que estaria a fazer. Conseguia vê-lo a despir-se, deixar tudo espalhado no chão para depois ela apanhar, o que a fez sorrir, a ligar a água, entrar na cabine de duche, a ficar demasiado tempo com os olhos fechados e a cabeça debaixo de água, a finalmente se ensaboar, tirar o sabão, desligar a água, molhar a roupa toda do chão à procura do robe que obviamente não levara para perto do duche, a pentear os cabelos com os dedos, desajeitadamente, a abrir a porta da casa de banho e ficar a olhá-la em silêncio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João tapou-a e beijou-lhe a cara em vários sítios; dormia profundamente, sem reagir, constatou embevecido. Filipe começou a gemer, tentando levantar-se, inquieto e João percebeu a intenção do cão, queria adormecer no seu local preferido, junto dela. Juntou a sua cama à dela, pegou no cão e colocou-o com cuidado no meio das duas camas, ao fundo dos pés, deitando-se de seguida do seu lado da cama, a admirar Marta. Gostava cada vez mais dela… Abraçou-a, a sentir-se amolecer, dividido entre a vontade de a espremer contra si e o bom senso de se manter respeitoso. Filipe resolveu-lhe a questão, arrastando-se lentamente para o cimo da cama, enfiando-se submisso entre eles os dois, e João abraçou-os, a sorrir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Acordaram com a cauda de Filipe a bater-lhes como um chicote duro e implacável, era hora de “ir à rua”, e alguém teria de o levar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vai lá tu, o cão é teu… - gozou João, aconchegando-se no édredon.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pago-te o almoço. – brincou Marta sem sequer abrir os olhos. Era demasiado cedo para carregar um cão daquele tamanho ao colo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Só lá vou se desistires da ideia de conduzir o meu carro. – provocou-a sorrindo para a almofada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixa estar. Eu levo-o. – disse-lhe a começar a levantar-se – Eu quero muito saber como é conduzir a 200 à hora! – gozou, sendo lançada novamente para a cama, no meio de uma luta encenada. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João aproveitou o momento, prendendo-a com o peso do seu corpo contra a cama e beijando-a com paixão, sendo automaticamente correspondido com a mesma violência. Beijaram-se durante bastante tempo, ora acalmando e olhando um para o outro, ora lançando-se naquela espiral de loucura que só terminaria sem roupa. Marta dava o ritmo, puxando-o para a realidade atrasando a intensidade dele, ou dando-lhe estímulos que o enlouqueciam, sem conseguir contrariá-la.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Lição número um… o beijo tântrico. – sussurrou-lhe ao ouvido, empurrando-o lentamente de cima do seu corpo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Vamos Boby, vamos à rua respirar ar puro… - disse João vestindo-se e olhando Marta divertido. – A tua dona é uma professora perversa e mal intencionada. – pegou no cão e Marta beijou-o novamente com paixão, amolecendo-o instantaneamente, o que o fez quase deixar cair Filipe dos braços.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Já lá vou ter. Vai pedindo o pequeno almoço, por favor. – disse-lhe, sorrindo maliciosamente e fechando a porta do quarto devagar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não atendes o telefone? – rosnou Tiago enfurecido com a ideia de que Marta não tivesse dormido em casa. Observa-lhe os movimentos na última semana, como habitualmente, e assim que vira o tipo a rondar a casa percebeu que ia ter chatices. Tornou a marcar o número de casa dela e bateu furiosamente com o auscultador na mesa, libertando a ira dos ciúmes. – Eu disse-te que tu eras minha, não percebes a bem, percebes a mal. – vociferou, acendendo outro cigarro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Sentaram-se no terraço do hotel, esfomeados, depois de um jejum forçado no dia anterior, com Filipe deitado aos seus pés, já de barriga cheia. O funcionário da receção trouxera-lhe uma taça de ração e água antes de Marta aparecer de túnica semi-transparente e fato de banho por baixo, provocando espanto nos três machos. João olhara com desagrado para o rapaz, que se afastou atabalhoadamente, perturbado pela visão sempre sugestiva de roupa transparente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não tinhas nada mais discreto para vestir? – perguntou-lhe sorrindo para dentro do decote, quando a ajudou a sentar, cavalheiresco.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Isto é absolutamente próprio para passar o dia à beira da piscina. – explicou, colocando as pernas à chinês, despreocupada com a transparência da roupa. – Acho que já vimos beleza natural que chegue.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não quero mais ser teu irmão. – brincou, pegando-lhe na mão e beijando-lhe o pulso na parte de dentro, o que provocou um arrepio visível nos braços de Marta. – Também já li o livro, esqueceste-te?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">O funcionário mantinha-se de pé corado, de ementa na mão, sem coragem para olhar a cena incestuosa matinal. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Então, já decidiram o que vai ser? – gaguejou com a garganta seca.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, - respondeu Marta sorridente – Chá de menta para os dois, ovos mexidos aqui para o mano, torradas para mim e… ah, e geleia de morango. Obrigada. – disse decidida sem retirar a mão poisada no antebraço de João, que por sua vez não conseguia tirar os olhos dela, sem ligar ao empregado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, senhora. – disse o rapaz, engolindo em seco e retirando-se o mais rápido que conseguiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- O mano está curioso, porquê chá de menta? E ovos mexidos? Nunca comi ovos ao pequeno-almoço, nem no estrangeiro, isso é muito forte. – comentou apreciando a descontração dela tão bem integrada no ambiente chique de todo o espaço. Compreendia agora que antes de se ter mudado para Coimbra, Marta nunca tinha vivido de outra forma, rodeada de empregados e salamaleques, guardanapos no colo e copos de vários tamanhos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Chá de menta para te pôr alerta, ovos, para te dar força. – piscou-lhe o olho, subindo a mão até ao ombro de João, massajando-o.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Mais alerta ainda? – gracejou, dando um gole na água fresca, e suspirando.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Precisava de praticar um pouco, desde anteontem que não faço yoga, sinto-me a emperrar… - desconversou divertida, passando a massagem do ombro para a palma da mão, sem quebrar o toque, mantendo-o sempre concentrado nela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Eu também precisava de praticar, e se não paras quieta um momento, é aqui mesmo. – resmungou, estimulado continuamente pela mão experiente de Marta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não querias sexo Tântrico? Já estamos a praticar desde que acordámos. – disse com naturalidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- E quanto tempo é que isto vai durar? – perguntou-lhe genuinamente aflito com a ideia de estar um dia inteiro em “alerta”, chegando-se a ela para manter a conversa mais privada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Depende do objetivo. – respondeu-lhe bem perto da cara – Não leste a parte teórica! – ralhou, beijando-o de seguida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Terminaram o beijo escaldante e demorado e aperceberam-se de que o funcionário já havia colocado a refeição na mesa, com todos os preceitos, e desaparecido depois.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Olharam a mesa maravilhados com o aspeto do comer, e lançaram-se sem mais conversas, apenas interrompidos pelos beijos ocasionais que Marta exigia, limpando os lábios com o guardanapo com elegância e puxando João na sua direção.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Acabaram a refeição e levaram Filipe para junto da piscina, onde se mantiveram colados, da forma mais decente que conseguiam em público, parando para mergulhar, praticar algumas Asanas, Pranayama e mais beijos escaldantes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João aprendeu novos exercícios de respiração que Marta achava vitais que praticasse diariamente, para prevenir outros ataques de pânico; recusava-se a aceitar que ele, um Psiquiatra, não conseguisse dominar o seu corpo sem drogas. Falava de forma tão natural sobre o problema de ansiedade que parecia ser a médica, e ele o paciente. João suspeitou a dada altura que aquilo não fosse uma completa novidade para ela, tão certa que estava de que, assim que ele compreendesse o que disparava o seu corpo naquela defesa emocional, tudo ficaria resolvido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Tens a certeza de que não és médica? – perguntou-lhe desconfiado com tanta sabedoria, talvez ela tivesse vivido aquele tipo de problemas com o ex-marido, concluiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não, Sr Dr., não sou. Apenas tive uma pessoa na família que sofria do mesmo problema, e curou-se. Agora faz o que te estou a dizer, preguiçoso. – explicou, obrigando-o a concentrar-se no fluxo da sua respiração. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Já almoçámos, já lanchámos, já fui estimulado em todos os sítios possíveis e imaginários, e confesso que não sabia que no pé podia haver tanta comichão boa, - confessou a sorrir com malícia – afinal, quando é que vamos arrumar as malas ao quarto?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Se me permites, sugiro-te que “arrumemos as malas” em minha casa. Tenho paranóia com camas de hotel. – disse corando – Preferia estar no meu habitat natural. – pediu constrangida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Isso significa que vais até Coimbra a massajar-me as orelhas? – exclamou em pânico, imaginando a viagem terrível que seria estar duas horas a conduzir com ela a mexer-lhe com os nervos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Bem, se for eu a conduzir, não. – disse-lhe sorrindo de orelha a orelha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- És uma sabida. A tua sorte é que te adoro. – confessou naturalmente, sem se aperceber. Beijou-a e levantou-a do chão, sem perceber o seu ar chocado com a declaração amorosa que lhe saíra da boca, pegando em Filipe e dirigindo-se para o quarto. Estava a ficar tarde e tinham ainda muitos quilómetros pela frente, e se ela fosse a conduzir teriam de ser feitos com calma, pensou nervoso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Passavam pelo balcão da receção e Marta não pôde deixar de parar para falar com o rapaz simpático que os tinha aturado durante aqueles dois dias.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Estamos quase a ir embora, obrigada por tudo. – Inclinou-se e deu-lhe dois beijos – Nós não somos irmãos. – sussurrou-lhe, piscando-lhe o olho e deixando-o corado a sorrir de alívio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Devagar… devagar… DEVAGAR! – bradou, vendo o ponteiro dos conta-quilómetros a chegar com facilidade aos 220.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Conta, ou então não abrando! – gritou-lhe de volta, decidida a tirar a limpo os fantasmas que o assombravam.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, OK! Mas para de acelerar, por favor. – suplicou, a ficar receoso de que ela estivesse mesmo a falar a sério e aquilo não fosse mais uma das suas piadas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já abrandei, vamos. Desembucha. – ordenou, olhando-o duramente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estas tuas terapias são altamente duvidosas!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me enroles, olha que eu fico com uma crãimbra no pé. – ameaçou-o.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem. – disse resignado, descontraindo no banco e olhando para a janela do seu lado. – Tinha 14 anos, estávamos a passar o dia no rio com amigos, família, havia comida, jogos, brincadeiras, o normal… - enumerou com a voz grave – O meu irmão, Filipe, mais novo que eu 5 anos, era um chato, andava sempre colado a mim. Onde eu ia, ele também queria ir… - relembrou sorrindo para a janela – E eu fui nadar… sem lhe dizer nada. Fugi dele, entendes? Estava farto de ser babysiter, queria estar um bocado sozinho. Não vi que ele me seguiu, entrou na água por trás de mim. – limpou uma lágrima discretamente – Quando regressei à tona de um mergulho ouvi gritos, estava longe da margem e não percebi o que se passava. Toda a gente esbracejava, os homens mergulhavam na minha direção… e eu olhava-os, sem entender… Foi quando vi, mesmo ao meu lado… o braço dele, esticado para mim, e o olhar dele, submerso, aterrorizado… não consegui… não me mexi. – silenciou-se durante uns momentos, absorvendo a tristeza das suas lembranças antigas – acho que foi o primeiro ataque de pânico que tive. – confessou, respirando fundo – Depois disso, já perdi a conta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta abrandava o carro sem se aperceber, engolindo uma dor quente que lhe descia devagar pelo esófago, queimando-lhe tudo. Conseguia visualizá-lo no rio, um miúdo, a ver o irmão morrer ao seu lado. Como é que alguém poderia viver depois disso sem sequelas? Encostou na berma, soltou o cinto e trepou-lhe para o colo, precisava de chorar e de ser abraçada. Sentia-se culpada por ter forçado João a falar sobre coisas tão dolorosas. Precipitara-se e fora leviana.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É terrível João, muito triste aquilo que vos aconteceu. – disse emocionada, com a cabeça encostada nele. – Só de imaginar já fico desesperada, deves ter sofrido muito, nem consigo sequer quantificar esse tipo de dor. – continuou, já em choro solto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sh… tem calma. Já passou, não há nada a fazer. – consolou-a, como se tivesse sido ela a perder um irmão. – Eu era um miúdo, não percebi o que estava a acontecer… foi uma fatalidade. – concluiu, respirando aliviado. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, não devia ter-te forçado a falar. – olhou-o, sentindo-se mortificada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, fizeste bem. Nunca tinha explicado tudo o que aconteceu a ninguém. Estive anos bloqueado, sem me lembrar. Depois quando recordei começaram as crises agudas, desesperava só de pensar em falar sobre o Filipe. – explicou, fazendo-lhe festas no cabelo. – Ouvir assim a história é diferente. O César sempre disse que tinha de o verbalizar. – confessou, com um sorriso triste – Tinha razão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não consigo conduzir mais, podes trocar comigo? – pediu-lhe, limpando a cara e abraçando-o novamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro. – respondeu-lhe calmamente – Até fico mais aliviado, para ser sincero. – brincou, tentando animá-la um pouco. Era estranha aquela reação tão forte aos sentimentos dos outros, pensava intrigado ao vê-la enrolada como uma bola a chorar. Sempre tão pragmática com as suas coisas, desvalorizando tudo o que para ele seria um drama, mas quando o assunto eram as dores dos outros, parecia uma criança. Beijou-lhe as lágrimas, sugando-as com barulho, o que a fez rir e voltar a um estado mais calmo, o que possibilitou a troca de lugares e prosseguiram a viagem, em silêncio, sem rádio ou futilidades, apenas o som ocasional de uma melodia daquelas que ela entoava quando meditava. Sem a letra esquisita, apreciava João, afagando o focinho de Filipe, todo esticado para a frente do carro, quase em cima dele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-24816587761732527032020-08-04T02:30:00.001-07:002020-08-04T02:30:11.931-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 12<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtcgmvLhg0R5L5MNAGhKMnBUA_wjvTSapGauGqOMoIzxOXpiB-COZUL2loiEQqAJrhKiI9eJVZZNrf3hSkqoWbTnNk5Q-5nMUVto3QhIPmfuWMvAf_l3TQS2o6UsZNlyXolvMRSNzW3HI/s1600/cascatas-do-thaiti-geres.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="525" data-original-width="700" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtcgmvLhg0R5L5MNAGhKMnBUA_wjvTSapGauGqOMoIzxOXpiB-COZUL2loiEQqAJrhKiI9eJVZZNrf3hSkqoWbTnNk5Q-5nMUVto3QhIPmfuWMvAf_l3TQS2o6UsZNlyXolvMRSNzW3HI/s320/cascatas-do-thaiti-geres.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Filipe acordou Marta passando-lhe por cima do corpo adormecido, sem dó nem piedade, excitado com o bater na porta de casa, fungando-lhe o pescoço com o focinho húmido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está quieto! – ralhou, empurrando-o frustrada. – Só pode ser o teu amigo, para estares neste histerismo… - comentou, sentindo-se automaticamente dormente. Vestiu o robe e encaminhou-se para a porta, respirando fundo. Ainda nem o tinha visto já tremia de nervos… Recompõe-te rapariga, ordenou-se. – Sim? Quem é?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu quem? – perguntou com vontade de brincar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O teu mestre de obras.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Palavra-passe? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- “O João é bonito”. – respondeu prontamente deliciado com aquilo tudo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Errado. Mais uma tentativa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Marta é má!. – tentou de novo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Abriu a porta, derretendo com o sorriso dele, que a abraçou sem dó nem piedade, transformando-a em gelatina.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. – disse quase sem voz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. Então? Gostaste da surpresa? – dirigiu-se à cozinha, levando-a atrás, deserto para se certificar de que estava tudo a funcionar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Adorei… não precisavas de ter gasto este dinheiro todo… - comentou pouco à vontade com a ideia da fatura daquilo tudo. – Vais deixar-me pagar tudo de volta?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. – respondeu decidido – Não me vais dar a fatura do meu livro, pois não? Prendas são prendas. E funciona tudo? – mudou de conversa, abrindo as torneiras satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, tudo perfeito… </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me vais pagar nada, mas pelo menos um beijinho de agradecimento ficava-te bem… - agarrou-a para não lhe dar hipótese de fuga.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Primeiro tenho de ir tomar banho, lavar os dentes… - escapou-se, deixando-o com cara de amuado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, eu espero. Vou fazendo o pequeno almoço. Faz já a mala que temos de ir cedo. – informou-a, já a falar para o corredor vazio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta voltou atrás, surpreendida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Temos?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, ao Gerês, lembras-te? Pensei em irmos hoje cedo e voltarmos no domingo, o que achas? – perguntou contente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Gerês? Mas isso não é longe? – exclamou espantada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, mas pela autoestrada chega-se num instante. – explicou, trazendo o comer para a mesa de centro em frente ao sofá.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E dormimos onde? – quis saber incomodada. Aquilo seria como chegar fogo ao rastilho, pensou angustiada, imaginando passar a noite fora com ele, longe de tudo e de todos, apenas separados pela parede de um quarto de hotel. – E o Filipe? Ele não pode ficar sozinho…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Há para lá imensos sítios para dormir, e escolhemos um que aceite cães.- disse de forma prática.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não vais aceitar um não, pois não?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. – sorriu-lhe satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, mas com uma condição. – disse muito séria. – Vais deixar-me conduzir o teu carro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, isso é que não!... – exclamou horrorizado com a ideia, baixando os ombros resignado depois do olhar duro que Marta de lançou – Ok, mas só alguns quilómetros… Agora mexe-te! – virou-a na direção da casa de banho e empurrou-a suavemente, forçando-a a arranjar-se depressa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu quero chá e torradas. – disse autoritária, sorrindo-lhe antes de fechar a porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta forrou o mais eficazmente possível o banco traseiro do carrão desportivo para acomodar Filipe, que parecia um Senhor esparramado no grande espaço, sentando-se em seguida de pernas cruzadas à chinês no banco do lado do condutor, que se esforçou por não se distrair com a perna dela demasiado perto da mão poisada na manete das mudanças. Conversavam animados sobre locais a visitar, naquele pequeno passeio de fim de semana, quando o ambiente começou a mudar lentamente. Marta não parava quieta no banco, mostrando perna e mais perna, e por vezes deixando uma alça cair desajeitadamente do ombro, revelando pequenos vislumbres de soutien, sem se aperceber do que fazia, simplesmente descontraída com a música, ou olhando Filipe com carinho, que dormia que nem um justo. A estrada parecia nunca mais terminar, e João teve de fazer uma pausa na tortura sensual que era olhar, e não poder tocar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos parar aqui nesta estação de serviço à frente? Preciso de ir à casa de banho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, o Filipe também deve precisar de usar os lavabos. – brincou, endireitando-se no banco e percebendo que ia a mostrar um pouco mais do que devia. – Desculpa, não dei conta que ia quase a mostrar-te as cuecas. – disse-lhe, corando.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não faz mal, também já me viste de boxers.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos, eu pago o café para me redimir. – sorriu-lhe, saindo do carro e abrindo a porta ao cão sonolento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Um café e uma nata, no mínimo. – gracejou, abraçando-a instintivamente com um braço por cima do ombro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>O resto da viagem foi feito em silêncio, apenas interrompido pelo ressonar de Filipe, pois Marta deitara o seu banco e acabara por adormecer profundamente, a meio de uma conversa sobre Ganesha. João manteve-se pensativo e a passo de caracol, para a poder admirar sem provocar nenhum acidente. Sentia-se demasiado atraído por ela, por todas as características que até então conhecia dela; físicas, emocionais, mentais, tudo lhe agradava naquela mulher e parecia-lhe tão certo e fácil quando estavam juntos, matutava, ao mesmo tempo que lhe afagava o cabelo carinhosamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta acordou com aquele toque suave, abrindo os olhos e sentindo aquele arrepio dos pés à cabeça, ao ver o olhar dele apaixonado. Teria de conversar com ele sobre o seu passado, concluiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vocês os dois andaram na borga ontem à noite. – brincou ele, endireitando-se no banco e concentrando-se na condução.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, temos de falar. – iniciou Marta, nervosa coma confissão que se seguiria. – Eu não fui totalmente honesta contigo. – disse, olhando-o.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, porquê? – perguntou ansioso com o tom sério da sua voz. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu… estou a recuperar de um longo relacionamento problemático, - engoliu em seco recordando-se de Tiago – que terminou há cinco anos, mas que ainda me pode prejudicar, se não tiver cuidado. – confessou, tremendo ligeiramente das mãos. A primeira parte já estava, faltava o resto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João deu-lhe a mão, como forma de apoio emocional, sabia o que ela queria confessar, e que não lhe seria fácil, apercebendo-se de repente de que tinham chegado ao destino.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olha, chegámos. – disse-lhe animado – Não penses nisso agora, não hoje, nem amanhã. Os nossos fantasmas ficaram em Coimbra, combinado? Quando voltarmos pensamos neles outra vez. – pediu-lhe carinhoso, beijando-lhe a mão e ficando uns segundos perdido no olhar quente que sentiu vindo dela. Se tudo corresse bem, aproveitariam os dois dias apenas com eles, sem Tiagos nem horrores. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Aqui parece-te bem? – perguntou analisando as características do pequeno Hotel “Amigos dos Patudinhos”, que permitia que os hóspedes levassem os cães para o quarto, providenciando uma pequena almofada para os acompanhantes, mediante uma taxa adicional.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, quanto fica a cada um? – quis saber para se orientar no orçamento que tinha enfiado à toa na carteira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não vamos começar. – resmungou, olhando-a de esguelha – Eu é que convidei.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isto é ridículo. Se eu não pudesse pagar não tinha vindo! – ralhou, espreitando para o ecrã do computador da receção, à procura do valor total, deixando o funcionário sem jeito com aquela discussão doméstica logo à chegada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não lhe mostre, faz favor. – ordenou João ao rapaz corado, puxando-a de cima do balcão, onde se tinha empoleirado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, e querem quarto para casal, duplo ou separado? – perguntou a gaguejar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum… cama de casal! – gracejou João, provocando-a, mas desejando que isso pudesse ser verdade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Separado! – exclamou Marta a sentir-se quente e vermelha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, separado já não há… Mas tenho aqui um duplo que são praticamente dois quartos independentes… - sugeriu, olhando-os alternadamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que achas, mana? – gozou João, olhando-a satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pode ser. – Mana?! Mas que atrevido, pensou furiosa com a brincadeira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Muito bem, quarto 13. – concluiu o funcionário satisfeito, entregando uma chave que João agarrou à pressa sorridente, como uma criança que ganhava algum jogo infantil de “quem chega primeiro”. – Já lá mando alguém entregar a almofada para o cão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Para o Filipe, faz favor! – recriminou Marta, a destilar ira por todos os poros, enquanto pegava na sua mala e seguia João que já se encaminhara para o corredor.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Poisaram as malas nas respectivas camas, que afinal eram bem mais próximas uma da outra que o desejável, lamentava-se Marta que entoava uma melodia calmante que lhe restabelecesse o equilíbrio emocional. A tensão sexual entre os dois disparava a cada minuto que passava, e a prova disso era o facto de já não estarem a conseguir manter a calma e a serenidade um com o outro. Das duas uma, ou resolviam aquilo à antiga, ou iam andar à chapada, concluiu sorrindo com as suas teorias tão pouco yogis. Filipe olhava-a com cara de curioso, deveria sentir todas aquelas energias estranhas, matutava ela, enquanto procurava o fato de banho e roupa própria para caminhar, pois durante a viagem tinham combinado visitar os locais famosos com pequenas piscinas naturais no meio das rochas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te preocupes, - confessou-lhe sussurrando para que João não a ouvisse de dentro do quarto de banho, onde tinha ido trocar de roupa – quando chegarmos à Serra empurramo-lo das rochas abaixo!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos almoçar? – João surgiu de repente, ficando novamente uma energia incómoda no ar, que num espaço fechado parecia ainda mais difícil de suportar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vai andando, já lá vou ter, tenho de me trocar. – disse Marta, empurrando-o para fora do quarto. – Leva o Filipe e esperem-me lá em baixo. – despachou-os aos dois para conseguir preparar-se à vontade. Arrumou a confusão do lado dele, censurando aqueles modos mimados de viver, sem respeito pelo outro, onde tudo ficava onde caía, sem ordem, a sentir a neura a crescer em cada peça de roupa enrodilhada no saco chique do médico. Precisava de se acalmar, recriminou-se, terminando a arrumação e despindo-se em seguida. Retirava a roupa interior para enfiar o fato de banho quando a porta se abriu de repente, sem lhe dar tempo para se esconder convenientemente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Falta-me a minha… - João estacou paralisado, com Filipe a seu lado de orelhas em pé.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta lançou-se a fechar a porta o mais rapidamente que conseguiu, encostando-se nela vermelha até às orelhas. Aquilo não podia ter acontecido… </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Falta-te o quê? – berrou descontrolada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa… a minha mochila. – disse do lado de fora.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta agarrou na mochila e entregou-lha por uma fresta da porta, fechando-a rapidamente. Pôs o trinco e vestiu-se, bufando de raiva. Mimado, mal educado, inconveniente, parvo… enumerava calçando-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Pegou na carteira e saiu em direção ao hall de entrada, sem saber como os encarar. Um estava mais que habituado a vê-la despida pela casa, mas o outro não tinha o direito de a humilhar daquela maneira. Se o ambiente já estava estranho entre os dois, agora é que ia melhorar!, ironizou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Viu-os à porta, já na rua, bem animados com qualquer coisa. Filipe abanava-se todo, como um palerma e o outro sorria para alguém. Marta espreitou sem se denunciar e viu uma loira estrangeira a afagar o seu cão no pescoço e o seu companheiro de passeio no seu Ego masculino. Uma quentura subiu-lhe pela cara, ciúmes, pensou pragmaticamente, para ajudar à festa já sentia ciúmes… Deu meia volta e dirigiu-se ao balcão de entrada, sacando do porta-moedas e fixando o funcionário mortalmente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Faça-me a conta de metade da estadia, rápido. – ordenou ao rapaz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas senhora, o seu irmão não disse que pagava tudo? – balbuciou amedrontado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O meu irmão tem a mania só porque é Dr., diga lá quanto é. – suplicou o mais discretamente possível.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás aqui. O que fazes? – perguntou João desconfiado de a ver de carteira na mão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A pagar a minha parte. – encarou-o orgulhosa. Pelo menos monetariamente não ficaria a sentir-se humilhada, decidiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já disse que não. Não sejas teimosa. – argumentou, tentando alcançar-lhe a carteira, como se fossem miúdos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem penses. – exclamou, fugindo com o braço o mais que conseguia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João agarrou-lhe no braço, com uma mão e com a outra tentava tirar-lhe a carteira, sob o olhar de espanto do funcionário, ficando demasiado perto dela, que se debatia, furiosa. Conseguiu tirar-lhe o porta-moedas e pararam no mesmo instante com a luta despropositada, encarando-se desconfortáveis e afastando-se automaticamente. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Guarda isso, por favor. – pediu-lhe corado com a excitação que tudo aquilo lhe tinha dado, devolvendo-lhe o objeto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>O funcionário olhava-os alternadamente, nunca em toda a sua vida de hotel vira dois irmãos adultos numa luta tão estranhamente sexy. Perturbador e errado, dizia a si mesmo aparvalhado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Desculpa ter entrado no quarto sem bater. – disse João incomodado com o ambiente que se estava a criar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás desculpado, eu também devia ter posto o trinco na porta. – confessou, ainda envergonhada com a situação.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já escolheste? – perguntou-lhe a mudar de assunto, chamando o empregado de mesa do pequeno restaurante típico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É tudo carne ou peixe… - lamentou-se, percorrendo novamente a lista na tentativa de encontrar algo adaptável ao seu vegetarianismo pouco prático fora de casa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe, não há hipótese de se fazer uma salada para a senhora que é vegetariana? – perguntou ao funcionário que não compreendia as novas modas de algumas pessoas de não comerem animais.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas não come carne nenhuma? Nem vitelinha? Olhe que é muito tenrinha… - disse, tentando ser prestável.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, nem vitelinha… - respondeu Marta tentando não rir. Como se o vegetarianismo na cabeça de alguns fosse a distinção entre carne de bichos adultos e bebés. Porque comer bebés era muito mais correto…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou lá dentro perguntar na cozinha. – disse resignado com a teimosia da cliente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E cachorrinhos? Também não comes? – gozou João, assim que o empregado se retirou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já ouvi coisas estranhas, agora sugerir a um vegetariano vitelinha… - largou numa gargalhada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João animou-se com a mudança de humor nela, finalmente voltava a Marta descontraída e bem disposta. Sabia que ela resistia a deixar-se levar numa relação, compreensivelmente. Deveria ter ainda bastantes reservas emocionais e travões físicos. Teria de ser mais calmo, decidiu. E bater antes de entrar…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Retomaram a conversa fácil durante o resto do almoço, rindo das tiradas engraçadas do empregado de mesa que insistia em sugerir opções de comida para Marta, que se viu forçada a comer “vitelinha com batata assada e grelos”, sem a vitela, pois só havia alface com alface, e se queriam ir escalar pedras era preciso energia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>A sonolência da digestão parecia invadir-lhes os movimentos, quando finalmente encontraram um dos locais paradisíacos para explorar. Marta arrastava-se pelos caminhos sinuosos, puxada por João, que seguia o instinto de Filipe em encontrar o poço da água cristalina que se via na foto do folheto turístico. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos, estamos quase lá. – encorajou-a, determinado a ver ao vivo aquela maravilha da natureza.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Chama o Filipe, ele ainda cai por aí abaixo… - disse preocupada com o caminho demasiado íngreme da descida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele já nada, olha. – exclamou sorridente a apontar para o cão que encontrara a piscina.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É muito inteligente, o meu menino. – gracejou Marta, ganhando ânimo para o resto do caminho até ao poço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Desceram mais uns metros e recostaram-se numa sombra, a admirar o canídeo despreocupado e brincalhão, que saía e entrava na água em histeria.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que raça é ele? – perguntou João sem tirar os olhos da água.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Uma misturada qualquer entre boxer e pitbul. Uma inconsciência de um amigo meu que decidiu cruzar essas raças e ver o que dava. – disse, relembrando com mágoa o ex-marido. – Mas o resultado até nem foi mau. Eu adoro o Filipe. – confessou sorrindo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É um cão simpático. – acrescentou, olhando-a e sentindo novamente aquela energia vinda dela. Uma brisa passava no momento, levantando-lhe um pouco os cabelos, e João sentiu-se a perder a noção do espaço, inclinando-se na sua direção, como se fossem metal e íman. Marta sorria para o cão, distraída, sem perceber os movimentos discretos de João, cada vez mais próximo dela, quando os seus olhares se encontraram. Ficaram à distância de um palmo, com a respiração rápida, em compasso de espera, fixando-se hipnotizados. Marta levou a mão ao cabelo de João, deslizando-a até ao pescoço dele e ele imitou-a, aproveitando o momento de desejo que via no olhar dela. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podes beijar-me. – disse Marta a sussurrar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já vai. Deixa-me apreciar isto. – confessou, sorrindo-lhe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Abusador… - brincava, a sentir-se cada vez mais apaixonada com o romantismo delicioso dele, quando viu perifericamente Filipe a cair de uma pedra demasiado alta, desamparado, aos trambolhões, até à água, sobressaltando-a. – Filipe! – gritou, levantando-se automaticamente. – Filipe! – continuou a bradar já correndo na direção do poço, sem conseguir perceber se ele estava bem da queda aparatosa. – Filiiiipe! – continuou aos gritos sem notar que João não se levantara, e se mantinha na mesma posição. Espreitou para o poço mas não o via, entrando em pânico e procurando por João, que na sua imaginação estaria também a tentar encontrar o cão. Olhou em volta, e da sua perspetiva não via nenhum deles, o que lhe provocou um arrepio de nervos. Correu até ao local onde estivera momentos antes sentada e viu João apoiado no chão sobre os braços, a respirar furiosamente, como se estivesse a sofrer alguma espécie de ataque. Foi invadida por um medo visceral, de o ver morrer ali no meio do nada, sem conseguir pedir por socorro a ninguém, e colocou-se de joelhos, sentada nos calcanhares, apoiando a cabeça dele nas pernas, e refrescando-o com água que trazia na mochila, enquanto tentava perceber o que estava a acontecer.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, calma. Respira, por favor. – suplicava na voz mais controlada possível, quando se recordou dos comprimidos SOS. Aquilo devia ser o SOS! Berrou a si mesma, já largando algumas lágrimas, enquanto procurava freneticamente na mochila dele pela caixa de remédios. Encontrou-os com dificuldade, e como João não reagia, teve de ler a bula para tentar descobrir a dose certa para lhe dar. O choro invadiu-a com violência, numa mistura de tristeza e impotência pelo acidente de Filipe, que ainda não aparecera, e o pânico de que algo de grave acontecesse com João, que parecia estar possuído. Finalmente percebeu que aquilo seria uma crise de pânico forte, e que teria de lhe conseguir dar dois comprimidos, para estabilizar o organismo o suficiente para que não houvesse falta de oxigénio no cérebro. Se ele desmaiasse, nunca mais conseguiriam sair dali.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)<br />(imagem, internet)</span></div>
<span style="white-space: pre;"> </span><br />
<div>
<br /></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-2988454754401878722020-07-31T01:45:00.002-07:002020-07-31T01:45:48.171-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 11<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjI_HJGfS4KvPZrrSlXxiYeYq4bCZkF_u2uuHC4Q0Rps0-7ryyEnJL-KwMmflqwgYaHmC6ysaTip2sbYLtRKpcoI0mq_-Z09S4pC4WinkVxF74BFrfzyJotYWKZ6p1aQjooINU7StCSEfc/s1600/0898fa2ec5c6f6edf8929ece98395759.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="717" data-original-width="478" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjI_HJGfS4KvPZrrSlXxiYeYq4bCZkF_u2uuHC4Q0Rps0-7ryyEnJL-KwMmflqwgYaHmC6ysaTip2sbYLtRKpcoI0mq_-Z09S4pC4WinkVxF74BFrfzyJotYWKZ6p1aQjooINU7StCSEfc/s320/0898fa2ec5c6f6edf8929ece98395759.jpg" width="213" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João entrou em casa cabisbaixo e ainda mais maldisposto do que antes. Arrastara-se até ao “Pírulas”, na tentativa de desanuviar um pouco, mas a conversa com o segurança do bar ainda o perturbou mais. Janota não tinha nascido em Castelo Branco, mas por coincidência sabia quem era a família de Isabel, toda a gente ligada à cidade em questão os conhecia, e as novidades não eram animadoras, constatou João. O julgamento de Tiago, o ex-marido de Isabel, tinha sido o maior escândalo de sempre naquela cidade, comentado em todo o lado. O pai dela, então Diretor do serviço de Medicina Legal do Hospital, estava em processo de candidatura às eleições para a Câmara Municipal, e tinha sido afastado do processo de recolha de provas periciais para a acusação, ficando a chefiar o departamento um antigo colega de Tiago, diziam as más línguas, que tratou de ajudar o amigo, sem sequer disfarçar. Isabel tinha sido considerada “doida”, com um processo vazio de factos, e histórias mirabolantes de crimes que nunca foram provados. Acabou internada por ordem do juiz, por seis meses, aconselhado pelas perícias psiquiátricas de um outro conhecido do ex-marido. Quando o advogado dela conseguiu anular aquela crueldade, já o prazo passara e Isabel havia voltado para casa. O pai dela, pressionado pelo partido, que não tinha outra hipótese de candidato com possibilidades de vencer a eleição, nunca interviera em todo o processo. Ficara a ver de fora, e segundo alguns familiares de Janota, fora o culpado de Isabel ter sido negligenciada em julgamento, um traste, segundo a sua tia. Janota ouvira várias conversas sobre o caso na altura, e recordava-se de ter ficado chocado com o provincianismo que ainda se vivia em certos locais do interior do país. Lamentou honestamente que Marta fosse Isabel, disponibilizando-se para a ajudar, se algum dia fosse preciso, odiava machistas, e se pudesse, mostraria ao tal Tiago qual era a sensação de levar uns murros de alguém maior que ele. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tentou novamente ligar-lhe, mas o telemóvel continuava desligado, no voice mail, ainda sem mensagem de voz personalizada. Mandou-lhe uma mensagem de boa noite, juntamente com um desabafo “Mais uma vez, desculpa. Vou ligar-te todos os dias, até me ouvires. Se precisares de mim, liga. Não desapareças, por favor.”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Olhou longamente o aparelho, sentindo-se miserável e perdido. Como poderia aquilo estar a acontecer-lhe? Aquela maluca entrar-lhe pela casa a dentro, mesmo na hora em que Marta abria a guarda e começava a deixá-lo entrar? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Engoliu um comprimido para dormir e ficou a torturar-se com as duas fotos que ela lhe mandara ao jantar. Adorava-a, e não só porque era perfeita e bonita. Tinha qualquer coisa de familiar dentro dela, que o preenchia e descontraía. Não sabia explicar o quê. Ainda nem sequer a abraçara e já sentia mais paixão que nos primeiros tempos com a mulher, Isabel. Era estranho que tivessem o mesmo nome, até confuso e perturbador, pensava. As duas mulheres de que tinha gostado… Lamentou-se por não ter sido o homem perfeito para a primeira, com quem a dada altura travara batalhas inglórias sobre tudo e nada, como se fossem inimigos de sangue e ele precisasse de a vencer, recusando-se simplesmente a ceder e a fazer-lhe as vontades. Poderia ter tido um casamento mais feliz, sem dramas, feito um filho, mas nunca o conseguira com ela. Simplesmente recusara-se a ser seu, por inteiro, e tinha a certeza de que isso também a tinha matado. Gostava de um dia confessar tudo aquilo a César, libertar-se da sua eterna culpa conjugal, respirar fundo com a absolvição profissional do amigo, talvez acabasse a carta e lha entregasse, mais dia menos dia iria fazê-lo. Sentia que só assim poderia começar com Marta, Isabel, corrigiu, sem fantasmas ou angústias. Desta vez seria todo dela, da sua Isabel.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia entrou em casa de João uma hora antes que o horário normal da tia. Convencera-a a ficar na cama, depois de uma noite de febre e mau estar, comprometendo-se a substituí-la no seu trabalho, da forma mais discreta possível. A sua verdadeira intenção nem sequer era encontra-lo acordado, muito menos preparar-lhe o pequeno almoço, apenas tentar concluir a sua vingança. Ninguém tinha o direito de a tratar como uma prostituta, e se o plano de conseguir seduzir o psiquiatra já não seria viável, pelo menos ele não se ficaria a rir quando se recordasse daquela noite. Certificou-se de que João dormia, e tal como a tia a tinha informado, levaria bastante tempo a acordar, efeito das drogas que tomava. Despiu-se da cintura para cima e, com todo o cuidado, deitou-se ao seu lado, fotografando-os de várias perspetivas, sempre com o cuidado de não lhe tocar. Saiu do quarto rapidamente, vestiu-se no hall de entrada e saiu, fechando a porta. Agora era esperar pelo momento certo, pensou vitoriosa. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou sim? – respondeu Adelaide, atendendo o telefone a pedido de Isabel, que temia que João ligasse de manhã a tentar desculpar-se. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, fala o Dr João Marques, liguei ontem para falar com a menina Isabel, ela está? – sentia-se nervoso, prestes a ter de engolir um comprimido para se acalmar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ela não está… - disse Adelaide a corar com a mentira, com Isabel nas suas costas a força-la a enganar o pobre homem, que tinha uma voz tão triste.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quando ela chegar, poderia dizer-lhe que liguei? – sabia perfeitamente que Marta não o queria ouvir nos próximos dias. Mas não a deixaria esquecê-lo. Ligaria ao final do dia, depois novamente de manhã, e se começasse a perder a paciência, meter-se-ia no carro e bater-lhe-ia à porta. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com certeza, darei o recado, pode ficar descansado. Bom dia. – apressou-se a desligar, olhando duramente a sua menina. Não gostava de mentiras nem de lérias.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, Dazinha, mas não quero falar com ele. – explicou, abraçando-a, enquanto se encaminhavam para a cozinha para tomar o pequeno-almoço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que disparate, sinceramente. Se já se viu, Isabelinha, andar a fugir do rapaz. Falas com ele, resolves as coisas e não me obrigas a mentir mais. – sentenciou, pouco convencida de que Isabel lhe fosse obedecer.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me apetece. - amuou, fazendo beicinho sem se aperceber, como se ainda fosse criança.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Café? – perguntou de forma prática, enchendo-lhe a caneca e olhando-a novamente com censura, sentando-se de seguida na sua frente. – Querida, tens 29 anos, quase 30, já não és nenhuma garota! Eu sei que me vais dizer que hoje em dia as mulheres não precisam de casar para serem felizes, sim, são todas muito independentes, eu já sei isso! – esbracejou dramaticamente - Mas, quando uma mulher gosta de um homem, e ele dela, acontece algo muito mais importante, nasce um par. E um par, como dizia a minha avó, são um mais um que dão dois, e um sem o outro não valem nada. Se já “emparelhaste” com este moço, não vais ficar bem sozinha. - levantou-se e saiu, para orientar a sua vida doméstica preenchida. Adelaide nunca tinha “emparelhado” com ninguém, desde muito nova que servia em casas de gente rica, ocupara-se sempre dos outros, sem lamentar o seu fado. Deus não a tinha feito para ter par, e Ele lá sabia o que fazia. Mas a Isabelinha era uma romântica, desde pequenina que falava de amor com os seus príncipes imaginários. Nunca seria feliz em número ímpar. Era uma vida difícil, solitária, que nem todas as pessoas conseguiam suportar. Todas as alegrias da vida, os sofrimentos, as dores, viviam-se no quarto e para as paredes. O Filipe era prova dessa dependência, era um substituto de uma companhia que Isabel precisava para ser feliz. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Adelaide não conhecia o tal Dr. João, mas conhecia a sua menina. Se ela não queria atender o telefone, algo se tinha passado, e o ciúme era o culpado. Podia apostar um dos seus cordões de ouro em como o problema era o orgulho “Fontes Pereira e Castro”.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Enviou-lhe mais uma mensagem, o telemóvel continuava desligado, mas a necessidade de comunicar com ela, nem que fosse em monólogo, obrigava-o a escrever. “Olá bom dia. Vou hoje tratar do resto da tua surpresa. Mesmo que não me queiras ver mais, espero que fique pronta até voltares. Beijos”. Engoliu em seco, maldisposto com a hipótese de ela se recusar a continuar a amizade dos dois. Só esperava que ligasse o telefone e lhe desse uma oportunidade de falarem, afinal, ele era Psiquiatra, tinha de ter maneira de a fazer ouvir, ou não…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><i><span style="white-space: pre;"> </span>“- Estou grávida… - tremiam-lhe as mãos, nervosa com aquela descoberta. – Grávida? – Tiago sorriu com a boca, sem modificar o olhar, parecendo feliz com aquele contratempo na vida de dois jovens universitários – Abraçou-a, como se toda a vida tivesse esperado por aquele filho, libertando um pouco Isabel da sua ansiedade e culpa. – E agora? O que vamos fazer? – perguntou-lhe, mais animada com a solidariedade do namorado. – Casamos! – um arrepio percorreu-a, sem perceber porquê, mas ter um filho solteira seria impraticável na sua família, e não se sentia com coragem para abortar. – Temos de falar com os meus pais… - informou-o, tentando sorrir com a perspectiva de futuro tão diferente do que tinha imaginado. – Claro, hoje vou lá e falamos. Agora tenho de ir. – beijou-a rapidamente e dirigiu-se para a sua próxima aula. Isabel ficou a olhá-lo, angustiada, Tiago era seu namorado há alguns anos, tinha sido o seu primeiro homem, mas se lhe pedisse casamento depois de terminarem os cursos, sem filhos pelo meio, tinha a certeza de que diria que não, pelo menos num primeiro impulso.”</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabelinha! – Mariana chamou a filha, que olhava para fora da janela absorta com os seus pensamentos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, mãe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Adelaide disse-me que o tal Psiquiatra tem ligado todos os dias e que tu não atendes… Mas afinal o que se anda a passar? – perguntou preocupada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, ele tem telefonado, mas eu não tenho a certeza do que quero. – confessou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És capaz de me traduzir isso em miúdos? – ironizou, já a perder a paciência com a atitude instrospectiva da filha desde o início da semana.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quando voltámos de Cáceres eu estive ao telemóvel com ele, - começou a explicar, sem jeito – mas depois uma mulher qualquer bateu-lhe à porta e disse umas coisas… olhe, não se mace com isso. Acho que os homens são todos iguais, não vale a pena…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas o que foi que ela disse? – insistiu sem dar hipótese.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Disse que tinha lá deixado “no sábado” os brincos… - sussurrou deprimida – Entende? É uma mulher qualquer que tem intimidade para lá ir bater à porta reaver objetos pessoais ao quarto dele. Não é preciso pensar muito para descobrir o que estiveram os dois a fazer… </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas vocês namoram? – perguntou escandalizada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, somos amigos. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Amigos? Mas porquê só amigos?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porque quando o conheci e ele me veio pedir aulas de yoga inventei uma mentira para ele não ficar com ideias sobre nós dois, para me prevenir de avanços da sua parte. – disse corando – Não queria envolver-me com ninguém e manter a coisa profissional.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E o que foi que lhe disseste? – perguntou cada vez mais confusa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que… - sentia-se escarlate com aquele interrogatório - … era lésbica. – disse quase em surdina.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ó meu Santo Agostinho! – exclamou horrorizada com aquelas ideias malucas da filha. – Mas que disparate. Já estou a ver tudo! O rapaz anda apaixonado, não o pode dizer, porque tu inventaste uma mentira horrorosa dessas, e tu agora também gostas dele e não sabes como resolver a questão! – bradou à filha que se encolheu com o tom de desagrado da mãe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, é mais ou menos isso… Mas ele não deve gostar de mim como eu dele! – reagiu – Se leva mulheres para dormir com ele, depois de estar comigo… E sinceramente, eu não quero problemas nem desilusões, quero voltar a viver em paz, como estava antes de ele aparecer.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas Isabelinha, o rapaz telefona cá para casa duas vezes por dia, leva sempre uma tampa da Adelaide, que já anda furiosa contigo porque diz que ele é um querido e tem pena do rapaz, se não te quisesse bem, ia ter com a tal outra dos brincos e não se andava a envergonhar. Se ligares o telemóvel, vais ver as chamadas perdidas que lá tens… O que é que queres mais? Pelo menos ouve o que ele tem a dizer, caramba. E se é tudo um mal entendido? Já pensaste nisso? Andas aí emburrada, quase nem comes, e podes estar a ser injusta! </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pode ser… - comentou, pouco convencida. Sentia-se especialmente miserável porque João fazia anos naquele dia, e tinha-lhe pedido que ela voltasse nessa data, antes da “Nélia”. Mas o fel que sentia quando pensava naquele nome terrível e feio tirava-lhe a coragem para fazer o que o seu coração pedia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Liga o telemóvel, porque se ele telefona mais uma vez sequer aqui para casa, fica ciente de que sou eu que vou falar com ele, e esclareço essa história da mulher! – ameaçou-a, enquanto se afastava possessa com a atitude da filha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não teria coragem… - sabia que sim, que a mãe seria senhora para o fazer. Encaminhou-se para o quarto, ligou o telemóvel e sentou-se na beira da cama com o olhar de Filipe a suplicar-lhe que lhe telefonasse. – És um traidor… Se te dessem a escolher ficavas a viver com ele, não é? – reclamou com o cão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>O aparelho ligou, e uns segundos depois, dezenas de mensagens entravam para a caixa, duas e três por dia, constatou, bem como outras tantas chamadas perdidas. Abriu as mensagens de texto primeiro, uma a uma, lendo-as com a barriga a dar um nó. Ele era terrivelmente romântico e espirituoso, e parecia não querer desistir dela, o que a comoveu. Era preciso ser muito teimoso e auto-confiante para lidar daquela forma com o silêncio dela durante aquela semana de amuo. Leonino duma figa… lamentou-se, bufando de frustração perante a insistência em conversar. Desligou novamente o aparelho e começou a reunir as suas coisas. Se ele queria falar, então ela iria ouvi-lo, mas pessoalmente, e vestida com o conjunto preto. Nada de Marta hippie e boazinha, quem o iria enfrentar seria a Isabel. Preparou um banho, a roupa, organizou tudo para sair depois da hora de jantar em direção a Coimbra, mais concretamente, ao “Pírulas”. Chegaria lá a uma hora mais que perfeita para surpreender um aniversariante mulherengo, já teria bebido um pouco, deveria estar animado, com mulheres ao colo, a fazerem-lhe a festa! Ela entraria de pernas à mostra e acabaria ali o problema, pedir-lhe-ia que não voltasse à sua casa, nem a procurasse para aulas, individuais ou de grupo. Com toda a certeza que ele desistiria de a perturbar. Depois, antes de sair do bar vitoriosa, dar-lhe-ia a sua prenda de anos, um livro de Sexo Tântrico de nível avançado, para ele aprender! E que lhe fizesse bom proveito!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Terminou a sua maquilhagem, pegou nas malas e desceu, cheia de ânimo, deixando todos de boca aberta e ligeiramente aparvalhados com a ida repentina para Coimbra, a uma hora daquelas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas Isabelinha, não podes voltar só amanhã, durante o dia? – suplicou a mãe, a sentir-se culpada pela decisão drástica da filha depois do discurso de defesa do rapaz de Coimbra.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele hoje faz anos. Tenho uma prenda para lhe entregar. – explicou, beijando-a em jeito de despedida. – Eu volto no próximo mês, prometo! Abraçou Adelaide, que ficara em choque com a ida repentina de Isabel, e pediu que se despedisse por ela do pai, que ainda não chegara da Assembleia Municipal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vai com cuidado… - pediram as duas mulheres, dizendo adeus da porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu já tenho telemóvel! – disse-lhes a sorrir, entrando no jipe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não nos deste o teu número… - reclamou Mariana, já ela tinha arrancado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Salvador esforçava-se por animar João, enchendo-lhe o copo gratuitamente e sugerindo-lhe diversas opções de mulheres que por ali andavam. Qualquer uma delas gostaria de receber a atenção de um aniversariante solitário, carente e bonito, gozara-o, já prestes a desistir. Nélia surgiu à entrada da sala, espampanante e vistosa e Salvador agradeceu aos céus aquela aparição, talvez ela conseguisse animá-lo, pensou, sem saber dos acontecimentos de segunda-feira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olha, chegou a tua amiga! – disse-lhe entusiasmado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Onde? – voltou-se prontamente, a pensar que era de Marta que ele falava, ficando automaticamente furioso ao ver Nélia a sorrir-lhe descarada. – Eh pá, não chames a gaja. Não me apetece bater em mulheres. – ameaçou, voltando-se novamente para o balcão e para a sua bebida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou a ver que correu mal a saída no sábado… olha, mas ela vem aí! – avisou-o - Não faças cenas! Olá! Uma bebida por conta da casa, aqui em homenagem ao aniversariante?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá! Então parabéns! – disse-lhe animada, contente por vê-lo tão abatido no seu dia de anos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João não lhe respondeu, ignorando-a propositadamente, bebendo um gole da sua bebida para se acalmar, detestava mulheres oferecidas e cínicas, e aquela em particular, odiava-a. Olhou Salvador com censura e levantava-se, quando Nélia lhe agarrou por um braço e se adiantou à capacidade de reação de João, dando-lhe um beijo rápido nos lábios, satisfeita.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A minha prenda! – explicou, soltando-o.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mau timing… - disse Salvador, que olhava Marta à entrada da sala a olhá-los sem expressão definida no rosto, enquanto parecia conversar com Janota.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João empalideceu, desorientado com aquela coincidência cruel, ficando hipnotizado a observar Marta ao longe. Estava deslumbrante, completamente diferente do habitual, e sorria para o Janota, que lhe punha a mão nas costas, animado com alguma coisa que ela lhe dissera. Os pés estavam colados ao chão, presos por alguma força maquiavélica, que o impedia de a ir abraçar e arrancar de perto daquele gigante atrevido. Marta deu dois beijos no segurança e avançou na direção dele, sem revelar o que sentia, deixando-o cada vez mais ansioso. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá! – cumprimentou os três, João, Salvador e Nélia. – Parabéns! – inclinou-se para o cumprimentar e ele abraçou-a automaticamente, deixando-a amolecida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem Marta? – perguntou Salvador tentando acabar com aquele silêncio incomodativo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Soltou-se do abraço e tratou de esclarecer quem era aquela mulher que o beijava na boca.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem. – respondeu-lhe sorridente. Esticou a mão para se apresentar à mulher, que lhe retribuiu o gesto. – Marta, a irmã do João. – disparou, sem perceber de onde lhe surgira aquilo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, Nélia. Amiga do João. – explicou satisfeita.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João agarrou no braço de Marta e puxou-a dali perdido de raiva com aquela sequência de acontecimentos lunáticos. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Irmã? – perguntou-lhe alterado, assim que chegaram a um canto isolado do bar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Beijos na boca? – berrou-lhe de volta Marta, espetando-lhe o indicador acusatório.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A tipa é doida. Eu estava a levantar-me dali para a evitar e ela espetou-me um chocho. – explicou, chegando-se mais perto dela, enfeitiçado com a beleza dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, e também dormiu contigo no sábado sem tu quereres, agarrou-te, coitadinho. – ironizou, afastando-se dele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - engoliu em seco – Mas foi um erro, não sei o que me deu… - sabia, mas seria pouco educado dizer-lhe que tinha pensado nela o tempo todo, teria certamente o efeito contrário ao desejado – Mas não há nada entre mim e ela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Apenas sexo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, houve sexo. Já não vai haver mais. – exclamou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem. – suspirou enervada com aquela discussão inútil – Só cá vim para te dar os parabéns e a tua prenda de anos. Não quero saber com que dormes. – mentiu, sentindo-se prestes a chorar. Não tinha sido aquele desfecho que tinha imaginado durante a viagem.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Queres saber sim. E eu não durmo com ninguém. – puxou-a na sua direção, abraçando-a com força, sentindo todo o seu corpo delicado esborrachado no seu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Solta-me… - suplicou-lhe com a voz fraca. Queria abraçá-lo de volta, retribuir aquela necessidade de o ter, mas aquela bisca olhava-os demasiado curiosa para quem era uma companhia esporádica de uma noite.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… Abraça-me. - ordenou-a – Senão beijo-te aqui à força.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A tua amiga está a olhar… e os irmãos não se beijam na boca. – disse-lhe já a derreter nos seus braços.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quem disse que te ia beijar na boca? – brincou ele, mais animado com o efeito positivo do seu abraço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quer dizer, a ela, podes dar beijos na boc.. – começou a ralhar, quando ele a silenciou beijando-a com paixão, elevando-a do chão. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel pensou que fosse desmaiar, nunca tinha sido beijada daquela maneira, como se tudo dependesse daquele momento. Sentia a cabeça a rodopiar, quando João a poisou no chão, as pernas pareciam não obedecer, moles e sem estabilidade. O que tinha acontecido ali, perguntava-se confusa. Ele não a largou, continuando a abraçá-la, e olharam-se durante uns segundos, meio embasbacados com o que sentiam.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bolas… - disse João, ainda ofegante – Beijas bem. – brincou, sentindo-se com as pernas frouxas, dormentes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho de ir. – mais um beijo daqueles e teria um aneurisma, pensou divertida, mas se não fosse embora naquele momento iriam precipitar tudo. Não eram crianças, mas Marta não queria pôr a carroça à frente dos bois. Gostava demasiado dele para banalizar as coisas. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas… já? – estava confuso, agora que a tinha conseguido beijar, quebrando o escudo que ela lhe levantara desde o primeiro dia, queria ir embora?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, tenho o Filipe no carro, deve estar em pânico com o movimento da noite. Ele tem medo do escuro… - confessou, angustiada com o olhar de desalento dele. Ela tinha de lhe mostrar que não era mais uma Nélia. Queria que ele fosse seu, mas não numa ou duas noites. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem, queres que vá contigo?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podes levar-me até ao carro? Tenho lá a tua prenda. – disse-lhe, deixando-o ainda mais desiludido. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro. – respondeu sem jeito. O que João queria era repetir aquele beijo, de preferência pela noite dentro, não receber uma prenda… mas não iria pressioná-la, afinal, a assombração da Nélia ainda por ali pairava, e poderia regressar para estragar tudo novamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João deu-lhe a mão e despediram-se de Salvador, que os olhava sorridente e prestes a comentar, mas que se continha, pois sabia que aquela mulher era importante para o amigo, e de Janota, que lhes sorriu satisfeito ao vê-los de mão dada. Nélia desaparecera, constatou Marta aliviada, por não ter de a encarar. Seria muito desagradável e ela não tinha feitio para confrontos, mesmo que silenciosos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Chegaram ao carro e Filipe parecia possuído de alegria ao ver João, esgravatando na porta a pedir para sair do veículo. Marta libertou-o e os dois demoraram-se nos cumprimentos masculinos, sob o olhar deliciado dela. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vês?, este cão não pode viver mais longe de mim, não tornes a levá-lo daqui, por favor. – provocou, puxando-a para mais um abraço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, se fizeres muita questão dou-to… Ah a prenda! – libertou-se dos braços quentes dele e recuperou instantaneamente o bom senso, entregando-lhe o volume embrulhado com papel de seda vermelha. – Espero que gostes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João retirou o papel delicadamente, guardando-o no bolso e abriu um sorriso ao ver a sua obra preferida “nível avançado”.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não treinei o de iniciantes… - lamentou-se, sentindo-se um pouco mentiroso, mas com ela ainda não tinha de facto experimentando nada, desculpou-se – Tens muita fé no teu aluno. Obrigado. – deu-lhe um beijo levemente, apenas de gratidão pela lembrança, mas Marta tinha no olhar aquele brilho, que o fez ficar tonto, agarrando-a novamente, mas dessa vez contra o carro, que os selou em mais uma explosão de desejo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Para… por favor… - Como era possível que um beijo fosse tão forte? – Há muita coisa que temos de falar. Não quero que seja tudo tão rápido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem, mas então não me olhes assim. – reclamou, recompondo-se. Se ela queria falar sobre o seu passado era porque não estava a pôr um ponto final, bem pelo contrário, estava a querer fazer parágrafo, e isso deixava-o exultante.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Falamos amanhã? – perguntou, escapando-se para dentro do carro, seguida por Filipe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Amanhã falamos, por mim era já hoje… - seguiu-a, colocando-se debruçado na janela, a olhá-la bem de perto, com a gloriosa visão periférica das suas pernas despidas. – Não te respondi à primeira mensagem, mas sim. Gosto muito, são as minhas preferidas. – disse-lhe a sorrir. Esticou-se para dentro do carro e beijou-lhe a bochecha longamente, deixando-a novamente fundida no banco, sem reação. – Adeus. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Ficou a vê-la desaparecer na rua, de mãos nos bolsos, acariciando o papel de embrulho, tão sedoso como a pele dela, com uma felicidade genuína. Ela iria descobrir o que ele andara a fazer toda a semana, em segredo. Tinha sido difícil, mas depois de muitos cordelinhos e chantagens, João conseguira em tempo recorde que terminassem o saneamento na sua rua, alcatroassem, entrara na sua casa, pusera-lhe um esquentador, sais de banho na banheira, uma máquina de lavar roupa, outra de secar e na sala de prática um bilhete a pedir desculpa pela invasão, prometendo-lhe que trancara tudo novamente, depois de arrombado. Garantia que não era doido, pelo menos na acepção popular do termo, mas sim clinicamente apanhado por ela. Nada de muito grave ou perigoso, apenas agradavelmente positivo na vida de uma mulher sortuda.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta perdia-se nas recordações excitantes do beijo de João, que nem se apercebera do novo piso da sua rua. Entrou com o jipe pelo portão da casa, fechou-o, e quando voltava para entrar no veículo virou-se para trás, confusa com a sensação diferente debaixo dos sapatos. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Alcatroaram isto? – perguntou-se em voz alta, espantada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Voltou para o jipe, estacionou-o e levou todas as suas coisas para casa, seguida por Filipe que cheirava tudo freneticamente, doido com os diferentes odores que se sentiam na casa, de tantas pessoas diferentes que ali tinham estado nos últimos dias.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Dirigiu-se à cozinha para colocar a roupa suja no cesto, quando viu as máquinas a reluzir no local outrora vazio, por falta de água canalizada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não pode ser… seria isto a surpresa? – o choque inicial deu lugar a uma explosão de lágrimas de gratidão. Como podia ele ter feito aquilo? Correu a abrir a torneira de água quente e um barulho totalmente novo encheu a cozinha. Um esquentador ligou automaticamente, aquecendo a água em segundos. Marta limpava as lágrimas de alegria quando se lembrou de espreitar o quarto de banho e se enterneceu ao ver os sais de banho, prontos a serem utilizados na sua totalmente nova banheira, onde as torneiras funcionavam e não eram de enfeitar. Dirigiu-se à sala de prática para agradecer a Shiva e seu filho Ganesha por aquelas prendas do destino, e leu o bilhete, chorando de espanto e divertimento com o sentido de humor dele. Era um diabo de um leonino maluco, mas adorável.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Ligou o telemóvel e enviou-lhe uma mensagem “És louco… obrigada. <3”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-62451864233117314602020-07-30T01:53:00.001-07:002020-07-30T01:53:25.705-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 10<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEifhlZHpltqhMDDezQ3L-aBmGvxRpKXLGJcEtyvV4JysWkUzv1FeNONKMGTKN9xqNX2T4cP14guVC9GIouhN_VbjZdVzvFze8eP6JkaXem8yGf5OGSDH7OD1hyS4eOcbEuJssxLf1UUJ-o/s1600/thumb_450-450-banho-banheira-gel-espuma.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="450" data-original-width="450" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEifhlZHpltqhMDDezQ3L-aBmGvxRpKXLGJcEtyvV4JysWkUzv1FeNONKMGTKN9xqNX2T4cP14guVC9GIouhN_VbjZdVzvFze8eP6JkaXem8yGf5OGSDH7OD1hyS4eOcbEuJssxLf1UUJ-o/s320/thumb_450-450-banho-banheira-gel-espuma.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Registou com emoção o primeiro contacto no seu novo telemóvel, depois de alguns anos de “abstinência” telefónica regular, com o nome de João M, guardando o número pessoal dele nos favoritos. Ficou uns momentos a contemplar aquele nome, tão longe e tão perto, à distância de um toque, quando foi acordada do seu transe pela voz da mãe que finalmente escolhera o fato ideal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabelinha, vamos? – perguntou animada com a próxima tarefa maternal, vestir decentemente a sua menina.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mãe… estou cansada. Vamos voltar para casa. – suplicou, escondendo o aparelho na mala, depois de se ter livrado da caixa, instruções e papeladas inúteis.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem penses. Vais fazer-me este gosto. – agarrou-lhe num braço e encaminhou-se para a loja perfeita.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas por favor, só um vestido, pode ser?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Menina, primeiro experimentas, depois falamos. – rematou, sem dar hipótese a discussão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entraram na loja sofisticada, sendo prontamente rodeadas de assistentes de compras, que educadamente se disponibilizaram para as ajudar. Mariana instruiu as raparigas, explicando o tipo de roupa que pretendia para a filha, e uma azáfama de tecidos, peças, mulheres e nervos agarraram em Isabel, levando-a para os provadores. Dezenas de hipóteses diferentes lhe foram apresentadas, sendo que a maioria nem sequer passava pela sua primeira avaliação, rejeitando qualquer tecido espampanante ou metalizado. Depois de muito vestir e despir, um simples conjunto preto lhe assentou como uma luva, revelando todas as suas curvas bem feitas e pernas esguias, transformando a Marta em Isabel instantaneamente. Uma antiga conhecida a olhava de frente, rodando com ela no espelho, trazendo-lhe a memória de como um dia tinha sido feliz na pele dela, antes de Tiago. Aquela mulher bonita e moderna irradiava confiança na sua figura, e seria o par perfeito para João, o Dr., constatou corando.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Meu amor! Estás linda! Esse tens de levar! – exclamou a mãe entusiasmada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei… gosto dele, de facto. – confessou, mirando-se mais uma vez de todos os ângulos – Mas ia usar isto quando? – uma ideia surgiu-lhe na mente, o aniversário de João seria uma boa ocasião, mas não se sentia capaz de se transmutar à frente dele. Só lhe tinha mostrado a Marta, yogi, simples, e lésbica, pensou angustiada. Como poderia aparecer-lhe à frente com aquela versão feminina de si mesma?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Uma mulher precisa de ter uma coisa destas no guarda-roupa! – sentenciou Mariana – Levas este e todos os outros que separei por ti.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel olhou o monte de roupas que as funcionárias seguravam satisfeitas e resignou-se. Talvez fosse boa ideia ter uma alternativa à sua disposição.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr., sente-se bem? Quer que chame um médico? – perguntou Diana aflita ao entrar no gabinete e ver o patrão a desfalecer na secretária, pálido e ofegante.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cancele as consultas da tarde. Tenho de ir para casa. – levantou-se cambaleante, agarrou nas suas coisas e saiu, sem notar que a sala o observava curiosa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Arrastou-se até à garagem, esforçando-se por respirar devagar, entrou no carro e deixou-se ficar uns minutos no silêncio do espaço escurecido. Precisava de se acalmar, tirar aquelas frases da cabeça, vê-la de carne e osso e certificar-se de que estava bem. A ideia de que ela voltara sozinha para o local onde tudo aquilo se tinha passado, e que ele lá pudesse estar, punha-o em pânico. Estava demasiado longe para poder ajudá-la, para a proteger, lamentou-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>O telemóvel tocou, e João agarrou-o prontamente, olhando o número com indicativo espanhol espantado. Não conhecia ninguém em Espanha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta? – um aperto na barriga obrigou-o a contorcer-se e poisar a cabeça no volante.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que foi? O que se passa? – perguntou nervosa com a voz perturbada de João.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nada, desculpa. – disfarçou, endireitando-se e esforçando-se em colocar a voz num tom o mais natural possível. – Estás bem?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim. Vim a Cáceres com a minha mãe, ela adora vir aqui fazer compras… consegui agora fugir dela, disse-lhe que ia à casa de banho. – explicou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E já compraste alguma coisa para ti? – empatava a conversa à medida que fazia os exercícios abdominais do yoga para retomar a respiração normal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por acaso já… - confessou envergonhada com a visão do vestido curto e revelador – Algumas roupas… e este telemóvel.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, finalmente… é este o teu número?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim… podes gravar, eu já gravei o teu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nos favoritos? – perguntou mais animado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És o único nos contactos, e nos favoritos. – a cara esquentou-lhe de tal forma que olhou em volta receosa de que alguém notasse que estava encavacada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho bem. – reagiu brincalhão – Eu também te vou gravar nos favoritos. Não és a única, desculpa, mas a principal. – uma dormência boa invadia-lhe o peito, deixando-o cada vez mais recuperado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Agora podes ligar-me sempre que quiseres. Se te apetecer, claro. – apressou-se a acrescentar, envergonhada com a sua insinuação.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem sabes como me apetece… volta… - disse-lhe ousado. Não queria mais fingir nada. Precisava de a ter, bem perto de si, longe das incertezas e perigos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Também tenho uma surpresa para ti… - sentia-se a escorregar pelo pequeno sofá do corredor, amolecida com aquela voz sensual do outro lado do telefone.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Volta… - pediu novamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho de ir. Daqui a uns dias já te posso mostrar o que é. Mas agora a minha mãe vem aí. Liga-me.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quando estiveres sozinha no quarto manda-me uma mensagem. Eu ligo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Beijos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel apressou-se a desligar o telefonema, guardando o aparelho na mala, sentindo-se uma criminosa, a cometer alguma ilegalidade. A cara fervia-lhe da excitação , há muito tempo que não vivia aquelas emoções nem sentia borboletas na barriga. Talvez fosse vestir a roupa ousada mais cedo que o que imaginara. Isso era quase certo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João conduziu devagar pela cidade, procurando organizar as ideias. Dizia a si mesmo que tudo aquilo que descobria era passado, um acontecimento terrível na vida de Marta, Isabel, corrigiu, mas passado. Ela reconstruira a sua vida, recriara-se, e vivia em paz atualmente, estava livre para seguir em frente, e João não a deixaria ir sozinha a partir dali, decidiu. Não gostava tanto de alguém desde que namorara com Isabel, e mesmo assim, desta vez era diferente, mais forte, se isso fosse possível. A mulher tinha sido a sua grande Paixão, este era definitivamente o seu Amor. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Dirigiu-se a casa dela, tinha de se certificar de que as obras já tinham começado. Queria que ela chegasse e pudesse ligar uma torneira da água quente. Esse era o seu objetivo até ao final da semana. Não via a hora de ver a sua reação ao perceber que nunca mais teria de lavar nada à mão, nem carregar água pela casa. Queria-a ver feliz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> - Filipe, meu amorzinho… - abraçou o cão com carinho, aliviada ao vê-lo são e salvo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te sujes toda de pelos de cão, Isabel! – ralhou a mãe aborrecida ao vê-la de gatas a beijar o animal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou tomar banho. – endireitou-se, deu um beijo na mãe e abraçou-a – Obrigada pelo dia maravilhoso. Vou guardar as minhas roupas novas na mala e dormir. – disse, mentindo relativamente ao dormir. Estava demasiado excitada para sequer considerar dormitar, quanto mais. Levou Filipe consigo, que saltitava sentindo a animação interior da dona. Entrou no quarto e trancou-se. Queria privacidade total, sem interrupções. Poisou tudo na cama e apressou-se a fazer um banho de espuma digno de uma estrela de cinema. Descontrairia um pouco antes de mandar o sms a João, pensou, precisava de pensar antes, como lhe diria tudo aquilo que estava a sentir, o que queria fazer dali em diante. Despiu-se, mas hesitou antes de entrar na banheira. Correu a pegar o telemóvel e levou-o consigo. Uma ideia ousada e maluca passou-lhe pela cabeça, não sabia se teria coragem de o fazer, mas sentia-se especialmente excitada. Mergulhou o corpo na água quente e perfumada, ajeitou a espuma convenientemente e fez uma série de fotos das suas pernas, em diferentes perspectivas, e posições trabalhadas. Queria conseguir uma imagem sugestiva o suficiente, mas não ordinária. Utilizou todos os filtros de edição de fotos disponíveis, ganhando cada vez mais coragem para o fazer, tal era o resultado cinematográfico que obtinha. Sabia que ao concretizar a sua ideia erótica já não haveria volta a dar, acabaria ali, naquela noite, a parvoíce do lesbianismo fictício. Estava apaixonada, e como lhe tinha dito a mãe, já se haviam passado cinco anos. Mesmo que Tiago ainda a ensombrasse mentalmente, tinha todo o direito de ser feliz, ou tentar, na pior das hipóteses. Era-lhe claro que João também se sentia atraído por ela, porquê adiar a felicidade que se adivinhava? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João sentava-se à mesa para jantar em casa de César e Elisabete, quando o telemóvel deu sinal de mensagem. Esperara eternidades em casa pelo sinal de “Marta” para continuarem a conversa, mas talvez ela ainda andasse a passear com a mãe por Espanha, concluiu, desistindo de aguardar. Teriam a noite toda para falar, se fosse preciso, queria muito dizer-lhe que não acreditava que ela não gostasse dele, esclarecer tudo, sem denunciar que já sabia parte da verdade sobre o seu passado, e tentar fazê-la contar o que se tinha passado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Serviu-se de vinho, descontraidamente, e levava o copo à boca, quando abriu a mensagem dela e um soluço de espanto o fez engasgar-se e cuspir todo o líquido descontroladamente, sujando a superfície à sua frente, bem como a sua camisa branca.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querido? Estás bem? – Elisabete perguntou assustada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum, hum… - conseguiu dizer, tossindo o vinho que o entupira. Limpou-se o melhor que conseguiu, sentindo-se a corar com a ideia de estar em frente a dois amigos e a ver as pernas maravilhosas de “Marta” numa banheira de espuma, com a legenda “E deste tipo de pernas? Gostas?”. – Engasguei-me… Foi-me pro goto!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bebe um bocadinho de água… - sugeriu preocupada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu estou bem… - grunhiu com a voz rouca da irritação na garganta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E dizias tu há pouco que a tua paciente Sara já te pareceu mais animada? Eu tratei o filho mais velho aqui há uns anos, - explicava César sem dar importância ao ataque de tosse do amigo – era uma peste. O garoto era manipulador e ligeiramente cínico. Inventava cada coisa para conseguir o que queria…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum, hum… - João queria muito disfarçar a sua excitação com a imagem que tinha no telemóvel, mas a conversa com os amigos iria ser demasiado difícil de acompanhar. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Pediu licença para se ir recompor e fugiu para a casa de banho, queria cinco minutos de privacidade para pensar o que lhe iria responder. Sentou-se na sanita fechada e olhou demoradamente a mensagem, com um sorriso apatetado no rosto. Se apenas umas pernas o deixavam assim, o que seria quando e se visse o resto… Escreveu várias hipóteses de resposta, mas todas lhe pareciam fúteis, ordinárias, rascas, era impossível dizer fosse o que fosse depois daquele choque, concluiu. Por fim concordou consigo mesmo, e remeteu-se a um “queres matar-me?!?!”. Esperava que ela entendesse o sentido de humor, escrever era sempre ingrato. Cada um lia com a entoação que a sua mente pretendia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Voltou para a mesa e tentou dar atenção ao casal, e engolir alguma coisa do jantar caprichado de Elisabete. A sua fome era outra, e muito mais primitiva.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Isabel riu-se durante bastante tempo, como uma miúda histérica, sob o olhar surpreso do cão que nunca a tinha visto a mandar mensagens, e parecia não entender a que ou quem ela reagia daquela forma. O seu peito parecia rebentar de emoção, tinha sido corajosa ao enviar a foto, pensava, continuando debaixo de água, preguiçosa. Mas não ia parar por ali, decidiu. Iria provoca-lo até ele considerar meter-se no carro e conduzir até Castelo Branco. Claro que isso não poderia acontecer, mas vê-lo em sofrimento físico seria uma delícia. Aquilo era o melhor sexo tântrico que ela conhecia, a prolongação do desejo no imaginário. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tinha uma ideia para outra foto, e tratou de caprichar na água, colocando ainda mais sais de banho e duplicando a quantidade de espuma. Colocou em câmara frontal o aparelho e fotografou-se várias vezes, sem mostrar a totalidade do rosto, se alguém que não eles os dois alguma dia visse aquilo não conseguiria identificar a mulher assanhada que ali estava registada para todo o sempre. E a Marta nunca faria uma coisa daquelas, era demasiado envergonhada. A Isabel já era outra história… Conseguiu apanhar-se sugestivamente, quase totalmente nua, apenas com espuma “cirurgicamente” colocada nos pontos chave, e enviou sem remorsos, soltando novas gargalhadas com a legenda “Se sentires picadas no braço esquerdo, por favor, chama o INEM. És muito novo para morrer”.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Elisabete contava como as aulas de yoga lhe faziam imensa falta, um dia sem praticar e já se sentia perra, explicando exaustivamente todas os benefícios que lhe trouxera aquele exercício regular. Olhou João com curiosidade e perguntou sem cerimónias:</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sentes falta da nossa professora?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ham? – a sua concentração estava nula, olhando furtivamente o telemóvel na esperança de receber mais uma notificação de mensagem, quando o som chegou e fê-lo corar como um garoto. Abriu a mensagem o mais discretamente possível e não se conteve, soltando alto e bom som – Cristo! – a cara passou de corada a brasa incandescente, obrigando-se a beber um gole de água, enquanto fechava o telemóvel a contragosto. Se não saísse dali depressa pensariam que era maluco, ou mal educado. – Sim, claro. Sinto falta das aulas… - respondeu depois de se desculpar pelo grito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás muito interessado nesse telefone. – gozou César, intrigado – Aconteceu alguma coisa de grave? – perguntou a fazer-se de sonso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, não… desculpem. Um amigo mandou-me uma mensagem. – disse, atrapalhando-se todo e respondendo rapidamente “Tinoniiiiiiii”. Tratou de comer mais um pouco e apressou-se a sair, inventando uma mentira sobre um pedido de ajuda de um conhecido que ficara avariado no trânsito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Dirigiu-se a casa o mais depressa que conseguiu, queria ouvi-la e continuar a conversa num local sossegado, sem testemunhas. Felizmente vivia bem perto de César e Elisabete, e assim que fechou a porta de casa, largou tudo o que trazia nas mãos, ficando apenas com o telemóvel e esticando-se no sofá, a sorrir para o vazio. Isabel revelava-se, acabando com a distância logística que havia criado entre os dois, e João começava a entender porquê. A sua convivência com homens era mantida em banho-maria desde que se separara do filho da puta do ex-marido. Medo, sensatez, tudo aquilo era compreensível em alguém que sofrera na pele o tipo de agressões que ela vivera. Tinha estado sem ninguém, desejava João de forma egoísta e possessiva, à espera dele. Carregou no botão do telemóvel e foi prontamente atendido por uma voz arrastada e doce.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta… não achas que já estás há muito tempo debaixo de água? – perguntou, fugindo-lhe a imaginação para Castelo Branco.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda nem me enrugaram os dedos… - lamentou-se, esticando-se mais um pouco na água já quase fria.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos, sai lá da banheira. Espero que tenhas levado uma toalha para perto de ti. Não te quero a andar por aí toda despida. – E engoliu em seco com a imagem que se desenhava nitidamente na sua mente, induzida pelas suas palavras.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas que controlador… - gozou, erguendo-se devagar – Pronto, eu saio, Filipe, passa-me a toalha!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Esse cão não sabe a sorte que tem… - lamentou-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabe, sabe… Ele venera-me.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Odeio-o. – rosnou brincalhão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então? Como foi o resto do teu dia? – perguntou Marta mudando de tema.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Uma chatice, até há vinte minutos atrás. – confessou naturalmente – Quando voltas? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não sei.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu quero a minha surpresa no meu dia de anos. – ordenou, deitando-se de barriga para cima no sofá, descontraído.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou tentar. Irias gostar muito. – disse misteriosa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mais que as mensagens de hoje? – esperava que sim.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que sim. Mas não sejas curioso. Não me contaste a tua surpresa, eu não conto a minha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É justo. Quando voltas? – perguntou metendo-se com ela novamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por mim ia agora, - confessou corando – mas tenho compromissos aqui até sexta. – explicou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Amanhã o que fazes depois das 19h30? – lançou meio receoso de que ela não o pudesse ou quisesse ver enquanto estivesse em casa dos pais. Castelo Branco era perto, poderia lá dar um salto e voltar depois do jantar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ham? – não compreendia a pergunta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se estiveres livre e quiseres, eu vou aí ter e jantamos. – sugeriu, sentindo as mãos a suar de nervos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas vinhas até aqui de propósito só para jantar? – perguntou surpreendida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não ia aí “só para jantar”… ia para jantar contigo. – explicou, com a garganta seca.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu gost… - começava a responder quando a campainha da porta de casa de João tocou, obrigando-o a interromper a conversa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espera só um minuto. – dirigiu-se à porta, abrindo-a contrariado com aquela distração e ficando confuso com a visita – Nélia?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá querido! – ronronou Nélia, engolindo o orgulho e sorrindo-lhe com algum escárnio – Acho que no sábado deixei no teu quarto os meus brincos! – entrou sem ser convidada e deu-lhe um beijo na bochecha, deixando-o perplexo à entrada de casa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta? – disse aflito para o telemóvel, receoso de que ela tivesse ouvido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim? – respondeu engolindo uma porção de saliva que lhe soube a fel.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, eu já te ligo. – apressou-se a dizer, nervoso com o tom de voz dela e consequente silêncio. – Ouviste? – perguntou ansioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Beijos. – desligou o telefone e largou-o para cima da cama. Mas seria possível que só acertava em homens com defeitos? Filipe sentiu a sua tristeza e saltou para o seu lado, enroscando-se nela. – Só tu é que não me desiludes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Seguiu Nélia até ao quarto, onde esta tinha entrado sem cerimónias, numa atitude de intimidade despropositada e lunática.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Queres explicar-me o que vem a ser isto? – berrou, sentindo-se a explodir de raiva com o comportamento dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, mas não sei o teu número de telefone, - explicou cinicamente, sem se intimidar com os modos alterados dele – e como certamente não irei mais entrar nesta casa, queria certificar-me de que não deixava aqui coisas minhas perdidas. – continuou a busca pelos brincos imaginários. Tinha ali ido para se vingar, e parecia-lhe que sem querer, nem fazer qualquer esforço, uma Marta qualquer iria vingá-la convenientemente. –Ah!, encontrei! – exclamou, mentindo e fingindo agarrar os objetos perdidos debaixo da cama. – Pronto, obrigada. Adeus. – deu meia volta e saiu, rejubilando de gozo ao ver o ar perdido com ele ficara.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João bateu a porta com força, depois de Nélia sair, expulsando alguma da raiva que sentia naquele momento. Apressou-se a telefonar para Marta, mas, tal como ele imaginara, ela não atendeu. Repetiu a chamada algumas vezes, mas acabou por desistir, frustrado e consumido pela culpa. Se não tivesse desnorteado na noite de sábado, nunca se tinha metido naquela alhada, pensou angustiado. Mandaria uma mensagem a pedir desculpa e explicar quem era a Nélia, ou talvez não, pensava nervoso. Talvez fosse melhor ir até lá pessoalmente e tentar resolver o “mal entendido”. Dir-lhe-ia o quê?, perguntava-se, Que era tão estúpido ao ponto de ter levado para a cama uma ordinária qualquer, sem amor próprio, que se sujeitava a ser usada por parvalhões como ele? Ou que a culpada era ela, que o tinha deixado carente e precisara de resolver o seu problema físico, fazendo sexo com uma qualquer?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Pegou no telefone e escreveu simplesmente “Desculpa, atende para te explicar o que se passou aqui.” </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta abriu a mensagem e desligou o telefone, encerrando-o. Não precisava daquilo, ordenou-se, limpando uma lágrima teimosa que surgiu. Aconchegou-se a Filipe e fechou os olhos, soluçando baixinho, pois não queria preocupar ninguém da casa, até adormecer, muito tempo depois.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
<span style="white-space: pre;"> </span><br />
<div>
<br /></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-24799936412788425472020-07-29T02:06:00.003-07:002020-07-29T02:06:59.781-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 9<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgH1J04XpFuIKUnQmv3ivs92kVtZK0F_6Z9xLNEskIhaSUbQdC2_rB_nmWOzYg0rhyRRsqaFWnujPGR6ZdqAN66mhCwXnAn16QeFmcScwnccir3G8bucHBqUMQwkXEBektxnJmt5We8ZvA/s1600/id0f8c0d00-0000-0500-0000-0000008b2aa9-2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="512" data-original-width="922" height="177" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgH1J04XpFuIKUnQmv3ivs92kVtZK0F_6Z9xLNEskIhaSUbQdC2_rB_nmWOzYg0rhyRRsqaFWnujPGR6ZdqAN66mhCwXnAn16QeFmcScwnccir3G8bucHBqUMQwkXEBektxnJmt5We8ZvA/s320/id0f8c0d00-0000-0500-0000-0000008b2aa9-2.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então querida, ficas cá até quando? – perguntou Mariana, receosa de que a filha desaparecesse durante mais uma temporada sem deixar vestígios.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não decidi. Talvez até domingo. – Isabel pensava noite e dia nessa questão, remoendo-se de dúvidas. Queria partir o quanto antes para junto de João, mas se o fizesse naquele estado de espírito em que estava iria meter-se num problema maior que aquele que já vivia diariamente. Lançar-se-ia nos seus braços, pondo-se em risco e pior que tudo, trazendo outra pessoa para o seu pesadelo. Não queria sequer imaginar que João fosse prejudicado ou atacado pelo seu fantasma de carne e osso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tu pensas que eu não te entendo, - interveio a mãe, pousando os talheres – sempre achaste que só a Adelaide é que te conhece, mas eu sei muito bem que esta tua vinda traz água no bico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é nada disso mãe. – reagiu, espantada com o rumo da conversa, mais pessoal que o que habitualmente falava com Mariana. – Estava com saudades vossas. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, não duvido. – limpou os cantos da boca com um gesto carregado de etiqueta – Mas uma mãe sabe quando a filha está a sofrer. O que se passou lá no sítio onde vives agora? – perguntou sem disfarçar a ironia na voz. Feria-a saber que a filha, a sua princesa, morava num pardieiro, juntamente com um cão horroroso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei o que fazer. – confessou, olhando a mãe com carinho e fingindo que não percebera o tom.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como assim? Aquele animal tornou a procurar-te? – exclamou preocupada com a ideia de que o ex-genro continuasse a infernizar a filha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - respondeu, pouco certa de que ele não andasse sempre a rondá-la – Eu conheci uma pessoa. – conseguiu dizer corando.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu logo vi. E então? Não sabes o que fazer porquê?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho receio de que o Tiago cumpra o que prometeu. – engoliu em seco com a recordação do dia do julgamento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel, tu viveste um horror que eu não consigo imaginar sequer, - pigarreou escondendo a emoção – nunca vivi nada assim, mas isso já passou. Já lá vão cinco anos, não achas que está na altura de ultrapassares isso? – questionou-a carinhosamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, talvez… - uma lágrima caiu desamparada na toalha de linho – Mas prometi a mim mesma só voltar a tentar se encontrasse o tal…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já pensaste em recorrer a um psicólogo, psiquiatra? – sugeriu a mãe, incomodada com o facto de que a filha ainda andasse deprimida – Acho que o fantasma agora só continua presente na tua vida porque o trazes dentro de ti.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel olhou a mãe com admiração, aquelas palavras podiam estar mais certas do que Mariana imaginava. Sorriu-lhe, mais animada com a referência a um médico mental.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele é psiquiatra. – confessou, sentindo-se corar mais um pouco.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E ainda tens dúvidas de que ele é o tal? – piscou-lhe o olho, demonstrando uma rara cumplicidade maternal. – Vem aí o teu pai. Limpa as lágrimas e acabou esta conversa. – disse, retomando o discurso formal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então rapariga? O que tens? Estás doente? – Rosário aproximou-se da sobrinha que criara, uma pobre de Cristo, sem pai desde pequenina, que ficou subitamente órfã depois da sua irmã cometer o suicídio, vinte anos atrás.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não tia. Hoje não me apetece sair. – respondeu com maus modos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem te apetece ir pra borga, nem trabalhar! Está aqui uma casa bem arranjada, está! – ralhou, furiosa com a atitude imprestável que aquela rapariga tinha. Não ajudava em casa, não tinha tido cabeça para os estudos, a única coisa que lhe parecia saber fazer era a maquilhagem todas as noites, antes de sair para as discotecas. Se nem isso lhe apetecia há dois dias, algo de errado se passava. – Queres ver que tenho de pedir ao meu patrão para te tratar? – exclamou, pensando na dificuldade que seria conseguir pagar a um psiquiatra daqueles um tratamento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem pense! Eu não estou doida! – gritou de volta, sentindo a raiva a invadi-la de novo, só de imaginar ter de encarar o Dr João, depois de ele a ter tratado como uma prostituta reles e ordinária. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me levantes a voz, ouviste? – berrou Rosário ofendida. – Raios partam na rapariga que é enxertada em corno de cabra! – bateu a porta do quarto da sobrinha, lamentando-se da pouca sorte que tinha tido com a miúda. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia fixou o tecto, praguejando interiormente contra a saloia da tia, o seu destino miserável naquela casa, o seu futuro encalhado sem perspectivas de mudança e o facto de que os seus planos megalómanos tinham ido por água abaixo. Desde sempre se recordava de imaginar que um dia acabaria casada com o Dr João Marques, patrão da sua mãe adotiva, de quem esta falava maravilhas. Bonito, inteligente, charmoso, rico, e a dada altura viúvo. Perfeito para uma rapariga cheia de atributos físicos poder consolar. Pouco a pouco aproximou-se dele, com cautela para não mostrar qualquer ligação à “Dona Rosário”, e cada vez lhe parecia mais fácil atingir o seu objectivo. Só não contava que ele fosse tão nojento, como os que já tinha conhecido ao longo da sua jovem vida de adulta. Nem se dignara a olhá-la, depois de tudo aquilo, e pagou-lhe, sem remorsos, recordou, chorando na almofada. Só lhe apetecia morrer…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Escreveu o número de telefone de casa de Marta no local de pesquisa do site das páginas amarelas e rezou para que conseguisse descobrir algo de útil sobre ela. O local onde estava já seria um princípio, comentou consigo mesmo entusiasmado. No google não havia nada sobre uma “Marta de Castelo Branco”, ou melhor, constatava perdido, havia muita Marta naquela cidade, mas nenhuma era a que lhe interessava. A morada correspondente ao número fixo surgiu, e João selecionou-a, copiando-a para o google maps, a fim de a situar espacialmente. Rapidamente percebeu que o local ficava no centro de Castelo Branco, numa zona principal, e para visualizar melhor, recorreu ao “Street view” e esperou que as imagens satélite carregassem para continuar a pesquisa caseira. Uma propriedade demasiado grande para um lote urbano central apareceu no ecrã do pc, deixando-o confuso. Confirmou a morada inserida e “olhou” a rua em que se situava a mansão, ficando perplexo. Parecia-lhe um palácio daqueles que só as instituições do Estado conseguiam manter, adaptando para serviços administrativos, não uma casa familiar. Percorreu virtualmente toda a rua de cima para baixo, olhando tudo pormenorizadamente, tentando perceber aquele quebra-cabeças. Talvez ela fosse filha de uma das muitas empregadas que um casarão daqueles deveria ter, só para o manter limpo diariamente, matutou. Era bem provável. Deixou a “janela” do street view aberta e tratou de pesquisar no google apenas a morada do palácio, para ver se obtinha alguma pista. Várias referências ao local chique lhe apareceram, mas o seu objetivo era descobrir quem lá vivia, como se chamavam, o que faziam, etc. Depois de ler muito site inútil, apareceu subitamente o que procurava numa notícia regional de um jornal albicastrense. Era a residência familiar do Presidente da Câmara, antigo responsável pela direção da Medicina Legal do Hospital de Castelo Branco, Dr. José Fontes Pereira e Castro. Agarrou nessa novidade e fez nova pesquisa no google, desta feita, com muito mais informação, na sua grande maioria referentes ao trabalho atual de presidente do município. Festas, galas, inaugurações, assembleias, mil e um artigos sem importância. Deixou a “literatura” e carregou na pesquisa de imagens, aparecendo-lhe mais um rol de fotos institucionais, a mostrar um político sorridente e bem parecido. Percorria a página de imagens já cansado de tanto “cortar a fita” dos políticos, quando a viu junto do homem. Abriu a imagem fazendo zoom, com as mãos a suarem-lhe de nervos, e ali estava ela, no meio de um casal, vestida a preceito, formalmente, uma betinha com ar de frete numa cerimónia qualquer, bem mais nova que a Marta atual, mas definitivamente ela. A legenda deixava claro de quem se tratavam, Mariana, Isabel e José Fontes Pereira e Castro, mulher, filha única e Presidente, respetivamente. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel?! – perguntou em voz alta. – Como assim, Isabel?? – exclamou horrorizado com a descoberta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tornou a pesquisar no google, desta feita colocando apenas “Isabel Fontes Pereira e Castro, Castelo Branco”, ficando perplexo a olhá-la. Centenas de imagens de “Marta”, todas em situações formais, mas apenas até uma certa idade. Não havia nenhuma com a mulher que ele conhecia, apenas uma garota bonita. Retomou a pesquisa na web, deixando de parte as fotos dela, e tratou de se ajeitar na cama para ler exaustivamente tudo o que lhe aparecesse sobre ela. Várias páginas dedicadas ao desporto mostravam-na nos pódios, tal como ela tinha referido dias antes, a receber medalhas ganhas nas competições de ginástica acrobática. Uma menina feliz e sorridente, constatou, naquela versão desportiva. Por mais que procurasse, nada de atual havia a dizer sobre a Isabel de Castelo Branco, resignou-se, fechando o portátil exausto, de tantas horas em frente ao ecrã. Olhou o relógio do telefone e viu com espanto que já eram perto das quatro da manhã. Afastou tudo do seu lado da cama e deitou-se, ficando a olhar o tecto, perdido nos seus pensamentos e teorias sobre tudo o que tinha descoberto. Algo de estranho tinha acontecido para que Marta, Isabel, corrigiu-se, tivesse deixado a vida confortável com a família abastada e tivesse vindo morar para aquele sítio inóspito no meio do nada, com literalmente nada a que estava acostumada. Zanga familiar não deveria ser, matutava, pois tinha ido visitar os pais. Seria assim tão excêntrica que preferisse carregar água quente para a casa de banho para conseguir tomar duche, e lavar a roupa à mão num tanque, a viver sem dificuldades nem trabalhos pesados? Porquê?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou?... – grunhiu para o telemóvel, ainda a dormir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia! Ganhei! Fui a primeira a ligar. – tinha estado em pulgas à espera que chegassem as sete da manhã.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta? – perguntou confuso .</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, já acordaste?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - respondeu num lamento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas não disseste que podia ligar a partir das sete?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Da tarde… sete da tarde… - resmungou cheio de sono. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah… desculpa. Volta a dormir, então. – disse sentindo-se ridícula com a confusão do horário.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, fala comigo. – pediu, afastando as cobertas da cama com o calor que subitamente o afetou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, agora fiquei sem jeito… - confessou, sentindo-se corar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já acordaste há muito tempo?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, já fiz quase uma hora de yoga com o Filipe. Ele agora está a dormitar, é um cu de sono. – explicou divertida – E tu? Tens praticado?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O quê? Kamasutra? – perguntou provocador, sorrindo com a ideia de a deixar encavacada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… yoga. – a cara escaldou-lhe mais ainda.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem por isso, sem a professora não tenho estímulo para me exercitar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Preguiçoso… Vamos lá, a professora agora está aqui, é ótimo começar o dia a esticar a coluna. Vamos, senta-se. – ordenou entusiasmada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já está. – mentiu, sorrindo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não está nada. Aldrabão… Senta-te lá. Eu vou falando e tu imaginas que estou aí.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Na minha cama? Cala-te por favor… - gemeu a sentir-se aquecer mais e pontapeando o resto dos lençóis que ainda lhe cobriam os pés.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És impossível… - tinha vontade de se rebolar de alegria, como o Filipe fazia quando estava excitado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vá, agora a sério, estás aqui, sentada à chinês, eu estou-te a ver. Diz lá o que queres que eu faça.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Primeiro, esticas os braços e forças na direção do tecto, para as vértebras ficarem acordadas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já está. – mentiu novamente, apenas concentrado na imagem dela a fazer o exercício em questão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas está mesmo? – questionou desconfiada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Já estou todo esticadinho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Agora inclinas-te para a esquerda e para a direita, como te ensinei. – continuou, a imaginá-lo naquela posição. – Depois colocas as mãos em lótus e fechas os olhos, respirando com o abdómen.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum, hum… - sussurrou a sentir-se cada vez mais descontraído ao ouvir a sua voz cadenciada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Esticas as pernas, e rodas o tronco para a esquerda.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não quero esticar as pernas, - reclamou – canta-me lá aquele mantra que eu gosto. – pediu, enroscando-se na cama.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Om Shanti… Om Shanti… Om Shanti Om… Om…- repete comigo. Esperou alguns segundos, mas João calara-se, sem reagir. – João?... João?... Adormeceu… - desligou o telefone e olhou Filipe a dormir com censura. – Cus de sono!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João acordou com o som vindo da cozinha, estremunhado com um sonho bastante real em que falara ao telefone com Marta, e ela fizera yoga na sua cama. Esfregou os olhos pesados das poucas horas de sono que conseguira aproveitar e sentiu algo rijo na sua almofada, agarrando-o sobressaltado. Porque raio tinha ali o telemóvel?... Ligou o aparelho, sentando-se, e viu no registo de chamadas o número de Castelo Branco, às 7h00 em ponto. Alguns minutos de chamada… - Merda, adormeci ao telefone com ela… - Se fizesse isto à Isabel ela faria um escândalo. Estaria Marta, Isabel, corrigiu, zangada? Dirigiu-se ao quarto de banho e arranjou-se o mais depressa possível. Já não teria tempo para tomar o pequeno almoço, dormira quase duas horas a mais que o normal, lamentou-se, mais ansioso com o facto de ela ter ficado pendurada ao telefone com ele a dormir, do que os pacientes na sala de espera a reclamar com o atraso do médico. Eles que lessem uma revista, resmungou, saturado daquelas caras amarelentas e depressivas. Iria ser um péssimo dia com a neura do sono, constatou. Tinha a cabeça demasiado cheia de dúvidas e teorias sobre ela, o seu passado, seria um suplício ter de se abstrair de tudo isso e concentrar-se nos problemas dos outros. Precisava urgentemente de retomar a sua pesquisa, explorar cada pista e ideia que o mantivera acordado durante horas, compreender quem ela realmente era o mais depressa possível. Estava a caminhar a passos largos para a dependência emocional dela, a gostar demasiado de uma pessoa que simplesmente poderia não existir, ser uma farsa. Não tinha a certeza de que aguentaria outra “morte”.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Saiu de casa enervado, a sua empregada Rosário andava particularmente estranha, parecia-lhe preocupada, mas João não tinha tido tempo para tentar perceber porquê. Sabia que ela tinha uma sobrinha problemática, que lhe tirava o sono de vez em quando, mas nunca se alongara muito em conversas. Algo de mais grave se passava, concluía, a sentir-se culpado por não lhe retribuir a dedicação que ela lhe devotava.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entrou no carro e o telemóvel não lhe saía da mão, como que a pedir-lhe que lhe ligasse, colado aos dedos, irrequietos. Olhou o número dela e não se conteve, afinal tinha uma boa desculpa para telefonar, devia-lhe um pedido de desculpas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou, sim? – Adelaide atendeu prontamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou, sim, muito bom dia. Fala de casa da Isabel? – perguntou a sentir uma gota de suor a nascer-lhe no pescoço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quem fala? –questionou sem lhe responder. Um homem a ligar para a casa da menina não era usual, principalmente quando ela chegara dois dias antes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Peço desculpa, chamo-me João Marques, sou o psiquiatra da Isabel, e fiquei em ligar-lhe hoje de manhã. – mentiu descaradamente, reagindo a um instinto que lhe dizia que a senhora o iria despachar se não estivesse segura de que a Isabel quisesse atender o telefone.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, sim, como está Dr.? A menina Isabel não me avisou que iria telefonar. Mas ela saiu há pouco com a Senhora, só voltarão ao final do dia. – explicou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não há problema, deve ter-se esquecido. Pode apenas dar-lhe o recado de que liguei? – pediu, frustrado com a ideia de estar o resto do dia sem a ouvir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com certeza, assim que a menina chegar, darei o recado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Muito obrigado, bom dia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, com sua licença. – desligou o aparelho, agradada com os modos bem educados do médico da Isabelinha. Gente fina, concluiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João carregou no acelerador e dirigiu-se para o seu calvário diário, agora com mais uma preocupação na mente, não saber se ela estava zangada consigo. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabelinha, tu não podes tratar o cão como se fosse um humano! – recriminou Mariana, aborrecida com o mau humor da filha desde que saíra de casa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é nada disso mãe, fico com medo que ele fuja, não está habituado a viver naquela casa, pode tentar procurar por mim e sair para a rua.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Disparate! A Adelaide disse que o vigiava, agora vamos aproveitar o dia em Cáceres, fazer umas compras, almoçar uns tapas e passear. – rematou decidida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, desculpe mãe. – acariciou-lhe a mão e esforçou-se por sorrir perante aquele programa de mulheres. Descontraiu no banco do passageiro do carro de Mariana e distraiu-se com a paisagem da viagem até Espanha, imaginando como seria bom que João conhecesse aqueles locais com ela, comessem uns tapas, dormitassem na relva do Parque Del Príncipe, em vez de se ir enfiar no El Corte Inglês, a percorrer quilómetros atrás da mãe, de loja em loja, sem orçamento nem travões de qualquer espécie. – Acha que consigo comprar um telemóvel ainda hoje? – queria muito falar com João, saber se não tinha chegado atrasado de manhã à clínica, estar sempre contactável para ele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro querida! – reagiu surpreendida com a ideia. – Ainda bem que decidiste deixar-te dessas ideias malucas de estares isolada de tudo e todos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, anda-me a fazer falta, e a conduzir sozinha posso ter necessidade de pedir ajuda. – concluiu, omitindo a verdadeira intenção de ter um telefone móvel; esperar os telefonemas dele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro. Deves ser a única rapariga com vinte e nove anos que não tem telemóvel! – recriminou-a.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Faz-me mais falta um esquentador, mas pronto… - sorriu-lhe divertida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Mariana arrepiou-se com a ideia de viver sem água quente nas torneiras, na era medieval, como a filha. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Diana sobressaltou-se com a pressa com que João entrou na sala de espera, já atrasado para o primeiro horário, com cara de poucos amigos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia, Dr.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. Pode mandar entrar o primeiro paciente. – entrou no gabinete, sentou-se na cadeira e pensou em tomar um ansiolítico, sentia-se especialmente mal humorado. Como iria passar um dia inteiro sem a ouvir?...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com licença. – Um homem entrou na sala, acabrunhado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Faça favor, bom dia. Como está? – João estendeu-lhe a mão, sorrindo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pelos vistos, nada bem… - gracejou, olhando em volta, pouco confortável com o facto de ter necessidade de recorrer a um psiquiatra.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João esmerou-se na consulta, agradado com a novidade rara de tratar uma pessoa do sexo masculino. Eram raros, normalmente maldisposto e agressivos, mas para começar bem o dia, aparecera-lhe um doente ainda com sentido de humor. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou ver do telemóvel. – Isabel informou a mãe, ocupada a escolher um fato para uma cerimónia próxima onde teria de acompanhar o marido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vai querida, encontramo-nos à porta da outra loja que te falei. – informou-a, sem desviar o olhar das dezenas de modelos diferentes dispostas no balcão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não quero comprar roupa. Aqui não há nada que eu goste de usar… - reclamou, irritada com a insistência da mãe em vesti-la à betinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Menina, podes até nunca usar, mas vais-me dar o prazer de te oferecer uns conjuntos decentes. Pode ser que entretanto te passe a adolescência! – gracejou, olhando a figura excêntrica da filha, vestida de hippie.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Até já. – deu meia volta e saiu da loja antes que a conversa azedasse. Apressou-se a encontrar a loja de telemóveis, nervosa com aquele passo drástico na sua vida, ceder às pressões tecnológicas do mundo atual. Só mesmo ele para a fazer duvidar das suas teorias anti-globalização. Naquele momento, sentir uma proximidade constante a João, bem guardada na sua mala, era a sua prioridade. Assim que o tivesse nas mãos iria ligar-lhe a dar a novidade, pensou feliz da vida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João sentiu um calor no peito assim que o telemóvel tocou ao seu lado, seria ela? Pegou no aparelho e desiludiu-se ao ver o nome do Salvador no ecrã.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou? – disse, sem disfarçar a frustração.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá pinga-amor! Então, estás vivo?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porque haveria de estar morto?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Saíste com aquela bomba do bar no sábado e ainda não deste sinal de vida… - provocou o amigo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Só me arranjas problemas. – confessou, recordando-se da noite com Nélia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então? – perguntou curioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nada de especial. – mentiu, desviando o tema desconfortável.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Apareces hoje?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, tenho mesmo que falar com o “Janota”. – já tinha decidido que iria alargar a sua pesquisa sobre Marta, Isabel, corrigiu, tentando outras vias de conhecimento, os boatos. Certamente que em Castelo Branco a vida da família do Presidente da Câmara seria do domínio público. Talvez o segurança conseguisse dados novos sobre ela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem vou perguntar porquê… - gracejou, entendendo logo os planos de João.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A minha hora de almoço acabou. Tchau. – despediu-se sem cerimónias, desligando o telemóvel. Aquele Salvador era pior que um rato, curioso e metediço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span> Voltou-se novamente para o computador, continuando a procura informática interrompida pelo amigo. Se ela tinha o curso de Osteopata procuraria descobrir onde o tinha frequentado. Talvez houvesse informações relevantes. Não demorou muito a encontrar o Instituto Politécnico de Castelo Branco, e lá estava ela, em fotos antigas de curso, Licenciatura em Fisioterapia Clínica. Ficava-lhe bem o traje académico, constatou. Olhava-a embevecido quando uma outra foto o deixou perturbado. Um rapaz enlaçava-lhe a cintura, possessivamente, enquanto ela o olhava apaixonada. Mas que merda era aquela? Perguntou-se enraivecido com os ciúmes. Afinal era ou não era lésbica? Ali parecia-lhe gostar bastante de homens… Copiou a foto e guardou-a numa pasta que criara onde já colocara todas as outras informações que descobrira até então. Fixou a cara do homem e retomou a pesquisa de imagens apenas com o nome dela. Tinha de tirar a limpo se aquele personagem era apenas um colega de curso, ou algo mais. Percorreu-as a todas, calmamente, desta vez com outra pessoa na mira. Depois de algumas páginas, e se havia páginas de fotos com aquela mulher, descobriu-os, o casal apaixonado. Uma fúria de despeito invadiu-o, deixando-o nervoso. Com ele era lésbica, agora com aquele feioso, já se derretia! Tiago Mendes, gravou o nome na memória, seria impossível esquecer, e pesquisou esse novo dado. Espantosamente, dezenas de reportagens antigas mencionavam aquele nome, com muito mais informação que aquela que esperaria. Abriu uma a uma, lendo-as de ponta a ponta, com um crescente pânico a invadi-lo. “Juiz ouve hoje Tiago Mendes, alegado agressor doméstico, num julgamento mediático e cheio de controvérsias. Centenas juntaram-se à porta do Tribunal de Castelo Branco para ver o ex-marido da filha do Diretor do Serviço de Medicina Legal do Hospital Amato Lusitano.” “Juiz não considera como provas os depoimentos de familiares e conhecidos da vítima, alegando questões éticas. A vítima que, ao início deste longo julgamento, ainda se encontrava internada a recuperar, recebeu ontem alta da ala psiquiátrica do Hospital. É presente ao Juiz no início da próxima semana, esperando-se uma nova enchente de curiosos nas imediações do edifício.” “Advogado de defesa de Tiago Mendes confessou aos jornalistas que a vítima não estava capaz de falar, nem antes, nem depois do tratamento psiquiátrico. Teriam de adiar uma vez mais a sessão”. “Tiago Mendes absolvido das acusações de tentativa de homicídio, agressões físicas, sequestro, e tortura. Juiz considera que apenas ficou provada a agressão a cão do ex-casal, e consequente problema emocional da vítima do sexo feminino. Tiago fica assim proibido de se aproximar da casa do Diretor da Medicina Legal, bem como da filha.”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João respirou fundo, depois de se ter mantido em apneia, e fechou as imagens dos jornais, ficando apenas com Tiago no ecrã. Aquele homem tinha sido casado com ela, batera-lhe e fizera-lhe coisas que nem queria imaginar, pensou tresloucado com toda a raiva que sentia. Procurou nas gavetas da secretária por um ou dois comprimidos que o acalmassem, milhares de pensamentos não o deixavam racionalizar o que lera, era demasiado horrível. Imaginá-la a ser agredida, violentada, como era possível que alguém a odiasse de tal forma? Porque só podia ser ódio, o que levava os homens a baterem nas suas mulheres. Ou isso, ou aquele Tiago era um psicopata, um doente mental com compulsões violentas que não controlava, e direcionava para quem menos merecia. Filho da puta, pensou enfurecido, psicopata era um elogio. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-62561861269197660072020-07-28T01:49:00.001-07:002020-07-28T01:49:11.846-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 8<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj26j_Ehp3LdhxfUzSmgMTWxECvaivJTLeiU_uKyWuFL5l-ijyMi18syXdWsFLczIIVom8WYWmn45AzTMIO3geQctvXVfMlT88wlJhZ2LpOzYEQQScpH6K3cJ98_YrzsGftUe6CTD-9lc8/s1600/11-cama-com-dossel.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="800" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj26j_Ehp3LdhxfUzSmgMTWxECvaivJTLeiU_uKyWuFL5l-ijyMi18syXdWsFLczIIVom8WYWmn45AzTMIO3geQctvXVfMlT88wlJhZ2LpOzYEQQScpH6K3cJ98_YrzsGftUe6CTD-9lc8/s320/11-cama-com-dossel.jpg" width="213" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Nélia caiu para o lado vazio da cama, estoirada com aquela abordagem animal que não sabia que João possuía. Da primeira vez fora patético, mas naquela noite parecia outra pessoa, determinado, possessivo e sexy. Talvez começasse a gostar da sua companhia, desejou esperançosa, posicionando-se de lado, à espera que ele a olhasse apaixonado. João levantou-se, pegou na carteira, tirou uma nota e poisou-a na mesa de cabeceira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Chama um táxi, está aqui o dinheiro. – disse, sem sequer a olhar, enfiando-se cobardemente na casa de banho e fechando a porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Ficou a olhar o dinheiro, com os olhos rasos de água, sem reação. Depois de uns minutos de perplexidade, começou a pensar novamente e vestiu-se, sentindo uma humilhação que a queimava por dentro. Já tinha alcançado o limite da dignidade, sentia-se uma puta. Pegou na nota, saiu porta fora, entrando apressada no elevador enquanto olhava a sua figura ordinária no espelho. Uma mulher suja e descabelada mirava-a com pena, recriminando-a. Duas lágrimas grossas caíram dos olhos da sujeita, e Nélia chorou com ela, explodindo de raiva.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Engoliu dois comprimidos inteiros, depois de dar dois murros na porta da casa de banho, e quase partir um dedo. Marta não lhe saíra da cabeça o tempo todo, imaginando-a na sua cama, fantasiando que a outra era ela, a que realmente queria que ali estivesse. Salvador tinha razão, lamentou-se agoniado, estava apaixonado pela professora. Meteu-se no duche e deixou-se ficar tempo suficiente para que Nélia já tivesse desaparecido de sua casa, não conseguiria encará-la. Fora uma autêntica besta, pensou, engolindo em seco.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Menina Isabel! – exclamou Adelaide em êxtase ao ver a sua querida menina, depois de tanto tempo, à porta de casa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dazinha… - caiu-lhe nos braços, largando as malas, e matando as saudades daquele abraço caloroso e forte.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Entre, entre, mas que horas são? Veio a conduzir sozinha a estas horas da noite? – reagiu preocupada, depois de se recompor.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não é meia-noite. Mas está tudo bem, eu vim devagar. – descansou-a – O que interessa é que cheguei, sã e salva. Os meus pais já estão a dormir? – perguntou enquanto olhava a sua casa com carinho, apercebendo-se de que tinha muitas saudades de tudo aquilo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já querida. Já dormem há muitas horas. Sabe como é, o seu paizinho deita-se com as galinhas! – brincou, ajudando-a a carregar as malas até ao quarto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então deixemo-los descansar. Amanhã de manhã faço-lhes uma surpresa! – beijou a empregada carinhosamente e poisou as suas coisas na cama de dossel. – Também preciso de dormir. E tomar banho! – sorriu de orelha a orelha imaginando a sua banheira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Faça isso menina. Quer que lhe traga uma frutinha e um chá? – perguntou emocionada com a visão da sua menina de volta em casa, como antigamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se não for dar muito trabalho… - abraçou-a, enquanto a empregada saía do quarto diligente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nunca foi trabalho. – beijou a face de Isabel e saiu a fungar, limpando os cantos dos olhos com um pequeno lenço de tecido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Isabel fechou a porta, olhou em volta e deu um abraço em Filipe, que se colocou de pé, com as patas possessivas em cima dela. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te preocupes, ele já não vive cá. – descansou o animal que certamente tinha medo daquele lugar. Tinham vivido horrores naquele quarto, mas Isabel esforçava-se por só visualizar o passado feliz da sua infância e adolescência, antes de Tiago ter entrado nas suas vidas, quando aquele quarto era o palco de histórias de princesas e cavaleiros apaixonados, e o futuro era uma doce expectativa no coração de uma menina sonhadora.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Libertou-se do cão, despiu-se e encheu a banheira, entrando devagar. Que saudades… pensou feliz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>“- Odeio-te, deixa-me em paz! – gritou Isabel, fechando a porta do quarto na cara de João. – Deixa-te de histerismos! – berrou-lhe de volta, dando uma palmada na porta. Aquele casamento estava a ir por água abaixo, pensou, farto de tudo aquilo. – Eu só queria um filho, egoísta de merda! – exclamou descontrolada de dentro do quarto. João sabia que um dia ela lhe iria atirar aquilo à cara. Agora era tarde demais, Isabel não poderia engravidar nos próximos anos, teria de tratar o cancro primeiro. Era óbvio que ela temia morrer, sabia-o, e ele não lhe tinha concretizado o sonho antes disso. Engoliu em seco, pegou nas chaves e saiu. Se ela morresse não teria hipótese de se redimir. Mais uma culpa para juntar ao rol.”</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr. João, Dr.! – chamou Diana, receosa de que o patrão a repreendesse por estar a interromper o seu transe habitual.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim? – olhou-a desconcertado, confuso com todas as lembranças que o perseguiam desde sábado à noite.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso mandar entrar a paciente? – já estavam atrasados nas consultas, o médico estava particularmente pouco eficiente naquela segunda-feira, e as pessoas começavam a reclamar na sala de espera.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. – respondeu sem vida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dona Sara Mendes, pode entrar por favor. – indicou Diana, abrindo mais a porta para a senhora de meia idade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- dona… - rosnou João baixinho, recriminando a forma pouco educada de se chamar uma Senhora daquelas. Mas seria possível que só lhe arranjassem funcionárias burras? – Bom dia Sara, como vai? – cumprimentou-a cerimoniosamente, deixando-a sentar primeiro, e depois retomando o seu lugar na cadeira em frente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia Dr., estou um pouco melhor, acho eu. – confessou pouco convencida, descontraindo na cadeira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, já é um começo. Tem feito a medicação que lhe receitei? Dorme melhor?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, tudo direitinho, durmo muito bem. Pareço uma pedra, acordo de manhã fresca que nem uma alface! – brincou, dando uma leve gargalhada, de olhos tristes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas… dormir bem não é o suficiente. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E o que acha que seria o suficiente para si?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Um pouco de atenção, que o meu marido me olhasse de vez em quando… - confessou envergonhada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, seria o mínimo que um marido deveria fazer pela mulher. – disse sentindo um buraco de culpa no estômago.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cada vez estamos mais afastados. Não consigo alterar o rumo que o nosso casamento está a levar. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>O telefone interrompeu a consulta, deixando João aborrecido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Peço desculpa Sara, deve ser urgente para a minha secretária estar a ligar. – desculpou-se, atendendo o telefonema.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Faça favor, Dr. Não se preocupe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim? – disse bruscamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr., tenho ao telefone uma senhora que insistiu muito em falar consigo, diz que é urgente, não consigo despachá-la… - explicou Diana em pânico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas quem é? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Uma tal de Ganesha. – temia ouvir um berro do outro lado da linha, a mulher devia ser uma lunática qualquer e ouviria poucas e boas do patrão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Passe. – disse secamente, sentindo o coração a explodir de entusiasmo. Era ela! – Desculpe, é uma chamada importante, serei rápido. – informou a paciente, que o olhava curiosa. – Estou?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá. Estou a interromper? – Marta sentia o coração na boca, a atrapalhar-lhe o discurso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Ainda bem que ligaste… - murmurou para o telefone, virando-se ligeiramente para o lado, para evitar o olhar da paciente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei o teu número de telemóvel… e pensei que gostasses de saber que cheguei bem. – enrolava os dedos no cabo do telefone, nervosa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda bem,… e o Filipe? Está bem? – perguntou, olhando na direção contrária da mulher que o examinava a ele e ao seu telefonema.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem por isso… anda abatido, acho que tem saudades tuas… - sentiu toda a sua face corar de repente. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Só ele? – esfregava a mão livre na perna, nervoso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. – disse, depois de uns momentos de silêncio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso ligar-te mais tarde? – olhou a paciente com um sorriso amarelo, sentindo-se a escaldar de vergonha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu ligo. Vou pedir o teu número à deusa da caça! – brincou – Beijos. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, até logo então. – desligou o telefone, encarando a senhora, que lhe sorria divertida, deixando-o ainda mais encavacado. – Uma chamada urgente… - pigarreou, retomando uma postura profissional, com a cara ainda a ferver.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não há problema nenhum. – disse educadamente a senhora, sorrindo com vontade. Era muito reconfortante sentir que aqueles médicos, normalmente tão seguros de si mesmos, também possuíam um lado humano, e este, estava apaixonado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, dizia-me que gostaria de mais atenção, dedicação, é compreensível, uma vida inteira dedicada à família, quando os filhos começam a ser independentes, é normal as mães se sentirem subitamente sós.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É isso mesmo, fiquei subitamente sozinha e isso põe-me triste e perdida. Mas é tudo uma questão de adaptação, certo? – perguntou esperançosa. Sem que ele tivesse percebido, aquele telefonema animara-os aos dois. Algo de muito simples lhe surgira na mente, a visão do que os seus próprios filhos deveriam sentir, agora que se dedicavam a outros amores, que não os maternais, e ela não os podia censurar. Era a paixão, o amor, o desejo que os apanhava desprevenidos, tal como aquele médico ficara ao ouvir a voz da sua paixão do outro lado do telefone. Completamente apanhado!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Saiu do quarto onde se isolara para fazer o telefonema que a deixara sem sono de domingo para segunda. A Dazinha tinha ficado de “orelhas em pé”, tal como o Filipe, tinham os dois um “faro” incrível quando o assunto eram os seus sentimentos. Precisava de a descansar de que estava tudo bem e a razão do seu nervosismo não era medo, mas entusiasmo por ouvir a voz dele… Parecera-lhe triste, abatido, mas mais logo telefonaria e descobriria o que se passava. Secretamente desejava que estivesse assim por sentir a sua falta, mas isso já seria pedir muito, concluiu pouco segura de si mesma. Porque haveria ele de se afetar com saudades, se apenas estava longe há um dia? Sacudiu os seus raciocínios da mente e entrou na cozinha, abrindo um sorriso franco ao ver o seu bolo preferido a sair do forno. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah! Que bom… Já te disse que te adoro?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tem aí o registo da chamada de há pouco? – perguntou a Diana, que se sobressaltou com medo de ser repreendida por ter passado um telefonema a meio de uma consulta e ter dado o número pessoal do patrão à mulher persistente que lhe deu a volta demasiado rápido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, consigo ver isso, só um momento. – apressou-se a procurar o número nos registos do telefone moderno, encontrando-o prontamente. Ainda se recordava do indicativo diferente do de Coimbra. Pegou num post-it, escreveu rapidamente e entregou-lho sorrindo satisfeita. – Aí está!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigado, até amanhã. – João deu meia volta e saiu, colocando o papel no bolso. Sentia-se pior que um garoto prestes a entrar num parque temático, uma excitação neurótica invadira-o desde que Marta o surpreendera com o telefonema depois de almoço. Esforçara-se por se concentrar, mas na sua cabeça apenas imaginava Marta a consolar Filipe, tristonho pela sua ausência, e isso punha-o estupidamente feliz. Não via a hora de chegar a casa, tomar banho e esperar pelo telefonema dela. E enquanto ela não ligasse, iria descobrir mais algumas coisas sobre o seu passado, ou tentar, pois apenas tinha um número de telefone e poderia ser inútil na sua pesquisa. Algo lhe dizia que Marta não era bem a pessoa que ele imaginara quando a conheceu. Independentemente do que ela fosse, o que ele queria mesmo era descobrir que ela o tinha enganado, que lhe mentira, e tivesse um motivo digno para o ter feito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entrou no carro e conduziu o mais rapidamente possível até casa, queria privacidade para aquele telefonema, para a ouvir, sem interrupções nem distrações.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Filipe! – gritou Isabel, já a perder a paciência com o comportamento irracional do cão. Desde que se embrenharam no jardim traseiro da casa que o animal mudara completamente a atitude. Passara de brincalhão a nervoso, correndo contra ela, colocando-lhe as patas e cima, descontrolado e agressivo. – Estás a magoar-me! Para! Eu desisto, vamos para casa. – deu meia volta e caminhava frustrada, quando um arrepio de frio a atingiu no pescoço, fazendo-a voltar-se de repente, gelada de medo. Algo se passava de facto, o cão tinha motivos para estar nervoso, alguém os estava a vigiar, tinha quase a certeza, pensava, acelerando o passo em direção à casa. Filipe corria a seu lado, também ele sem desviar a atenção das sombras fantasmagóricas que os ladeavam como um casulo sufocante. Isabel alcançava as imediações da casa quando deixou de ver Filipe a seu lado, aumentando-lhe os nervos. Olhou para trás e viu o cão parado, a fitar algum perigo, eriçado, pronto a atacar. Uma recordação antiga de Tiago a espancar o cão deixou-a em pânico, obrigando-a a voltar atrás para o trazer consigo para casa. – Filipe! Anda cá! – gritou, não sendo obedecida. Caminhou mais um pouco, sempre chamando o animal, que continuava fixado, sem reagir. – Filipe, por favor, volta… - gemeu, a sentir as pernas bambas, prestes a desmaiar. Como que sentindo o seu medo, Filipe correu na sua direção, espevitando o seu instinto de sobrevivência e dando-lhe ânimo para tornar a dirigir-se para a casa. Pararam a fuga histérica assim que atingiram um local seguro, respirando com esforço do sprint. Isabel confortou o cão, agarrando-o maternalmente, e puxando-o pela coleira para dentro da habitação, evitando que ele lhe fugisse de novo. Dirigiu-se ao quarto o mais rapidamente possível, a fim de evitar encontrar-se com os pais, ou pior, com a sua Dazinha, que iria perceber a sua aflição. Sentou-se na cama e esticou-se para fechar a grande cortina, selando assim qualquer imagem do jardim que a pudesse enervar. Pegou no telefone e marcou o número de telemóvel de João. Precisava de o ouvir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou? – respondeu-lhe uma voz ansiosa ao fim do primeiro toque.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá… - o som familiar do outro lado da linha soltou-lhe a emoção do episódio enervante de minutos antes, e as lágrimas correram-lhe sem lhe obedecer.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá. – disse, confuso com o silêncio que Marta mantinha. – Marta? Estou?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, desculpa, deixei de te ouvir. – mentiu, respirando fundo e disfarçando a voz embargada do choro. Limpou a cara com a manga da camisola e recompôs-se. – Já estás em casa?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, já cheguei há algum tempo. E por aí? Tudo bem?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Estive agora a passear com o Filipe. Fomos apanhar ar. Hoje esteve imenso calor durante o dia, só agora ficou possível andar lá fora.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E ele? Já está mais conformado com a nossa separação forçada? – brincou, esticando-se na cama, satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que sim. Queres falar com ele? – perguntou a recuperar a disposição e esticando-se na cama, a sorrir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, chama-o lá.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Filipe, anda cá. Vem falar aqui com o teu amigo. – colocou o auscultador perto do focinho do cão, que fungou, cheirando o aparelho curioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Filipe! Quando voltas? – disse com a voz colocada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não vais acreditar, ele deu uma pirueta! – comentou animada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu tenho esse efeito nos cães… - gozou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estou a ver que sim, que és um autêntico encantador de cães.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- De cães e não só. Só tu é que pareces imune. – confessou, sentindo um aperto no estômago.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E o César e a Elisabete? Tens falado com eles? – desconversou, a sentir-se corar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Amanhã talvez jante com eles. – respondeu meio desiludido com a atitude dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Conta-me como foi o teu dia. – pediu-lhe, tentando remediar a conversa, alongando o telefonema o mais que conseguisse.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O normal, pessoas desesperadas, tristes, deprimidas, uma alegria. – ironizou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é fácil o que fazes, pois não? – perguntou carinhosamente. Se pudesse abraçá-lo-ia naquele momento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, mas há certamente coisas piores para ganhar a vida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tais como?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Fazer exames retais a vacas, ser pendura do carro do lixo, ser calceteiro… - brincou, pegando no livro do Kamasutra e ganhando coragem para a testar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És muito cómico, sabias? – sorriu de orelha a orelha, imaginando a cara dele a enumerar aquelas tarefas ingratas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta, gostava de te perguntar uma coisa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, o que foi? – engoliu em seco, reagindo ao tom mais sério com que João lhe falava.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estava aqui a ler o teu livro enquanto esperava que me ligasses, - confessou sem se aperceber – e queria saber se alguma vez praticaste alguma destas posições.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como? – lançou surpreendida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, queria saber se já fizeste isto. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porquê? – perguntou receosa, temendo que aquilo fosse uma ratoeira para que ela se explicasse. Ele já devia andar desconfiado de que ela não fosse homossexual.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Porque aqui só há instruções para um casal hétero, tenho tentado perceber como podes ter utilizado isto com outra mulher, e acho que não dá. – explicou, percorrendo as páginas devagar, analisando por alto uma e outra ilustração.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois. – limitou-se a dizer, engolindo em seco.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois o quê? – sorriu satisfeito com o silêncio dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nunca o fiz. – mentiu, omitindo qualquer informação adicional – Tu és muito curioso. – recriminou-o – E isso não são perguntas que se façam a uma senhora!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpe, minha senhora. – poisou o livro e recostou-se novamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está desculpado. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso fazer outra pergunta, minha senhora? – questionou-a a sentir-se com sorte.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se não for de cariz privado, sim.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Gostava de um dia destes ir passear ao Gêres?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ao Gerês? – excitou-se com a ideia – Com quem, pode-se saber? – perguntou dissimulada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com o Filipe e um motorista.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, adoraria ser transportada até lá, se fosse num carrão desportivo azul metálico, então… seria perfeito!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Óptimo! – disse feliz com a ideia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Agora sou eu a fazer as perguntas. – avisou-o, mudando de posição na cama.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com certeza. Pergunte o que quiser.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Como se chamava a tua mulher?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa? – tossiu com a coincidência de ter o mesmo nome da ex-mulher dele, engasgando-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isabel. Porquê?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nada. É um nome bonito. – disse honestamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois é, mas atualmente gosto mais de outro. – confessou, sentindo as pernas dormentes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E há quanto tempo ela morreu? – questionou-o, mudando estrategicamente o rumo da conversa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Há quatro anos. De cancro. Foi terrível. Não tive mais ninguém (permanente) desde então. – enumerou, para evitar mais interrogatórios sobre o tema.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, não te queria aborrecer.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me estás a aborrecer, só não quero gastar o tempo contigo a falar disso. Quando voltas?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei. Tenho uns assuntos chatos para resolver por aqui, mas vou tentar ir sexta. Não prometo. – explicou, sentindo-se infeliz com a ideia de não o ver durante tantos dias.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quando chegares tenho uma surpresa para ti. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Surpresa? Não me digas que mete mais canoas… - gemeu, temendo mais provações na água em embarcações minúsculas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nada disso. Vais gostar! – exclamou misterioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que é? Diz-me! – suplicou, detestava suspense.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Quando voltares vês. - e esperava que fosse o mais rápido possível.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Um bater na porta do quarto de Isabel interrompeu-os subitamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espera só um momento. Estão a chamar-me, não desligues. – poisou o telefone e dirigiu-se à porta aborrecida. – Sim?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Menina, desculpe, mas a sua mãezinha precisa de fazer um telefonema e a linha está ocupada há muito tempo. É melhor desligar, antes que ela aqui venha. – informou-a Adelaide, preocupada com a possível intromissão na privacidade da sua menina.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, obrigada Dazinha. Vou já desligar. – voltou a correr para a cama, retomando a chamada. – João? Desculpa, mas vou ter de desligar. Esta linha é fixa e há mais gente na casa a querer telefonar… - explicou, sentindo-se uma adolescente a quem tinham chamado a atenção por estar há muito tempo em telefonemas com namorados.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Temos de te arranjar um telemóvel! – disse autoritariamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Temos?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tens. Não cabe na cabeça de ninguém no século XXI não teres telefone móvel. Ainda para mais, andas de carro sozinha, se te acontece alguma coisa, como fazes?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei. Não gosto desses aparelhómetros. – concluiu, a pensar que naquele momento adoraria ter um, só para poder estar toda a noite à conversa com ele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, depois falamos melhor sobre isso. Amanhã ligas, ou queres que eu ligue? – perguntou a sentir-se deprimido com o fim do telefonema.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu ligo, não tens o meu número…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta, os telemóveis mostram o número que nos está a telefonar… - explicou com vontade de rir da ignorância informática dela. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto, está bem. A partir de que horas posso ligar?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Das sete.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos ver quem liga primeiro então. – desafiou-o, sorrindo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Adeus, até amanhã. Dá um beijinho meu ao Filipe e outro à dona.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok… até amanhã… - derreteu-se na almofada, a imaginá-lo a beijá-la.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vá, desliga.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desliga tu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Menina! A mãezinha vem aí! – avisou Adelaide, entrando no quarto e interrompendo a conversa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho de ir. Beijos. – desligou o telefone, angustiada com aquela separação tão repentina. Seria doloroso esperar até o ouvir de novo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João ficou a olhar demoradamente para o telefone. Aquilo tinha sido conversa de namorados, como dois miúdos, patéticos e desejosos de se ouvirem. Uma pequena esperança desafiou-o a continuar a pesquisa que Marta tinha interrompido ao telefonar. Pegou no portátil e abriu o Google. Se havia alguma coisa sobre uma Marta de Castelo Branco, ali encontraria, de certeza.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-48472245212944798652020-07-27T01:37:00.001-07:002020-07-27T01:37:31.938-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 7<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSCJ8j1eSC_iQH3E8rZTntaytD9TvS-wKmCRF5z2SdLcuLE9DC3HaCl75GQoYXRTfB-VwtRna_2XaKEBeK6ICseuJrHzxZ3fs5OWE4l5hDi7klAhqCLW1CshtIFcPy6ZojMUol9wE1-9Q/s1600/castelo+branco.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="1600" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSCJ8j1eSC_iQH3E8rZTntaytD9TvS-wKmCRF5z2SdLcuLE9DC3HaCl75GQoYXRTfB-VwtRna_2XaKEBeK6ICseuJrHzxZ3fs5OWE4l5hDi7klAhqCLW1CshtIFcPy6ZojMUol9wE1-9Q/s320/castelo+branco.jpg" width="320" /></a></span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Quando é que aprendeste yoga? – perguntou João, enquanto esperavam pelo empregado de mesa com a ementa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Há cinco anos decidi experimentar, andava nervosa e precisava de encontrar um método natural para lidar com os problemas. – confessou, sentando-se à chinês – Na primeira aula percebi que era aquilo que queria fazer, ser professora de yoga. Estudei, fui tirar a formação, e pronto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas conseguiste logo fazer aquelas posições todas? Sem nunca ter experimentado antes? – admirava-se da capacidade física dela. Tinha-a observado na última aula, parecia uma mulher de borracha, mas ao mesmo tempo, bastante forte. Não era possível que se ficasse assim de um momento para o outro, pensava desconfiado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu sempre fiz desporto, cuidei do corpo. Em pequena andei na ginástica acrobática, ainda ganhei umas medalhas, e o yoga precisa de muita elasticidade, principalmente da coluna. – explicou, sorrindo para o empregado que chegara naquele momento cerimonioso com as cartas da ementa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João ignorou o funcionário, como habitualmente fazia, mais por hábito, que snobismo, continuando concentrado nela e na conversa dos dois, ligeiramente aborrecido pela interrupção do homem.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada. – disse Marta educadamente, fazendo uma pausa na atenção a João, voltando-se para o empregado. – És sempre assim tão rude com as pessoas? – perguntou-lhe de chofre assim que o homem se retirou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Rude? Como assim? – reagiu espantado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu diria mesmo mal educado. – recriminou-o, virando-se para a grande ementa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas eu tratei mal alguém?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- João, ignorar alguém que te vem servir é extremamente indelicado. Se fosse eu a empregada, cuspia-te na comida. – disse, sorrindo para os nomes das comidas chiques.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não me apercebi. – comentou com honestidade – Talvez faça isso sem notar. – dedicou um pouco de tempo a matutar naquele advertimento, enquanto decidia o que comer. Isabel também o criticava pela mesma razão, mas estranhamente João nunca concordara com as suas queixas. – Lavagante, é isso que me esta a apetecer…e… sangria de champanhe. Aqui é deliciosa, tens de provar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Parece-me bem, a sangria, claro. Para mim pode ser a salada de verão. – olhou-o satisfeita, pousando a ementa. – Chama o empregado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João obedeceu e sentiu-se ligeiramente encavacado ao perceber que o funcionário trazia uma atitude de descontentamento no seu semblante. Ela tinha razão, tinha sido malcriado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já escolhemos. – tentou olhá-lo o mais diretamente possível, sorrindo de forma simpática, para tentar remediar a má impressão que tinha dado. Não queria sequer imaginar que o seu lavagante pudesse trazer uma cuspidela de rancor por cima. Fez o pedido e agradeceu, submissamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Assim está melhor. – comentou Marta orgulhosa da sua atitude mais cívica. – Vês?, não custa nada sermos simpáticos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu não quero é que ele me cuspa o prato. – explicou João genuinamente preocupado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta soltou uma gargalhada, ele parecia uma autêntica criança em certas ocasiões. Era tão enternecedor observar como a sua mente funcionava, tão autêntico e básico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem o teu prato, nem a nossa sangria, porque eu não lhe fiz mal nenhum e não tenho de pagar por isso. – exclamou, levantando-se e pedindo licença para ir ao wc.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João ficou a observá-la, aos seus modos educados e cheios de classe, naquele ambiente, parecia-lhe diferente, num meio mais snob. Escolhera aquela cervejaria porque a frequentava com regularidade, e porque se lembrou que poderiam levar Filipe com eles, se comessem na esplanada. Uma mulher humilde, e João já não tinha bem a certeza de que ela fosse de origens pobres, ficaria intimidada ou maravilhada com os nomes pomposos da ementa, os salamaleques dos empregados e os diferentes talheres. Mas Marta encaixava em todos os cenários, desde o tanque da roupa onde lavava os lençóis, ao clima betinho que ali se respirava. Apenas a sua aparência a fazia destoar, mas nem isso a incomodava ou inibia. Entrara naturalmente, sentara-se à chinês e fora mais Senhora que muitas tipas, filhas de muito boa gente fina da cidade, com quem já ali partilhara umas Sapateiras. Era um absoluto quebra-cabeças aquela mulher. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Perdia-se nos seus pensamentos, quando Salvador e o segurança do “Pírulas” que entravam na cervejaria lhe acenaram entusiasmados assim que o viram e se dirigiram à sua mesa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span> - Então pá? Por aqui? – Salvador inclinou-se para o cumprimentar, quando Filipe se endireitou e fez cara de poucos amigos. – O que é isto? Mas tu tens um cão? – exclamou assustado com o semblante do animal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é meu, é de uma amiga. – explicou João, cumprimentando-os sem grande entusiasmo. Conhecia bem o amigo, e assim que ele visse Marta não iria deixá-los a sós. Queria estar com ela sem terceiros, tentar saber mais do seu passado, de onde vinha, etc. Salvador seria uma distração e nunca se calava quando uma mulher bonita estava presente, nem mesmo se esta fosse lésbica. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Amiga, heim? Deve ser coisa boa, que tu odeias cachorros. – gozou Salvador, olhando em volta à espera de conseguir localizar a mulher que acompanhava João.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não comeces, é apenas amiga. E o cão é porreiro, chama-se Filipe. Dá-lhe um “passou bem”, não sejas mal educado. – disse divertido e curioso por saber se o cão o deixaria aproximar-se o suficiente para lhe fazer uma festa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta aproximou-se nesse mesmo instante, com a sua calma natural e sentou-se, sorrindo aos dois homens estranhos que conversavam com João.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá! – cumprimentou-a Salvador com um sorriso de orelha a orelha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá. – respondeu divertida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta, este é o Salvador, um amigo meu de curso, mas que não trabalha na área, tem um bar na Praça. – explicou, ligeiramente incomodado com a abordagem do amigo à então apenas sua conhecida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, o “Pírulas”? – exclamou Marta esticando a mão para o cumprimentar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim!, esse mesmo! Já lá foste? – perguntou entusiasmado com a fama do seu estabelecimento e o ar saudável da rapariga.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já. Mas não gostei muito. – disse com franqueza.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João desatou a rir, satisfeito com o súbito ar de desânimo do amigo, ele ainda não conhecia o estilo pragmático e sincero de Marta, que desconcertava qualquer um.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Este é o Janota, o segurança do bar, nosso amigo há vários anos. – apresentou João, mais animado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá Janota! Muito prazer. De ti lembro-me bem, obrigada pela ajuda no outro dia, o homem estava realmente a pedi-las. – disse, apertando-lhe a mão sorridente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Prazer. E não é preciso agradecer, não gosto de machistas. – explicou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sentem-se connosco. - sugeriu Marta, desejosa de alguma distração que a ajudasse a engolir o almoço. João estava demasiado bonito, descontraído e sexy. Era demais para a sua sanidade mental.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eles têm mais que fazer… - e ainda não tinha acabado a frase, Salvador já saltara para a cadeira ao lado de Marta, colocando-lhe o braço por cima do encosto, e bombardeando-a com perguntas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com licença. – Janota puxou da cadeira vazia perto de João, sentando-se com dificuldade, e bufando de esforço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que tens? – perguntou Marta, curiosa com aquele esgar estranho que denunciava que o grande segurança tinha uma dor.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nada, - desconversou, envergonhado com a situação – apenas uma dorzita nas costas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Espera, eu ajudo-te. - Marta levantou-se e colocou-se por detrás do homem, para espanto dos três, que a olhavam sem compreender o que pretendia fazer. Colocou uma mão no fundo do pescoço e começou a percorrer toda a zona cervical pressionando levemente, à procura do problema. Com a outra mão posicionou o queixo do segurança ligeiramente de lado, e ao descer a mão pela coluna encontrou a zona traumatizada, sorrindo. – Descontrai, por favor. – ordenou, rodando nesse mesmo instante a cabeça amolecida do paciente, ao mesmo tempo que pressionava sabiamente a vértebra correta. Um som seco e forte assustou a plateia masculina, que se retesou admirada, ao mesmo tempo que o segurança suspirou aliviado. – Pronto. Já está. – rematou, voltando para a sua cadeira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigado… como fizeste isso? – perguntou-lhe Janota maravilhado com o milagre que se dera nas suas costas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Técnicas… - piscou-lhe o olho divertida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, a sério, como é que sabes fazer isto? – perguntou João.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho o curso de Osteopata, e algumas aulas de Quiroprática. Estas dores são facílimas de tratar. – respondeu-lhe com naturalidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não fazia ideia que tinhas esses cursos. Pensei que só fosses professora de yoga. – disse, ainda espantado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Há muita coisa que não sabes sobre mim. – retorquiu Marta, lançando uma pequena farpa de curiosidade na direção dele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, então tu és a professora de yoga? – exclamou Salvador.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, pelos vistos sou a professora de yoga. – olhou João, que corara ligeiramente com a falta de tato do amigo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Marta tem me dado aulas de yoga durante a semana. – balbuciou encavacado, sem saber como explicar o facto de que já havia falado nela a terceiros. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E hoje, como é sábado, não houve aula! – provocou Salvador, sorrindo – Vieram almoçar fora. – rematou satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És da zona da Beira Baixa? – perguntou Janota a Marta, curioso com o leve sotaque que detetara na voz dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim… Porquê? – respondeu Marta um pouco perturbada com aquela descoberta tão inesperada. Normalmente esforçava-se por eliminar os hábitos e as características que a pudessem denunciar relativamente às suas origens, mas nem sempre conseguia disfarçar o modo de falar albicastrense.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tinha família em Castelo Branco, fizeste-me lembrar a minha avó… “não sâbes sôbre mím” – explicou Janota, imitando-a.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mais uma novidade. – disse João meio emburrado com o facto de todos os presentes estarem a partilhar com ele de detalhes privados sobre Marta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sejas ciumento João! – gracejou Salvador, que o conhecia bem demais para não notar que ele gostava da professora, e não como aluno dedicado. – E parem de chatear a rapariga com perguntas. Diz-me lá, na sexta feira, como é? Queres que reserve o bar só para ti?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - respondeu sem jeito. – Já te tinha dito que não queria festas. – resmungou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não é todos os dias que um gajo faz 39 anos! – comentou Salvador inflamado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Fazes anos na sexta? – perguntou Marta a sentir as pernas bambas. Não podia ser… pensou nervosa. Um leonino é que não… seria demasiado perfeito para ser verdade. Já compreendia a facilidade com que se tinham relacionado. Uma alma gémea, ali, à mão de semear, bonito para piorar as coisas, e ela “lésbica” e ex-mulher de um psicopata.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, faço. Para mal dos meus pecados. E pro ano são 40… - rosnou, bebendo um grande gole de sangria e distraindo-se com Filipe, que lhe colocara o focinho na perna, em solidariedade masculina.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então está combinado! Sexta-feira vamos todos festejar o último ano de validade do Dr. João Marques! – exclamou Salvador, levantando o copo a pedir um brinde.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Cada um se libertava a pouco e pouco, ligeiramente embriagados, contando episódios cómicos e situações inusitadas, rindo com vontade, e Marta descontraiu, bebendo um pouco mais que aquilo a que estava habituada, encorajada por Salvador que lhe enchia o copo regularmente, sem cerimónias. Tinha as pernas dormentes, da posição em que estava há tantas horas, e sem pedir licença colocou-as esticadas no colo de João, que se reposicionou à mesa para as poder acomodar confortavelmente, como se fossem um casal e aquele fosse um hábito íntimo já usual entre os dois. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Salvador notou as manobras encobertas pela toalha da mesa e esforçou-se por não comentar, estava a ficar preocupado com aquele relacionamento tão atípico entre o amigo, visivelmente apaixonado, e a professora lésbica, que o olhava languidamente, sempre que este falava. Estava treinado para identificar todo o tipo de relacionamentos humanos. Sobrevivia no negócio da noite com esse dom, era vital perceber quando alguém, apenas com a linguagem corporal, poderia ser um problema, e sabia que o Janota também notara, trocando olhares consigo. Se aquilo era apenas uma amizade, ele era o Papa!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João sentia-se totalmente fascinado com o sentido de humor de Marta, que gargalhava a todas as parvoíces de Salvador, mestre em disparates, mas que normalmente as mulheres não entendiam nem apreciavam. Mas ela encaixava naquele ambiente pseudo-masculino como se toda a vida tivessem partilhado da companhia uns dos outros. Talvez o facto de ser homossexual a tornasse mais masculina nos relacionamentos, matutava, com um leve ardor no estômago, ao lembrar-se de que ela não era sua quase conquista, mas uma amiga, inatingível. A pele suave das suas pernas enlouquecia-o, à medida que ia explorando com a mão o seu tornozelo, delicado e macio. Como poderia aquilo ser possível? A mulher quase perfeita, do pouco que já conhecera, inteligente, divertida, bonita, e com pele de bebé… pensava, massajando-a com as duas mãos, ritmadamente. Seria possível que ela um dia acordasse e já não gostasse de mulheres? Perguntava-se, aparvalhado com o álcool que já bebera e lhe toldava a razão. Queria percorrer-lhe as pernas até ao limite, sentir aquela suavidade em todos os locais diferentes da sua anatomia, não ter de se ficar pela cova luxuriante da parte de trás do seu joelho, até onde conseguia chegar sem parecer mal no meio de mais pessoas. Olhou-a de repente, Marta ruborescia, com um brilho no olhar que o fez perder a noção, dando-lhe coragem para alcançar mais terreno na pele suave das pernas dela, que reagiu subitamente, retirando-as, e desviando os olhos dos dele. As mãos de João penderam frustradas por debaixo da mesa, e Filipe aproveitou para solicitar alguns carinhos, ciumento com as “festas” que João dera a Marta, devolvendo-lhe um pouco da boa disposição de momentos antes. Marta evitou olhá-lo o resto da refeição, concentrando-se nos outros dois companheiros de almoço, esforçando-se por disfarçar a sua excitação e desejo. Se ali estivessem os dois sozinhos teria sido uma calamidade!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Despediram-se já a tarde ia a meio, depois do efeito do álcool estabilizar para conseguirem conduzir sem problemas, e Marta ofereceu-se para um dia ajudar Janota a resolver o problema de costas que o massacrava há alguns meses, deixando João incomodado e mordido de ciúmes. Entraram os dois no jipe, seguidos por Filipe, que se acomodou no banco traseiro, estrategicamente no meio, para os observar com curiosidade. Olhava um e outro alternadamente, à espera, de orelhas em pé.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Gostei muito dos teus amigos. – iniciou Marta, tentando quebrar o gelo que se sentia dentro do pequeno veículo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Hum… - João olhava a janela amuado, sentia-se péssimo, irritado, excitado, ciumento, e de mãos e pés atados, sem possibilidade de resolver o seu problema. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Desta semana a oito vou combinar com o Janota e dar-lhe umas massagens… e já agora, porque é que lhe chamam esse nome tão ridículo? Não fazes ideia de como ele tem aquelas vértebras… Tudo torto. – continuou descontraída e ocupada com a condução.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Foi o Salvador que lhe deu a alcunha, já não sei porquê. – respondeu secamente, esforçando-se por não a olhar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- O que tens? – questionou-o admirada com tanto silêncio.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Nada. – disse secamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ok. – decidiu calar-se e conduzir até casa. Sabia perfeitamente porque ele estava amuado. Aquela situação começava a tornar-se impraticável e insustentável. Talvez visitasse os pais mais cedo do que tinha previsto. Seria bom para os dois uns dias de afastamento, pois mesmo que doloroso, que tinha a certeza que seria, era necessário. – Amanhã vou visitar os meus pais a Castelo Branco, fico por lá uns dias, ainda não sei se volto antes do fim de semana. – informou-o tentando não transparecer na voz nenhuma altivez ou desdém, o que o deixaria irritado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Porquê? – perguntou chocado com aquela ideia de estar sem a ver uma semana inteira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Porque tenho de os ver, e a viagem é longa e cansativa, não gosto de ir e vir de repente. – esclareceu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Mas… não estás cá nem na sexta feira? – perguntou quase em súplica, sentindo-se agoniado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Bem… - recordou-se do aniversário dele – Vou tentar, mas não prometo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ok, tu é que sabes. – o jipe parou naquele momento junto do carro dele, estacionado num local fresco e seguro, e João saiu com vontade de bater a porta com força. Respirou fundo, deu meia volta ao jipe e colocou-se inclinado na janela do condutor, sorrindo-lhe com esforço. – Desculpa, às vezes sou meio estúpido. Quando voltares diz qualquer coisa, faz boa viagem. - beijou-lhe a cara, demoradamente, deixando-a derretida no banco, sem forças para reagir e disse adeus ao cão, acenando-lhe. – Adeus Filipe, até pra semana. Toma bem conta dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">O cão ficou em sonoros lamentos a olhá-lo a dirigir-se para o carrão desportivo, mexendo-se freneticamente no banco. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Para com isso! – ralhou Marta, com os olhos rasos de água. – Machos estúpidos, devia ter ficado com uma cadela! Ou se calhar era pior, também se apaixonava por ele, e podia facilmente lambê-lo quando quisesse, e depois tinha de a matar! – berrou dizendo coisas sem nexo, a expulsar a tristeza e a raiva de dentro de si, enquanto fazia de carro o restante caminho até casa, bem devagar. Mas porque tinha a vida dela de ser tão cínica e maldosa, lamentava-se a sentir-se miserável e cheia de autocomiseração. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João saiu do duche mais fresco e revigorado, mas ainda com aquelas cólicas incómodas na barriga, que não o deixavam em paz. Tinha prometido ao Salvador que o ia visitar à noite, e por muito que não lhe apetecesse, seria bem melhor que estar para ali sozinho a pensar nela. Vestiu-se, sempre revivendo a imagem dela na canoa, a espalhar suavemente água pelo corpo, cada vez mais intensa nos movimentos, e a olhá-lo provocadoramente. Quando calçou os sapatos, Marta já vinha de joelhos equilibrada na canoa na sua direção, agarrando-se-lhe ao pescoço, beijando-o.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Porra! – bufou, levantando-se da cama enfurecido com a sua mente indisciplinada. – Mas que merda! – agarrou nas chaves e carteira com um gesto brusco e saiu batendo a porta com estrondo. A sua vontade era ir direito à casa dela e tirar a limpo a história de que ela não gostava de homens, pensava enraivecido, carregando nos botões do elevador com força. Tinha quase a certeza de que ela tinha ficado excitada quando lhe massajou as pernas e os pés debaixo da mesa ao almoço. Já não era nenhum garoto sem experiência, sabia que ela tinha gostado, e aquele brilho no olhar… - Podes parar, pelo amor de Deus? – pediu a si mesmo em voz alta, engolindo em seco com a lembrança do toque suave da sua pele. Entrou no carro e carregou no acelerador obrigando-se a manter a rota em direção ao bar. Tinha de se acalmar, recuperar o bom senso, aquela energia sexual frustrada era muito má conselheira, pensou, abrindo o vidro e respirando o ar fresco da rua. E era só isso que o punha louco, falta de sexo, explicava a si mesmo. Nada mais.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><i>“-Volta aqui, não torno a pedir… - Tiago esticou a mão, num raro gesto de carinho, pedindo-lhe que voltasse para dentro do carro. Isabel engoliu em seco e obedeceu, não queria chateá-lo, faltava muito pouco para se livrar daquele pesadelo. Só mais um mês… encorajava-se, pedindo aos Céus que ele não lhe batesse, não ali, à luz do dia. Filipe seguiu-a, entrando no carro com um leve rosnar. – O que é que esse cão quer? – berrou Tiago, canalizando a sua fúria para o pequeno animal que gania, tentando esconder-se debaixo dos bancos do carro. - Para, por favor, ele ainda é bebé! Bate-me a mim! – implorou, chorando e agarrando-lhe nos braços que se mexiam freneticamente. Tiago endireitou-se no banco e retomou a respiração calma, ignorando-a e ligando o motor do carro, como se nada se tivesse passado. Filipe não emitiu mais nenhum som, mantendo-se em pânico escondido, e Isabel fazia força para não chorar, o que o irritaria ainda mais. Nenhum dos dois falou até casa, Isabel pegou no pequeno animal e entrou no solar, sorrindo para a Dona Adelaide, sua segunda mãe, que a conhecia melhor que ninguém e que não aprovava aquele casamento. Entrou no quarto, evitando conversas e Tiago seguiu-a, trancando a porta e colocando a chave no bolso, devagar e ameaçadoramente. – O que foi, Tiago? – gemeu, a tremer com o silêncio dele. – Não me pediste que te batesse?”</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Acordou do transe quando Filipe lhe começou a lamber a cara, limpando-lhe as lágrimas que caíam sem parar. Marta isolara-se na sala de prática de yoga, onde normalmente conseguia recuperar a estabilidade emocional e evitar preocupações, mas o facto de estar a envolver-se com outra pessoa exumava velhos cadáveres que tinham sido enterrados com dificuldade. Lembranças dolorosas sobre casamento, relacionamento amoroso, sufocavam-na, destabilizando-lhe as emoções que, desde que conhecera João, andavam em remoinho dentro dela. Abraçou o cão, companheiro do seu martírio, e chorou mais um pouco. Precisava de se afastar de tudo aquilo, disse a si mesma decidida. Levantou-se, fez a mala, trancou a casa e saiu. Quanto mais depressa, melhor.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Olha, olha, o Pinga-Amor! – gozou Salvador, cumprimentando João que se sentou amuado ao balcão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Um whisky. – disse secamente, olhando-o com cara de poucos amigos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Então ouve lá, não trouxeste a professora para beber um copo?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não. Ela foi a Castelo Branco. – resmungou, já sem paciência para o aturar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Que pena… Mesmo lésbica, é uma alegria para as vistas! – brincou, à espera da reação do amigo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Olá! Era mesmo o gajo que eu precisava de encontrar! – disse entusiasmado a um amigo que acabava de se sentar ao seu lado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Então João, tudo bem? Olá Salvador, o mesmo que aqui o Dr. – disse, divertido com a súbita rima.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ainda trabalhas na Câmara Municipal?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Claro! Precisas de alguma coisa? – respondeu prontamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, cobrar aquele favorzito. – explicou, sorrindo-lhe satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Fala baixo. – advertiu-o, olhando desconfortável ao seu redor, com medo que João falasse algo que o prejudicasse. – O que é que queres?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, João, o que é que tu queres dos serviços municipais? – perguntou Salvador, a rejubilar com aquilo, e posicionando-se mais de perto para descobrir o que o amigo andava a magicar, mas já com uma leve ideia do que seria. Marta explicara-lhes ao almoço os problemas que tinha com a Câmara há vários anos, e um mais um eram dois.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João olhou-o com censura, mas ignorou-o propositadamente, voltando-se para o amigo do lado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Tens de me resolver um problema de saneamento. Aponta aí a morada, e nada de desculpas de político. – disse prontamente, indicando a morada e o local exacto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não sei se consigo isto para já… - reagiu sem jeito, pensando na trabalheira que iria ter para conseguir corresponder ao pedido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Esta semana. A proprietária vai estar fora esta semana, e é bom que quando ela chegue possa abrir a torneira da água em usar a água da rede! – ordenou, dando-lhe uma palmada de solidariedade nas costas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Fogo João, só me lixas… - resmungou, levantando-se e afastando-se com o whisky na mão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- O Amor é louco, não façam pouco, dessa loucura! – cantarolou Salvador, fugindo do braço de João, que o tentava agarrar para o calar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Eu não gosto dela! Para com isso! Só estou a tentar ajudar. – explicou-se, aborrecido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Então se não gostas, prova-o. Chegou agora a tua outra amiga do peito, a louraça. – indicou-lhe com o queixo. – Quero ver se também lhe vais pedir algum favor para a Marta…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Vai-te f… - não terminou a palavra, sendo abraçado por Nélia, sem cerimónias.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Olá… - ronronou, beijando-o nas duas faces.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Olá, tudo bem? Vamos? – agarrou-a por um braço e indicou-lhe o caminho, dirigindo-a para fora do bar, enquanto Salvador abanava a cabeça divertido com o temperamento explosivo de João. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Mas que pressa! Vamos aonde? – perguntou entusiasmada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">“Aonde”?, pensou João entristecido com a forma parola com que a Nélia falava sem disfarçar. Se havia coisa que lhe tirava a tesão eram gajas brejeiras, lamentou-se. Mas sentia-se carregado de fúria, frustração e energia por gastar, e ela gostava do sexo ranhoso que ele conseguia oferecer-lhe. Melhor que aquilo, impossível.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
<br />Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-47836214235980356102020-07-24T01:48:00.000-07:002020-07-24T01:48:07.038-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 6<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwnUikGQXzz3ZtUzd2oJZsiHXaGWdpva1BG6qHIzQkmNER0TT-7L24OFyTFiRr47SNt-9und3bZIQaawpIlYaOlYf0wmbgIqNUvlpp11dtaeeHhPbM7r8XC0cUdXdBsxW2NCJbmJPojgM/s1600/1-chakra11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="462" data-original-width="682" height="216" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwnUikGQXzz3ZtUzd2oJZsiHXaGWdpva1BG6qHIzQkmNER0TT-7L24OFyTFiRr47SNt-9und3bZIQaawpIlYaOlYf0wmbgIqNUvlpp11dtaeeHhPbM7r8XC0cUdXdBsxW2NCJbmJPojgM/s320/1-chakra11.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">As mãos suavam-lhe, sentia-se dormente e com a respiração alterada. Que porcaria, lamentava-se, ciente de que não conseguiria resistir se João lhe tocasse. Ele tinha uma força energética muito grande, como um íman gigante, e para além disso era muito bonito. Que mulher podia negar um convite daqueles feito por um Super Íman Borracho? Uma lésbica, talvez!!, ralhou consigo mesma. Aí estava o problema. Cairia certamente nos braços dele em menos de cinco minutos, mas depois, quando recuperassem o tino, teria de se explicar. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Entra. – disse-lhe educadamente, quebrando o silêncio, acendendo as luzes e fechando a porta devagar depois de ela passar e evitar tocar-lhe, o que o intrigou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É muito grande. – comentou espantada, distanciando-se dele estrategicamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, às vezes também sinto isso. – confessou, tirando o casaco e observando as movimentações dela pela sala.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Era a tua mulher? – perguntou curiosa ao ver uma foto dele com uma mulher numa prateleira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, morreu de cancro. – disse com alguma mágoa – Já devia ter tirado daqui, é tétrico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não o faças. – aconselhou-o, tocando-lhe afetuosamente no braço que segurava a moldura. – Tudo faz parte de nós, a alegria, a tristeza, não podes querer apagar tudo o que viveste de bom com ela. Não é justo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João olhou-a incrédulo. Ela tinha razão, tirar dali Isabel seria negar que ela fora uma parte feliz da sua vida, em tempos. O seu toque sedoso não o deixou matutar muito mais naquilo, e João poisou a foto para a encarar. Sentia-a também nervosa e estranha, como se estivesse à espera que ele avançasse, mas não podia ser, dizia-lhe o seu lado racional. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta esquivou-se, afastando-se no momento certo e disfarçou o embaraço caminhando pela casa a dentro, sem pedir licença.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então e aqui para dentro? Há vestígios de vida humana ou a tua casa é toda fria e impessoal?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- À direita é o meu quarto. – explicou, alcançando-a e acendendo-lhe a luz, entrando logo a seguir. Estava especialmente bonita, com roupas confortáveis e a típica saia comprida, mas de um tecido que estranhamente se lhe moldava perfeitamente, mostrando as curvas bem feitas do seu corpo. – Aí é a casa de banho. – disse com a garganta seca. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Meu Deus… o que é isto? – exclamou horrorizada, ao ver a quantidade de remédios que João tinha dispostos no armário, num local que indicava que ele os utilizava com regularidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem… isso é o meu kit de sobrevivência. – confessou envergonhado. – Este é para dormir, este para acordar, este para ficar bem disposto, e este, bem, este é para SOS. – enumerou apontado cada um deles, sentindo-se mais leve com a confissão, e puxando-a para fora da casa de banho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que horror. Não podes estar a falar a sério. – disse-lhe preocupada com a ideia de que um homem tão novo, bonito, inteligente, precisasse daquilo tudo para se manter normal. – Comprimidos para SOS… que tipo de SOS?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não te preocupes. Faz parte de um tratamento já longo. Não me apetece falar sobre isso. – pediu-lhe com um sorriso triste.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu posso ajudar em alguma coisa? – perguntou-lhe genuinamente interessada na recuperação de fosse o que fosse que o punha doente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já estás a ajudar. – confessou, colocando-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que sei como evitares hoje o comprimido para dormir. – disse-lhe animada, empurrando-o para cima da cama. – Vou dar-te uma massagem especial. – explicou decidida, procurando na casa de banho por creme ou um óleo qualquer. – Despe-te. Quer dizer, tira tudo menos os boxers, claro. – corrigiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não queres antes treinar aqui umas técnicas do teu livro? – gracejou, tentando descontrair-se enquanto se despia desconfortável.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ainda não estás preparado para isso. – respondeu sorrindo-lhe e fazendo-lhe sinal para que se virasse de barriga para baixo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso quer dizer que há esperança? – perguntou espantado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cala-te e fecha os olhos. – colocou-se sentada por cima dele, admirando aquela visão que poderia ter, se quisesse, e aproveitando essa sensação de prazer mental, aquecendo as mãos uma na outra. – Agora relaxa e não penses em nada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, mas com uma mulher em cima de mim isso é um bocado difícil… - confessou sorrindo contra o colchão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Liberta-te e concentra-te só no meu toque. À medida que fores sentindo a massagem, vais visualizando essa zona do corpo a descontrair. – sussurrou-lhe quase encostada ao corpo dele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás a castigar-me porque eu não gosto do teu elefante manhoso? – gracejou a sentir-se a explodir, como iria adormecer com aquilo era um absoluto mistério.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta sorriu satisfeita e iniciou a massagem vigorosa e experiente, sentindo-o a ceder aos estímulos certos, ouvindo a sua respiração a acalmar-se ritmicamente. À medida que o amolecia sentia-se cada vez mais inquieta e nervosa. Era tão fácil estar com ele e parecia-lhe tão certo, que a assustava. João estava quase no ponto, admirava-o, tão obediente e manso, crente de que ela realmente o conseguiria ajudar. Sabia que aquela disposição era provocada pelo facto de ele achar que não a atraía, o que era a maior das mentiras. Foi deslizando até aos pés, saindo suavemente da posição inicial e preparando-se para o final daquela noite tão inusitada. Pegou-lhe no pé e premiu o “botão do sono”, colocando-o num estado de inconsciência bem parecido com aquele que se tinha a dormir. Tapou-o e beijou-lhe a cara com devoção. Marta 1, comprimidos 0!, pensou orgulhosa, saindo e desligando as luzes todas até à porta da rua.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Dormiu agitada com todas as sensações fortes da noite, levantando-se de madrugada para fazer uma infusão calmante e exercícios de meditação. Há muito tempo que não se sentia assim, excitada e ligeiramente apaixonada, o que a deixava inquieta e distraída, a mistura ideal para as insónias. Arrependia-se de não o ter agarrado, mas também tinha prometido a si mesma dar um tempo nas maluqueiras do Amor. Imaginara-o a parar o elevador e a beijá-la dramaticamente, vezes sem fio, como uma tortura mental e de certa maneira, física. Dava corda à sua inquietação hormonal, sabendo que dali podia nunca nascer nada, já que ela própria enterrara as primeiras hipóteses com a mentira parva de que era gay, pensava censurando-se. O fantasma de Tiago também lhe ensombrava os desejos, transformando-lhe os doces pensamentos em angustiosos receios. Temia acima de tudo que ele a descobrisse, e se isso acontecesse, cumprisse as ameaças que lhe fizera à saída do tribunal. Esse dia de libertação e alívio deveria ter colocado um ponto final no seu pesadelo, mas Tiago não tinha sido condenado por todas as agressões e torturas a que a tinha submetido durante os dois anos em que tinham sido casados. Escapara à lei pelas cínicas dificuldades em provar a intenção dos crimes, sorrira-lhe ao ouvir o veredicto, e Marta não teve outra alternativa senão fugir. Tinha-lhe sido proibida qualquer tentativa de aproximação, mas um ex-marido obsessivo não acataria qualquer ordem, nem mesmo da justiça. A ideia de que João pudesse ser envolvido no meio dos seus problemas acabou por lhe silenciar a mente sonhadora, colocando um ponto final nas suas fantasias noturnas, substituídas pela antiga angústia, que a sossegaram como um bálsamo. Acabou por ceder ao sono já quase de manhã, com Filipe rabugento a seus pés por também se sentir cansado das voltas e voltas que dera na cama, a procurar a posição de descanso vezes sem conta. Acordou demasiado cedo, poucas horas depois, com o cão a pisá-la sem piedade, nervoso com algum barulho vindo da rua. Marta abriu um olho, praguejando com ele e empurrando-o para fora da cama, zangada. Levantou-se contrariada, vestiu o robe de verão por cima do conjunto de calções e alças pouco próprio para ir à rua e arrastou-se pela casa, sentindo-se morta viva.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quem é?- perguntou com a voz ensonada, antes de abrir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sou eu, o João. – respondeu cheio de energia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hoje é sábado. – informou-o mantendo a porta fechada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu sei, anda, abre. - pediu animado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta abriu uma fresta da porta e olhou-o com cara de poucos amigos, sem reagir ao ar fresco e feliz do seu perturbador de sonhos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia! Mas que cara é essa? – empurrou a porta sem cerimónias, trazendo sacos nas mãos e dirigindo-se à cozinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Cara de quem estava finalmente a dormir. – confessou, caindo no sofá amuada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu dormi maravilhosamente! – exclamou de dentro da cozinha, e como pagamento pela tua massagem vim fazer-te o pequeno almoço e convidar-te para irmos passear.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Aceito o comer. Passear onde? – grunhiu com a cara na almofada do sofá.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso é surpresa! – respondeu sorridente, enquanto dispunha a comida na mesa de centro perto do sofá. Sentou-se animado na poltrona em frente de Marta e começou a comer fazendo-lhe sinal para que o imitasse.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta ergueu o tronco obedientemente, sentindo-se cada vez pior e mais deprimida. Cada minuto que passava com João a faziam temer ter encontrado o homem ideal, o que seria uma tragédia, para ambos. Antes de adormecer tomara uma difícil decisão, a de colocar um ponto final em tudo aquilo e afastar-se dele, mas nem ela nem Filipe lhe conseguiam resistir, constatou enternecida ao ver como o cão o adorava, colocando o seu focinho no joelho de João, à espera de um pedaço de pão. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O que se passa? Acordas sempre assim tão carrancuda? – brincou, curioso com o clima pesado que se sentia naquela casa, ao contrário da habitual serenidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, tive insónias. Não dormi bem… quase nada, mesmo. – confessou, sorrindo com esforço, sem o encarar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se quiseres posso ir embora. – disse com preocupação, pousando a chávena de chá – Não devia ter vindo sem avisar, desculpa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. Fizeste bem em aparecer. Vou tomar banho e vamos então à tal surpresa. - levantou-se e dirigiu-se à cozinha, colocando uma grande panela de água ao lume, deixando-o intrigado da utilidade que ela daria a tanto líquido, não seria para chá, com certeza. Como se lesse os seus pensamentos, ela esclareceu-o; precisava de tomar um banho antes de sair, e não tinha esquentador, logo, aquecia água, temperava com fria e colocava num balde que tinha um fundo com um adaptador de chuveiro, bastante primitivo, mas eficaz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tomas banho assim? Sempre? – perguntou escandalizado com a trabalheira que era tomar duche naquela casa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, vai dar no mesmo, só não posso ficar tempos infinitos debaixo de água. E já que aqui estás, traz-me a panela com a água quente, por favor. – piscou-lhe os olhos em súplica.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Temos de modernizar esta casa! – ralhou, carregando com dificuldade os vários litros de água até à casa de banho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Temos?! – espantou-se com aquela utilização do plural que lhe deu um nó na barriga.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Força de expressão. – corrigiu envergonhado. Sentia-se tão bem ali que às vezes esquecia-se de que era somente um convidado. – Queres ajuda para esfregar as costas? – brincou, colocando a água dentro do balde/chuveiro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, obrigada. Agora sai. – disse-lhe a sentir-se corar. Não lhe faltava mais nada, pensou enervada, ficar a imaginá-lo no banho…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Depois de muito insistir, Marta conseguiu convencê-lo a levarem o seu pequeno jipe para o passeio; seria muito mais prático para dar voltas e não teriam problemas com os estofos de pele do carro desportivo, quando Filipe se esfregasse no banco traseiro, como ficou provado, assim que entraram no veículo e o cão limpou a baba do focinho nos tapetes grossos que cobriam os assentos. João aceitou sem mais discussão e resignou-se ao lugar do morto, aproveitando para a observar com mais atenção, entusiasmado com a destreza com que Marta fintava os buracos da estrada, resultado da experiência que tinha do terreno.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E dirijo-me para onde, Sr. co-piloto? – perguntou, curiosa com o destino surpresa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podes ir andando, que eu vou dizendo. – respondeu, sem revelar mais informações, satisfeito com a reação amuada dela. – A tua dona é muito controladora… - disse em direção a Filipe, que o observava com as orelhas em pé.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não acho nada bem, andares a colocar o meu cão contra mim. – reagiu, olhando-os com censura e descontraindo pela primeira vez desde que acordara.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Chegaram à margem do rio, e Marta estacionou o jipe contrariada. Já não tinha ficado especialmente satisfeita com a sugestão de que seria melhor vestir fato de banho e roupa fresca, mas concordara porque só entraria dentro de água se lhe apetecesse. Mas o que via ao longe era bem diferente do que tinha imaginado, e muito pior. Várias canoas coloridas estavam dispostas na areia, à espera dos canoistas, e João não lhe confirmava nem que sim nem que não, mantendo-se irritantemente a sorrir satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ou me dizes o que aqui viemos fazer, ou não saio do carro. – ameaçou, sentindo as mãos a suar ligeiramente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas onde está a mulher corajosa e bem resolvida que ainda há bocado se recusou a deixar-me guiar? – gozou, saindo do carro e abrindo a porta a Filipe, que saltou animado para o chão, cheirando tudo em volta furiosamente, a reconhecer o local e a tirar as suas próprias conclusões canídeas, ignorando o casal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não saio. – disse Marta, ainda agarrada ao volante e de cinto posto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que disparate. – João tirou-lhe o cinto, a chave da ignição e puxou-a para fora do jipe, colocando os chapéus na cabeça de ambos e trancando o veículo. – Vamos, vais adorar. – deu-lhe a mão e surpreendeu-se ao notar que estava gelada, o que indicava medo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não quero fazer isto… - suplicou, sendo puxada em direção às canoas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta, por favor. Se isto fosse perigoso não o fazíamos. Vamos falar com o sr da empresa. Anda! – deu-lhe mais um puxão vigoroso, sem perder a convicção dos seus planos. Queria muito deslizar pelo rio abaixo a admirá-la na frente da canoa, e com um bocado de sorte, com a roupa toda colada da água que eventualmente a molhasse. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E o Filipe? Não o podemos deixar no carro ao sol, todo o dia… - argumentou, na esperança de que fosse proibido levar o cão e assim ela se escapasse à provação náutica.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já liguei hoje cedo a perguntar, ele vai no meio de nós os dois. – respondeu prontamente, dando-lhe um abraço por cima do ombro, encorajando-a.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Depois eu é que sou controladora… - rosnou entre dentes, empurrando-o e libertando-se do seu braço confortável.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia! – dirigiu-se João ao casal moreno e de aspeto tonificado que começava a preparar a viagem. – Telefonei hoje cedo, João Marques.- cumprimentou-os, apresentando depois Marta e Filipe. – Podemos ir andando? Já o fiz várias vezes, só precisávamos dos coletes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta resistiu até ao limite do que seria possível, tentando não fazer figuras ridículas em frente a estranhos, aceitando o colete, de trombas, no meio de um som de descontentamento, enquanto João convencia Filipe a entrar na pequena embarcação.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos! Só faltas tu! – ralhou sorridente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Marta remeteu-se ao silêncio, entrando relutantemente, a tremer, com vontade de o insultar e ou beijar, tal era a energia que lhe transmitia, todo sexy, descontraído e seguro de si, com aqueles óculos de sol caríssimos que o tornavam ainda mais bonito. Ficou ligeiramente desiludida ao perceber que iria a viagem toda de costas para aquela visão tão agradável, a olhar para o rio, as árvores, e o seu medo de cair na água sem pé, onde viveriam milhares de cobras, peixes horríveis e lixarada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João sossegou o cão, dando-lhe uma massagem rápida e começou a remar suavemente, sentindo-se mais feliz que nunca, com a visão dela e das suas costas, rabo, ombros, braços, cabelo. Admirava todas as suas proporções quando se apercebeu do olhar de censura e espanto do cão, que o fez soltar uma gargalhada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás-te a rir de quê, pode-se saber? – perguntou, voltando-se demasiado rápido, o que destabilizou o movimento da canoa, ao ponto de os balançar perigosamente de um lado para o outro. – AAAHH! Socorro, João, pára isto! – gritou, quebrando o silêncio da natureza que os envolvia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pára quieta que isto já acalma. Não podes virar-te assim de repente! – ralhou, pousando o remo e acalmando o cão que se levantou nervoso com os balanços.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Nem um encosto para as costas… - reclamou – Quanto tempo demora a viagem?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Podes encostar-te a mim, se quiseres… - provocou, satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Querias! – bufou, pensando que bom seria ir recostada nele, rio abaixo, o que lhe aumentou progressivamente a neura, juntamente com a posição desconfortável, o calor abrasador que já se começava a sentir, o facto de ser “lésbica”, querer deixar de o ser, mas a razão não deixava. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa, estava a brincar… - disse João preocupado com o silêncio nada característico da sua companhia. Por vezes esquecia-se de que a poderia ofender quando brincava, mas não queria perder aquela amiga. – A sério, estava a brincar. Viste as pernas daquela tipa? – perguntou, para desanuviar o ambiente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quem? – disse confusa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A das canoas. – esclareceu-a – Que pernas fantásticas!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pff… - respondeu com escárnio – demasiado musculadas!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, gostas assim do tipo mais delgado. – comentou curioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, acho que sim… - engoliu um ardor na garganta por conta daquela conversa ridícula. Gosto mesmo é das tuas, mas ok..., pensava infeliz, a olhar os dedos da sua mão que roçavam suavemente na água fresca. – E tu? Como gostas? – decidiu aproveitar a sua condição de intocável para tirar nabos da púcara.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu?... bem, de vários tipos. – ficou pensativo a remoer na questão – Quer dizer, acho que umas pernas bonitas podem ser quaisquer umas. Por exemplo, as da mulher das canoas são Boas! – e encheu a boca para dizer a última palavra. – Mas bonitas, bonitas… isso é mais difícil de encontrar. – gostava muito das pernas de Marta, do pouco que já tinha conseguido observar, mas não o disse, para não a constranger ainda mais.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Está a ficar um calor insuportável… - queixou-se, sentindo a pele exposta ao sol a queimar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vai-te molhando, sempre refrescas. – e assim que deu azo à sua imaginação que envolvia um corpo de mulher com roupa colada, Filipe olhou-o duramente, provocando-lhe outra gargalhada. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que vou tirar a roupa. Não aguento isto tudo vestido. Podes abrandar a canoa? – pediu-lhe, levantando-se ligeiramente, de modo a puxar a saia pelas pernas. Retirou depois a camisola e sentiu-se ligeiramente observada, quando puxou a mochila para arrumar a roupa. Não conseguia tirar a limpo, porque os óculos escuros de João não deixavam perceber para onde ele olhava, mas notou um certo rubor nas suas bochechas, o que a fez sentir-se maravilhosa e satisfeita, ao ponto de se esticar um pouco na provocação. Prendeu os cabelos desajeitadamente no alto da cabeça, e iniciou um banho sensual, chapinhando-se com calma. – Que maravilha! – disse, sorrindo de orelha a orelha, gozando do seu poder feminino, quando a canoa embateu num tronco da margem e os virou aos três repentinamente para a água.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João ajudou-os a entrar novamente na pequena embarcação, recolheu as coisas espalhadas pela água e subiu sem dizer uma única palavra. Ficara paralisado a olhá-la e sentia-se ridículo ao ter deixado a canoa completamente desgovernada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Completamente seguro, heim? – perguntou a sorrir-lhe de costas, já recuperada do susto, mas satisfeita com o efeito que provocara nele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Distraí-me, não volta a acontecer. – justificou-se, mais recomposto do súbito banho fresco que lhe acalmou o físico.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Agora ficámos com as sandes todas molhadas… - reclamou com a voz afetada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não paramos no sítio do almoço, assim acabamos mais depressa a volta e vamos almoçar noutro local. – sugeriu, já consumido com a ideia de a ver semi-nua durante muito mais tempo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- ok. – olhou para trás para visualizar o que tinha em mente, e conseguiu arranjar uma posição mais descontraída, pousando a cabeça no cão e esticando as pernas, ficando com os pés na água. – Obrigada Filipe, assim apanho um bocadinho de sol. – disse ao cão, afagando-o com uma mão, agradecida pelo encosto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Merda… pensou, ao vê-la por inteiro, deitada à sua frente. Tirou o boné, mergulhou-o dentro de água, e trouxe-o repentinamente para a cabeça, refrescando-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ei! – reclamou Marta, que apanhou com algumas pingas na cara.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Desculpa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-53195896148851995782020-07-23T01:38:00.000-07:002020-07-23T01:38:02.566-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 5<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEKE9Nc38cOfIJqrJXnuOG3JD3osYChVPe1iDB-kD70Gnj8nPJ26NLAOoiUHajvgn07ADUYEtIszDbSYm46Rirs8N-FbUinbhL4Kct24Wl7UoWiFsa3Wf2KRKaKVAdfYJFUtWeo9KFD9s/s1600/bosque-de-algas-marinas-foto-Jim-Patterson.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="460" data-original-width="640" height="230" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEKE9Nc38cOfIJqrJXnuOG3JD3osYChVPe1iDB-kD70Gnj8nPJ26NLAOoiUHajvgn07ADUYEtIszDbSYm46Rirs8N-FbUinbhL4Kct24Wl7UoWiFsa3Wf2KRKaKVAdfYJFUtWeo9KFD9s/s320/bosque-de-algas-marinas-foto-Jim-Patterson.jpg" width="320" /></a></span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Amanhã não estou cá ao final do dia. – avisou-o, enquanto apanhava os lençóis já secos. – Vou jantar a casa de uma amiga.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ah, eu também não posso amanhã, calha bem. – comentou, agarrando nas pontas do pano e ajudando automaticamente. – E ainda não falámos sobre o preço das aulas. – tinha de definir isso para não se sentir abusador.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ontem não fizeste nada para além de dormir. Hoje já me ajudaste a lavar a roupa. – enumerou – Está saldado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não Senhora! Isso não tem jeito nenhum. – reclamou honestamente incomodado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Já disse. – repreendeu-o no mesmo tom com que se dirigia a Filipe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Teimosa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois sou.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João não insistiu mais, não valia a pena estarem a acabar o dia zangados. Iria falar com Elisabete, a mulher de César e ficaria a saber quanto custava uma aula. Não queria cá pagamentos de hippies, e ela de certeza que precisaria mais de dinheiro que ele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tudo bem. Mas vais lavar lençóis todos os dias? É que isto cansa. – brincou, levando-lhe os panos dobrados para dentro de casa, não sem que ela reclamasse desse gesto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei com que regularidade pensas vir ter aulas. – disse de forma prática – Eu estou sempre em casa depois do almoço, só dou aulas de manhã e durante uns meses não vou fazer voluntariado. Ainda não recuperei totalmente das últimas visitas. – explicou, sentando-se no sofá com as pernas esticadas na mesinha de centro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E namoradas? – provocou ele, curioso com esse lado pessoal dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por agora estou livre. – respondeu meio incomodada, tentando disfarçar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, se não te importares, venho de segunda a sexta. – disse encostando a cabeça no cadeirão e sentindo-se a ceder ao cansaço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, isso vai-te sair caro. Não tenho roupa suficiente para lavares. – gracejou, genuinamente satisfeita por saber que iria ter a companhia dele diariamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Também sei passar a ferro.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sabes? – perguntou espantada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não… - sorriu e fechou os olhos que lhe pesavam toneladas, adormecendo instantaneamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pronto. Lá vai ele outra vez… - levantou-se e tapou-o com uma manta que tinha sempre por ali para se aconchegar a ler, dirigindo-se depois à cozinha para começar a fazer o jantar. Era muito estranha aquela necessidade que ele tinha de dormir, andaria de noite acordado? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estava quase para ir à polícia denunciar um desaparecimento. – gracejou Salvador feliz por ver de novo o amigo e cumprimentando-o efusivamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, estás bom? Tenho andado ocupado. – explicou, pedindo-lhe um fino e uns aperitivos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É muita gaja, não é? Eu compreendo. – provocou o amigo sorridente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por acaso é só uma, mas é lésbica. – respondeu João satisfeito com a cara de horrorizado de Salvador.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Quê? Mas agora viraste lésbico? – brincou curioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, ando a ter aulas de Yoga ao final do dia, e a minha professora é lésbica. – explicou bebendo o fino quase todo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas que confusão. – exclamou abanando a cabeça – Bem, eu também já andei no Yoga, mas fartei-me. Ao menos é boa?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Por acaso é. – confessou meio angustiado. – Mal empregada. – Ela era de facto bonita, e embora andasse sempre vestida com uns trapos largos, conseguia perceber-se um corpo delgado, mas torneado, para além do cabelo que lhe agradava bastante, por ser comprido e o facto de ela ser simpática e nada fútil, também lhe davam uma certa dor de barriga. Quando estava com ela não sentia nada daquilo, estando completamente descontraído e à vontade, mas depois ficava meio esquisito, pensava culpado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Deixa lá isso. – acalmou-o Salvador, como que lendo os seus pensamentos – Pode ser que ela vire. Enquanto isso não acontece, chegou a louraça que noutro dia te queria engolir a cara! – apontou divertido para a porta, afastando-se para ir atender outros clientes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João tentou passar despercebido, mas a Nélia já o reconhecera ao longe, avançando decidida na sua direção. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá. Pagas-me um vodka laranja? Acho que é o mínimo que podias fazer, depois da outra noite. – lançou ela sorridente. Ali tinha ficado um assunto pendente e ela não era mulher de desistir tão facilmente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro que sim. E desculpa o que aconteceu. Acho que já tinha bebido demais, estava maldisposto. – mentiu, chamando Salvador com um sinal e pedindo-lhe a bebida de forma educada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nélia ficou satisfeita com a atitude e beijou-o sem pudores, voltando para o seu espaço como se nada se tivesse passado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então e hoje? Vais mostrar-me a tal surpresa? – piscou-lhe o olho traçando a perna mesmo de frente para ele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pois, parece que sim. – respondeu hipnotizado com as manobras sedutoras da loira assanhada. – Vamos dançar?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Saíram do Bar cedo, João tinha sido "fisgado" sem grandes dificuldades, e estava decidido a usufruir daquela prenda fácil, conduzindo o carro em direção a casa, apressado. Nélia usava de todos os seus truques para o manter interessado, não seria descartada naquela noite, pensava orgulhosa de si mesma. Já lhe tinham dito que ele era estranho, mas rico, e juntando a isso tinha muito bom ar, o homem perfeito para agarrar. Iria proporcionar-lhe uma noite inesquecível e depois logo pensaria numa forma de o continuar a ver. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João parou o carro no loteamento privado do condomínio exclusivo em que vivia, deu-lhe a mão para a ajudar a sair do carro com aquela saia tão curta e apertada e lembrou-se de que a Marta teria sérias dificuldades em se movimentar pela quinta se andasse assim vestida. <i>Mas de onde surgiu isto agora?</i> Olhou para Nélia, numa tentativa de visualizar bem quem ali estava e tirar a professora de yoga da mente. Beijou-a contra o carro, violentamente e arrastou-a sem cerimónias até casa. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Entraram no apartamento silencioso e escuro e Nélia ficou encantada com o ar sofisticado de tudo aquilo. Era de facto um homem afortunado, pensava radiante. João levou-a até ao quarto e despiram-se freneticamente, numa pressa incómoda e sem sentido, constatava João, que se sentira mais excitado naquele dia a dobrar lençóis do que no quarto com uma mulher nua. Algo de errado se estava a passar, lamentava-se nervoso. Nélia estacou em cima dele, parando repentinamente os seus movimentos duros e impessoais, e João temeu o pior. Se não conseguisse terminar aquilo, iria ser muito desagradável, nenhum homem gostava de ficar mal visto naquelas matérias.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- O que é isto? – perguntou Nélia inclinando-se para a mesa de cabeceira curiosa e sorridente. Pegou no livro, sem sair de cima de João e mostrou-lho, bem disposta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ando a ler… - conseguiu dizer, aparvalhado com a sensação de estar a corar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Muito bem, Sr Dr. – ronronou Nélia – vamos lá então escolher uma página ao acaso e imitar!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não me parece má ideia. – disse honestamente. Pegou no livro e abriu-o, calhando numa das posições mais estranhas e humanamente impossíveis que já tinha visto. Lembrou-se de Ganesha, com todos aqueles braços, esse conseguiria de certeza acertar com aquilo. Os membros extra seriam uma vantagem. Precisava de perguntar à Marta se ela já tinha experimentado, mas lembrou-se que ela era lésbica, seria difícil fazer aquilo sem um homem, ou talvez tivessem alguma técnica diferente para gays… Não reparara que já tinha terminado tudo e que Nélia lhe beijava a boca sem o deixar respirar, libertando-se dela e fazendo um leve compasso de espera até ao momento educado de a conseguir despachar. Queria ler novamente o capítulo da parte espiritual e objectivos do Sexo Tântrico. Tinha lido tudo aquilo na diagonal, com pressa de chegar às imagens, e deveria ser interessante perceber como é que ela conseguia fazê-lo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Assim que conseguiu, pôs a visita na rua, chamando um táxi e oferecendo-se para pagar a corrida, da forma mais delicada possível. Ela aceitou sem culpas e prometeu voltar, o que o incomodou ligeiramente, mas entendeu como mentira piedosa. Sabia que tinha sido péssimo na cama, sempre distraído e demasiado rápido. Honestamente, tinham sido os piores trinta minutos de sexo da sua vida. Entrou na casa de banho e não resistiu a tomar um comprimido da felicidade instantânea, antes de entrar no duche, sentia-se ligeiramente enojado e deprimido. Ou andava a ficar velho para aquelas atividades com desconhecidas, ou a depressão começava a afetar-lhe a parte sexual, o que não era nada bom sinal, dizia-lhe o médico dentro de si. Uma leve azia nasceu-lhe no fundo da garganta, e João escaldou-se até ao limite do que a sua pele aguentava. Tinha de tirar aquele cheiro a perfume barato de cima, senão não conseguiria dormir, e só voltaria a casa de Marta e ao seu cadeirão fofo daí a três dias, tinha de descansar antes disso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Arrancou os lençóis sujos da cama e procurou durante bastante tempo por uns lavados, pois nunca precisara de fazer uma cama de lavado na vida, encontrando-os no sítio mais óbvio e colocando-os atrapalhadamente por cima do colchão. A Dona Rosário iria ralhar com ele na manhã seguinte, mas se não tirasse os vestígios da Nélia daquele quarto não conseguiria dormir. Pegou no livro, esticou-se na cama e recomeçou a leitura da parte teórica, com a voz de Marta na sua cabeça como narradora, o que lhe pareceu lógico, já que ela era a sua professora, e aquele livro era dela. Adormeceu na página 10, com o conselho de uma alimentação leve e saudável antes de qualquer prática física, evitando gorduras animais, de difícil digestão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><i>- A Eduarda vai ser mãe. – comentou Isabel, animada com a notícia de que a melhor amiga conseguira finalmente realizar o seu sonho de engravidar, depois de alguns anos de dificuldade e sofrimento. – Ai sim?, que bom. – disse sem sequer a olhar. Aquele tema surgia de tempos a tempos como uma sombra a pairar sobre os dois, dissipando-se depois com as distrações do dia-a-dia das suas carreiras absorventes. – João, podíamos pensar nisso também. Não para já, que estás a iniciar o trabalho na Clínica e precisas de te dedicar a isso, mas daqui a um, dois anos. – sugeriu Isabel a medo. Sabia que o marido fugia do assunto, mostrando-se muito pouco interessado em ser pai, mas ela adorava um dia engravidar, ser mãe, cuidar de um bebé, e se para isso, tivesse que deixar a carreira, não pensaria duas vezes. – Isabel, ainda é cedo, e não tenho a certeza de que isso seja uma boa ideia. - tentou desculpar-se, sem conseguir ser honesto com a mulher, que o olhara magoada. Depois da morte de Filipe, o seu primeiro “filho”, não teria capacidade emocional para passar por tudo de novo. A cara do irmão a desaparecer na água do rio ainda o assombrava em algumas noites. Não, ser pai nunca.</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Acordou a sentir-se asfixiar, suado e completamente enrodilhado nos lençóis soltos, que o rodeavam como algas, verdes, compridas e peganhentas. João olhava-os e não reconhecia neles simples tecido, embarcava no seu delírio, sem se aperceber que já não dormia. Gritou desesperado, lutando contra o que o apertava, limitando-lhe os movimentos, quando conseguiu alcançar a luz da mesa de cabeceira e saiu da alucinação, olhando o quarto espantado, com a respiração acelerada e o coração prestes a sair-lhe do peito. Soltou-se dos panos, levantou-se e procurou na casa de banho o comprimido de SOS, agarrando no édredon caído no chão e arrastando-se até à sala. Sentou-se no sofá, embrulhado na colcha fofa e obrigou-se a respirar ritmadamente, com a cabeça apoiada nas mãos. Ainda faltava bastante para nascer o dia, lamentou-se angustiado. Pensou em telefonar para casa dela, mas conseguiu resistir à tentação, seria uma loucura acordá-la a meio da noite para lhe pedir que cantasse aquele mantra que aprendera de tarde, e simplesmente não se conseguia recordar. Om shanti… qualquer coisa. A letra era estranhíssima, mas a música agradara-lhe bastante, especialmente cantado por ela. Teria de lhe pedir para a gravar a cantar, com a desculpa de que aprenderia mais depressa. Aquilo era calmante, e ajudaria bastante nas noites de pesadelos, concluía, esticando-se no sofá a imaginar os cânticos da tarde. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">O dia passou devagar, torturante, com a dor de cabeça a afundar-se cada vez mais, resultado da crise de pânico da noite anterior, e a ideia de que não teria aula no fim daquilo tudo ainda o deprimia mais. Felizmente não teria de ir para casa, era esperado em casa de César para o habitual jantar das sextas-feiras, em que se juntavam já como uma tradição, bebiam uns copos e falavam de tudo e de nada. Uma terapia de terapeutas, que chegavam ao final da semana carregados de más energias, como dizia Elisabete. A mulher do amigo tinha toda a razão, pensava João, e mantinha-os assim minimamente controlados, não permitindo que embarcassem nas doideiras dos outros, pois já lhes bastavam as suas. Só teria de passar rapidamente em casa, trocar de roupa, tomar qualquer coisa para a dor de cabeça e acabaria mais um dia difícil.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Chegou a casa dos amigos demasiado cedo, lamentou-se, ao ver a azáfama que ainda ia na cozinha, e ficando demasiado solitário na sala, agarrado a um copo de vinho, sem paciência para ver televisão ou distrair-se com outra coisa qualquer. Ofereceu-se para pôr a mesa e agradeceu a oportunidade de ocupar a cabeça, a imagem das algas ainda o ensombrava de vez em quando, arrepiando-o e aquecendo-lhe a cara.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Quatro pratos? – perguntou curioso com a companhia do jantar que ainda ninguém tinha mencionado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, convidei uma amiga. – explicou Elisabete falando alto de dentro da cozinha, bem no momento em que a campainha tocou. – Olha, já chegou! Podes ir abrir João?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, eu vou lá. – respondeu meio contrariado. Gostava muito daqueles momentos privados entre os três. Se vinha um estranho para jantar não poderia falar sobre o que lhe apetecesse, lamentou, abrindo a porta. – Marta? – olhou-a espantado a sorrir, sendo também observado com espanto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- João? Mas… Também aqui estás? – perguntou incrédula com aquela coincidência feliz. Tinha pensado nele todo o dia, desanimada com o facto de apenas o ir rever na segunda-feira, e ali estava o seu aluno preferido, a abrir-lhe a porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João cumprimentou-a com dois beijos, pela primeira vez, sentindo-a corar e estranhando aquela Marta que ficara sem jeito e envergonhada, talvez se sentisse intimidada na casa de outras pessoas, concluiu, indicando-lhe o caminho até à sala.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Então, esta era a tua amiga? – sorriu-lhe – Pensava que ias sair com alguma “amiga” das outras.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Marta sentiu-se a ficar escarlate, ele conseguia ser tão indiscreto, e Elisabete sabia que ela não era lésbica nenhuma, pensava nervosa com aquilo tudo. Não queria que ele se zangasse com ela por causa da mentira que inventara estupidamente, e que cada vez crescia mais. Precisava de lhe contar a verdade, concluiu. E fosse o que Deus quisesse.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- João, preciso de falar contigo sobre uma coisa. – começou a confissão, quando o casal anfitrião os veio interromper, cheios de comida nas mãos e solicitando ajuda para colocar o jantar na mesa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ok, não te esqueças de onde vais. – disse João, chamando-a para a mesa e sentando-se animado com o cheiro da comida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Então já se conhecem? – perguntou César curioso com a excitação do amigo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ah, sim. Eu ainda não tinha dito anda, mas fui experimentar o Yoga. – confessou João.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Foste? Mas eu não te vi lá na escola. – perguntou Elisabete espantada, olhando alternadamente para Marta, que corava ainda mais, e João, que sorria com naturalidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Eu estou a dar-lhe as aulas em minha casa. Ele apareceu-me lá a pedir aulas privadas, e como o Filipe foi com a cara dele, eu aceitei. – explicou Marta meio a gaguejar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">César fez uma nota mental sobre aquele pormenor em particular, o facto de ela mencionar o nome de Filipe e João não reagir emocionalmente, mais tarde iria pensar sobre aquilo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- E quem é o Filipe? – perguntou genuinamente curioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- É o cão. – respondeu João com naturalidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, o companheiro de sesta aqui do rapaz. – brincou Marta servindo-se de salada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- César, não comeces com os teus scaners profissionais. – recriminou João incomodado, ao ver o olhar interessado do amigo naquelas revelações sobre os últimos dias em casa de Marta. – Adormeci por causa de um exercício de respiração… o Prayama…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Pranayama. – corrigiu Marta instintivamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Isso. – agradeceu, enchendo-lhe o copo. – E o cão deitou-se em cima de mim.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Isto está muito bom. – comentou Marta olhando Elisabete e piscando-lhe o olho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Obrigada, querida. Espera até provares a sobremesa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">O jantar arrastou-se mais do que o normal, até terminarem todas as garrafas de vinho e a sobremesa ter sido comida até à última migalha, descontraídos uns com os outros, numa conversa que parecia não acabar. César analisava tudo aquilo com um interesse para além do profissional, pois João era-lhe muito querido como amigo. Queria vê-lo feliz, a ultrapassar a depressão que arrastava desde os 14 anos, e um dia deixar de lhe prescrever drogas. Não fazia sentido um homem novo tomar tanta porcaria, se assim se mantivesse iria ter dificuldades sérias na velhice. E aquela Professora de yoga, embora lésbica e amorosamente inacessível a João, parecia conseguir normalizá-lo de alguma maneira. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Bem, agradeço-vos imenso o convite, mas o Filipe está para lá sozinho e tem medo do escuro. Tenho de voltar para casa. – levantou-se e despediu-se do casal anfitrião – Adorei o jantar e este bocadinho. – olhou para João e, sem intenção de lhe tocar despediu-se também. – Então, até segunda.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Eu também vou. – disse num impulso. Ainda era cedo e talvez ela quisesse ir ao Bar do Salvador beber qualquer coisa, pensou, desistindo automaticamente da ideia ao imaginar a Nélia a agarrar-se a ele e estragar a noite. – Acompanho-te até lá abaixo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ok, obrigada. – disse a sentir um formigueiro na barriga. – Queria ir para casa e afastar-se rapidamente, precisava de distância daquela energia que sentia vinda dele, que a punha meio tonta e vulnerável. Ou talvez fosse só efeito do vinho, pensava, olhando-o a chamar o elevador.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Entraram no cubículo apertado e o silêncio crescia, tornando a viagem dolorosa. Olharam-se e Marta viu nos seus olhos a intenção de a beijar, ficando hipnotizada naquela expectativa, sem saber como reagir, mas desejando que ele o fizesse. Um leve movimento na sua direção denunciou que ele ia avançar, quando subitamente a porta se abriu e um casal de idosos sorriu educadamente à espera que eles saíssem, pois já tinham chegado ao rés-do-chão e não se haviam apercebido.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Saíram meio desajeitados com aquele momento incómodo, e Marta caminhou rapidamente até ao local onde tinha o seu pequeno Jipe estacionado, procurando pelas chaves furiosamente enquanto se aproximava do veículo. Teria de resolver aquele mal entendido rapidamente, censurava-se com cólicas na barriga. Que trapalhada para ali estava, parecia o interior daquela carteira, pensava angustiada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Queres ir conhecer a minha casa? – perguntou João colocando um braço no tejadilho do carro, bem perto dela, sem ser capaz de racionalizar o que estava a fazer, afinal ela não seria susceptível a avanços amorosos vindos dele.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não sei se é boa ideia… - confessou a sentir-se afogueada, sem o olhar, concentrando-se na busca pela chave perdida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Eu já conheço a tua. Agora tens de conhecer a minha. É justo. É aqui mesmo no prédio do lado. – se continuasse assim tão perto dela iria acabar por fazer um disparate, e podia estragar aquela amizade, recriminava-se, sem no entanto conseguir deixá-la ir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Marta olhou-o furtivamente, decidida a não aceitar, mas aquela energia começava a envolvê-la como uma teia, sentindo-se a amolecer na sua direção. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Bem, só se for muito rápido… o Filipe não gosta de estar sozinho à noite. – balbuciou, encontrando naquele momento a chave e largando-a logo de seguida dentro da carteira.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João teve vontade de dizer “Yes!”, mas conteve-se, afinal aquilo eram fantasias apenas da sua cabeça, ela não tinha as mesmas sensações animais relativamente a si, estando apenas a ser educada, e não poderia ofendê-la ou ser grosseiro. Gostava cada vez mais da sua companhia, não iria estragar tudo, prometeu a si mesmo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
<br />Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-31352901006968875972020-07-22T01:31:00.001-07:002020-07-22T01:31:19.048-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 4<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh-3FcTLOB5OlzOEsG3ijDJn515EWb4SG1CV92sUjLmYZ7OuLRkMnEgrHczRVSGrMw48Ku3YVePJyFiAFYYmsGltrVfd_XfJf0b0VTzrlNE6OvVjOIXZt9642wPg5R4OwVphubNhYXnl1o/s1600/726909a6105c5fc27b353a37e28956fc.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1006" data-original-width="736" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh-3FcTLOB5OlzOEsG3ijDJn515EWb4SG1CV92sUjLmYZ7OuLRkMnEgrHczRVSGrMw48Ku3YVePJyFiAFYYmsGltrVfd_XfJf0b0VTzrlNE6OvVjOIXZt9642wPg5R4OwVphubNhYXnl1o/s320/726909a6105c5fc27b353a37e28956fc.jpg" width="234" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João e Filipe ainda dormiam na mesma posição quando o carro da “Assistência em Viagem dos ricos” chegou. Marta não conhecia aqueles serviços chiques de mecânico à porta, mas ficou impressionada com o profissionalismo do funcionário. O homem tratava-a com muita delicadeza e algum espanto, porque na realidade ela e o carro eram dois mundos distintos. Inventou uma mentira para justificar a ausência do proprietário do veículo, ofereceu um chá e alguma simpatia ao senhor Manuel, e conseguiu resolver o problema sem acordar João. Ele parecia precisar de descanso, e o Filipe também dormia como um bebé em cima dele, seria cruel ir incomodá-los. Apanhou as roupas de João do chão da sala, tentou limpá-las o melhor que conseguia, dobrou-as e colocou-as em cima do pequeno sofá, começando a preparação do jantar. Não sabia se teria companhia, mas decidiu fazer para dois, se ele não comesse já teria almoço para o dia seguinte, decidiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Marta! – uma voz chamou-a da sala de prática. – Podes chegar aqui, por favor?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, o que se passa? Já acordaram, os meninos? – brincou divertida.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ele não me deixa sair… - explicou amedrontado com os olhares profundos que o animal lhe deitava.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Filipe, anda. Vamos comer. – ordenou, sendo obedecida sem hesitações. – Comer, é sempre a palavra mágica para os teimosos. – disse, voltando para a cozinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acho que dormi… - disse confuso com o que tinha acontecido, seguindo-a. – Já telefonaram da assistência?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Há horas que já cá estiveram, arranjaram o pneu e foram-se embora. Não te acordei porque estavas a dormir profundamente. Queres jantar? – disse sem parar, enquanto cortava legumes para saltear com nozes e amêndoas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não sei… bem, obrigado pelo trabalho com o carro. Mas, acho que vou para casa. – sentia-se bastante intrigado por ter adormecido sem remédios, depois de tantos anos, mas precisava de tomar banho e pensar sobre tudo aquilo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Ok, quando quiseres, volta. – pegou no livro e entregou-lho – Não te esqueças, vai lendo, e quando tiveres dúvidas, pergunta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vou só trocar de roupa, se entro assim no prédio os vizinhos chamam a polícia. – gracejou, sentindo-se logo envergonhado com o ar desagradado dela. – Não foi isso que quis dizer… - desculpou-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu percebo. – disse com mágoa, mas sorrindo educadamente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Despediram-se formalmente, sem que João combinasse o dia e a hora da aula seguinte, o que deixou Marta um pouco desanimada. Gostava muito daquele livro, não queria perder-lhe o rasto. Acenou-lhe adeus e entrou em casa melancolicamente, pegou nas roupas que lhe tinha emprestado e não resistiu a cheirá-las. – Lésbica… - sorriu, dirigindo-se para a cozinha. – Sim, pois, está bem, antes fosses.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Depois de muito suar, João conseguiu chegar a casa com o carro minimamente intacto. Não poderia lá voltar naquele meio de transporte, pensava, estranhando estar a cogitar visitar a mulher novamente. Sentia-se bastante bem depois de ter dormido aquelas horas. Aquela tal de Prayalama, ou como é que se chamava, era de facto mágica. Quem diria que respirar pudesse ser tão eficaz, matutava ao entrar no banho. O cheiro a cão parecia não querer sair, constatava divertido pois ironicamente, não dormia tão bem há anos e fizera-o logo com um cão em cima do corpo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Comeu uns restos que a Rosário lhe deixara preparados num prato, pegou no livro e acomodou-se no seu sofá, bem mais rijo e desconfortável que o de Marta, que parecia moldar-se perfeitamente ao corpo, concluiu, levantando-se e levando o livro para o quarto. Deitou-se na cama e iniciou a leitura “imprópria” cheio de curiosidade. Sentia-se um miúdo a ver pornografia às escondidas, excitado e maravilhado. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Leu o livro até ao final, sem conseguir parar, resultado da insónia que aquela sesta de fim de tarde lhe provocou, e obrigou-se a dormir já passava das quatro da manhã, engolindo um comprimido. Assim que adormeceu começou a sonhar com uma mulher de vários braços que o envolvia num abraço sufocante, mas bom, dizendo-lhe palavras em sânscrito que nunca ouvira antes. Marta surgia ao longe, sempre a caminhar de costas voltadas, apenas olhando furtivamente para ele, com censura. O que estaria ele a fazer mal? Tinha as pernas cruzadas, como ela ensinara, as costas direitas… Filipe lambeu-o, e seguiu-a, deixando-o sozinho no meio do nada. Vislumbrou uma mancha vermelha nos arbustos e começou a sentir-se ansioso, correndo até ao local, seria a mala?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Acordou transpirado e com uma angústia a apertar-lhe o estômago, já perto da hora a que a empregada deveria chegar. Levantou-se e meteu-se no duche, passando pelos comprimidos da felicidade instantânea sem se dar conta. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Fazia a barba, quando notou que não tinha tomado a medicação da manhã, metendo um comprimido na boca e recriminando-se por estar tão distraído. Acabou de se arranjar e dirigiu-se à cozinha, estranhando a Rosário não estar lá, mas a mesa estar posta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Onde andará ela?, procurou na sala, no quarto de hóspedes, no escritório, e foi encontrá-la no quarto principal a folhear o livro do “Sexo Tântrico” que Marta lhe emprestara, o que lhe provocou uma gargalhada. – Isso não são livros para a sua idade! – gracejou, apanhando o livro do chão que lhe saltara das mãos em voo, com o susto de ter sido apanhada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas o que é isto, Dr.? – perguntou honestamente chocada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Foi a minha professora de yoga que me emprestou. – explicou sorridente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Meu Deus, Santíssimo Sacramento, mas que professora é essa? Eu não sabia que nas aulas de yoga se aprendiam estas badalhoquices. – recriminou, benzendo-se, enquanto caminhava para a cozinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João olhou o livro, sorrindo com a cena e visualizando mentalmente Marta numa das “badalhoquices” que o entusiasmara especialmente na sua leitura noturna. – Graças a Deus que é lésbica… - comentou aliviado com o facto de que poderia imaginá-la à vontade sem mais tarde se sentir incomodado ou culpado. Ela nunca seria um problema nessa matéria, concluiu satisfeito. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia. – cumprimentou a sala de espera que já começava a encher, sendo cumprimentado de volta por vozes menos animadas que a sua.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bom dia Diana. Precisava que me encomendasse uma bicicleta e uns adaptadores para colocar no tejadilho do carro, por favor. – disse com naturalidade, como se lhe estivesse a pedir um café ou uma tosta do bar da clínica.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, tem alguma preferência na marca? Modelo? – perguntou tentando não demonstrar espanto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não, ah, quer dizer, tenho sim. Tem de ser todo-o-terreno. – explicou, lembrando-se do piso acidentado até casa da Marta. Se pudesse ser ainda hoje, agradecia. Pode mandar entrar o primeiro paciente. Até já. – concluiu sorrindo e entrando no gabinete. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tinha pensado bastante naquela opção da bicicleta durante o pequeno-almoço. Cogitou várias possibilidades, comprar um jipe, mas isso demoraria alguns dias, uma moto, mas não era fã de duas rodas que tivessem motor, ir a pé também não seria prático, por isso a bicicleta vencera. Já sabia onde deixaria o carro estacionado, recordava-se de um local seguro que não ficaria muito longe do destino final, pensava satisfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Posso? – uma voz perguntou, depois de bater à porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, faça favor. Sente-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>- Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… - perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa? Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? – perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E foi assim, Sr Dr., eu e o meu marido já não dormimos no mesmo quarto nem nada. – explicava a paciente ainda na casa dos cinquenta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E como se sente com essa mudança? – perguntou, realmente curioso por saber a opinião feminina sobre esse tema tão comum nos casais de longa data.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Triste, muito triste. – confessou – Sabe, não é muito moderno dizer isto, mas eu sei que desde essa data, que obviamente não partilhamos intimidade, ele tem andado cada vez mais longe da família. Eu sempre me recusei a aceitar que o meu marido, tão intelectualmente superior, fosse primitivo nessas questões, mas tenho quase a certeza de que ele tem outra. – uma lágrima caiu desamparada no colo da paciente, que pediu desculpa por gestos, recompondo-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Acha? Não poderá ser o receio de que ele a substitua que a faz pensar nessa opção tão drástica? – perguntou angustiado, porque ela tinha toda a razão. O marido já tinha outra, ele mesmo tinha trocado Isabel por bem menos que dormir em quartos separados.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Também pode ser… afinal, ele continua a tratar-me bem, apenas me sinto mais longe dele, de todos, lá em casa. Comecei a ter estas malditas insónias e crises de choro depois da “separação”… - explicava – Sinto-me muito cansada e infeliz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O facto de não dormir despoleta uma série de sintomas que lhe podem sugerir depressão, mas que por vezes não são necessariamente tão sérios. Primeiro vamos pô-la a descansar à noite, depois vemos como se sente. – sugeriu carinhosamente. Gostava especialmente de alguns pacientes, e aquela em particular lembrava-lhe a mãe, tão perdida e tristonha, carregada de responsabilidades, trabalho familiar e tão pouco reconhecida pelos seus. Já conhecera centenas de mulheres com todos aqueles “sintomas”, as mães e esposas perfeitas casadas com bestas quadradas e com filhos egoístas e cínicos. Aguentavam-se até aos cinquenta, depois batiam-lhe à porta a pedir ajuda. Se ao menos ele já fosse médico na altura, relembrava-se magoado do triste fim da sua mãe. Tudo poderia ter sido diferente, ainda hoje a teria na sua vida, pensou abatido. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Se conseguisse descansar seria meio caminho andado, não é? – perguntou esperançosa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Claro, olhe, eu por exemplo, quando não durmo fico doente, nem consigo pensar. – comentou aliviando o clima com uma pequena confissão pessoal. – Já pensou, aliado ao tratamento que lhe vou prescrever, fazer yoga? – disse num impulso, ao se recordar da sesta em casa de Marta – Dizem que ajuda muito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olhe, tenho umas amigas que andam, talvez vá experimentar. Obrigada Sr Dr. – agradeceu a sugestão atenciosa daquele médico bonito e simpático.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Aqui tem a receita, é só tomar um diariamente depois do jantar, mais ou menos uma hora antes da altura em que pretende adormecer. É uma dose levezinha, mas como não está habituada a estes fármacos não será preciso mais. – levantou-se e acompanhou-a à porta, despedindo-se formalmente e chamando o próximo paciente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>- Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho… - disse o pai que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe? Gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe.</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr., desculpe interromper… - disse a funcionária o mais delicadamente possível, sabia bem que ele ficava tempos infinitos a matutar em coisas e não gostava de ser incomodado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, diga. – regressou das suas recordações tristes, aliviado pela interrupção.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Há um pequeno problema… - confessou envergonhada. – Telefonei para a sua oficina e disseram-me que não é possível colocar barras de transporte no modelo 420 coupé…, mas a bicicleta há para entrega hoje! – rematou, tentado compensar a má notícia com a boa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que chatice… - resmungou frustrado com aquele contratempo. – Agora como é que vou levar a bicicleta?... – perguntava-se.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, eu estive a pensar numa solução, e se me der autorização, vou à garagem, meço a mala do carro e vejo se cabe a bicicleta. Já pedi as medidas dela por isso mesmo. – sugeriu Diana eficazmente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Isso, faça isso. – deu-lhe as chaves do carro e sorriu satisfeito. – Obrigada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>A funcionária saiu do escritório radiante por conseguir agradar o chefe difícil. Aquilo era uma estreia, pensava animada, só esperava que a sua ideia resultasse.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Bem, Filipe, o melhor é deixarmo-nos de sonhos patetas, não achas? Ele nunca mais cá vai aparecer. – lamentou-se Marta levantando-se do banco corrido do alpendre. Tinha imensas coisas para fazer e dera-lhe para pastelar à entrada da casa a olhar o portão. – Idiota! – insultou-se, arrastando os pés até às obrigações caseiras. Por ali era tudo feito à antiga, a Câmara prometera há anos canalização e saneamento, mas Marta já deixara de pensar nisso. Lavava tudo à mão, tirava água do poço e mantinha-se na era medieval com algum esforço e pesar. Nem sempre vivera assim, apenas se tinha mudado para ali há cinco anos, a princípio provisoriamente, mas foi ficando, ano após ano e presentemente gostava bastante de ali estar. Já não se adaptaria a um prédio ou bairro urbanizado, com gente por toda a parte e barulhos humanos. Mas se um dia pudesse ter máquina de lavar roupa outra vez, pensava sonhadora, enquanto enchia o tanque com água e colocava algum detergente para mergulhar umas peças grandes que precisavam de ficar de molho um bom bocado. No verão ainda suportava lavar à mão, mas no inverno era doloroso, fisicamente esgotante. Filipe olhava-a preocupado, como se sentisse as suas mágoas e lhe ouvisse os pensamentos, quando ficou subitamente hirto, de orelhas em pé a rodar à procura de um som em particular e de cauda alegre.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- É ele? – perguntou-lhe animada, sorrindo de orelha a orelha. – Vai lá palerma! Vai recebê-lo e trá-lo aqui. Agora não posso deixar isto por fazer. – ordenou ao cão que parecia compreender tudo o que ela dizia, afastando-se. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tirou os lençóis do tanque com alguma dificuldade, deu-lhe algumas voltas e preparava-se para os torcer, quando João surgiu com Filipe a saltitar à sua beira, como um cachorrinho feliz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá… - cumprimentou-a, curioso com as manobras estranhas que ela fazia com um pedaço de tecido gigante.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá, então voltaste? Estou a ver que gostaste da sesta. – brincou Marta que começava a suar com a força que era necessária para torcer lençóis.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Queres ajuda? – perguntou preocupado ao vê-la ganhar tantas cores com o esforço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada, agarra nessa ponta. – disse decidida – Agora viras para a direita, com força. Isso… - agradeceu aos céus ter aparecido ajuda, logo naquele momento. Normalmente ficava com dores nos pulsos depois daquela tarefa, mas adorava deitar-se em roupa de cama cheirosa, não tinha perfil para ser porca, nem mesmo por preguiça, pensava pesarosa dos seus hábitos aristocratas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Lavas sempre assim a roupa? – perguntou-lhe chocado com aquelas tarefas pesadas para uma mulher sozinha. – Isto parece ser muito difícil de se fazer sem ajuda…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Às vezes o Filipe agarra numa ponta e eu noutra, mas hoje está preguiçoso. – gracejou, fugindo à ideia de que não pudesse ser independente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E quando chove? Como é que fazes? – continuou o interrogatório, enquanto esticava a sua ponta do lençol na corda e a prendia com uma mola que Marta lhe tinha dado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tenho de esperar que fique sol. – respondeu simplesmente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- És muito pragmática. Devias ensinar alguns dos meus pacientes a serem assim, menos emocionais com as vicissitudes da vida. – sugeriu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que profundo, Sr Dr. – ironizou sorrindo e fazendo sinal para que ele agarrasse no outro lençol e repetisse com ela a técnica anterior. – Acho que os seus clientes ricalhaços têm é falta de lavar umas colchas num tanque com água fria, que é para verem o que é bom para a tosse. – escarneceu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Calma, não lhes podemos dizer como é que ficam automaticamente curados. Eu preciso de me sustentar! – gozou, torcendo a sua ponta do lençol e esticando-a perfeitamente na corda.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Muito bem. Está ótimo! Vamos ao chá, antes da prática? – disse sorrindo e caminhando para casa. Era muito fácil conversar com ele, se ali ficassem distraídos perderiam a luz natural que ainda entrava na sala.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Mas desta vez pode ser Camomila? – brincou, fazendo a mesma careta de nojo que se lembrava ter feito no café.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Com mel! – acrescentou bem disposta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Arghhh – grunhiu arrepiando-se, só de imaginar a junção de duas coisas que não gostava.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Eu logo vi que tinhas cara de não gostar de mel. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="white-space: pre;"><span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Pensei que fosses desistir das aulas, - comentou ao levantar as chávenas da mesinha de centro onde tinham estado demasiado tempo à conversa – não furaste mais nenhum pneu?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hoje vim de bicicleta, - respondeu preguiçoso sem vontade de se levantar do cadeirão fofo – amanhã não me consigo sentar, já não me lembrava de como um selim podia ser doloroso. – bocejou longamente a sentir-se cada vez mais sonolento. – Mas que raio tem esse chá que tu fazes? Fico sempre com sono…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Vamos, levanta-te daí. – deu-lhe a mão e puxou-o com vigor. – Hoje faremos menos tempo de Pranayama, senão não aprendes nada. Precisas de roupa?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Não. – disse esfregando os olhos sem vontade nenhuma de se ir exercitar. – Trouxe uma mochila com um fato de treino. Podes ir andando que já lá vou ter.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estás proibido de te tornar a sentar aí, não me vais andar a pagar para dormires a sesta. Vamos Filipe. – chamou o cão que lhe obedeceu sem reclamar, e dirigiu-se à sala de prática, deixando os chinelos à porta. Sentou-se no seu lugar, virada para a parede, a contemplar Ganesha, pedindo orientação para aquela aula. Conetava-se com o poder daquele deus quando João entrou fazendo barulho e desconcentrando-a. Teria de o educar para o silêncio, que homem barulhento, constatava divertida. Parecia ele próprio um pequeno elefante cheio de braços e orelhas gigantes, que batiam em tudo ao seu redor. O som dele a sentar-se com estrondo fê-la virar-se e olhá-lo com censura.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Estava a conversar com Ganesha, a pedir-lhe ajuda para a nossa aula. Ele diz que vai tentar manter-te acordado e que tu fazes muito barulho. – gracejou, colocando-se na posição de pernas cruzadas e mãos abertas nos joelhos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- E qual destes é esse tal de Gane… - apontou para a parede.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- O elefante fofinho. – respondeu já de olhos fechados.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Fofinho? Eu acho ligeiramente perturbador. – confessou, tentado imitar na perfeição a posição inicial.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Hum… isso diz muito sobre ti. Já reparei que vês sempre o pior de tudo em primeiro lugar. – comentou num tom já mais lento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- A Drª hoje está muito perspicaz! – gozou ligeiramente incomodado com aquele comentário.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Shh… Mãos em Shuni Mudra. – ordenou – Agora repete comigo “Ommmm”.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Tem mesmo que ser?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- “Ommmm” – reforçou mais alto, tentando não sorrir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>João fechou os olhos, satisfeito por ter finalmente encontrado uma amiga que compreendia o seu sentido de humor. A primeira mulher bonita a que apenas teria de dedicar amizade, pensou feliz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9053232852749271766.post-46744617318213522142020-07-21T01:56:00.000-07:002020-07-21T01:56:19.301-07:00"A Mala Vermelha" - Capítulo 3<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span> </span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjz5T006u9fcgXqmFMOmN03TXy0ms7G47Y4ufWPoCYCTb0ioh04-V1Gto7MpkuYhFdqBxaXwZSrA-FRHKzXESxIoHXTnNMHc_7Bui_WtX-E4drz6WTaY0gD_t-vqoYiC1UGBLf0ejxAm6c/s1600/tantra2-3e0fa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="399" data-original-width="299" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjz5T006u9fcgXqmFMOmN03TXy0ms7G47Y4ufWPoCYCTb0ioh04-V1Gto7MpkuYhFdqBxaXwZSrA-FRHKzXESxIoHXTnNMHc_7Bui_WtX-E4drz6WTaY0gD_t-vqoYiC1UGBLf0ejxAm6c/s320/tantra2-3e0fa.jpg" width="239" /></a></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><i>- Não sejas teimosa, isso não combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de palermices. </i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Acordou do transe com o bater insistente da porta do consultório.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, entre. – disse, ainda angustiado com as lembranças que não o deixavam em paz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Olá boa tarde, Dr. – sussurrou uma mulher de meia idade, de olheiras fundas e cor acinzentada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Boa tarde, sente-se por favor. O meu nome é João, - cumprimentou-a com um passou bem, fazendo o ar mais profissional que conseguia, impressionado com o aspeto degradado e sem vida a que algumas pessoas chegavam.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Obrigada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Então, comecemos pelo início, como se chama?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span><i>A casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la. Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois. Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele, a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso. Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro “filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado afogar-se… </i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><i><br /></i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Dr., peço desculpa, mas acho que já passou uma hora… - disse a medo, não queria ser indelicada.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Sim, claro. Estava aqui a pensar no que me tinha dito. – desculpou-se sem grande convicção. As mãos começavam-lhe a suar, e teve de limpar as palmas nas calças, antes de prescrever os remédios. – Quero que comece por tomar 1 destes, e consoante a sua recuperação, quando se sentir mais calma, reduza para meio. Se conseguir, até à próxima consulta, deixe de tomar, e depois conversamos melhor. – sorriu-lhe satisfeito, ao ver um rasgo de esperança no olhar da paciente. Se ao menos ele fosse tão fácil de convencer. Seria tudo mais simples. Alguém lhe diria: “toma um destes e vais ficar curado!”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Muito obrigada, Dr. – exclamou feliz, pegando na receita como se de algo sagrado se tratasse. – Então até daqui a um mês.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Adeus, e as melhoras. – levantou-se, como habitualmente e acompanhou a senhora à porta, fechando mais um dia de loucuras e desesperos alheios.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tinha estado todo o dia em ansiedade, não percebia bem o motivo. Desde o dia do chá de camomila que sentia umas ânsias que iam e vinham, e a culpada era ela, a porcaria da mala. Já pensara em arranca-la à força da mulher, queimá-la num ermo, acabar de vez com aquilo, mas por ironia do destino, ou simples azar, a mulher evaporara-se. Quase que entrara no piso da Oncologia, só para a procurar, mas as pernas não obedeciam, e limitava-se a fazer tempo no hall de entrada, na esperança de que ela tornasse a sair pelas escadas de incêndio. Sentia-se um perseguidor ridículo, mas tinha de resolver aquele assunto, senão nunca mais teria paz.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tornou a sentar-se no sofá impessoal do rés-do-chão, esperou duas horas, e nada. A maluca desaparecera. Passou pelo café, só para se certificar de que ela não estava a beber o chá horroroso, mas também não havia sinal dela, nem a tinham visto desde o dia em que conversaram na mesa do canto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>Já pensara em telefonar-lhe, mas dir-lhe-ia o quê? “olha, dá cá a tua mala que tenho de a destruir! Obrigado”, era tão ridículo que assustaria a mulher. Olhou o cartão e estranhou uma vez mais alguém só ter número de telefone fixo. Maluca… rosnou frustrado. Não tinha morada, só nome, telefone e umas estrelas desenhadas à mão, poderia aquilo ser mais excêntrico? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><span style="white-space: pre;"> </span>- Que burro! - exclamou de repente, ciente de que na sua paranóia não percebera o óbvio; o número fixo e o nome deviam aparecer na lista amarela, ou como é que se chamava aquele antigo calhamaço com os números de todos e de toda a gente, pensava com o coração na boca, enquanto corria de volta para a clínica para tentar encontrar uma Lista Telefónica. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Entrou esbaforido em direção ao balcão de informação e por sorte havia lá numa gaveta uma lista significativamente mais fina que aquelas de que se lembrava. Claro, só as empresas e meia dúzia de pessoas mantinham números de telefone fixos, concluiu cheio de si, enquanto folheava o livro freneticamente. À primeira não encontrou o apelido dela no local óbvio, mas depois de reler as páginas dos nomes começados por P descobriu o local onde estaria o objecto da sua tortura. Arrancou a página sem pensar, meteu-a no bolso e dirigiu-se à garagem da clínica em passo apressado. Escreveu a morada no GPS do computador de bordo e esperou batendo os dedos no volante pela direção correta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">“Avance 50 metros e vire à direita!” – ordenou a voz de José Sócrates, uma piada que tinha instalado na memória do GPS, para distrair a cabeça sempre que não lhe apetecia ouvir música. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, Sr Ex-Primeiro Ministro! – respondeu animado, acelerando para fora da garagem e cortando à direita.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Nunca tinha estado naquela zona verdejante da cidade, onde não havia um único asfalto decente, o que o aterrorizava, visto que o seu carro era pouco dado a caminhos de todo-o-terreno. Cada solavanco eram facadas na suspensão do desportivo coupé que lhe tinha custado os olhos da cara. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Caramba!, se te estás a enganar no caminho, troco-te pelo António Costa. – praguejou contra as indicações do GPS falante. Seria possível que alguém no seu perfeito juízo quisesse morar num sítio daqueles? Se ali houvesse um fogo morria tudo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Um buraco enorme surgiu sem que João percebesse a tempo, ou conseguisse evitar, raspando o carro com demasiada força no chão, provocando-lhe um arrepio na espinha.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Merda! – praguejou alto, parando o carro e saindo para se certificar de que ainda não havia peças soltas pelo chão. Deitou-se na terra batida para espreitar por debaixo do carro, que parecia ainda intacto, suspirou de alívio, quando vislumbrou um dos pneus bastante mais vazio que os restantes. – Oh não… - engoliu em seco, pensando na trabalheira que iria ser mudar ali um pneu sozinho, sem assistência em viagem, e nem sabia ao certo se aquele modelo ainda trazia pneu sobresselente, ou vinha equipado com aquelas modernices de remendos que não sabia como funcionavam, muito menos ao final da tarde que ameaçava a escuridão da noite num ermo isolado. As guinadas na coluna começaram a avisá-lo de que precisava de ser mais calmo e pragmático, senão iria entrar em pânico no meio de nenhures, como uma adolescente com chiliques. Respirou fundo e decidiu conduzir mais um pouco até à casa da maluca, já não faltava muito e talvez ela o ajudasse.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Sentou-se ao volante, sentindo-o escorregar das mãos suadas e sujas de terra, desabotoou alguns botões da camisa outrora imaculada e abriu o vidro para respirar melhor, sentindo-se a ceder à ansiedade. Conduziu o mais lentamente possível, na tentativa de minimizar os estragos na roda, praguejando contra os seus impulsos idiotas que lhe iam custar caro. Tudo aquilo para encontrar a mala e ainda não conseguira imaginar como a iria “roubar” da mulher para concluir o seu plano alucinado. Respirava ritmadamente, como uma mulher em trabalho de parto quando “Sócrates” o felicitou pela chegada ao destino. Olhou em volta e ficou estático sem saber como reagir. Não havia sinais de campainha, nem badalos que avisassem o proprietário de visitas, como se faria anunciar?, pensou, cada vez mais ansioso. Não podia sequer fugir dali, precisava de ajuda para arranjar o carro…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Saiu do veículo, trancou-o e avançou receoso, só esperava que não houvesse cães na quinta, suspirou aterrorizado com a ideia de ser mordido. Detestava aqueles bichos barulhentos e estúpidos, e não era amado de volta. Desde criança que transmitia uma energia maléfica qualquer que fazia o mais fofinho dos cachorros morder-lhe os calcanhares. Empurrou o portão, e entrou no terreno, em posição de defesa, em alerta total para correr no sentido contrário se ouvisse ladrar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Já fizera metade do caminho que dava acesso à casa de madeira pré-fabricada, quando surgiu das traseiras o mais horrendo de todos os canídeos, que avançava em silêncio na sua direção, com cara de poucos amigos. João deu meia volta e começou a correr, olhando freneticamente o portão e o cão. – Merda, merda! – berrava – Isto não está a acontecer! – choramingou desesperado, percebendo que não teria hipótese de ser mais rápido que aquelas quatro patas enormes. O cão saltou apanhando balanço do sprint e deitou-o ao chão com facilidade, mantendo-se possessivamente em cima de João, que se mantinha de olhos fixos e aterrorizados na bocarra babosa do bicho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Filipe! Filipe! – gritou uma voz de mulher ao longe, mas quem seria o Filipe, perguntava-se João confuso, mas mais aliviado por saber que afinal alguém o iria ajudar. – Filipe! – ralhou a voz – Larga já o Senhor!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Marta tirou o enorme cão de cima de João, que parecia em pânico, pálido e sem reação. – Eu peço desculpa, espero que ele não o tenha aleijado… - começou a dizer estendendo-lhe uma mão para o levantar – Mas… és o psiquiatra do café! – exclamou nervosa. O que faria ali aquele doido, e como tinha dado com a sua casa?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ainda bem que apareceu… - sussurrou João de joelhos, tentando levantar-se com as pernas trémulas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Está todo sujo, veio até aqui a pé? – perguntou receosa de que ele fosse ainda mais maluco do que lhe parecera naquele dia do café.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não, vim de carro. Aliás, precisava que me ajudasse… - conseguiu dizer, ainda em choque com a queda e o ataque daquela besta. – Tenho um pneu furado.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Vamos lá então ver isso. – disse mais aliviada. – Filipe, Fica! – ordenou, sendo prontamente obedecida pelo cão, que se sentou diligente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Está aqui fora, vim até aqui com medo que escurecesse no meio do caminho. –confessou sem se aperceber. – Estava a ver que partia o carro todo por baixo…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- O que é isto? – exclamou Marta com entusiasmo ao ver o carrão desportivo de João parado ali à sua porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Um BMW 420d coupé… - respondeu prontamente, satisfeito com a reação dela. Era de facto um carro muito bonito. Olhava-a de boca aberta a admirar a sua bomba azul metalizado, e abriu o carro com o comando, para que ela pudesse verificar também os interiores, que não ficavam atrás daquela primeira impressão de quem via de fora. Marta deslizava com a mão nas curvas do carro e aquela visão era demasiado sexy para não o perturbar. Deixou cair as chaves com a surpresa dos gestos sensuais da mulher e regressou à realidade, concentrando-se no pneu, a fazer esforço para não a olhar como um tarado. Precisava de ajuda e ela era a única habitante das redondezas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- E trouxeste este carro até aqui? Que crime. – afagou o tecto do veículo, como se acariciasse algum animal gigante em sofrimento.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, já me arrependi. – disse secamente, ao se aperceber de que o modelo era dos tais que traziam remendos. – Porra! – resmungou – Eu agora sei lá onde está o furo para remendar…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ah, pois, estes bebés são assim, muito temperamentais. – brincou, apreciando o mau humor do homem que precisava da ajuda de uma mulher para solucionar problemas masculinos. – Agora só chamando a assistência em viagem. – concluiu, começando a caminhar de volta para casa. – Se quiseres, podes entrar e esperar lá dentro. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João seguiu-a frustrado, aquilo iria demorar, mais valia esperar com companhia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A decoração da casa surpreendeu-o pela positiva, tinha imaginado velas e incensos a fumegar, à imagem e semelhança da forma excêntrica de vestir de Marta, mas tudo ali era simples e acolhedor, como se estivessem em casa de uma terceira pessoa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Senta-te. – ordenou-lhe Marta, enquanto se dirigia à cozinha, como se aquela presença não a incomodasse. Tinha percebido o efeito que a sua espontaneidade provocara no homem, quando admirava o carro, e isso seria um problema. Não estava minimamente preparada para lidar com emoções carnais ou sentimentais.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Porque é que o cão se chama Filipe? – perguntou a medo, intimidado pela vigilância que o animal lhe fazia, mesmo sentado à sua frente, sem piscar os olhos. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Porque tem cara de Filipe. – respondeu de volta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ah… ok. – engoliu em seco, tentando desviar o olhar do cão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Chá? – ironizou Marta, trazendo um tabuleiro com duas chávenas e um bule que fumegava. – Parecia que estava a prever receber visitas, tinha colocado água ao lume e tudo. – sentou-se no sofá, cruzou as pernas à chinês, colocando a longa saia por cima e serviu-os. – Então agora, antes de eu mandar o Filipe atacar, explica-me o que fazes aqui em minha casa e convence-me de que não és um criminoso, maluco e psicopata.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Claro, desculpa, deves achar que sou tudo isso… - tentou alcançar a chávena no tabuleiro, mas o cão não lhe permitia qualquer movimento para fora do sofá, e Marta teve de lha entregar, sorrindo sarcasticamente. – É de Camomila? – perguntou submisso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não, Tília.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ah, cheira muito bem…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Vamos, chega de salamaleques. – disse já a perder a paciência.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Eu fiquei a pensar naquela tua proposta das aulas de yoga… - começou a inventar à pressão, tentando abstrair-se do animal – e…, bem, queria saber se sempre estavas disposta a ajudar-me,… porque eu não queria ir praticar isso no meio de uma sala cheia de gente. Ou seja, precisava de aulas particulares, se estivesses disposta, claro. Poderia pagar-te o que achasses ser justo pela tua exclusividade, claro. – disse, sem perceber de onde lhe vinha aquele discurso maluco.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Hum… e não podias ter telefonado? – perguntou desconfiada daquele motivo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Pois… - merda, pensou envergonhado, não tinha pensado nessa hipótese – Eu liguei, várias vezes, mas nunca atendeste. – mentiu, sem vergonha, suspirando de alívio ao ver a cara de convencida dela.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- É possível. Eu detesto telefones, se fosse ao contrário, possivelmente também iria falar pessoalmente. – pensava em voz alta.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- E então? Podes ajudar-me a conviver melhor que o meu lado profissional? – perguntou já a encarnar no personagem.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Talvez. Apenas preciso que saibas de uma coisa sobre mim, para então decidires se sempre queres aulas particulares. – explicou séria – Eu sou lésbica. – lançou sem piedade, angustiada ao ver um desapontamento no olhar dele. Mas porque é que tinha dito aquilo? Lamentou-se em pensamentos. Queria distância sentimental, não enganar o homem.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Ok, parabéns. – que pena, pensou desiludido. Era bonita demais para ser gay. Mas o importante ali era encontrar a mala e resolver o problema. </span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não é um problema para ti? – perguntou espantada com a frieza dele.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Não, eu só quero aulas de yoga, não arranjar namorada. – escarneceu, sentindo-se miserável. Como poderia uma lésbica ser tão sensual, ali sentada à chinês de roupas andrajosas?</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Bem, se fosse hétero poderíamos chegar à lição prática do sexo tântrico, mas sendo assim, dou-te a teórica apenas e depois tu praticas em casa. – respondeu vingativa, reagindo à frieza com que ele a desdenhava. </span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João cuspiu parte do chá que bebia com ar de superior.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sexo quê? – balbuciou, limpando a boca com um guardanapo que ela lhe estendeu.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Bem, estou a ver que vamos começar Mesmo pelo princípio. – lamentou-se teatralmente, enquanto se dirigia a uma prateleira carregada de livros e procurava um dos manuais da prática para principiantes. – Aqui está! Levas este e vais lendo em casa. Agora vou arranjar-te uma roupa confortável e vamos esticar a coluna. – saiu da sala e deixou-o aparvalhado com o livro nas mãos. </span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João olhava o calhamaço sem saber o que pensar, era tudo tão estranho e diferente do que estava habituado, a casa, a mulher, os modos dela, talvez fossem assim as lésbicas, matutava, de facto não conhecia pessoalmente nenhuma, pelo menos que soubesse. Pegou no telemóvel, que tinha pouquíssima rede dentro de casa e levantou-se devagar, sem tirar os olhos do cão, que o seguiu em silêncio até ao alpendre, para tentar chamar a assistência em viagem. Pediu a ajuda necessária e foi informado de que o serviço seria efetuado nas próximas quatro horas, o que o deixou mais aliviado com a esperança de que ainda sairia dali a tempo de ir jantar e dormir.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A mulher demorava-se lá dentro e João aproveitou para dar uma vista de olhos pela sala para tentar encontrar a mala, o que o tinha levado até aquele sítio inóspito. Não podia mexer-se com rapidez, temia que o cão o atacasse, e mantinha-se calmo a olhar todos os cantos, mas nada de carteira, pensava frustrado.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Quando quiseres, podes mudar de roupa e vamos lá para dentro. – disse Marta que apareceu de repente, entregando-lhe uns trapos coçados e feios.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Lá para dentro? – perguntou desconfiado. Ainda bem que ela era lésbica, pensou aliviado, aquilo estava a tornar-se bem desconfortável.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Sim, fica à vontade, eu vou andando para a sala, quando estiveres pronto, última porta à direita. – explicou calmamente, deixando-o sozinho com Filipe.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">João tirou as suas roupas sujas e formais e vestiu as calças largas e a t-shirt olhando-se ao espelho horrorizado. Parecia um hippie desvairado, de meias caras calçadas. Avançou na direção da sala e entrou receoso em silêncio. Não se sentia nada confortável, aquilo tinha sido a pior ideia de sempre, mas agora o mal já estava feito, disse a si mesmo resignado, sentando-se no chão a observar a mulher que se mantinha de costas para ele, naquela posição de chinês, virada para a parede, que continha símbolos estranhos e bonecadas feias, serpentes, elefantes, mulheres com dezenas de braços, dantesco e nada acolhedor, como o resto da casa que conhecia.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Quando quiseres, podemos começar. – disse quebrando o silêncio enervante da sala.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Shhhh, aqui não se fala, sussurra-se. – avisou-o baixinho, num tom quase em surdina, voltando-se para ele e indicando-lhe com um gesto de mão que imitasse a sua posição. – Pernas cruzadas, por favor, a esquerda por dentro, mãos poisadas nos joelhos, palmas para cima. Olhos fechados, e respira calmamente. – enumerou num ritmo cadenciado, fazendo os gestos correspondentes. – Para praticar yoga é preciso apenas isto, silêncio, respiração controlada, e é isso que hoje vamos fazer: Pranayama, a expansão da força vital com exercícios respiratórios, traduziu calmamente. </span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Aquilo era difícil, muito mais difícil do que imaginara. Ficar sentado de olhos fechados apenas a respirar, lamentava-se João que ouvia a sua mente em agitação com aquela prática anti-natural. Estava constantemente a ser tentado a espreitar a sua professora, que se mantinha num transe qualquer sem reagir, a fazer o tal Prayamama ou como é que aquilo se chamava.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">- Pouco barulho! – repreendeu-o Marta, que sabia que ele continuava a pensar demais. Levantou-se em silêncio e colocou-se por trás de João a corrigir-lhe a postura das costas e cabeça. Carregou-lhe nos rins, forçando-o a inclinar a bacia para a frente, baixou-lhe os ombros hirtos e colocou-lhe a cabeça na posição certa, sentindo-o muito quente e nervoso. – Agora mantém-te assim, o polegar a tocar o dedo do meio, em Shuni Mudra, que te vai ajudar a concentrares-te e deixares os pensamentos de lado. Respira só com o abdómen, sem levantar os ombros, inspira devagar, barriga para fora, até onde conseguires, e expira pela boca, apertando o estômago, deitando todo o ar fora, até aquele que achas que já não tens lá dentro. – enumerou naquele tom melódico e quente, que o descontraiu automaticamente.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Marta levantou-se e colocou uma música suave de um Mantra calmante, observando-o curiosa. Era um bom aluno, com um bom corpo para a prática, talvez ainda conseguisse fazer dele um yogi. Sentou-se na sua frente, limpou a cabeça de emoções e dúvidas e imitou-o. </span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Passou mais de meia hora, e Marta regressou à realidade, abrindo os olhos e espantando-se ao dar com João caído de lado, a dormir profundamente, como uma criança, com a cabeça de Filipe, que também ressonava, sobre o seu peito. A respiração ritmada acalmara-o demais, pensou divertida, saindo da sala e voltando com uma manta para o tapar. Deixou-o aconchegado e desligou a luz.</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(direitos reservados, AFSR)</span></div>
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<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">(imagem, internet)</span></div>
Ana Filipa Rosahttp://www.blogger.com/profile/15437172914921890126noreply@blogger.com0