terça-feira, 22 de outubro de 2019

1969 - Capítulo 1


Um dia perguntei à minha mãe se se podia sonhar acordado, expressão que ouvira já não sei onde. Ela respondeu-me que sim, o que me espantou, e explicou-me que era quando imaginávamos coisas e não estávamos a dormir. Nunca me esqueci disto, não sei porquê, recordo-me até do local onde lhe fiz esta pergunta, só não podia imaginar que iria sonhar tanto acordada, ao longo da vida. Como qualquer história que me vai surgindo na cabeça, esta começou por ser um conjunto de personagens que me apareceram quando deixava a mente vaguear por esse limbo de quem não está a dormir, mas também não está propriamente com os pés assentes na terra. Desta vez andei por Tomar, passeei pela Mata dos Sete Montes, vi a festa dos Tabuleiros e comi Fatias de Tomar. O resto foi tudo vivido pelos personagens! ;)

Boa viagem!



Capítulo 1

1968
Dentro da camioneta vivia-se um clima abrasador, numa mistura de cheiros intensificados pelos 35 graus daquele dia de verão, lugares lotados e todo o tipo de trabalhadores rurais das redondezas entusiasmados com a visita à famosa festa dos Tabuleiros. Um cortejo que Ricardo Maria nunca tinha visto ao vivo, mas do qual já tinha visto fotografias e reportagens. Sentia-se a derreter dentro do fato, com suor a escorrer pelo pescoço a empapar o colarinho da camisa, imaculadamente engomado pela irmã mais velha nessa manhã. Iria ser difícil encontrar em Tomar alguém com mãos sensíveis para a roupa como Manuela. Sorriu com ternura ao recordar a despedida das suas mulheres, seis irmãs e a mãe, que o encheram de mimos e prendas para a sua nova jornada como Professor da Instrução Primária tão longe de casa. Tecnicamente ainda nunca trabalhara um ano lectivo completo e sozinho, essa responsabilidade tinha sido sempre dividida com a irmã mais nova, que o ajudava sempre às escondidas do Diretor do Colégio Progresso, mas estava na hora de assumir que conseguiria ensinar tão ou melhor sem ela, a sua "namorada" secreta, como gostavam de a apelidar na brincadeira, visto que andavam sempre aos cochichos e segredos, como dois miúdos cúmplices. Tinha com cada uma das irmãs uma relação diferente, mas sendo o mais novo de todos, aprendera desde cedo a entender cada uma delas, os seus temperamentos, defeitos, virtudes, adaptando-se inteligentemente ao complicado mundo feminino e seus mistérios. Era um homem de 30 anos solteiro, mas com mais experiência em mulheres que qualquer cinquentão a celebrar bodas de prata. Essa convivência extrema era na realidade a causa de nunca se ter enamorado o suficiente de nenhuma outra mulher, pois tinha elevados padrões de beleza e intelecto. Seria impossível encontrar uma rapariga bela como Manuela, inteligente como Isabel, cozinheira como Luísa, doce como Laura, divertida como Margarida, dedicada como Diana e claro, que cantasse melhor que Maria, a mãe. Muitos diziam nas suas costas que ele era mais Maria que Ricardo, brincando com o terrível facto de que o seu nome era estranho e híbrido, e com o seu aparente desprezo pelo sexo feminino. Só ele, e todas lá em casa sabiam como isso era mentira, Ricardo amava as mulheres, mas era dominado desde pequeno por sete, que lhe consumiam todo o tempo do mundo, e ele adorava. Receava as saudades que iria ter do barulho que uma casa cheia conseguia ter, das confusões entre elas, das alegrias das horas das refeições, de toda aquela energia com que vivia há 30 anos. Tinha ido mais cedo para Tomar para encontrar uma casa, recusando a companhia do seu harém, que iria certamente assustar a pequena vila ribatejana. Queria chegar discretamente, sem rótulos, para se adaptar e conhecer tudo com calma. Se era uma aventura, iria vivê-la à sua maneira.
Ouviu um travar esforçado e estridente e a populaça entusiasmou-se automaticamente ao pararem finalmente no destino, levantando uma euforia desenfreada, como se tivessem vindo todo o caminho a poupar as energias para a festa. Ricardo deixou que todos passassem, para esticar as longas pernas com calma e restituir aos joelhos rígidos a circulação sanguínea que lhe permitisse andar sem parecer coxo. Fechou os botões do casaco, depois de se sacudir energicamente para retirar as dobras da viagem, e tratou de encontrar os seus pesados malões, para os quais teria de arranjar ajuda no transporte, pois traziam todo o tipo de necessidades primárias sabiamente empacotadas pelas irmãs. Rapidamente surgiu um voluntário desejoso de ganhar uns escudos, e encaminharam-se para a casa do Diretor da Escola Primária de Tomar que lhe iria dar estadia nos primeiros tempos, caminhando com dificuldade pela multidão entusiasmada que já se juntava no início da rua.
- Escolhi mal o dia para chegar com estes malões. - comentou com o rapaz que se esforçava para equilibrar o retângulo gigante e pesado na cabeça, passando estrategicamente pelo meio de participantes do cortejo, músicos de banda, e todo o tipo de curiosos que se amontoavam nas imediações da estrada.
- Hoje é o dia mais lindo do ano! - respondeu, sorrindo com um ar meio tonto. - Veio ver os tabuleiros? - gritou-lhe por debaixo do braço, olhando-o com dificuldade.
- Sim, e não. - e ia começar a explicar a sua resposta vaga, quando o rapaz pareceu conformado e esclarecido, virando-lhe as costas e continuando feliz a caminhada mais rápido que o que seria desejável, para quem transportava à cabeça um malão no meio de tabuleiros que se alinhavam para o início do cortejo. Parecia ele uma das raparigas de branco, orgulhosas na sua tarefa de carregar um monstruoso conjunto cilíndrico de flores e pão, com o tamanho de uma pessoa, que, segundo tinha lido, simbolizava o agradecimento ao divino pelas colheitas que sustentariam a população durante o ano.
- Não caminhe tão depressa... olhe que se alguém se desequilibra damos cabo da festa! - gritou, tentando acompanhar o ritmo decidido do rapaz, quando o pobre desmiolado se virou para trás para lhe acenar afirmativamente e bateu com uma das pontas do malão num cotovelo de uma rapariga que sustentava um tabuleiro. Ricardo gelou, ao ver a cena em câmara lenta, e num ato que viria mais tarde a ser aclamado como heróico, salvou a festa dos Tabuleiros ao se estatelar no chão de terra batida para receber o monstro cilíndrico que se desfaria em mil pedaços se embatesse no chão de chofre, desamparado. Quando abriu os olhos, uma nuvem de pó tirava-lhe a visibilidade, e o peso do tabuleiro não lhe permitia limpar a terra que lhe cobria a cara, ficando momentaneamente cego, à espera que alguém o viesse socorrer e tirar o objeto pesado de cima. Vários gritos o rodeavam, e ao mesmo tempo que homens erguiam o tabuleiro, uma mão fresca e molhada lhe restituiu a visão. Uma mulher entre as idades de Manuela e Isabel, de aliança, viu de logo de relance, ajudava-o a limpar a cara, sorrindo-lhe como se estivesse mais divertida que grata, o que o surpreendeu.
- Está bem? Não se magoou? - perguntou-lhe, olhando-o maternalmente.
- Sim, sim, muito obrigado. - olhou-se de alto a baixo, analisando o estado em que ficara a sua roupa, o melhor fato que tinha trazido propositadamente vestido no corpo, com medo que os mimos das irmãs dentro do malão o destruíssem. - Este fato é que já era... - lamentou-se, visivelmente chateado com aquele contratempo. Olhou o rapaz duramente, estava capaz de o desfazer, por sua culpa iria andar vestido como um simplório até que conseguisse encontrar um alfaiate em condições.
- Não se preocupe, o meu tio é alfaiate, pode ser que ainda hoje consiga remendar alguma coisa... - disse, satisfeita por tentar ajudar.
- Remendar?! - olhou-a escandalizado com aquela proposta. Se Manuela ali estivesse tinha um chilique, ao vê-lo todo amarfanhado de horas sentado numa camioneta e puído da queda no chão de terra. - A culpa é toda tua, atoleimado! - berrou ao rapaz que olhava o chão submissamente sem conseguir falar.
- Não precisa de ser bruto! O Toninno não fez por mal! Ele estava a ajudá-lo. - insurgiu-se a mulher, ofendida, como se defendesse um filho - Não fiques assim querido, - consolou-o, abraçando o rapaz que parecia ainda mais tonto - o Sr está só nervoso, não fizeste de propósito. Já passou. - Fez-lhe uma leve festa na cara e virou a Ricardo uns olhos mortais, puxando o rapaz para longe dele, deixando os malões espalhados na estrada. Ricardo suspirou, levemente culpado com a sua reação exagerada, e tratou de apanhar os seus pertences e procurar outro ajudante, preferencialmente que não sofresse de distúrbios mentais, pensou. A menina do tabuleiro prontificou-se a ajudá-lo, como pagamento pelo salvamento do seu precioso cilindro de flores, que levara meses a construir e encontrou prontamente outro voluntário.


Descobriu que a casa do Diretor Sidónio Silva era bem perto dali, na Avenida Cândido Madureira, e foi com grande alívio que pôde finalmente refrescar-se e compor a sua figura, limpando-se o melhor que conseguiu, depois de uma efusiva receção com honras de Estado que o deixaram desconfortável. O desânimo que sentia por conta do seu desalinho no fato amarrotado e sujo tirava-lhe a vontade de assistir o cortejo, mesmo que da janela, engalanada com todo o preceito para o convidado especial, mas não poderia fazer a desfeita ao seu novo chefe, e enquanto não alugasse uma casa, o seu senhorio. Aceitou um refresco de limão e uma fatia de Tomar, uma iguaria conventual que o animou ligeiramente e colocou-se estrategicamente no local indicado pelos donos da casa, orgulhosos da sua posição privilegiada na rua, de onde se via o cortejo "como um Rei"!, comentara o Diretor ruborizado dos quilos a mais e do calor abrasador que se sentia. Queria mesmo era retirar-se para o seu quarto, despir aquela roupa e sentir a brisa do fim de tarde que se adivinhava. Encostou-se à janela, onde batia um sol abrasador, e já o cortejo desfilava devagar, colorido e definitivamente belo, constatou, impressionado com a resistência daquelas mulheres a carregar na cabeça os tabuleiros gigantes e pesados que davam todo o sentido à festa. As ruas de Tomar pareciam pintadas com milhares de cores e desenhos, feitos com flores de papel, mas eram aqueles breves momentos de desfile que simbolizavam para os tomarenses o orgulho da festa. Uma música ouvia-se no fim do cortejo dos mordomos, e Ricardo animou-se com a cadência certa com que a banda parecia tocar. Era raro encontrar músicos amadores bem comandados, e para um ouvido absoluto como o dele, um suplício ouvir música arrastada e desafinada. Cada vez se abstraía mais dos sons externos e se concentrava na música que caminhava na direção da casa do Diretor, trazendo com ela uma brisa mais fresca que denunciava o início do fim de tarde. Um clarinete dançava em cima dos outros instrumentos, brincando com as harmonias e Ricardo esticou-se para conseguir descobrir o músico brilhante que ali andava escondido numa banda filarmónica, excitado por saber que havia dotados por ali. A sua boca abriu involuntariamente quando percebeu que era uma mulher, a que o tinha ajudado a limpar a cara e lhe tinha prestado o primeiro auxílio depois de ter caído estatelado no chão. Não se espantava por uma mulher saber tocar, em sua casa todas eram instrumentistas de alguma coisa, mas pelo facto de ir vestida como um homem, de calças, com as formas delineadas e expostas, numa tentativa nada conseguida de se misturar no meio dos outros músicos masculinos. Aquele pormenor parecia não chamar a atenção de mais ninguém a não ser ele, e Ricardo não fez qualquer comentário, limitando-se a captar com luxúria disfarçada os contornos voluptuosos da mulher, em silêncio, procurando fugazmente sinais de um marido que parecia não se importar com a partilha das nádegas da esposa com a população, enquanto fumava calmamente uma cigarrilha aromática.
- Linda a festa!, não é? - perguntou Sidónio entusiasmado com aquela vista privilegiada de todos os acontecimentos do cortejo - Este é ou não é o melhor lugar da vila? - insistiu fanfarrão.
- Linda... Uma verdadeira luxúria! - comentou, divertido, ainda impressionado com as formas da clarinetista.
- Pois bem, tenho a dizer-lhe que já aqui estiveram centenas de individualidades, nesse mesmo lugar onde o Professor está! - explicou, com orgulho - Até um Ministro! - acrescentou arregalando os olhos.
- Só tenho a agradecer-lhe a honra e o prazer de me ter proporcionado esta vista! - exclamou, animado com a música e a visão.
- Venha, venha, que os tabuleiros já lá vão e a minha esposa já nos aguarda para a ceia! - disse Sidónio, cravando uma frustração aguda em Ricardo, que relutantemente obedeceu e deixou a janela, seguindo o homem esfomeado que já tinha enfardado quatro fatias de Tomar e três brancos fresquinhos. - O Professor senta-se aqui, à minha direita, a Tininha ao lado do Professor, a mãe ao meu lado esquerdo e a Lucinda a seguir! - distribuiu os lugares sem hipóteses, tomando as rédeas da sala de jantar abafada. Tininha era a única filha do casal, uma bela rapariga ainda na flor da idade, constatou Ricardo, ainda não deveria ter 18 anos, mas olhava-o como mulher, o que o deixou apreensivo. Não queria problemas com o chefe, que parecia não perceber nada de mulheres, ao sentá-la tão perto do convidado, remoeu, tendo o cuidado de se colocar afastado o suficiente para que não houvesse necessidade da miúda se roçar nele. A mãe, Lucinda, era de sorriso fácil e pareceu-lhe agradada com o seu posicionamento estratégico junto da adolescente, mais esperta que o marido e genuinamente afável, feliz por ter companhia para conversar, o que parecia ser raro às refeições naquela casa. A avó era um autêntico vegetal, quase que Lucinda lhe dava a comida na boca, orientando-a durante todo o tempo, carinhosamente, Sidónio era daquele tipo de chefes de família que só gastava latim com outros homens, e Tininha olhava-o embevecida e levemente excitada, sempre que Ricardo lhe dirigia perguntas de ocasião. Teria de aguentar aquilo durante uns dias, resignou-se, dando graças por no entanto ter tido o acolhimento naquela casa e não ser necessário sujeitar-se a uma residencial, ou coisa pior, onde duvidava que escaldassem os lençóis depois de usados. Tinha regras e hábitos de higiene rigorosos, incutidos pela mãe e postos em prática por Manuela e Laura, as responsáveis pelas roupas da casa e ciosas higienizadoras de todos os tecidos que tocassem o corpo. Imaginar-se numa cama deitado nuns lençóis anteriormente utilizados para o coito dava-lhe calafrios e comichão.

Depois de uma ceia faustosa que parecia nunca mais terminar, desculpou-se ao dono da casa e restantes familiares e pediu licença para se retirar e descansar. Sidónio ansiava por visitar um ou dois cafés com o convidado, mas Ricardo não bebia quase nada comparado com ele e já lhe turvava o olhar, depois da aguardente caseira que fora obrigado a engolir. Ainda sentia o ardor da bebida no esófago, a queimar-lhe as entranhas, quando se deitou, e esperou que o sono viesse. Fazia-lhe falta o chá de Tília de Diana, antes das boas noites, e o rosário de despedidas que se alinhavam quando Ricardo deixava as mulheres na sala ao final do dia e se isolava no quarto. Hábitos que teria de perder, mas que naquela noite pareciam não lhe sair da cabeça. No dia seguinte iria telefonar-lhes e sossegá-las de que o quarto era asseado e minimamente confortável, estava bem instalado, pelo menos enquanto ali estivesse na casa do Diretor.
Adormeceu já altas horas da noite, incomodado com as melgas e a digestão difícil daqueles novos temperos e iguarias fortes demais para uma ceia. Pensou em variadas formas educadas de recusar alimentos tão fortes nos próximos jantares, e sugerir refeições leves e frescas, como fazia Luísa durante os meses quentes de verão. Eram demasiadas mudanças para alguém que vivia há 30 anos no meio de mulheres solteiras e com uma adoração e dedicação exclusiva ao irmão mais novo, desde que nascera, pensou, desculpando-se pelas críticas e reclamações que lhe surgiam. Perderam o pai quando Ricardo era ainda bebé, e pareciam devotadas a manter o único espécime masculino vivo e nas melhores condições possíveis. Tinha por isso de admitir que era o que vulgarmente chamavam de mimado.



- Muito bom dia, Professor. - exclamou educadamente Lucinda, que o encaminhou para a mesa do pequeno-almoço - Queira fazer o favor de se sentar. Vou buscar o café, o Sidónio ainda dorme, mas faço-lhe companhia à mesa.
Ricardo detestava café, mas receou ofender a mulher e como ainda se sentia dormente da aguardente decidiu fazer um esforço e beber o estimulante a que não estava habituado. Tinha que procurar o tal alfaiate, ir conhecer as casas que já tinha em vista e analisar bem o estado de cada uma antes de se decidir pela sua futura morada, a cafeína seria necessária, concluiu, sorrindo à dona da casa quando esta voltou da cozinha animada.
- Está tudo com ótimo aspeto, obrigado. - agradeceu, lançando-se ao pão fresco que ainda fumegava - Não queria que se sentissem na obrigação de me tratar com cerimónias. Podem tratar-me como se fosse da casa. - acrescentou, lembrando-se de que teria de sugerir comeres menos pesados para a noite. - Não estou acostumado a comer muito à noite, por isso, qualquer caldinho me basta.
- Oh, caldinho..., o Sidónio exige uma refeição completa, seja ao almoço, seja ao jantar. Se lhe desse caldinho estava o caldo entornado! - respondeu, com suspiros de mulher frustrada e incompreendida.
- Bem, sendo assim, terei de fazer umas caminhadas depois do jantar. - disse, concluindo a conversa. - Preciso de ir mandar fazer um ou dois fatos antes do ano letivo começar. Aconteceu-me um pequeno acidente à chegada, caí no meio da estrada a tentar salvar um tabuleiro que o desmiolado do meu carregador mandou ao chão. - bufou, recordando a situação e o ar de estúpido do rapaz. - Sabe dizer-me onde fica um alfaiate em condições? - perguntou, colocando os punhos em cima da mesa e esfregando os dedos uns nos outros, num tique que ganhara por conta das aulas de piano.
- Aqui na nossa rua há um!, - respondeu, notando o tique e disfarçando logo de seguida - O Sidónio só manda fazer as suas roupas no Sr. Abel! - acrescentou, dando como prova de qualidade o facto do marido ser cliente do artesão. - Diga-lhe que vai recomendado por ele, pode ser que consiga apressar o serviço, ele tem sempre imenso trabalho, mas para os clientes mais fiéis nunca atrasa um fato!
- Excelente! Vou fazer isso. - sorriu em agradecimento, quando Tininha surgiu afogueada à mesa, colocando-se rapidamente no lugar indicado na noite anterior pelo pai, quando Lucinda lhe arregalou os olhos e ordenou que se colocasse junto dela, como uma moça deveria fazer. - Bom dia, menina Tininha. - cumprimentou a terminar o café.
- Bom dia Professor... Ouvi que precisa de ir ao alfaiate!, Posso acompanhá-lo e indicar-lhe a loja, preciso mesmo de ir falar com a Madrinha, - acrescentou, olhando a mãe em súplica - ela disse que ia começar a dar-me aulas de canto para preparar a atuação na festa de Natal, e assim combinava já com ela.
- Há aqui professoras de canto? - exclamou curioso - A minha mãe é professora de canto, sustentou-nos a todos a dar aulas em casa depois do nosso pai falecer. – comentou com orgulho.
- Lamento imenso, - disse a rapariga que o olhava profundamente - a morte do seu paizinho, claro. A minha Madrinha é quem me vai ensinar, - continuou, com pressa de manter a conversa - ela canta muito bem, mas não vive disso, ela também é... - Sidónio entrou na sala, sorrindo orgulhoso e interrompeu a filha sem cerimónias.
- Bom dia! Vejo que já se adiantou, eu estava com alguma preguiça para acordar, confesso. O dia de ontem foi exaustivo. Até tive de tomar um tónico para a dor de cabeça. É demasiado calor, muito barulho... - lamentou-se, enchendo o prato com bolo.
- Bom dia Diretor. Sim, também tive alguma dificuldade em adormecer ontem. Estava mesmo a comentar isso com a senhora Lucinda, falávamos que o jantar era pesado e talvez eu tenha de caminhar à noite, para facilitar a digestão. - explicou Ricardo, ignorando a miúda e fugindo da conversa dela.
- Pois terei todo o gosto de o acompanhar mais logo, assim as mulheres podem arrumar a cozinha e a sala sem empecilhos masculinos. - regozijou-se com a sua súbita ideia prática, que lhe daria imenso prazer, pois todos os motivos eram bons para espairecer.
- Combinado. Agradeço-lhe imenso o pequeno almoço, Sra Lucinda, vou então tratar de encontrar o alfaiate. Não virei almoçar, como pela vila, porque também espero conseguir ver as casas que tenho apalavradas e decidir-me por uma. - levantou-se e desviou o olhar de Tininha que o observava ansiosa.
- Deixe-me ir com o Professor até ao tio Abel... - pediu com manha ao pai, que raramente lhe negava fosse o que fosse - A Madrinha está lá hoje e tenho de combinar com ela as aulas. Quero ganhar o prémio musical, papá!
- Claro Tininha, se o Professor não se importar, vai lá ter com a Madrinha e diz-lhe que depois passo para acertar os valores com ela. - rematou, colocando na voz algum rancor que não passou despercebido a Ricardo. Outra reação que não lhe escapou também foi a mulher do Diretor não ter ficado agradada com os modos do marido, nem da sua filha se ter colado ao convidado de forma intrusiva.
- Bem, - suspirou resignado - se está tudo certo, então, vamos, Tininha?
A miúda saltou da cadeira energicamente, com um entusiasmo juvenil de quem tinha tido autorização para sair sem ser com a mãe e Ricardo recordou-se brevemente de Margarida, a sua irmã mais namoradeira, e de que tinha de telefonar para casa a dar notícias. - Sr Sidónio, por acaso importava-se se utilizasse o telefone? Ainda não informei as minhas mulheres de que cheguei bem, - e sorriu divertido ao ver o ar perplexo do Diretor, - as minhas irmãs e a minha querida mãe. - esclareceu, aliviando o semblante do chefe que expirou aliviado.
- Com certeza, o telefone é seu!
- Então Tininha, espero na entrada. Vou fazer o telefonema e assim tem tempo de se arranjar. Com licença. - retirou-se e revirou os olhos para o corredor vazio. Que grande chatice aquela, ter de levar atrelada a miúda, pensou contrariado. Nem teriam tema de conversa, só futilidades e risinhos, lamentou-se, marcando o número de casa e suspirando.

Depois de ter assegurado sete vezes de que estava bem, comera o pequeno almoço e de que não se esqueceria de não apanhar demasiado sol na cabeça, como se ainda tivesse 10 anos de idade, desligou o telefonema e dirigiu-se à porta, onde Tininha já o aguardava exultante, de vestido rodado e fresco e chapéu de palha na cabeça. Vestiam-na como se fosse ainda uma criança, mas a mulher dentro dela não se deixava ignorar. Ricardo lamentou momentaneamente que a miúda fosse filha do chefe e moça de respeito, pois teria todo o prazer de dar longos passeios com ela e conhecê-la melhor. Fisicamente, claro, porque intelectualmente já percebera que Tininha não tinha nada a acrescentar à sua vasta cultura e interesses. Adolescentes não faziam o seu género, mas se o corpo de Tininha o tentasse, não diria que não, se ela não fosse filha de Sidónio, claro. Caminharam apenas alguns passos e a miúda rodou nos calcanhares e indicou-lhe a porta de entrada do alfaiate, bem mais perto do que imaginara, e Ricardo abriu-lhe a porta que fez soar um sininho a indicar o artesão de que tinha clientes.
- Olá Madrinha! - exclamou Tininha satisfeita por vir acompanhada por um homem, o que a fazia sentir-se adulta.
Ricardo entrou e viu um escadote que se apoiava numa parede cheia de rolos de tecidos variados, onde se equilibrava uma mulher de costas, que se esforçava por arrumar um rolo pesado num buraco onde originalmente deveria caber. Esta olhou de esguelha para a afilhada, como se o rodar da cabeça a fosse mandar ao chão e nem se apercebeu da companhia da miúda, continuando a sua tarefa e esticando-se.
- Ah, olá Tininha. Espera que já desço. - deu uma série de empurrões no rolo, sem qualquer sucesso, quando Ricardo se esticou ao seu lado, do lado de fora do escadote e a auxiliou, levantando o enorme rolo e enfiando-o corretamente no estreito espaço da prateleira. - Obrigada.... - olhou surpreendida para o homem que surgira do nada e reconheceu-o imediatamente, ficando pouco agradada com a visita.
- De nada, sempre às ordens. - sorriu-lhe satisfeito, ignorando o olhar duro que ela lhe lançava, assim que o reconhecera.
- Madrinha, este Sr é o novo Professor da escola!, Ricardo Maria, está na nossa casa a morar. Veio pedir ao tio Abel que lhe faça uns fatos. - enumerou descontextualizadamente.
- Prazer, Maria Helena. - estendeu-lhe a mão, sem vontade, mas cumprindo as regras da educação. Ficou ainda mais desagradada ao saber que uma pessoa que tinha sido tão dura com o Toninho iria ser o seu novo colega na escola e teria de conviver com crianças. Não tinha demonstrado uma faceta nada simpática com os mais vulneráveis, como o pobre Toninho, um rapaz com um atraso intelectual de quem gostava particularmente por ser ingénuo e desprotegido.
- Ricardo Maria, um seu criado. - aquele ar desconfiado fê-lo lembrar-se de Isabel, a sua segunda irmã mais velha, que nunca abria um sorriso a nenhum homem desconhecido, mas que ele sabia que quando cedesse, seria a mais arrebatada de todas, porque era uma romântica incurável, inteligente e de compleição física invejável, que levaria qualquer homem aos céus, tal como a luxuriante clarinetista deveria levar o marido sortudo.
- Vou chamar o tio Abel, ele foi lá acima a casa tomar o café. Com licença. - saiu rapidamente da loja e subiu a escadaria até ao primeiro andar onde morava o alfaiate, certificando-se de que tinha a saia bem composta, pois notara os olhares dengosos do Professor Ricardo, e sabia bem quando a estavam a medir e tirar moldes. Felizmente nunca tirava a aliança do dedo, mantendo os impulsos masculinos refreados e minimamente controlados, e assim conseguia paz e sossego, desde que ficara viúva, dez anos antes.
- Madrinha!, tenho de lhe falar! - abriu um sorriso a Ricardo e subiu as escadas sem os pudores da familiar mais velha, mostrando as pernas até um ângulo quase escandaloso. - Já volto!, não se vá embora sem mim! - lançou, virando-se e rodopiando no alto da escadaria íngreme, e Ricardo ficou sem perceber se a miúda era apenas descuidada, ou lhe mostrara tudo com algum propósito macabro. Tinha de se precaver de situações como aquela, e deixar de ser curioso. Conhecia a anatomia feminina de trás para a frente, mas tudo o que fosse pernas e mamas de mulheres fora de casa traziam-lhe um mistério difícil de resistir. O Diretor Sidónio não gostaria certamente que ele lhe apalpasse a filha roliça e seguisse a sua vida depois de consolado. Noites de angústias calorosas iriam persegui-lo, lamentou-se, analisando a pequena loja e as fotos de modelos diversos que ilustravam o trabalho do alfaiate, para se distrair.
Passos apressados surgiram e Tininha voltava, saltitante, seguida de um senhor de meia idade, de óculos fundos e olhar curioso.
- Bom dia!, Abel, muito prazer. - cumprimentou-o com um aperto de mão caloroso.
- Bom dia, Ricardo Maria. - apresentou-se, apreciando o aperto vigoroso de mãos fortes.
- Então, o Professor vem trabalhar e viver para Tomar? Muito bem, - apressou-se a resumir a conversa - e em que lhe posso ser útil? - perguntou, pegando logo na fita métrica, num bloco e num lápis, como se todos os minutos contassem na árdua tarefa de alfaiate numa vila com demasiados homens vaidosos.
- Bem, queria encomendar-lhe, para já, dois fatos de verão, e depois outros de meia estação e mais uns de inverno...
- Comecemos pelo verão!, - interrompeu, indicando-lhe com a mão um local resguardado onde Ricardo iria ser medido e fechando a cortina que os separou do resto da loja. - Pode tirar o casaco e vou medi-lo, para começar já a fazer a sua ficha e depois é só escolher o modelo, os tecidos, e deixe tudo comigo. - resumiu, ajeitando os óculos, quando o tilintar da porta soou e Abel teve de se retirar momentaneamente para cumprimentar um cliente.- Volto já!
Ficou em mangas de camisa a olhar-se no espelho que abrangia toda a parede em frente, analisando o estado do seu colarinho, que parecia encardido. A clarinetista entrou, esticando a fita métrica visivelmente encavacada, com um rubor delicioso nas faces.
- O meu tio não pode vir medi-lo. - explicou, aproximando-se dele - Vire-se. - ordenou-lhe, com a voz colocada. - Levante os braços, por favor. - acrescentou duramente. - Muito bem... - escrevinhou o mais rápido possível no bloco e colocou o lápis na boca, depois da última ordem - Vire-se de frente. - ajoelhou-se, colocando-se de lado e medindo a altura das pernas, corada até às orelhas. Ricardo ficou imóvel, com a respiração suspensa, olhando-a no espelho. Uma mulher na posição mais submissa que podia haver, agachada aos seus pés, mas que o aterrorizava de uma forma inexplicável. Mantinha os braços estupidamente no ar, como se pedisse clemência, sem notar na sua figura, concentrado nela. Maria Helena colocou-se na sua frente, medindo o entre-pernas, e do espelho surgia a imagem mais erótica que tinha alguma vez visto. Desviou o olhar do espelho, com pudor, enquanto aquela tortura não acabava. Ela levantou-se num pulo ágil e rodeou-lhe a cintura, chegando-se indecentemente a ele e respirando-lhe no ouvido, ao tentar encontrar as suas mãos atrás dele. Ricardo mantinha os braços no ar, em súplica, como se sentisse vulnerável aos movimentos decididos da ajudante do alfaiate. Não poderia contar aquele escândalo em casa, as suas mulheres teriam certamente muito má opinião de Maria Helena, uma clarinetista dotada, de formas luxuriantes, que media o entre-pernas de homens desconhecidos, e casada. 
- Pronto! Pode vestir o casaco. - saiu apressadamente de detrás da cortina, poisando o bloco com as mãos trémulas, pegando no seu casaco e carteira e fugindo da loja do tio Abel. Como iria encarar o homem na escola, diariamente, depois de lhe ter tocado nas partes íntimas, mesmo que só de raspão, e o ter desejado daquela forma violenta e animal, em silêncio e segredo. Felizmente iria no final da semana passar a época balnear na Nazaré, onde anualmente ia a banhos terapêuticos e não o iria ver até quase ao início das aulas, pensou aliviada. Quando voltasse já se teria esquecido do aroma doce do seu colarinho imaculado que denunciava uma esposa dedicada e tudo voltaria a ser como antes. 

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