sexta-feira, 31 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 11




João entrou em casa cabisbaixo e ainda mais maldisposto do que antes. Arrastara-se até ao “Pírulas”, na tentativa de desanuviar um pouco, mas a conversa com o segurança do bar ainda o perturbou mais. Janota não tinha nascido em Castelo Branco, mas por coincidência sabia quem era a família de Isabel, toda a gente ligada à cidade em questão os conhecia, e as novidades não eram animadoras, constatou João. O julgamento de Tiago, o ex-marido de Isabel, tinha sido o maior escândalo de sempre naquela cidade, comentado em todo o lado. O pai dela, então Diretor do serviço de Medicina Legal do Hospital, estava em processo de candidatura às eleições para a Câmara Municipal, e tinha sido afastado do processo de recolha de provas periciais para a acusação, ficando a chefiar o departamento um antigo colega de Tiago, diziam as más línguas, que tratou de ajudar o amigo, sem sequer disfarçar. Isabel tinha sido considerada “doida”, com um processo vazio de factos, e histórias mirabolantes de crimes que nunca foram provados. Acabou internada por ordem do juiz, por seis meses, aconselhado pelas perícias psiquiátricas de um outro conhecido do ex-marido. Quando o advogado dela conseguiu anular aquela crueldade, já o prazo passara e Isabel havia voltado para casa. O pai dela, pressionado pelo partido, que não tinha outra hipótese de candidato com possibilidades de vencer a eleição, nunca interviera em todo o processo. Ficara a ver de fora, e segundo alguns familiares de Janota, fora o culpado de Isabel ter sido negligenciada em julgamento, um traste, segundo a sua tia. Janota ouvira várias conversas sobre o caso na altura, e recordava-se de ter ficado chocado com o provincianismo que ainda se vivia em certos locais do interior do país. Lamentou honestamente que Marta fosse Isabel, disponibilizando-se para a ajudar, se algum dia fosse preciso, odiava machistas, e se pudesse, mostraria ao tal Tiago qual era a sensação de levar uns murros de alguém maior que ele. 
Tentou novamente ligar-lhe, mas o telemóvel continuava desligado, no voice mail, ainda sem mensagem de voz personalizada. Mandou-lhe uma mensagem de boa noite, juntamente com um desabafo “Mais uma vez, desculpa. Vou ligar-te todos os dias, até me ouvires. Se precisares de mim, liga. Não desapareças, por favor.”
Olhou longamente o aparelho, sentindo-se miserável e perdido. Como poderia aquilo estar a acontecer-lhe? Aquela maluca entrar-lhe pela casa a dentro, mesmo na hora em que Marta abria a guarda e começava a deixá-lo entrar? 
Engoliu um comprimido para dormir e ficou a torturar-se com as duas fotos que ela lhe mandara ao jantar. Adorava-a, e não só porque era perfeita e bonita. Tinha qualquer coisa de familiar dentro dela, que o preenchia e descontraía. Não sabia explicar o quê. Ainda nem sequer a abraçara e já sentia mais paixão que nos primeiros tempos com a mulher, Isabel. Era estranho que tivessem o mesmo nome, até confuso e perturbador, pensava. As duas mulheres de que tinha gostado… Lamentou-se por não ter sido o homem perfeito para a primeira, com quem a dada altura travara batalhas inglórias sobre tudo e nada, como se fossem inimigos de sangue e ele precisasse de a vencer, recusando-se  simplesmente a ceder e a fazer-lhe as vontades. Poderia ter tido um casamento mais feliz, sem dramas, feito um filho, mas nunca o conseguira com ela. Simplesmente recusara-se a ser seu, por inteiro, e tinha a certeza de que isso também a tinha matado. Gostava de um dia confessar tudo aquilo a César, libertar-se da sua eterna culpa conjugal, respirar fundo com a absolvição profissional do amigo, talvez acabasse a carta e lha entregasse, mais dia menos dia iria fazê-lo. Sentia que só assim poderia começar com Marta, Isabel, corrigiu, sem fantasmas ou angústias. Desta vez seria todo dela, da sua Isabel.
Nélia entrou em casa de João uma hora antes que o horário normal da tia. Convencera-a a ficar na cama, depois de uma noite de febre e mau estar, comprometendo-se a substituí-la no seu trabalho, da forma mais discreta possível. A sua verdadeira intenção nem sequer era encontra-lo acordado, muito menos preparar-lhe o pequeno almoço, apenas tentar concluir a sua vingança. Ninguém tinha o direito de a tratar como uma prostituta, e se o plano de conseguir seduzir o psiquiatra já não seria viável, pelo menos ele não se ficaria a rir quando se recordasse daquela noite. Certificou-se de que João dormia, e tal como a tia a tinha informado, levaria bastante tempo a acordar, efeito das drogas que tomava. Despiu-se da cintura para cima e, com todo o cuidado, deitou-se ao seu lado, fotografando-os de várias perspetivas, sempre com o cuidado de não lhe tocar. Saiu do quarto rapidamente, vestiu-se no hall de entrada e saiu, fechando a porta. Agora era esperar pelo momento certo, pensou vitoriosa. 


- Estou sim? – respondeu Adelaide, atendendo o telefone a pedido de Isabel, que temia que João ligasse de manhã a tentar desculpar-se. 
- Bom dia, fala o Dr João  Marques, liguei ontem para falar com a menina Isabel, ela está? – sentia-se nervoso, prestes a ter de engolir um comprimido para se acalmar.
- Ela não está… - disse Adelaide a corar com a mentira, com Isabel nas suas costas a força-la a enganar o pobre homem, que tinha uma voz tão triste.
- Quando ela chegar, poderia dizer-lhe que liguei? – sabia perfeitamente que Marta não o queria ouvir nos próximos dias. Mas não a deixaria esquecê-lo. Ligaria ao final do dia, depois novamente de manhã, e se começasse a perder a paciência, meter-se-ia no carro e bater-lhe-ia à porta. 
- Com certeza, darei o recado, pode ficar descansado. Bom dia. – apressou-se a desligar, olhando duramente a sua menina. Não gostava de mentiras nem de lérias.
- Desculpa, Dazinha, mas não quero falar com ele. – explicou, abraçando-a, enquanto se encaminhavam para a cozinha para tomar o pequeno-almoço.
- Que disparate, sinceramente. Se já se viu, Isabelinha, andar a fugir do rapaz. Falas com ele, resolves as coisas e não me obrigas a mentir mais. – sentenciou, pouco convencida de que Isabel lhe fosse obedecer.
- Não me apetece. -  amuou, fazendo beicinho sem se aperceber, como se ainda fosse criança.
- Café? – perguntou de forma prática, enchendo-lhe a caneca e olhando-a novamente com censura, sentando-se de seguida na sua frente. – Querida, tens 29 anos, quase 30, já não és nenhuma garota! Eu sei que me vais dizer que hoje em dia as mulheres não precisam de casar para serem felizes, sim, são todas muito independentes, eu já sei isso! – esbracejou dramaticamente - Mas, quando uma mulher gosta de um homem, e ele dela, acontece algo muito mais importante, nasce um par. E um par, como dizia a minha avó, são um mais um que dão dois, e um sem o outro não valem nada. Se já “emparelhaste” com este moço, não vais ficar bem sozinha. - levantou-se e saiu, para orientar a sua vida doméstica preenchida. Adelaide nunca tinha “emparelhado” com ninguém, desde muito nova que servia em casas de gente rica, ocupara-se sempre dos outros, sem lamentar o seu fado. Deus não a tinha feito para ter par, e Ele lá sabia o que fazia. Mas a Isabelinha era uma romântica, desde pequenina que falava de amor com os seus príncipes imaginários. Nunca seria feliz em número ímpar. Era uma vida difícil, solitária, que nem todas as pessoas conseguiam suportar. Todas as alegrias da vida, os sofrimentos, as dores, viviam-se no quarto e para as paredes. O Filipe era prova dessa dependência, era um substituto de uma companhia que Isabel precisava para ser feliz. 
Adelaide não conhecia o tal Dr. João, mas conhecia a sua menina. Se ela não queria atender o telefone, algo se tinha passado, e o ciúme era o culpado. Podia apostar um dos seus cordões de ouro em como o problema era o orgulho “Fontes Pereira e Castro”.


Enviou-lhe mais uma mensagem, o telemóvel continuava desligado, mas a necessidade de comunicar com ela, nem que fosse em monólogo, obrigava-o a escrever. “Olá bom dia. Vou hoje tratar do resto da tua surpresa. Mesmo que não me queiras ver mais, espero que fique pronta até voltares. Beijos”. Engoliu em seco, maldisposto com a hipótese de ela se recusar a continuar a amizade dos dois. Só esperava que ligasse o telefone e lhe desse uma oportunidade de falarem, afinal, ele era Psiquiatra, tinha de ter maneira de a fazer ouvir, ou não…




“- Estou grávida… - tremiam-lhe as mãos, nervosa com aquela descoberta. – Grávida? – Tiago sorriu com a boca, sem modificar o olhar, parecendo feliz com aquele contratempo na vida de dois jovens universitários – Abraçou-a, como se toda a vida tivesse esperado por aquele filho, libertando um pouco Isabel da sua ansiedade e culpa. – E agora? O que vamos fazer? – perguntou-lhe, mais animada com a solidariedade do namorado. – Casamos! – um arrepio percorreu-a, sem perceber porquê, mas ter um filho solteira seria impraticável na sua família, e não se sentia com coragem para abortar. – Temos de falar com os meus pais… - informou-o, tentando sorrir com a perspectiva de futuro tão diferente do que tinha imaginado. – Claro, hoje vou lá e falamos. Agora tenho de ir. – beijou-a rapidamente e dirigiu-se para a sua próxima aula. Isabel ficou a olhá-lo, angustiada, Tiago era seu namorado há alguns anos, tinha sido o seu primeiro homem, mas se lhe pedisse casamento depois de terminarem os cursos, sem filhos pelo meio, tinha a certeza de que diria que não, pelo menos num primeiro impulso.”

- Isabelinha! – Mariana chamou a filha, que olhava para fora da janela absorta com os seus pensamentos.
- Sim, mãe.
- A Adelaide disse-me que o tal Psiquiatra tem ligado todos os dias e que tu não atendes… Mas afinal o que se anda a passar? – perguntou preocupada.
- Sim, ele tem telefonado, mas eu não tenho a certeza do que quero. – confessou.
- És capaz de me traduzir isso em miúdos? – ironizou, já a perder a paciência com a atitude instrospectiva da filha desde o início da semana.
- Quando voltámos de Cáceres eu estive ao telemóvel com ele, - começou a explicar, sem jeito – mas depois uma mulher qualquer bateu-lhe à porta e disse umas coisas… olhe, não se mace com isso. Acho que os homens são todos iguais, não vale a pena…
- Mas o que foi que ela disse? – insistiu sem dar hipótese.
- Disse que tinha lá deixado “no sábado” os brincos… - sussurrou deprimida – Entende? É uma mulher qualquer que tem intimidade para lá ir bater à porta reaver objetos pessoais ao quarto dele. Não é preciso pensar muito para descobrir o que estiveram os dois a fazer… 
- Mas vocês namoram? – perguntou escandalizada.
- Não, somos amigos. 
- Amigos? Mas porquê só amigos?
- Porque quando o conheci e ele me veio pedir aulas de yoga inventei uma mentira para ele não ficar com ideias sobre nós dois, para me prevenir de avanços da sua parte. – disse corando – Não queria envolver-me com ninguém e manter a coisa profissional.
- E o que foi que lhe disseste? – perguntou cada vez mais confusa.
- Que… - sentia-se escarlate com aquele interrogatório - … era lésbica. – disse quase em surdina.
- Ó meu Santo Agostinho! – exclamou horrorizada com aquelas ideias malucas da filha. – Mas que disparate. Já estou a ver tudo! O rapaz anda apaixonado, não o pode dizer, porque tu inventaste uma mentira horrorosa dessas, e tu agora também gostas dele e não sabes como resolver a questão! – bradou à filha que se encolheu com o tom de desagrado da mãe.
- Pois, é mais ou menos isso… Mas ele não deve gostar de mim como eu dele! – reagiu – Se leva mulheres para dormir com ele, depois de estar comigo… E sinceramente, eu não quero problemas nem desilusões, quero voltar a viver em paz, como estava antes de ele aparecer.
- Mas Isabelinha, o rapaz telefona cá para casa duas vezes por dia, leva sempre uma tampa da Adelaide, que já anda furiosa contigo porque diz que ele é um querido e tem pena do rapaz, se não te quisesse bem, ia ter com a tal outra dos brincos e não se andava a envergonhar. Se ligares o telemóvel, vais ver as chamadas perdidas que lá tens… O que é que queres mais? Pelo menos ouve o que ele tem a dizer, caramba. E se é tudo um mal entendido? Já pensaste nisso? Andas aí emburrada, quase nem comes, e podes estar a ser injusta! 
- Pode ser… - comentou, pouco convencida. Sentia-se especialmente miserável porque João fazia anos naquele dia, e tinha-lhe pedido que ela voltasse nessa data, antes da “Nélia”. Mas o fel que sentia quando pensava naquele nome terrível e feio tirava-lhe a coragem para fazer o que o seu coração pedia.
- Liga o telemóvel, porque se ele telefona mais uma vez sequer aqui para casa, fica ciente de que sou eu que vou falar com ele, e esclareço essa história da mulher! – ameaçou-a, enquanto se afastava possessa com a atitude da filha.
- Não teria coragem… - sabia que sim, que a mãe seria senhora para o fazer. Encaminhou-se para o quarto, ligou o telemóvel e sentou-se na beira da cama com o olhar de Filipe a suplicar-lhe que lhe telefonasse. – És um traidor… Se te dessem a escolher ficavas a viver com ele, não é? – reclamou com o cão.
O aparelho ligou, e uns segundos depois, dezenas de mensagens entravam para a caixa, duas e três por dia, constatou, bem como outras tantas chamadas perdidas. Abriu as mensagens de texto primeiro, uma a uma, lendo-as com a barriga a dar um nó. Ele era terrivelmente romântico e espirituoso, e parecia não querer desistir dela, o que a comoveu. Era preciso ser muito teimoso e auto-confiante para lidar daquela forma com o silêncio dela durante aquela semana de amuo. Leonino duma figa… lamentou-se, bufando de frustração perante a insistência em conversar. Desligou novamente o aparelho e começou a reunir as suas coisas. Se ele queria falar, então ela iria ouvi-lo, mas pessoalmente, e vestida com o conjunto preto. Nada de Marta hippie e boazinha, quem o iria enfrentar seria a Isabel. Preparou um banho, a roupa, organizou tudo para sair depois da hora de jantar em direção a Coimbra, mais concretamente, ao “Pírulas”. Chegaria lá a uma hora mais que perfeita para surpreender um aniversariante mulherengo, já teria bebido um pouco, deveria estar animado, com mulheres ao colo, a fazerem-lhe a festa! Ela entraria de pernas à mostra e acabaria ali o problema, pedir-lhe-ia que não voltasse à sua casa, nem a procurasse para aulas, individuais ou de grupo. Com toda a certeza que ele desistiria de a perturbar. Depois, antes de sair do bar vitoriosa, dar-lhe-ia a sua prenda de anos, um livro de Sexo Tântrico de nível avançado, para ele aprender! E que lhe fizesse bom proveito!
Terminou a sua maquilhagem, pegou nas malas e desceu, cheia de ânimo, deixando todos de boca aberta e ligeiramente aparvalhados com a ida repentina para Coimbra, a uma hora daquelas.
- Mas Isabelinha, não podes voltar só amanhã, durante o dia? – suplicou a mãe, a sentir-se culpada pela decisão drástica da filha depois do discurso de defesa do rapaz de Coimbra.
- Ele hoje faz anos. Tenho uma prenda para lhe entregar. – explicou, beijando-a em jeito de despedida. – Eu volto no próximo mês, prometo! Abraçou Adelaide, que ficara em choque com a ida repentina de Isabel, e pediu que se despedisse por ela do pai, que ainda não chegara da Assembleia Municipal.
- Vai com cuidado… - pediram as duas mulheres, dizendo adeus da porta.
- Eu já tenho telemóvel! – disse-lhes a sorrir, entrando no jipe.
- Não nos deste o teu número… - reclamou Mariana, já ela tinha arrancado.



Salvador esforçava-se por animar João, enchendo-lhe o copo gratuitamente e sugerindo-lhe diversas opções de mulheres que por ali andavam. Qualquer uma delas gostaria de receber a atenção de um aniversariante solitário, carente e bonito, gozara-o, já prestes a desistir. Nélia surgiu à entrada da sala, espampanante e vistosa e Salvador agradeceu aos céus aquela aparição, talvez ela conseguisse animá-lo, pensou, sem saber dos acontecimentos de segunda-feira.
- Olha, chegou a tua amiga! – disse-lhe entusiasmado.
- Onde? – voltou-se prontamente, a pensar que era de Marta que ele falava, ficando automaticamente furioso ao ver Nélia a sorrir-lhe descarada. – Eh pá, não chames a gaja. Não me apetece bater em mulheres. – ameaçou, voltando-se novamente para o balcão e para a sua bebida.
- Estou a ver que correu mal a saída no sábado… olha, mas ela vem aí! – avisou-o - Não faças cenas! Olá! Uma bebida por conta da casa, aqui em homenagem ao aniversariante?
- Olá! Então parabéns! – disse-lhe animada, contente por vê-lo tão abatido no seu dia de anos.
João não lhe respondeu, ignorando-a propositadamente, bebendo um gole da sua bebida para se acalmar, detestava mulheres oferecidas e cínicas, e aquela em particular, odiava-a. Olhou Salvador com censura e levantava-se, quando Nélia lhe agarrou por um braço e se adiantou à capacidade de reação de João, dando-lhe um beijo rápido nos lábios, satisfeita.
- A minha prenda! – explicou, soltando-o.
- Mau timing… - disse Salvador, que olhava Marta à entrada da sala a olhá-los sem expressão definida no rosto, enquanto parecia conversar com Janota.
João empalideceu, desorientado com aquela coincidência cruel, ficando hipnotizado a observar Marta ao longe. Estava deslumbrante, completamente diferente do habitual, e sorria para o Janota, que lhe punha a mão nas costas, animado com alguma coisa que ela lhe dissera. Os pés estavam colados ao chão, presos por alguma força maquiavélica, que o impedia de a ir abraçar e arrancar de perto daquele gigante atrevido. Marta deu dois beijos no segurança e avançou na direção dele, sem revelar o que sentia, deixando-o cada vez mais ansioso. 
- Olá! – cumprimentou os três, João, Salvador e Nélia. – Parabéns! – inclinou-se para o cumprimentar e ele abraçou-a automaticamente, deixando-a amolecida.
- Tudo bem Marta? – perguntou Salvador tentando acabar com aquele silêncio incomodativo.
Soltou-se do abraço e tratou de esclarecer quem era aquela mulher que o beijava na boca.
- Tudo bem. – respondeu-lhe sorridente. Esticou a mão para se apresentar à mulher, que lhe retribuiu o gesto. – Marta, a irmã do João. – disparou, sem perceber de onde lhe surgira aquilo.
- Olá, Nélia. Amiga do João. – explicou satisfeita.
João  agarrou no braço de Marta e puxou-a dali perdido de raiva com aquela sequência de acontecimentos lunáticos. 
- Irmã? – perguntou-lhe alterado, assim que chegaram a um canto isolado do bar.
- Beijos na boca? – berrou-lhe de volta Marta, espetando-lhe o indicador acusatório.
- A tipa é doida. Eu estava a levantar-me dali para a evitar e ela espetou-me um chocho. – explicou, chegando-se mais perto dela, enfeitiçado com a beleza dela.
- Sim, e também dormiu contigo no sábado sem tu quereres, agarrou-te, coitadinho. – ironizou, afastando-se dele.
- Não… - engoliu em seco – Mas foi um erro, não sei o que me deu… - sabia, mas seria pouco educado dizer-lhe que tinha pensado nela o tempo todo, teria certamente o efeito contrário ao desejado – Mas não há nada entre mim e ela.
- Apenas sexo.
- Não, houve sexo. Já não vai haver mais. – exclamou.
- Tudo bem. – suspirou enervada com aquela discussão inútil – Só cá vim para te dar os parabéns e a tua prenda de anos. Não quero saber com que dormes. – mentiu, sentindo-se prestes a chorar. Não tinha sido aquele desfecho que tinha imaginado durante a viagem.
- Queres saber sim. E eu não durmo com ninguém. – puxou-a na sua direção, abraçando-a com força, sentindo todo o seu corpo delicado esborrachado no seu.
- Solta-me… - suplicou-lhe com a voz fraca. Queria abraçá-lo de volta, retribuir aquela necessidade de o ter, mas aquela bisca olhava-os demasiado curiosa para quem era uma companhia esporádica de uma noite.
- Não… Abraça-me. - ordenou-a – Senão beijo-te aqui à força.
- A tua amiga está a olhar… e os irmãos não se beijam na boca. – disse-lhe já a derreter nos seus braços.
- Quem disse que te ia beijar na boca? – brincou ele, mais animado com o efeito positivo do seu abraço.
- Quer dizer, a ela, podes dar beijos na boc.. – começou a ralhar, quando ele a silenciou beijando-a com paixão, elevando-a do chão. 
Isabel pensou que fosse desmaiar, nunca tinha sido beijada daquela maneira, como se tudo dependesse daquele momento. Sentia a cabeça a rodopiar, quando João a poisou no chão, as pernas pareciam não obedecer, moles e sem estabilidade. O que tinha acontecido ali, perguntava-se confusa. Ele não a largou, continuando a abraçá-la, e olharam-se durante uns segundos, meio embasbacados com o que sentiam.
- Bolas… - disse João, ainda ofegante – Beijas bem. – brincou, sentindo-se com as pernas frouxas, dormentes.
- Tenho de ir. – mais um beijo daqueles e teria um aneurisma, pensou divertida, mas se não fosse embora naquele momento iriam precipitar tudo. Não eram crianças, mas Marta não queria pôr a carroça à frente dos bois. Gostava demasiado dele para banalizar as coisas. 
- Mas… já? – estava confuso, agora que a tinha conseguido beijar, quebrando o escudo que ela lhe levantara desde o primeiro dia, queria ir embora?
- Sim, tenho o Filipe no carro, deve estar em pânico com o movimento da noite. Ele tem medo do escuro… - confessou, angustiada com o olhar de desalento dele. Ela tinha de lhe mostrar que não era mais uma Nélia. Queria que ele fosse seu, mas não numa ou duas noites. 
- Tudo bem, queres que vá contigo?
- Podes levar-me até ao carro? Tenho lá a tua prenda. – disse-lhe, deixando-o ainda mais desiludido. 
- Claro. – respondeu sem jeito. O que João queria era repetir aquele beijo, de preferência pela noite dentro, não receber uma prenda… mas não iria pressioná-la, afinal, a assombração da Nélia ainda por ali pairava, e poderia regressar para estragar tudo novamente.
João deu-lhe a mão e despediram-se de Salvador, que os olhava sorridente e prestes a comentar, mas que se continha, pois sabia que aquela mulher era importante para o amigo, e de Janota, que lhes sorriu satisfeito ao vê-los de mão dada. Nélia desaparecera, constatou Marta aliviada, por não ter de a encarar. Seria muito desagradável e ela não tinha feitio para confrontos, mesmo que silenciosos.
Chegaram ao carro e Filipe parecia possuído de alegria ao ver João, esgravatando na porta a pedir para sair do veículo. Marta libertou-o e os dois demoraram-se nos cumprimentos masculinos, sob o olhar deliciado dela. 
- Vês?, este cão não pode viver mais longe de mim, não tornes a levá-lo daqui, por favor. – provocou, puxando-a para mais um abraço.
- Bem, se fizeres muita questão dou-to… Ah a prenda! – libertou-se dos braços quentes dele e recuperou instantaneamente o bom senso, entregando-lhe o volume embrulhado com papel de seda vermelha. – Espero que gostes.
João retirou o papel delicadamente, guardando-o no bolso e abriu um sorriso ao ver a sua obra preferida “nível avançado”.
- Ainda não treinei o de iniciantes… - lamentou-se, sentindo-se um pouco mentiroso, mas com ela ainda não tinha de facto experimentando nada, desculpou-se – Tens muita fé no teu aluno. Obrigado. – deu-lhe um beijo levemente, apenas de gratidão pela lembrança, mas Marta tinha no olhar aquele brilho, que o fez ficar tonto, agarrando-a novamente, mas dessa vez contra o carro, que os selou em mais uma explosão de desejo.
- Para… por favor… - Como era possível que um beijo fosse tão forte? – Há muita coisa que temos de falar. Não quero que seja tudo tão rápido.
- Tudo bem, mas então não me olhes assim. – reclamou, recompondo-se. Se ela queria falar sobre o seu passado era porque não estava a pôr um ponto final, bem pelo contrário, estava a querer fazer parágrafo, e isso deixava-o exultante.
- Falamos amanhã? – perguntou, escapando-se para dentro do carro, seguida por Filipe.
- Sim, claro. Amanhã falamos, por mim era já hoje… - seguiu-a, colocando-se debruçado na janela, a olhá-la bem de perto, com a gloriosa visão periférica das suas pernas despidas. – Não te respondi à primeira mensagem, mas sim. Gosto muito, são as minhas preferidas. – disse-lhe a sorrir. Esticou-se para dentro do carro e beijou-lhe a bochecha longamente, deixando-a novamente fundida no banco, sem reação. – Adeus. 
Ficou a vê-la desaparecer na rua, de mãos nos bolsos, acariciando o papel de embrulho, tão sedoso como a pele dela, com uma felicidade genuína. Ela iria descobrir o que ele andara a fazer toda a semana, em segredo. Tinha sido difícil, mas depois de muitos cordelinhos e chantagens, João conseguira em tempo recorde que terminassem o saneamento na sua rua, alcatroassem, entrara na sua casa, pusera-lhe um esquentador, sais de banho na banheira, uma máquina de lavar roupa, outra de secar e na sala de prática um bilhete a pedir desculpa pela invasão, prometendo-lhe que trancara tudo novamente, depois de arrombado. Garantia que não era doido, pelo menos na acepção popular do termo, mas sim clinicamente apanhado por ela. Nada de muito grave ou perigoso, apenas agradavelmente positivo na vida de uma mulher sortuda.



Marta perdia-se nas recordações excitantes do beijo de João, que nem se apercebera do novo piso da sua rua. Entrou com o jipe pelo portão da casa, fechou-o, e quando voltava para entrar no veículo virou-se para trás, confusa com a sensação diferente debaixo dos sapatos. 
- Alcatroaram isto? – perguntou-se em voz alta, espantada.
Voltou para o jipe, estacionou-o e levou todas as suas coisas para casa, seguida por Filipe que cheirava tudo freneticamente, doido com os diferentes odores que se sentiam na casa, de tantas pessoas diferentes que ali tinham estado nos últimos dias.
Dirigiu-se à cozinha para colocar a roupa suja no cesto, quando viu as máquinas a reluzir no local outrora vazio, por falta de água canalizada.
- Não pode ser… seria isto a surpresa? – o choque inicial deu lugar a uma explosão de lágrimas de gratidão. Como podia ele ter feito aquilo? Correu a abrir a torneira de água quente e um barulho totalmente novo encheu a cozinha. Um esquentador ligou automaticamente, aquecendo a água em segundos. Marta limpava as lágrimas de alegria quando se lembrou de espreitar o quarto de banho e se enterneceu ao ver os sais de banho, prontos a serem utilizados na sua totalmente nova banheira, onde as torneiras funcionavam e não eram de enfeitar. Dirigiu-se à sala de prática para agradecer a Shiva e seu filho Ganesha por aquelas prendas do destino, e leu o bilhete, chorando de espanto e divertimento com o sentido de humor dele. Era um diabo de um leonino maluco, mas adorável.
Ligou o telemóvel e enviou-lhe uma mensagem “És louco… obrigada. <3”


(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

quinta-feira, 30 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 10




Registou com emoção o primeiro contacto no seu novo telemóvel, depois de alguns anos de “abstinência” telefónica regular, com o nome de João M, guardando o número pessoal dele nos favoritos. Ficou uns momentos a contemplar aquele nome, tão longe e tão perto, à distância de um toque, quando foi acordada do seu transe pela voz da mãe que finalmente escolhera o fato ideal.
- Isabelinha, vamos? – perguntou animada com a próxima tarefa maternal, vestir decentemente a sua menina.
- Mãe… estou cansada. Vamos voltar para casa. – suplicou, escondendo o aparelho na mala, depois de se ter livrado da caixa, instruções e papeladas inúteis.
- Nem penses. Vais fazer-me este gosto. – agarrou-lhe num braço e encaminhou-se para a loja perfeita.
- Mas por favor, só um vestido, pode ser?
- Menina, primeiro experimentas, depois falamos. – rematou, sem dar hipótese a discussão.
Entraram na loja sofisticada, sendo prontamente rodeadas de assistentes de compras, que educadamente se disponibilizaram para as ajudar. Mariana instruiu as raparigas, explicando o tipo de roupa que pretendia para a filha, e uma azáfama de tecidos, peças, mulheres e nervos agarraram em Isabel, levando-a para os provadores. Dezenas de hipóteses diferentes lhe foram apresentadas, sendo que a maioria nem sequer passava pela sua primeira avaliação, rejeitando qualquer tecido espampanante ou metalizado. Depois de muito vestir e despir, um simples conjunto preto lhe assentou como uma luva, revelando todas as suas curvas bem feitas e pernas esguias, transformando a Marta em Isabel instantaneamente. Uma antiga conhecida a olhava de frente, rodando com ela no espelho, trazendo-lhe a memória de como um dia tinha sido feliz na pele dela, antes de Tiago. Aquela mulher bonita e moderna irradiava confiança na sua figura, e seria o par perfeito para João, o Dr., constatou corando.
- Meu amor! Estás linda! Esse tens de levar! – exclamou a mãe entusiasmada.
- Não sei… gosto dele, de facto. – confessou, mirando-se mais uma vez de todos os ângulos – Mas ia usar isto quando? – uma ideia surgiu-lhe na mente, o aniversário de João seria uma boa ocasião, mas não se sentia capaz de se transmutar à frente dele. Só lhe tinha mostrado a Marta, yogi, simples, e lésbica, pensou angustiada. Como poderia aparecer-lhe à frente com aquela versão feminina de si mesma?
- Uma mulher precisa de ter uma coisa destas no guarda-roupa! – sentenciou Mariana – Levas este e todos os outros que separei por ti.
Isabel olhou o monte de roupas que as funcionárias seguravam satisfeitas e resignou-se. Talvez fosse boa ideia ter uma alternativa à sua disposição.


- Dr., sente-se bem? Quer que chame um médico? – perguntou Diana aflita ao entrar no gabinete e ver o patrão a desfalecer na secretária, pálido e ofegante.
- Cancele as consultas da tarde. Tenho de ir para casa. – levantou-se cambaleante, agarrou nas suas coisas e saiu, sem notar que a sala o observava curiosa.
Arrastou-se até à garagem, esforçando-se por respirar devagar, entrou no carro e deixou-se ficar uns minutos no silêncio do espaço escurecido. Precisava de se acalmar, tirar aquelas frases da cabeça, vê-la de carne e osso e certificar-se de que estava bem. A ideia de que ela voltara sozinha para o local onde tudo aquilo se tinha passado, e que ele lá pudesse estar, punha-o em pânico. Estava demasiado longe para poder ajudá-la, para a proteger, lamentou-se.
O telemóvel tocou, e João agarrou-o prontamente, olhando o número com indicativo espanhol espantado. Não conhecia ninguém em Espanha.
- Estou?
- Olá.
- Marta? – um aperto na barriga obrigou-o a contorcer-se e poisar a cabeça no volante.
- O que foi? O que se passa? – perguntou nervosa com a voz perturbada de João.
- Nada, desculpa. – disfarçou, endireitando-se e esforçando-se em colocar a voz num tom o mais natural possível. – Estás bem?
- Sim. Vim a Cáceres com a minha mãe, ela adora vir aqui fazer compras… consegui agora fugir dela, disse-lhe que ia à casa de banho. – explicou.
- E já compraste alguma coisa para ti? – empatava a conversa à medida que fazia os exercícios abdominais do yoga para retomar a respiração normal.
- Por acaso já… - confessou envergonhada com a visão do vestido curto e revelador – Algumas roupas… e este telemóvel.
- Ah, finalmente… é este o teu número?
- Sim… podes gravar, eu já gravei o teu.
- Nos favoritos? – perguntou mais animado.
- És o único nos contactos, e nos favoritos. – a cara esquentou-lhe de tal forma que olhou em volta receosa de que alguém notasse que estava encavacada.
- Acho bem. – reagiu brincalhão – Eu também te vou gravar nos favoritos. Não és a única, desculpa, mas a principal. – uma dormência boa invadia-lhe o peito, deixando-o cada vez mais recuperado.
- Agora podes ligar-me sempre que quiseres. Se te apetecer, claro. – apressou-se a acrescentar, envergonhada com a sua insinuação.
- Nem sabes como me apetece… volta… - disse-lhe ousado. Não queria mais fingir nada. Precisava de a ter, bem perto de si, longe das incertezas e perigos.
- Também tenho uma surpresa para ti… - sentia-se a escorregar pelo pequeno sofá do corredor, amolecida com aquela voz sensual do outro lado do telefone.
- Volta… - pediu novamente.
- Tenho de ir. Daqui a uns dias já te posso mostrar o que é. Mas agora a minha mãe vem aí. Liga-me.
- Quando estiveres sozinha no quarto manda-me uma mensagem. Eu ligo.
- Beijos.
Isabel apressou-se a desligar o telefonema, guardando o aparelho na mala, sentindo-se uma criminosa, a cometer alguma ilegalidade. A cara fervia-lhe da excitação , há muito tempo que não vivia aquelas emoções nem sentia borboletas na barriga. Talvez fosse vestir a roupa ousada mais cedo que o que imaginara. Isso era quase certo.
- Vamos?



João conduziu devagar pela cidade, procurando organizar as ideias. Dizia a si mesmo que tudo aquilo que descobria era passado, um acontecimento terrível na vida de Marta, Isabel, corrigiu, mas passado. Ela reconstruira a sua vida, recriara-se, e vivia em paz atualmente, estava livre para seguir em frente, e João não a deixaria ir sozinha a partir dali, decidiu. Não gostava tanto de alguém desde que namorara com Isabel, e mesmo assim, desta vez era diferente, mais forte, se isso fosse possível. A mulher tinha sido a sua grande Paixão, este era definitivamente o seu Amor. 
Dirigiu-se a casa dela, tinha de se certificar de que as obras já tinham começado. Queria que ela chegasse e pudesse ligar uma torneira da água quente. Esse era o seu objetivo até ao final da semana. Não via a hora de ver a sua reação ao perceber que nunca mais teria de lavar nada à mão, nem carregar água pela casa. Queria-a ver feliz.
              - Filipe, meu amorzinho… - abraçou o cão com carinho, aliviada ao vê-lo são e salvo.
- Não te sujes toda de pelos de cão, Isabel! – ralhou a mãe aborrecida ao vê-la de gatas a beijar o animal.
- Vou tomar banho. – endireitou-se, deu um beijo na mãe e abraçou-a – Obrigada pelo dia maravilhoso. Vou guardar as minhas roupas novas na mala e dormir. – disse, mentindo relativamente ao dormir. Estava demasiado excitada para sequer considerar dormitar, quanto mais. Levou Filipe consigo, que saltitava sentindo a animação interior da dona. Entrou no quarto e trancou-se. Queria privacidade total, sem interrupções. Poisou tudo na cama e apressou-se a fazer um banho de espuma digno de uma estrela de cinema. Descontrairia um pouco antes de mandar o sms a João, pensou, precisava de pensar antes, como lhe diria tudo aquilo que estava a sentir, o que queria fazer dali em diante. Despiu-se, mas hesitou antes de entrar na banheira. Correu a pegar o telemóvel e levou-o consigo. Uma ideia ousada e maluca passou-lhe pela cabeça, não sabia se teria coragem de o fazer, mas sentia-se especialmente excitada. Mergulhou o corpo na água quente e perfumada, ajeitou a espuma convenientemente e fez uma série de fotos das suas pernas, em diferentes perspectivas, e posições trabalhadas. Queria conseguir uma imagem sugestiva o suficiente, mas não ordinária. Utilizou todos os filtros de edição de fotos disponíveis, ganhando cada vez mais coragem para o fazer, tal era o resultado cinematográfico que obtinha. Sabia que ao concretizar a sua ideia erótica já não haveria volta a dar, acabaria ali, naquela noite, a parvoíce do lesbianismo fictício. Estava apaixonada, e como lhe tinha dito a mãe, já se haviam passado cinco anos. Mesmo que Tiago ainda a ensombrasse mentalmente, tinha todo o direito de ser feliz, ou tentar, na pior das hipóteses. Era-lhe claro que João também se sentia atraído por ela, porquê adiar a felicidade que se adivinhava? 

João sentava-se à mesa para jantar em casa de César e Elisabete, quando o telemóvel deu sinal de mensagem. Esperara eternidades em casa pelo sinal de “Marta” para continuarem a conversa, mas talvez ela ainda andasse a passear com a mãe por Espanha, concluiu, desistindo de aguardar. Teriam a noite toda para falar, se fosse preciso, queria muito dizer-lhe que não acreditava que ela não gostasse dele, esclarecer tudo, sem denunciar que já sabia parte da verdade sobre o seu passado, e tentar fazê-la contar o que se tinha passado.
Serviu-se de vinho, descontraidamente, e levava o copo à boca, quando abriu a mensagem dela e um soluço de espanto o fez engasgar-se e cuspir todo o líquido descontroladamente, sujando a superfície à sua frente, bem como a sua camisa branca.
- Querido? Estás bem? – Elisabete perguntou assustada.
- Hum, hum… - conseguiu dizer, tossindo o vinho que o entupira. Limpou-se o melhor que conseguiu, sentindo-se a corar com a ideia de estar em frente a dois amigos e a ver as pernas maravilhosas de “Marta” numa banheira de espuma, com a legenda “E deste tipo de pernas? Gostas?”.  – Engasguei-me… Foi-me pro goto!
- Bebe um bocadinho de água… - sugeriu preocupada.
- Eu estou bem… - grunhiu com a voz rouca da irritação na garganta.
- E dizias tu há pouco que a tua paciente Sara já te pareceu mais animada? Eu tratei o filho mais velho aqui há uns anos, - explicava César sem dar importância ao ataque de tosse do amigo – era uma peste. O garoto era manipulador e ligeiramente cínico. Inventava cada coisa para conseguir o que queria…
- Hum, hum… - João queria muito disfarçar a sua excitação com a imagem que tinha no telemóvel, mas a conversa com os amigos iria ser demasiado difícil de acompanhar. 
Pediu licença para se ir recompor e fugiu para a casa de banho, queria cinco minutos de privacidade para pensar o que lhe iria responder. Sentou-se na sanita fechada e olhou demoradamente a mensagem, com um sorriso apatetado no rosto. Se apenas umas pernas o deixavam assim, o que seria quando e se visse o resto… Escreveu várias hipóteses de resposta, mas todas lhe pareciam fúteis, ordinárias, rascas, era impossível dizer fosse o que fosse depois daquele choque, concluiu. Por fim concordou consigo mesmo, e remeteu-se a um “queres matar-me?!?!”. Esperava que ela entendesse o sentido de humor, escrever era sempre ingrato. Cada um lia com a entoação que a sua mente pretendia.
Voltou para a mesa e tentou dar atenção ao casal, e engolir alguma coisa do jantar caprichado de Elisabete. A sua fome era outra, e muito mais primitiva.

Isabel riu-se durante bastante tempo, como uma miúda histérica, sob o olhar surpreso do cão que nunca a tinha visto a mandar mensagens, e parecia não entender a que ou quem ela reagia daquela forma. O seu peito parecia rebentar de emoção, tinha sido corajosa ao enviar a foto, pensava, continuando debaixo de água, preguiçosa. Mas não ia parar por ali, decidiu. Iria provoca-lo até ele considerar meter-se no carro e conduzir até Castelo Branco. Claro que isso não poderia acontecer, mas vê-lo em sofrimento físico seria uma delícia. Aquilo era o melhor sexo tântrico que ela conhecia, a prolongação do desejo no imaginário. 
Tinha uma ideia para outra foto, e tratou de caprichar na água, colocando ainda mais sais de banho e duplicando a quantidade de espuma. Colocou em câmara frontal o aparelho e fotografou-se várias vezes, sem mostrar a totalidade do rosto, se alguém que não eles os dois alguma dia visse aquilo não conseguiria identificar a mulher assanhada que ali estava registada para todo o sempre. E a Marta nunca faria uma coisa daquelas, era demasiado envergonhada. A Isabel já era outra história… Conseguiu apanhar-se sugestivamente, quase  totalmente nua, apenas com espuma “cirurgicamente” colocada nos pontos chave, e enviou sem remorsos, soltando novas gargalhadas com a legenda “Se sentires picadas no braço esquerdo, por favor, chama o INEM. És muito novo para morrer”.

Elisabete contava como as aulas de yoga lhe faziam imensa falta, um dia sem praticar e já se sentia perra, explicando exaustivamente todas os benefícios que lhe trouxera aquele exercício regular. Olhou João com curiosidade e perguntou sem cerimónias:
- Não sentes falta da nossa professora?
- Ham? – a sua concentração estava nula, olhando furtivamente o telemóvel na esperança de receber mais uma notificação de mensagem, quando o som chegou e fê-lo corar como um garoto. Abriu a mensagem o mais discretamente possível e não se conteve, soltando alto e bom som – Cristo! – a cara passou de corada a brasa incandescente, obrigando-se a beber um gole de água, enquanto fechava o telemóvel a contragosto. Se não saísse dali depressa pensariam que era maluco, ou mal educado. – Sim, claro. Sinto falta das aulas… - respondeu depois de se desculpar pelo grito.
- Estás muito interessado nesse telefone. – gozou César, intrigado – Aconteceu alguma coisa de grave? – perguntou a fazer-se de sonso.
- Não, não… desculpem. Um amigo mandou-me uma mensagem. – disse, atrapalhando-se todo e respondendo rapidamente “Tinoniiiiiiii”. Tratou de comer mais um pouco e apressou-se a sair, inventando uma mentira sobre um pedido de ajuda de um conhecido que ficara avariado no trânsito.
Dirigiu-se a casa o mais depressa que conseguiu, queria ouvi-la e continuar a conversa num local sossegado, sem testemunhas. Felizmente vivia bem perto de César e Elisabete, e assim que fechou a porta de casa, largou tudo o que trazia nas mãos, ficando apenas com o telemóvel e esticando-se no sofá, a sorrir para o vazio. Isabel revelava-se, acabando com  a distância logística que havia criado entre os dois, e João começava a entender porquê. A sua convivência com homens era mantida em banho-maria desde que se separara do filho da puta do ex-marido. Medo, sensatez, tudo aquilo era compreensível em alguém que sofrera na pele o tipo de agressões que ela vivera. Tinha estado sem ninguém, desejava João de forma egoísta e possessiva, à espera dele. Carregou no botão do telemóvel e foi prontamente atendido por uma voz arrastada e doce.
- Sim?
- Marta… não achas que já estás há muito tempo debaixo de água? – perguntou, fugindo-lhe a imaginação para Castelo Branco.
- Ainda nem me enrugaram os dedos… - lamentou-se, esticando-se mais um pouco na água já quase fria.
- Vamos, sai lá da banheira. Espero que tenhas levado uma toalha para perto de ti. Não te quero a andar por aí toda despida. – E engoliu em seco com a imagem que se desenhava nitidamente na sua mente, induzida pelas suas palavras.
- Mas que controlador… - gozou, erguendo-se devagar – Pronto, eu saio, Filipe, passa-me a toalha!
- Esse cão não sabe a sorte que tem… - lamentou-se.
- Sabe, sabe… Ele venera-me.
- Odeio-o. – rosnou brincalhão.
- Então? Como foi o resto do teu dia? – perguntou Marta mudando de tema.
- Uma chatice, até há vinte minutos atrás. – confessou naturalmente – Quando voltas? 
- Ainda não sei.
- Eu quero a minha surpresa no meu dia de anos. – ordenou, deitando-se de barriga para cima no sofá, descontraído.
- Vou tentar. Irias gostar muito. – disse misteriosa.
- Mais que as mensagens de hoje? – esperava que sim.
- Acho que sim. Mas não sejas curioso. Não me contaste a tua surpresa, eu não conto a minha.
- É justo. Quando voltas? – perguntou metendo-se com ela novamente.
- Por mim ia agora, - confessou corando – mas tenho compromissos aqui até sexta. – explicou.
- Amanhã o que fazes depois das 19h30? – lançou meio receoso de que ela não o pudesse ou quisesse ver enquanto estivesse em casa dos pais. Castelo Branco era perto, poderia lá dar um salto e voltar depois do jantar.
- Ham? – não compreendia a pergunta.
- Se estiveres livre e quiseres, eu vou aí ter e jantamos. – sugeriu, sentindo as mãos a suar de nervos.
- Mas vinhas até aqui de propósito só para jantar? – perguntou surpreendida.
- Não ia aí “só para jantar”… ia para jantar contigo. – explicou, com a garganta seca.
- Eu gost… - começava a responder quando a campainha da porta de casa de João tocou, obrigando-o a interromper a conversa.
- Espera só um minuto. – dirigiu-se à porta, abrindo-a contrariado com aquela distração e ficando confuso com a visita – Nélia?
- Olá querido! – ronronou Nélia, engolindo o orgulho e sorrindo-lhe com algum escárnio – Acho que no sábado deixei no teu quarto os meus brincos! – entrou sem ser convidada e deu-lhe um beijo na bochecha, deixando-o perplexo à entrada de casa.
- Marta? – disse aflito para o telemóvel, receoso de que ela tivesse ouvido.
- Sim? – respondeu engolindo uma porção de saliva que lhe soube a fel.
- Desculpa, eu já te ligo. – apressou-se a dizer, nervoso com o tom de voz dela e consequente silêncio. – Ouviste? – perguntou ansioso.
- Sim, claro. Beijos. – desligou o telefone e largou-o  para cima da cama. Mas seria possível que só acertava em homens com defeitos? Filipe sentiu a sua tristeza e saltou para o seu lado, enroscando-se nela. – Só tu é que não me desiludes.

Seguiu Nélia até ao quarto, onde esta tinha entrado sem cerimónias, numa atitude de intimidade despropositada e lunática.
- Queres explicar-me o que vem a ser isto? – berrou, sentindo-se a explodir de raiva com o comportamento dela.
- Desculpa, mas não sei o teu número de telefone, - explicou cinicamente, sem se intimidar com os modos alterados dele – e como certamente não irei mais entrar nesta casa, queria certificar-me de que não deixava aqui coisas minhas perdidas. – continuou a busca pelos brincos imaginários. Tinha ali ido para se vingar, e parecia-lhe que sem querer, nem fazer qualquer esforço, uma Marta qualquer iria vingá-la convenientemente. –Ah!, encontrei! – exclamou, mentindo e fingindo agarrar os objetos perdidos debaixo da cama. – Pronto, obrigada. Adeus. – deu meia volta e saiu, rejubilando de gozo ao ver o ar perdido com ele ficara.
João bateu a porta com força, depois de Nélia sair, expulsando alguma da raiva que sentia naquele momento. Apressou-se a telefonar para Marta, mas, tal como ele imaginara, ela não atendeu. Repetiu a chamada algumas vezes, mas acabou por desistir, frustrado e consumido pela culpa. Se não tivesse desnorteado na noite de sábado, nunca se tinha metido naquela alhada, pensou angustiado. Mandaria uma mensagem a pedir desculpa e explicar quem era a Nélia, ou talvez não, pensava nervoso. Talvez fosse melhor ir até lá pessoalmente e tentar resolver  o “mal entendido”. Dir-lhe-ia o quê?, perguntava-se, Que era tão estúpido ao ponto de ter levado para a cama uma ordinária qualquer, sem amor próprio, que se sujeitava a ser usada por parvalhões como ele? Ou que a culpada era ela, que o tinha deixado carente e precisara de resolver o seu problema físico, fazendo sexo com uma qualquer?
Pegou no telefone e escreveu simplesmente “Desculpa, atende para te explicar o que se passou aqui.” 

Marta abriu a mensagem e desligou o telefone, encerrando-o. Não precisava daquilo, ordenou-se, limpando uma lágrima teimosa que surgiu. Aconchegou-se a Filipe e fechou os olhos, soluçando baixinho, pois não queria preocupar ninguém da casa, até adormecer, muito tempo depois.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)


quarta-feira, 29 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 9



- Então querida, ficas cá até quando? – perguntou Mariana, receosa de que a filha desaparecesse durante mais uma temporada sem deixar vestígios.
- Ainda não decidi. Talvez até domingo. – Isabel pensava noite e dia nessa questão, remoendo-se de dúvidas. Queria partir o quanto antes para junto de João, mas se o fizesse naquele estado de espírito em que estava iria meter-se num problema maior que aquele que já vivia diariamente. Lançar-se-ia nos seus braços, pondo-se em risco e pior que tudo, trazendo outra pessoa para o seu pesadelo. Não queria sequer imaginar que João fosse prejudicado ou atacado pelo seu fantasma de carne e osso.
- Tu pensas que eu não te entendo, - interveio a mãe, pousando os talheres – sempre achaste que só a Adelaide é que te conhece, mas eu sei muito bem que esta tua vinda traz água no bico.
- Não é nada disso mãe. – reagiu, espantada com o rumo da conversa, mais pessoal que o que habitualmente falava com Mariana. – Estava com saudades vossas. 
- Sim, não duvido. – limpou os cantos da boca com um gesto carregado de etiqueta – Mas uma mãe sabe quando a filha está a sofrer. O que se passou lá no sítio onde vives agora? – perguntou sem disfarçar a ironia na voz. Feria-a saber que a filha, a sua princesa, morava num pardieiro, juntamente com um cão horroroso.
- Não sei o que fazer. – confessou, olhando a mãe com carinho e fingindo que não percebera o tom.
- Como assim? Aquele animal tornou a procurar-te? – exclamou preocupada com a ideia de que o ex-genro continuasse a infernizar a filha.
- Não… - respondeu, pouco certa de que ele não andasse sempre a rondá-la – Eu conheci uma pessoa. – conseguiu dizer corando.
- Eu logo vi. E então? Não sabes o que fazer porquê?
- Tenho receio de que o Tiago cumpra o que prometeu. – engoliu em seco com a recordação do dia do julgamento.
- Isabel, tu viveste um horror que eu não consigo imaginar sequer, - pigarreou escondendo a emoção – nunca vivi nada assim, mas isso já passou. Já lá vão cinco anos, não achas que está na altura de ultrapassares isso? – questionou-a carinhosamente.
- Sim, talvez… - uma lágrima caiu desamparada na toalha de linho – Mas prometi a mim mesma só voltar a tentar se encontrasse o tal…
- Já pensaste em recorrer a um psicólogo, psiquiatra? – sugeriu a mãe, incomodada com o facto de que a filha ainda andasse deprimida – Acho que o fantasma agora só continua presente na tua vida porque o trazes dentro de ti.
Isabel olhou a mãe com admiração, aquelas palavras podiam estar mais certas do que Mariana imaginava. Sorriu-lhe, mais animada com a referência a um médico mental.
- Ele é psiquiatra. – confessou, sentindo-se corar mais um pouco.
- E ainda tens dúvidas de que ele é o tal? – piscou-lhe o olho, demonstrando uma rara cumplicidade maternal. – Vem aí o teu pai. Limpa as lágrimas e acabou esta conversa. – disse, retomando o discurso formal.


- Então rapariga? O que tens? Estás doente? – Rosário aproximou-se da sobrinha que criara, uma pobre de Cristo, sem pai desde pequenina, que ficou subitamente órfã depois da sua irmã cometer o suicídio, vinte anos atrás.
- Não tia. Hoje não me apetece sair. – respondeu com maus modos.
- Nem te apetece ir pra borga, nem trabalhar! Está aqui uma casa bem arranjada, está! – ralhou, furiosa com a atitude imprestável que aquela rapariga tinha. Não ajudava em casa, não tinha tido cabeça para os estudos, a única coisa que lhe parecia saber fazer era a maquilhagem todas as noites, antes de sair para as discotecas. Se nem isso lhe apetecia há dois dias, algo de errado se passava. – Queres ver que tenho de pedir ao meu patrão para te tratar? – exclamou, pensando na dificuldade que seria conseguir pagar a um psiquiatra daqueles um tratamento.
- Nem pense! Eu não estou doida! – gritou de volta, sentindo a raiva a invadi-la de novo, só de imaginar ter de encarar o Dr João, depois de ele a ter tratado como uma prostituta reles e ordinária. 
- Não me levantes a voz, ouviste? – berrou Rosário ofendida. – Raios partam na rapariga que é enxertada em corno de cabra! – bateu a porta do quarto da sobrinha, lamentando-se da pouca sorte que tinha tido com a miúda. 
Nélia fixou o tecto, praguejando interiormente contra a saloia da tia, o seu destino miserável naquela casa, o seu futuro encalhado sem perspectivas de mudança e o facto de que os seus planos megalómanos tinham ido por água abaixo. Desde sempre se recordava de imaginar que um dia acabaria casada com o Dr João Marques, patrão da sua mãe adotiva, de quem esta falava maravilhas. Bonito, inteligente, charmoso, rico, e a dada altura viúvo. Perfeito para uma rapariga cheia de atributos físicos poder consolar. Pouco a pouco aproximou-se dele, com cautela para não mostrar qualquer ligação à “Dona Rosário”, e cada vez lhe parecia mais fácil atingir o seu objectivo. Só não contava que ele fosse tão nojento, como os que já tinha conhecido ao longo da sua jovem vida de adulta. Nem se dignara a olhá-la, depois de tudo aquilo, e pagou-lhe, sem remorsos, recordou, chorando na almofada. Só lhe apetecia morrer…


Escreveu o número de telefone de casa de Marta no local de pesquisa do site das páginas amarelas e rezou para que conseguisse descobrir algo de útil sobre ela. O local onde estava já seria um princípio, comentou consigo mesmo entusiasmado. No google não havia nada sobre uma “Marta de Castelo Branco”, ou melhor, constatava perdido, havia muita Marta naquela cidade, mas nenhuma era a que lhe interessava. A morada correspondente ao número fixo surgiu, e João selecionou-a, copiando-a para o google maps, a fim de a situar espacialmente. Rapidamente percebeu que o local ficava no centro de Castelo Branco, numa zona principal, e para visualizar melhor, recorreu ao “Street view” e esperou que as imagens satélite carregassem para continuar a pesquisa caseira. Uma propriedade demasiado grande para um lote urbano central apareceu no ecrã do pc, deixando-o confuso. Confirmou a morada inserida e “olhou” a rua em que se situava a mansão, ficando perplexo. Parecia-lhe um palácio daqueles que só as instituições do Estado conseguiam manter, adaptando para serviços administrativos, não uma casa familiar. Percorreu virtualmente toda a rua de cima para baixo, olhando tudo pormenorizadamente, tentando perceber aquele quebra-cabeças. Talvez ela fosse filha de uma das muitas empregadas que um casarão daqueles deveria ter, só para o manter limpo diariamente, matutou. Era bem provável. Deixou a “janela” do street view aberta e tratou de pesquisar no google apenas a morada do palácio, para ver se obtinha alguma pista. Várias referências ao local chique lhe apareceram, mas o seu objetivo era descobrir quem lá vivia, como se chamavam, o que faziam, etc. Depois de ler muito site inútil, apareceu subitamente o que procurava numa notícia regional de um jornal albicastrense. Era a residência familiar do Presidente da Câmara, antigo responsável pela direção da Medicina Legal do Hospital de Castelo Branco, Dr. José Fontes Pereira e Castro. Agarrou nessa novidade e fez nova pesquisa no google, desta feita, com muito mais informação, na sua grande maioria referentes ao trabalho atual de presidente do município. Festas, galas, inaugurações, assembleias, mil e um artigos sem importância. Deixou a “literatura” e carregou na pesquisa de imagens, aparecendo-lhe mais um rol de fotos institucionais, a mostrar um político sorridente e bem parecido. Percorria a página de imagens já cansado de tanto “cortar a fita” dos políticos, quando a viu junto do homem. Abriu a imagem fazendo zoom, com as mãos a suarem-lhe de nervos, e ali estava ela, no meio de um casal, vestida a preceito, formalmente, uma betinha com ar de frete numa cerimónia qualquer, bem mais nova que a Marta atual, mas definitivamente ela. A legenda deixava claro de quem se tratavam, Mariana, Isabel e José Fontes Pereira e Castro, mulher, filha única e Presidente, respetivamente. 
- Isabel?! – perguntou em voz alta. – Como assim, Isabel?? – exclamou horrorizado com a descoberta.
Tornou a pesquisar no google, desta feita colocando apenas “Isabel Fontes Pereira e Castro, Castelo Branco”, ficando perplexo a olhá-la. Centenas de imagens de “Marta”, todas em situações formais, mas apenas até uma certa idade. Não havia nenhuma com a mulher que ele conhecia, apenas uma garota bonita. Retomou a pesquisa na web, deixando de parte as fotos dela, e tratou de se ajeitar na cama para ler exaustivamente tudo o que lhe aparecesse sobre ela. Várias páginas dedicadas ao desporto mostravam-na nos pódios, tal como ela tinha referido dias antes, a receber medalhas ganhas nas competições de ginástica acrobática. Uma menina feliz e sorridente, constatou, naquela versão desportiva. Por mais que procurasse, nada de atual havia a dizer sobre a Isabel de Castelo Branco, resignou-se, fechando o portátil exausto, de tantas horas em frente ao ecrã. Olhou o relógio do telefone e viu com espanto que já eram perto das quatro da manhã. Afastou tudo do seu lado da cama e deitou-se, ficando a olhar o tecto, perdido nos seus pensamentos e teorias sobre tudo o que tinha descoberto. Algo de estranho tinha acontecido para que Marta, Isabel, corrigiu-se, tivesse deixado a vida confortável com a família abastada e tivesse vindo morar para aquele sítio inóspito no meio do nada, com literalmente nada a que estava acostumada. Zanga familiar não deveria ser, matutava, pois tinha ido visitar os pais. Seria assim tão excêntrica que preferisse carregar água quente para a casa de banho para conseguir tomar duche, e lavar a roupa à mão num tanque, a viver sem dificuldades nem trabalhos pesados? Porquê?




- Estou?... – grunhiu para o telemóvel, ainda a dormir.
- Bom dia! Ganhei! Fui a primeira a ligar. – tinha estado em pulgas à espera que chegassem as sete da manhã.
- Marta? – perguntou confuso .
- Sim, já acordaste?
- Não… - respondeu num lamento.
- Mas não disseste que podia ligar a partir das sete?
- Da tarde… sete da tarde… - resmungou cheio de sono. 
- Ah… desculpa. Volta a dormir, então. – disse sentindo-se ridícula com a confusão do horário.
- Não, fala comigo. – pediu, afastando as cobertas da cama com o calor que subitamente o afetou.
- Bem, agora fiquei sem jeito… - confessou, sentindo-se corar.
- Já acordaste há muito tempo?
- Sim, já fiz quase uma hora de yoga com o Filipe. Ele agora está a dormitar, é um cu de sono. – explicou divertida – E tu? Tens praticado?
- O quê? Kamasutra? – perguntou provocador, sorrindo com a ideia de a deixar encavacada.
- Não… yoga. – a cara escaldou-lhe mais ainda.
- Nem por isso, sem a professora não tenho estímulo para me exercitar.
- Preguiçoso… Vamos lá, a professora agora está aqui, é ótimo começar o dia a esticar a coluna. Vamos, senta-se. – ordenou entusiasmada.
- Já está. – mentiu, sorrindo.
- Não está nada. Aldrabão… Senta-te lá. Eu vou falando e tu imaginas que estou aí.
- Na minha cama? Cala-te por favor… - gemeu a sentir-se aquecer mais e pontapeando o resto dos lençóis que ainda lhe cobriam os pés.
- És impossível… - tinha vontade de se rebolar de alegria, como o Filipe fazia quando estava excitado.
- Vá, agora a sério, estás aqui, sentada à chinês, eu estou-te a ver. Diz lá o que queres que eu faça.
- Primeiro, esticas os braços e forças na direção do tecto, para as vértebras ficarem acordadas.
- Já está. – mentiu novamente, apenas concentrado na imagem dela a fazer o exercício em questão.
- Mas está mesmo? – questionou desconfiada.
- Sim, claro. Já estou todo esticadinho.
- Agora inclinas-te para a esquerda e para a direita, como te ensinei. – continuou, a imaginá-lo naquela posição. – Depois colocas as mãos em lótus e fechas os olhos, respirando com o abdómen.
- Hum, hum… - sussurrou a sentir-se cada vez mais descontraído ao ouvir a sua voz cadenciada.
- Esticas as pernas, e rodas o tronco para a esquerda.
- Não quero esticar as pernas, - reclamou – canta-me lá aquele mantra que eu gosto. – pediu, enroscando-se na cama.
- Om Shanti… Om Shanti… Om Shanti Om… Om…- repete comigo. Esperou alguns segundos, mas João calara-se, sem reagir. – João?... João?... Adormeceu… - desligou o telefone e olhou Filipe a dormir com censura. – Cus de sono!


João acordou com o som vindo da cozinha, estremunhado com um sonho bastante real em que falara ao telefone com Marta, e ela fizera yoga na sua cama. Esfregou os olhos pesados das poucas horas de sono que conseguira aproveitar e sentiu algo rijo na sua almofada, agarrando-o sobressaltado. Porque raio tinha ali o telemóvel?... Ligou o aparelho, sentando-se, e viu no registo de chamadas o número de Castelo Branco, às 7h00 em ponto. Alguns minutos de chamada… - Merda, adormeci ao telefone com ela… - Se fizesse isto à Isabel ela faria um escândalo. Estaria Marta, Isabel, corrigiu, zangada? Dirigiu-se ao quarto de banho e arranjou-se o mais depressa possível. Já não teria tempo para tomar o pequeno almoço, dormira quase duas horas a mais que o normal, lamentou-se, mais ansioso com o facto de ela ter ficado pendurada ao telefone com ele a dormir, do que os pacientes na sala de espera a reclamar com o atraso do médico. Eles que lessem uma revista, resmungou, saturado daquelas caras amarelentas e depressivas. Iria ser um péssimo dia com a neura do sono, constatou. Tinha a cabeça demasiado cheia de dúvidas e teorias sobre ela, o seu passado, seria  um suplício ter de se abstrair de tudo isso e concentrar-se nos problemas dos outros. Precisava urgentemente de retomar a sua pesquisa, explorar cada pista e ideia que o mantivera acordado durante horas, compreender quem ela realmente era o mais depressa possível. Estava a caminhar a passos largos para a dependência emocional dela, a gostar demasiado de uma pessoa que simplesmente poderia não existir, ser uma farsa. Não tinha a certeza de que aguentaria outra “morte”.
Saiu de casa enervado, a sua empregada Rosário andava particularmente estranha, parecia-lhe preocupada, mas João não tinha tido tempo para tentar perceber porquê. Sabia que ela tinha uma sobrinha problemática, que lhe tirava o sono de vez em quando, mas nunca se alongara muito em conversas. Algo de mais grave se passava, concluía, a sentir-se culpado por não lhe retribuir a dedicação que ela lhe devotava.
Entrou no carro e o telemóvel não lhe saía da mão, como que a pedir-lhe que lhe ligasse, colado aos dedos, irrequietos. Olhou o número dela e não se conteve, afinal tinha uma boa desculpa para telefonar, devia-lhe um pedido de desculpas.
- Estou, sim? – Adelaide atendeu prontamente.
- Estou, sim, muito bom dia. Fala de casa da Isabel? – perguntou a sentir uma gota de suor a nascer-lhe no pescoço.
- Quem fala? –questionou sem lhe responder. Um homem a ligar para a casa da menina não era usual, principalmente quando ela chegara dois dias antes.
- Peço desculpa, chamo-me João Marques, sou o psiquiatra da Isabel, e fiquei em ligar-lhe hoje de manhã. – mentiu descaradamente, reagindo a um instinto que lhe dizia que a senhora o iria despachar se não estivesse segura de que a Isabel quisesse atender o telefone.
- Ah, sim, como está Dr.? A menina Isabel não me avisou que iria telefonar. Mas ela saiu há pouco com a Senhora, só voltarão ao final do dia. – explicou.
- Não há problema, deve ter-se esquecido. Pode apenas dar-lhe o recado de que liguei? – pediu, frustrado com a ideia de estar o resto do dia sem a ouvir.
- Com certeza, assim que a menina chegar, darei o recado.
- Muito obrigado, bom dia.
- Bom dia, com sua licença. – desligou o aparelho, agradada com os modos bem educados do médico da Isabelinha. Gente fina, concluiu.
João carregou no acelerador e dirigiu-se para o seu calvário diário, agora com mais uma preocupação na mente, não saber se ela estava zangada consigo. 


- Isabelinha, tu não podes tratar o cão como se fosse um humano! – recriminou Mariana, aborrecida com o mau humor da filha desde que saíra de casa.
- Não é nada disso mãe, fico com medo que ele fuja, não está habituado a viver naquela casa, pode tentar procurar por mim e sair para a rua.
- Disparate! A Adelaide disse que o vigiava, agora vamos aproveitar o dia em Cáceres, fazer umas compras, almoçar uns tapas e passear. – rematou decidida.
- Claro, desculpe mãe. – acariciou-lhe a mão e esforçou-se por sorrir perante aquele programa de mulheres. Descontraiu no banco do passageiro do carro de Mariana e distraiu-se com a paisagem da viagem até Espanha, imaginando como seria bom que João conhecesse aqueles locais com ela, comessem uns tapas, dormitassem na relva do Parque Del Príncipe, em vez de se ir enfiar no El Corte Inglês, a percorrer quilómetros atrás da mãe, de loja em loja, sem orçamento nem travões de qualquer espécie. – Acha que consigo comprar um telemóvel ainda hoje? – queria muito falar com João, saber se não tinha chegado atrasado de manhã à clínica, estar sempre contactável para ele.
- Claro querida! – reagiu surpreendida com a ideia. – Ainda bem que decidiste deixar-te dessas ideias malucas de estares isolada de tudo e todos.
- Pois, anda-me a fazer falta, e a conduzir sozinha posso ter necessidade de pedir ajuda. – concluiu, omitindo a verdadeira intenção de ter um telefone móvel; esperar os telefonemas dele.
- Claro. Deves ser a única rapariga com vinte e nove anos que não tem telemóvel! – recriminou-a.
- Faz-me mais falta um esquentador, mas pronto… - sorriu-lhe divertida.
Mariana arrepiou-se com a ideia de viver sem água quente nas torneiras, na era medieval, como a filha. 


Diana sobressaltou-se com a pressa com que João entrou na sala de espera, já atrasado para o primeiro horário, com cara de poucos amigos.
- Bom dia, Dr.
- Bom dia. Pode mandar entrar o primeiro paciente. – entrou no gabinete, sentou-se na cadeira e pensou em tomar um ansiolítico, sentia-se especialmente mal humorado. Como iria passar um dia inteiro sem a ouvir?...
- Com licença. – Um homem entrou na sala, acabrunhado.
- Faça favor, bom dia. Como está? – João estendeu-lhe a mão, sorrindo.
- Pelos vistos, nada bem… - gracejou, olhando em volta, pouco confortável com o facto de ter necessidade de recorrer a um psiquiatra.
João esmerou-se na consulta, agradado com a novidade rara de tratar uma pessoa do sexo masculino. Eram raros, normalmente maldisposto e agressivos, mas para começar bem o dia, aparecera-lhe um doente ainda com sentido de humor. 
- Vou ver do telemóvel. – Isabel informou a mãe, ocupada a escolher um fato para uma cerimónia próxima onde teria de acompanhar o marido.
- Vai querida, encontramo-nos à porta da outra loja que te falei. – informou-a, sem desviar o olhar das dezenas de modelos diferentes dispostas no balcão.
- Não quero comprar roupa. Aqui não há nada que eu goste de usar… - reclamou, irritada com a insistência da mãe em vesti-la à betinha.
- Menina, podes até nunca usar, mas vais-me dar o prazer de te oferecer uns conjuntos decentes. Pode ser que entretanto te passe a adolescência! – gracejou, olhando a figura excêntrica da filha, vestida de hippie.
- Até já. – deu meia volta e saiu da loja antes que a conversa azedasse. Apressou-se a encontrar a loja de telemóveis, nervosa com aquele passo drástico na sua vida, ceder às pressões tecnológicas do mundo atual. Só mesmo ele para a fazer duvidar das suas teorias anti-globalização. Naquele momento, sentir uma proximidade constante a João, bem guardada na sua mala, era a sua prioridade. Assim que o tivesse nas mãos iria ligar-lhe a dar a novidade, pensou feliz da vida.
João sentiu um calor no peito assim que o telemóvel tocou ao seu lado, seria ela? Pegou no aparelho e desiludiu-se ao ver o nome do Salvador no ecrã.
- Estou? – disse, sem disfarçar a frustração.
- Olá pinga-amor! Então, estás vivo?
- Porque haveria de estar morto?
- Saíste com aquela bomba do bar no sábado e ainda não deste sinal de vida… - provocou o amigo.
- Só me arranjas problemas. – confessou, recordando-se da noite com Nélia.
- Então? – perguntou curioso.
- Nada de especial. – mentiu, desviando o tema desconfortável.
- Apareces hoje?
- Sim, tenho mesmo que falar com o “Janota”. – já tinha decidido que iria alargar a sua pesquisa sobre Marta, Isabel, corrigiu, tentando outras vias de conhecimento, os boatos. Certamente que em Castelo Branco a vida da família do Presidente da Câmara seria do domínio público. Talvez o segurança conseguisse dados novos sobre ela.
- Nem vou perguntar porquê… - gracejou, entendendo logo os planos de João.
- A minha hora de almoço acabou. Tchau. – despediu-se sem cerimónias, desligando o telemóvel. Aquele Salvador era pior que um rato, curioso e metediço.
Voltou-se novamente para o computador, continuando a procura informática interrompida pelo amigo. Se ela tinha o curso de Osteopata procuraria descobrir onde o tinha frequentado. Talvez houvesse informações relevantes. Não demorou muito a encontrar o Instituto Politécnico de Castelo Branco, e lá estava ela, em fotos antigas de curso, Licenciatura em Fisioterapia Clínica. Ficava-lhe bem o traje académico, constatou. Olhava-a embevecido quando uma outra foto o deixou perturbado. Um rapaz enlaçava-lhe a cintura, possessivamente, enquanto ela o olhava apaixonada. Mas que merda era aquela? Perguntou-se enraivecido com os ciúmes. Afinal era ou não era lésbica? Ali parecia-lhe gostar bastante de homens… Copiou a foto e guardou-a numa pasta que criara onde já colocara todas as outras informações que descobrira até então. Fixou a cara do homem e retomou a pesquisa de imagens apenas com o nome dela. Tinha de tirar a limpo se aquele personagem era apenas um colega de curso, ou algo mais. Percorreu-as a todas, calmamente, desta vez com outra pessoa na mira. Depois de algumas páginas, e se havia páginas de fotos com aquela mulher, descobriu-os, o casal apaixonado. Uma fúria de despeito invadiu-o, deixando-o nervoso. Com ele era lésbica, agora com aquele feioso, já se derretia! Tiago Mendes, gravou o nome na memória, seria impossível esquecer, e pesquisou esse novo dado. Espantosamente, dezenas de reportagens antigas mencionavam aquele nome, com muito mais informação que aquela que esperaria. Abriu uma a uma, lendo-as de ponta a ponta, com um crescente pânico a invadi-lo. “Juiz ouve hoje Tiago Mendes, alegado agressor doméstico, num julgamento mediático e cheio de controvérsias. Centenas juntaram-se à porta do Tribunal de Castelo Branco para ver o ex-marido da filha do Diretor do Serviço de Medicina Legal do Hospital Amato Lusitano.” “Juiz não considera como provas os depoimentos de familiares e conhecidos da vítima, alegando questões éticas. A vítima que, ao início deste longo julgamento, ainda se encontrava internada a recuperar, recebeu ontem alta da ala psiquiátrica do Hospital. É presente ao Juiz no início da próxima semana, esperando-se uma nova enchente de curiosos nas imediações do edifício.” “Advogado de defesa de Tiago Mendes confessou aos jornalistas que a vítima não estava capaz de falar, nem antes, nem depois do tratamento psiquiátrico. Teriam de adiar uma vez mais a sessão”. “Tiago Mendes absolvido das acusações de tentativa de homicídio, agressões físicas, sequestro, e tortura. Juiz considera que apenas ficou provada a agressão a cão do ex-casal, e consequente problema emocional da vítima do sexo feminino. Tiago fica assim proibido de se aproximar da casa do Diretor da Medicina Legal, bem como da filha.”
João respirou fundo, depois de se ter mantido em apneia, e fechou as imagens dos jornais, ficando apenas com Tiago no ecrã. Aquele homem tinha sido casado com ela, batera-lhe e fizera-lhe coisas que nem queria imaginar, pensou tresloucado com toda a raiva que sentia. Procurou nas gavetas da secretária por um ou dois comprimidos que o acalmassem, milhares de pensamentos não o deixavam racionalizar o que lera, era demasiado horrível. Imaginá-la a ser agredida, violentada, como era possível que alguém a odiasse de tal forma? Porque só podia ser ódio, o que levava os homens a baterem nas suas mulheres. Ou isso, ou aquele Tiago era um psicopata, um doente mental com compulsões violentas que não controlava, e direcionava para quem menos merecia. Filho da puta, pensou enfurecido, psicopata era um elogio. 

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