quarta-feira, 29 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 9



- Então querida, ficas cá até quando? – perguntou Mariana, receosa de que a filha desaparecesse durante mais uma temporada sem deixar vestígios.
- Ainda não decidi. Talvez até domingo. – Isabel pensava noite e dia nessa questão, remoendo-se de dúvidas. Queria partir o quanto antes para junto de João, mas se o fizesse naquele estado de espírito em que estava iria meter-se num problema maior que aquele que já vivia diariamente. Lançar-se-ia nos seus braços, pondo-se em risco e pior que tudo, trazendo outra pessoa para o seu pesadelo. Não queria sequer imaginar que João fosse prejudicado ou atacado pelo seu fantasma de carne e osso.
- Tu pensas que eu não te entendo, - interveio a mãe, pousando os talheres – sempre achaste que só a Adelaide é que te conhece, mas eu sei muito bem que esta tua vinda traz água no bico.
- Não é nada disso mãe. – reagiu, espantada com o rumo da conversa, mais pessoal que o que habitualmente falava com Mariana. – Estava com saudades vossas. 
- Sim, não duvido. – limpou os cantos da boca com um gesto carregado de etiqueta – Mas uma mãe sabe quando a filha está a sofrer. O que se passou lá no sítio onde vives agora? – perguntou sem disfarçar a ironia na voz. Feria-a saber que a filha, a sua princesa, morava num pardieiro, juntamente com um cão horroroso.
- Não sei o que fazer. – confessou, olhando a mãe com carinho e fingindo que não percebera o tom.
- Como assim? Aquele animal tornou a procurar-te? – exclamou preocupada com a ideia de que o ex-genro continuasse a infernizar a filha.
- Não… - respondeu, pouco certa de que ele não andasse sempre a rondá-la – Eu conheci uma pessoa. – conseguiu dizer corando.
- Eu logo vi. E então? Não sabes o que fazer porquê?
- Tenho receio de que o Tiago cumpra o que prometeu. – engoliu em seco com a recordação do dia do julgamento.
- Isabel, tu viveste um horror que eu não consigo imaginar sequer, - pigarreou escondendo a emoção – nunca vivi nada assim, mas isso já passou. Já lá vão cinco anos, não achas que está na altura de ultrapassares isso? – questionou-a carinhosamente.
- Sim, talvez… - uma lágrima caiu desamparada na toalha de linho – Mas prometi a mim mesma só voltar a tentar se encontrasse o tal…
- Já pensaste em recorrer a um psicólogo, psiquiatra? – sugeriu a mãe, incomodada com o facto de que a filha ainda andasse deprimida – Acho que o fantasma agora só continua presente na tua vida porque o trazes dentro de ti.
Isabel olhou a mãe com admiração, aquelas palavras podiam estar mais certas do que Mariana imaginava. Sorriu-lhe, mais animada com a referência a um médico mental.
- Ele é psiquiatra. – confessou, sentindo-se corar mais um pouco.
- E ainda tens dúvidas de que ele é o tal? – piscou-lhe o olho, demonstrando uma rara cumplicidade maternal. – Vem aí o teu pai. Limpa as lágrimas e acabou esta conversa. – disse, retomando o discurso formal.


- Então rapariga? O que tens? Estás doente? – Rosário aproximou-se da sobrinha que criara, uma pobre de Cristo, sem pai desde pequenina, que ficou subitamente órfã depois da sua irmã cometer o suicídio, vinte anos atrás.
- Não tia. Hoje não me apetece sair. – respondeu com maus modos.
- Nem te apetece ir pra borga, nem trabalhar! Está aqui uma casa bem arranjada, está! – ralhou, furiosa com a atitude imprestável que aquela rapariga tinha. Não ajudava em casa, não tinha tido cabeça para os estudos, a única coisa que lhe parecia saber fazer era a maquilhagem todas as noites, antes de sair para as discotecas. Se nem isso lhe apetecia há dois dias, algo de errado se passava. – Queres ver que tenho de pedir ao meu patrão para te tratar? – exclamou, pensando na dificuldade que seria conseguir pagar a um psiquiatra daqueles um tratamento.
- Nem pense! Eu não estou doida! – gritou de volta, sentindo a raiva a invadi-la de novo, só de imaginar ter de encarar o Dr João, depois de ele a ter tratado como uma prostituta reles e ordinária. 
- Não me levantes a voz, ouviste? – berrou Rosário ofendida. – Raios partam na rapariga que é enxertada em corno de cabra! – bateu a porta do quarto da sobrinha, lamentando-se da pouca sorte que tinha tido com a miúda. 
Nélia fixou o tecto, praguejando interiormente contra a saloia da tia, o seu destino miserável naquela casa, o seu futuro encalhado sem perspectivas de mudança e o facto de que os seus planos megalómanos tinham ido por água abaixo. Desde sempre se recordava de imaginar que um dia acabaria casada com o Dr João Marques, patrão da sua mãe adotiva, de quem esta falava maravilhas. Bonito, inteligente, charmoso, rico, e a dada altura viúvo. Perfeito para uma rapariga cheia de atributos físicos poder consolar. Pouco a pouco aproximou-se dele, com cautela para não mostrar qualquer ligação à “Dona Rosário”, e cada vez lhe parecia mais fácil atingir o seu objectivo. Só não contava que ele fosse tão nojento, como os que já tinha conhecido ao longo da sua jovem vida de adulta. Nem se dignara a olhá-la, depois de tudo aquilo, e pagou-lhe, sem remorsos, recordou, chorando na almofada. Só lhe apetecia morrer…


Escreveu o número de telefone de casa de Marta no local de pesquisa do site das páginas amarelas e rezou para que conseguisse descobrir algo de útil sobre ela. O local onde estava já seria um princípio, comentou consigo mesmo entusiasmado. No google não havia nada sobre uma “Marta de Castelo Branco”, ou melhor, constatava perdido, havia muita Marta naquela cidade, mas nenhuma era a que lhe interessava. A morada correspondente ao número fixo surgiu, e João selecionou-a, copiando-a para o google maps, a fim de a situar espacialmente. Rapidamente percebeu que o local ficava no centro de Castelo Branco, numa zona principal, e para visualizar melhor, recorreu ao “Street view” e esperou que as imagens satélite carregassem para continuar a pesquisa caseira. Uma propriedade demasiado grande para um lote urbano central apareceu no ecrã do pc, deixando-o confuso. Confirmou a morada inserida e “olhou” a rua em que se situava a mansão, ficando perplexo. Parecia-lhe um palácio daqueles que só as instituições do Estado conseguiam manter, adaptando para serviços administrativos, não uma casa familiar. Percorreu virtualmente toda a rua de cima para baixo, olhando tudo pormenorizadamente, tentando perceber aquele quebra-cabeças. Talvez ela fosse filha de uma das muitas empregadas que um casarão daqueles deveria ter, só para o manter limpo diariamente, matutou. Era bem provável. Deixou a “janela” do street view aberta e tratou de pesquisar no google apenas a morada do palácio, para ver se obtinha alguma pista. Várias referências ao local chique lhe apareceram, mas o seu objetivo era descobrir quem lá vivia, como se chamavam, o que faziam, etc. Depois de ler muito site inútil, apareceu subitamente o que procurava numa notícia regional de um jornal albicastrense. Era a residência familiar do Presidente da Câmara, antigo responsável pela direção da Medicina Legal do Hospital de Castelo Branco, Dr. José Fontes Pereira e Castro. Agarrou nessa novidade e fez nova pesquisa no google, desta feita, com muito mais informação, na sua grande maioria referentes ao trabalho atual de presidente do município. Festas, galas, inaugurações, assembleias, mil e um artigos sem importância. Deixou a “literatura” e carregou na pesquisa de imagens, aparecendo-lhe mais um rol de fotos institucionais, a mostrar um político sorridente e bem parecido. Percorria a página de imagens já cansado de tanto “cortar a fita” dos políticos, quando a viu junto do homem. Abriu a imagem fazendo zoom, com as mãos a suarem-lhe de nervos, e ali estava ela, no meio de um casal, vestida a preceito, formalmente, uma betinha com ar de frete numa cerimónia qualquer, bem mais nova que a Marta atual, mas definitivamente ela. A legenda deixava claro de quem se tratavam, Mariana, Isabel e José Fontes Pereira e Castro, mulher, filha única e Presidente, respetivamente. 
- Isabel?! – perguntou em voz alta. – Como assim, Isabel?? – exclamou horrorizado com a descoberta.
Tornou a pesquisar no google, desta feita colocando apenas “Isabel Fontes Pereira e Castro, Castelo Branco”, ficando perplexo a olhá-la. Centenas de imagens de “Marta”, todas em situações formais, mas apenas até uma certa idade. Não havia nenhuma com a mulher que ele conhecia, apenas uma garota bonita. Retomou a pesquisa na web, deixando de parte as fotos dela, e tratou de se ajeitar na cama para ler exaustivamente tudo o que lhe aparecesse sobre ela. Várias páginas dedicadas ao desporto mostravam-na nos pódios, tal como ela tinha referido dias antes, a receber medalhas ganhas nas competições de ginástica acrobática. Uma menina feliz e sorridente, constatou, naquela versão desportiva. Por mais que procurasse, nada de atual havia a dizer sobre a Isabel de Castelo Branco, resignou-se, fechando o portátil exausto, de tantas horas em frente ao ecrã. Olhou o relógio do telefone e viu com espanto que já eram perto das quatro da manhã. Afastou tudo do seu lado da cama e deitou-se, ficando a olhar o tecto, perdido nos seus pensamentos e teorias sobre tudo o que tinha descoberto. Algo de estranho tinha acontecido para que Marta, Isabel, corrigiu-se, tivesse deixado a vida confortável com a família abastada e tivesse vindo morar para aquele sítio inóspito no meio do nada, com literalmente nada a que estava acostumada. Zanga familiar não deveria ser, matutava, pois tinha ido visitar os pais. Seria assim tão excêntrica que preferisse carregar água quente para a casa de banho para conseguir tomar duche, e lavar a roupa à mão num tanque, a viver sem dificuldades nem trabalhos pesados? Porquê?




- Estou?... – grunhiu para o telemóvel, ainda a dormir.
- Bom dia! Ganhei! Fui a primeira a ligar. – tinha estado em pulgas à espera que chegassem as sete da manhã.
- Marta? – perguntou confuso .
- Sim, já acordaste?
- Não… - respondeu num lamento.
- Mas não disseste que podia ligar a partir das sete?
- Da tarde… sete da tarde… - resmungou cheio de sono. 
- Ah… desculpa. Volta a dormir, então. – disse sentindo-se ridícula com a confusão do horário.
- Não, fala comigo. – pediu, afastando as cobertas da cama com o calor que subitamente o afetou.
- Bem, agora fiquei sem jeito… - confessou, sentindo-se corar.
- Já acordaste há muito tempo?
- Sim, já fiz quase uma hora de yoga com o Filipe. Ele agora está a dormitar, é um cu de sono. – explicou divertida – E tu? Tens praticado?
- O quê? Kamasutra? – perguntou provocador, sorrindo com a ideia de a deixar encavacada.
- Não… yoga. – a cara escaldou-lhe mais ainda.
- Nem por isso, sem a professora não tenho estímulo para me exercitar.
- Preguiçoso… Vamos lá, a professora agora está aqui, é ótimo começar o dia a esticar a coluna. Vamos, senta-se. – ordenou entusiasmada.
- Já está. – mentiu, sorrindo.
- Não está nada. Aldrabão… Senta-te lá. Eu vou falando e tu imaginas que estou aí.
- Na minha cama? Cala-te por favor… - gemeu a sentir-se aquecer mais e pontapeando o resto dos lençóis que ainda lhe cobriam os pés.
- És impossível… - tinha vontade de se rebolar de alegria, como o Filipe fazia quando estava excitado.
- Vá, agora a sério, estás aqui, sentada à chinês, eu estou-te a ver. Diz lá o que queres que eu faça.
- Primeiro, esticas os braços e forças na direção do tecto, para as vértebras ficarem acordadas.
- Já está. – mentiu novamente, apenas concentrado na imagem dela a fazer o exercício em questão.
- Mas está mesmo? – questionou desconfiada.
- Sim, claro. Já estou todo esticadinho.
- Agora inclinas-te para a esquerda e para a direita, como te ensinei. – continuou, a imaginá-lo naquela posição. – Depois colocas as mãos em lótus e fechas os olhos, respirando com o abdómen.
- Hum, hum… - sussurrou a sentir-se cada vez mais descontraído ao ouvir a sua voz cadenciada.
- Esticas as pernas, e rodas o tronco para a esquerda.
- Não quero esticar as pernas, - reclamou – canta-me lá aquele mantra que eu gosto. – pediu, enroscando-se na cama.
- Om Shanti… Om Shanti… Om Shanti Om… Om…- repete comigo. Esperou alguns segundos, mas João calara-se, sem reagir. – João?... João?... Adormeceu… - desligou o telefone e olhou Filipe a dormir com censura. – Cus de sono!


João acordou com o som vindo da cozinha, estremunhado com um sonho bastante real em que falara ao telefone com Marta, e ela fizera yoga na sua cama. Esfregou os olhos pesados das poucas horas de sono que conseguira aproveitar e sentiu algo rijo na sua almofada, agarrando-o sobressaltado. Porque raio tinha ali o telemóvel?... Ligou o aparelho, sentando-se, e viu no registo de chamadas o número de Castelo Branco, às 7h00 em ponto. Alguns minutos de chamada… - Merda, adormeci ao telefone com ela… - Se fizesse isto à Isabel ela faria um escândalo. Estaria Marta, Isabel, corrigiu, zangada? Dirigiu-se ao quarto de banho e arranjou-se o mais depressa possível. Já não teria tempo para tomar o pequeno almoço, dormira quase duas horas a mais que o normal, lamentou-se, mais ansioso com o facto de ela ter ficado pendurada ao telefone com ele a dormir, do que os pacientes na sala de espera a reclamar com o atraso do médico. Eles que lessem uma revista, resmungou, saturado daquelas caras amarelentas e depressivas. Iria ser um péssimo dia com a neura do sono, constatou. Tinha a cabeça demasiado cheia de dúvidas e teorias sobre ela, o seu passado, seria  um suplício ter de se abstrair de tudo isso e concentrar-se nos problemas dos outros. Precisava urgentemente de retomar a sua pesquisa, explorar cada pista e ideia que o mantivera acordado durante horas, compreender quem ela realmente era o mais depressa possível. Estava a caminhar a passos largos para a dependência emocional dela, a gostar demasiado de uma pessoa que simplesmente poderia não existir, ser uma farsa. Não tinha a certeza de que aguentaria outra “morte”.
Saiu de casa enervado, a sua empregada Rosário andava particularmente estranha, parecia-lhe preocupada, mas João não tinha tido tempo para tentar perceber porquê. Sabia que ela tinha uma sobrinha problemática, que lhe tirava o sono de vez em quando, mas nunca se alongara muito em conversas. Algo de mais grave se passava, concluía, a sentir-se culpado por não lhe retribuir a dedicação que ela lhe devotava.
Entrou no carro e o telemóvel não lhe saía da mão, como que a pedir-lhe que lhe ligasse, colado aos dedos, irrequietos. Olhou o número dela e não se conteve, afinal tinha uma boa desculpa para telefonar, devia-lhe um pedido de desculpas.
- Estou, sim? – Adelaide atendeu prontamente.
- Estou, sim, muito bom dia. Fala de casa da Isabel? – perguntou a sentir uma gota de suor a nascer-lhe no pescoço.
- Quem fala? –questionou sem lhe responder. Um homem a ligar para a casa da menina não era usual, principalmente quando ela chegara dois dias antes.
- Peço desculpa, chamo-me João Marques, sou o psiquiatra da Isabel, e fiquei em ligar-lhe hoje de manhã. – mentiu descaradamente, reagindo a um instinto que lhe dizia que a senhora o iria despachar se não estivesse segura de que a Isabel quisesse atender o telefone.
- Ah, sim, como está Dr.? A menina Isabel não me avisou que iria telefonar. Mas ela saiu há pouco com a Senhora, só voltarão ao final do dia. – explicou.
- Não há problema, deve ter-se esquecido. Pode apenas dar-lhe o recado de que liguei? – pediu, frustrado com a ideia de estar o resto do dia sem a ouvir.
- Com certeza, assim que a menina chegar, darei o recado.
- Muito obrigado, bom dia.
- Bom dia, com sua licença. – desligou o aparelho, agradada com os modos bem educados do médico da Isabelinha. Gente fina, concluiu.
João carregou no acelerador e dirigiu-se para o seu calvário diário, agora com mais uma preocupação na mente, não saber se ela estava zangada consigo. 


- Isabelinha, tu não podes tratar o cão como se fosse um humano! – recriminou Mariana, aborrecida com o mau humor da filha desde que saíra de casa.
- Não é nada disso mãe, fico com medo que ele fuja, não está habituado a viver naquela casa, pode tentar procurar por mim e sair para a rua.
- Disparate! A Adelaide disse que o vigiava, agora vamos aproveitar o dia em Cáceres, fazer umas compras, almoçar uns tapas e passear. – rematou decidida.
- Claro, desculpe mãe. – acariciou-lhe a mão e esforçou-se por sorrir perante aquele programa de mulheres. Descontraiu no banco do passageiro do carro de Mariana e distraiu-se com a paisagem da viagem até Espanha, imaginando como seria bom que João conhecesse aqueles locais com ela, comessem uns tapas, dormitassem na relva do Parque Del Príncipe, em vez de se ir enfiar no El Corte Inglês, a percorrer quilómetros atrás da mãe, de loja em loja, sem orçamento nem travões de qualquer espécie. – Acha que consigo comprar um telemóvel ainda hoje? – queria muito falar com João, saber se não tinha chegado atrasado de manhã à clínica, estar sempre contactável para ele.
- Claro querida! – reagiu surpreendida com a ideia. – Ainda bem que decidiste deixar-te dessas ideias malucas de estares isolada de tudo e todos.
- Pois, anda-me a fazer falta, e a conduzir sozinha posso ter necessidade de pedir ajuda. – concluiu, omitindo a verdadeira intenção de ter um telefone móvel; esperar os telefonemas dele.
- Claro. Deves ser a única rapariga com vinte e nove anos que não tem telemóvel! – recriminou-a.
- Faz-me mais falta um esquentador, mas pronto… - sorriu-lhe divertida.
Mariana arrepiou-se com a ideia de viver sem água quente nas torneiras, na era medieval, como a filha. 


Diana sobressaltou-se com a pressa com que João entrou na sala de espera, já atrasado para o primeiro horário, com cara de poucos amigos.
- Bom dia, Dr.
- Bom dia. Pode mandar entrar o primeiro paciente. – entrou no gabinete, sentou-se na cadeira e pensou em tomar um ansiolítico, sentia-se especialmente mal humorado. Como iria passar um dia inteiro sem a ouvir?...
- Com licença. – Um homem entrou na sala, acabrunhado.
- Faça favor, bom dia. Como está? – João estendeu-lhe a mão, sorrindo.
- Pelos vistos, nada bem… - gracejou, olhando em volta, pouco confortável com o facto de ter necessidade de recorrer a um psiquiatra.
João esmerou-se na consulta, agradado com a novidade rara de tratar uma pessoa do sexo masculino. Eram raros, normalmente maldisposto e agressivos, mas para começar bem o dia, aparecera-lhe um doente ainda com sentido de humor. 
- Vou ver do telemóvel. – Isabel informou a mãe, ocupada a escolher um fato para uma cerimónia próxima onde teria de acompanhar o marido.
- Vai querida, encontramo-nos à porta da outra loja que te falei. – informou-a, sem desviar o olhar das dezenas de modelos diferentes dispostas no balcão.
- Não quero comprar roupa. Aqui não há nada que eu goste de usar… - reclamou, irritada com a insistência da mãe em vesti-la à betinha.
- Menina, podes até nunca usar, mas vais-me dar o prazer de te oferecer uns conjuntos decentes. Pode ser que entretanto te passe a adolescência! – gracejou, olhando a figura excêntrica da filha, vestida de hippie.
- Até já. – deu meia volta e saiu da loja antes que a conversa azedasse. Apressou-se a encontrar a loja de telemóveis, nervosa com aquele passo drástico na sua vida, ceder às pressões tecnológicas do mundo atual. Só mesmo ele para a fazer duvidar das suas teorias anti-globalização. Naquele momento, sentir uma proximidade constante a João, bem guardada na sua mala, era a sua prioridade. Assim que o tivesse nas mãos iria ligar-lhe a dar a novidade, pensou feliz da vida.
João sentiu um calor no peito assim que o telemóvel tocou ao seu lado, seria ela? Pegou no aparelho e desiludiu-se ao ver o nome do Salvador no ecrã.
- Estou? – disse, sem disfarçar a frustração.
- Olá pinga-amor! Então, estás vivo?
- Porque haveria de estar morto?
- Saíste com aquela bomba do bar no sábado e ainda não deste sinal de vida… - provocou o amigo.
- Só me arranjas problemas. – confessou, recordando-se da noite com Nélia.
- Então? – perguntou curioso.
- Nada de especial. – mentiu, desviando o tema desconfortável.
- Apareces hoje?
- Sim, tenho mesmo que falar com o “Janota”. – já tinha decidido que iria alargar a sua pesquisa sobre Marta, Isabel, corrigiu, tentando outras vias de conhecimento, os boatos. Certamente que em Castelo Branco a vida da família do Presidente da Câmara seria do domínio público. Talvez o segurança conseguisse dados novos sobre ela.
- Nem vou perguntar porquê… - gracejou, entendendo logo os planos de João.
- A minha hora de almoço acabou. Tchau. – despediu-se sem cerimónias, desligando o telemóvel. Aquele Salvador era pior que um rato, curioso e metediço.
Voltou-se novamente para o computador, continuando a procura informática interrompida pelo amigo. Se ela tinha o curso de Osteopata procuraria descobrir onde o tinha frequentado. Talvez houvesse informações relevantes. Não demorou muito a encontrar o Instituto Politécnico de Castelo Branco, e lá estava ela, em fotos antigas de curso, Licenciatura em Fisioterapia Clínica. Ficava-lhe bem o traje académico, constatou. Olhava-a embevecido quando uma outra foto o deixou perturbado. Um rapaz enlaçava-lhe a cintura, possessivamente, enquanto ela o olhava apaixonada. Mas que merda era aquela? Perguntou-se enraivecido com os ciúmes. Afinal era ou não era lésbica? Ali parecia-lhe gostar bastante de homens… Copiou a foto e guardou-a numa pasta que criara onde já colocara todas as outras informações que descobrira até então. Fixou a cara do homem e retomou a pesquisa de imagens apenas com o nome dela. Tinha de tirar a limpo se aquele personagem era apenas um colega de curso, ou algo mais. Percorreu-as a todas, calmamente, desta vez com outra pessoa na mira. Depois de algumas páginas, e se havia páginas de fotos com aquela mulher, descobriu-os, o casal apaixonado. Uma fúria de despeito invadiu-o, deixando-o nervoso. Com ele era lésbica, agora com aquele feioso, já se derretia! Tiago Mendes, gravou o nome na memória, seria impossível esquecer, e pesquisou esse novo dado. Espantosamente, dezenas de reportagens antigas mencionavam aquele nome, com muito mais informação que aquela que esperaria. Abriu uma a uma, lendo-as de ponta a ponta, com um crescente pânico a invadi-lo. “Juiz ouve hoje Tiago Mendes, alegado agressor doméstico, num julgamento mediático e cheio de controvérsias. Centenas juntaram-se à porta do Tribunal de Castelo Branco para ver o ex-marido da filha do Diretor do Serviço de Medicina Legal do Hospital Amato Lusitano.” “Juiz não considera como provas os depoimentos de familiares e conhecidos da vítima, alegando questões éticas. A vítima que, ao início deste longo julgamento, ainda se encontrava internada a recuperar, recebeu ontem alta da ala psiquiátrica do Hospital. É presente ao Juiz no início da próxima semana, esperando-se uma nova enchente de curiosos nas imediações do edifício.” “Advogado de defesa de Tiago Mendes confessou aos jornalistas que a vítima não estava capaz de falar, nem antes, nem depois do tratamento psiquiátrico. Teriam de adiar uma vez mais a sessão”. “Tiago Mendes absolvido das acusações de tentativa de homicídio, agressões físicas, sequestro, e tortura. Juiz considera que apenas ficou provada a agressão a cão do ex-casal, e consequente problema emocional da vítima do sexo feminino. Tiago fica assim proibido de se aproximar da casa do Diretor da Medicina Legal, bem como da filha.”
João respirou fundo, depois de se ter mantido em apneia, e fechou as imagens dos jornais, ficando apenas com Tiago no ecrã. Aquele homem tinha sido casado com ela, batera-lhe e fizera-lhe coisas que nem queria imaginar, pensou tresloucado com toda a raiva que sentia. Procurou nas gavetas da secretária por um ou dois comprimidos que o acalmassem, milhares de pensamentos não o deixavam racionalizar o que lera, era demasiado horrível. Imaginá-la a ser agredida, violentada, como era possível que alguém a odiasse de tal forma? Porque só podia ser ódio, o que levava os homens a baterem nas suas mulheres. Ou isso, ou aquele Tiago era um psicopata, um doente mental com compulsões violentas que não controlava, e direcionava para quem menos merecia. Filho da puta, pensou enfurecido, psicopata era um elogio. 

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(imagem, internet)

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