sexta-feira, 31 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 11




João entrou em casa cabisbaixo e ainda mais maldisposto do que antes. Arrastara-se até ao “Pírulas”, na tentativa de desanuviar um pouco, mas a conversa com o segurança do bar ainda o perturbou mais. Janota não tinha nascido em Castelo Branco, mas por coincidência sabia quem era a família de Isabel, toda a gente ligada à cidade em questão os conhecia, e as novidades não eram animadoras, constatou João. O julgamento de Tiago, o ex-marido de Isabel, tinha sido o maior escândalo de sempre naquela cidade, comentado em todo o lado. O pai dela, então Diretor do serviço de Medicina Legal do Hospital, estava em processo de candidatura às eleições para a Câmara Municipal, e tinha sido afastado do processo de recolha de provas periciais para a acusação, ficando a chefiar o departamento um antigo colega de Tiago, diziam as más línguas, que tratou de ajudar o amigo, sem sequer disfarçar. Isabel tinha sido considerada “doida”, com um processo vazio de factos, e histórias mirabolantes de crimes que nunca foram provados. Acabou internada por ordem do juiz, por seis meses, aconselhado pelas perícias psiquiátricas de um outro conhecido do ex-marido. Quando o advogado dela conseguiu anular aquela crueldade, já o prazo passara e Isabel havia voltado para casa. O pai dela, pressionado pelo partido, que não tinha outra hipótese de candidato com possibilidades de vencer a eleição, nunca interviera em todo o processo. Ficara a ver de fora, e segundo alguns familiares de Janota, fora o culpado de Isabel ter sido negligenciada em julgamento, um traste, segundo a sua tia. Janota ouvira várias conversas sobre o caso na altura, e recordava-se de ter ficado chocado com o provincianismo que ainda se vivia em certos locais do interior do país. Lamentou honestamente que Marta fosse Isabel, disponibilizando-se para a ajudar, se algum dia fosse preciso, odiava machistas, e se pudesse, mostraria ao tal Tiago qual era a sensação de levar uns murros de alguém maior que ele. 
Tentou novamente ligar-lhe, mas o telemóvel continuava desligado, no voice mail, ainda sem mensagem de voz personalizada. Mandou-lhe uma mensagem de boa noite, juntamente com um desabafo “Mais uma vez, desculpa. Vou ligar-te todos os dias, até me ouvires. Se precisares de mim, liga. Não desapareças, por favor.”
Olhou longamente o aparelho, sentindo-se miserável e perdido. Como poderia aquilo estar a acontecer-lhe? Aquela maluca entrar-lhe pela casa a dentro, mesmo na hora em que Marta abria a guarda e começava a deixá-lo entrar? 
Engoliu um comprimido para dormir e ficou a torturar-se com as duas fotos que ela lhe mandara ao jantar. Adorava-a, e não só porque era perfeita e bonita. Tinha qualquer coisa de familiar dentro dela, que o preenchia e descontraía. Não sabia explicar o quê. Ainda nem sequer a abraçara e já sentia mais paixão que nos primeiros tempos com a mulher, Isabel. Era estranho que tivessem o mesmo nome, até confuso e perturbador, pensava. As duas mulheres de que tinha gostado… Lamentou-se por não ter sido o homem perfeito para a primeira, com quem a dada altura travara batalhas inglórias sobre tudo e nada, como se fossem inimigos de sangue e ele precisasse de a vencer, recusando-se  simplesmente a ceder e a fazer-lhe as vontades. Poderia ter tido um casamento mais feliz, sem dramas, feito um filho, mas nunca o conseguira com ela. Simplesmente recusara-se a ser seu, por inteiro, e tinha a certeza de que isso também a tinha matado. Gostava de um dia confessar tudo aquilo a César, libertar-se da sua eterna culpa conjugal, respirar fundo com a absolvição profissional do amigo, talvez acabasse a carta e lha entregasse, mais dia menos dia iria fazê-lo. Sentia que só assim poderia começar com Marta, Isabel, corrigiu, sem fantasmas ou angústias. Desta vez seria todo dela, da sua Isabel.
Nélia entrou em casa de João uma hora antes que o horário normal da tia. Convencera-a a ficar na cama, depois de uma noite de febre e mau estar, comprometendo-se a substituí-la no seu trabalho, da forma mais discreta possível. A sua verdadeira intenção nem sequer era encontra-lo acordado, muito menos preparar-lhe o pequeno almoço, apenas tentar concluir a sua vingança. Ninguém tinha o direito de a tratar como uma prostituta, e se o plano de conseguir seduzir o psiquiatra já não seria viável, pelo menos ele não se ficaria a rir quando se recordasse daquela noite. Certificou-se de que João dormia, e tal como a tia a tinha informado, levaria bastante tempo a acordar, efeito das drogas que tomava. Despiu-se da cintura para cima e, com todo o cuidado, deitou-se ao seu lado, fotografando-os de várias perspetivas, sempre com o cuidado de não lhe tocar. Saiu do quarto rapidamente, vestiu-se no hall de entrada e saiu, fechando a porta. Agora era esperar pelo momento certo, pensou vitoriosa. 


- Estou sim? – respondeu Adelaide, atendendo o telefone a pedido de Isabel, que temia que João ligasse de manhã a tentar desculpar-se. 
- Bom dia, fala o Dr João  Marques, liguei ontem para falar com a menina Isabel, ela está? – sentia-se nervoso, prestes a ter de engolir um comprimido para se acalmar.
- Ela não está… - disse Adelaide a corar com a mentira, com Isabel nas suas costas a força-la a enganar o pobre homem, que tinha uma voz tão triste.
- Quando ela chegar, poderia dizer-lhe que liguei? – sabia perfeitamente que Marta não o queria ouvir nos próximos dias. Mas não a deixaria esquecê-lo. Ligaria ao final do dia, depois novamente de manhã, e se começasse a perder a paciência, meter-se-ia no carro e bater-lhe-ia à porta. 
- Com certeza, darei o recado, pode ficar descansado. Bom dia. – apressou-se a desligar, olhando duramente a sua menina. Não gostava de mentiras nem de lérias.
- Desculpa, Dazinha, mas não quero falar com ele. – explicou, abraçando-a, enquanto se encaminhavam para a cozinha para tomar o pequeno-almoço.
- Que disparate, sinceramente. Se já se viu, Isabelinha, andar a fugir do rapaz. Falas com ele, resolves as coisas e não me obrigas a mentir mais. – sentenciou, pouco convencida de que Isabel lhe fosse obedecer.
- Não me apetece. -  amuou, fazendo beicinho sem se aperceber, como se ainda fosse criança.
- Café? – perguntou de forma prática, enchendo-lhe a caneca e olhando-a novamente com censura, sentando-se de seguida na sua frente. – Querida, tens 29 anos, quase 30, já não és nenhuma garota! Eu sei que me vais dizer que hoje em dia as mulheres não precisam de casar para serem felizes, sim, são todas muito independentes, eu já sei isso! – esbracejou dramaticamente - Mas, quando uma mulher gosta de um homem, e ele dela, acontece algo muito mais importante, nasce um par. E um par, como dizia a minha avó, são um mais um que dão dois, e um sem o outro não valem nada. Se já “emparelhaste” com este moço, não vais ficar bem sozinha. - levantou-se e saiu, para orientar a sua vida doméstica preenchida. Adelaide nunca tinha “emparelhado” com ninguém, desde muito nova que servia em casas de gente rica, ocupara-se sempre dos outros, sem lamentar o seu fado. Deus não a tinha feito para ter par, e Ele lá sabia o que fazia. Mas a Isabelinha era uma romântica, desde pequenina que falava de amor com os seus príncipes imaginários. Nunca seria feliz em número ímpar. Era uma vida difícil, solitária, que nem todas as pessoas conseguiam suportar. Todas as alegrias da vida, os sofrimentos, as dores, viviam-se no quarto e para as paredes. O Filipe era prova dessa dependência, era um substituto de uma companhia que Isabel precisava para ser feliz. 
Adelaide não conhecia o tal Dr. João, mas conhecia a sua menina. Se ela não queria atender o telefone, algo se tinha passado, e o ciúme era o culpado. Podia apostar um dos seus cordões de ouro em como o problema era o orgulho “Fontes Pereira e Castro”.


Enviou-lhe mais uma mensagem, o telemóvel continuava desligado, mas a necessidade de comunicar com ela, nem que fosse em monólogo, obrigava-o a escrever. “Olá bom dia. Vou hoje tratar do resto da tua surpresa. Mesmo que não me queiras ver mais, espero que fique pronta até voltares. Beijos”. Engoliu em seco, maldisposto com a hipótese de ela se recusar a continuar a amizade dos dois. Só esperava que ligasse o telefone e lhe desse uma oportunidade de falarem, afinal, ele era Psiquiatra, tinha de ter maneira de a fazer ouvir, ou não…




“- Estou grávida… - tremiam-lhe as mãos, nervosa com aquela descoberta. – Grávida? – Tiago sorriu com a boca, sem modificar o olhar, parecendo feliz com aquele contratempo na vida de dois jovens universitários – Abraçou-a, como se toda a vida tivesse esperado por aquele filho, libertando um pouco Isabel da sua ansiedade e culpa. – E agora? O que vamos fazer? – perguntou-lhe, mais animada com a solidariedade do namorado. – Casamos! – um arrepio percorreu-a, sem perceber porquê, mas ter um filho solteira seria impraticável na sua família, e não se sentia com coragem para abortar. – Temos de falar com os meus pais… - informou-o, tentando sorrir com a perspectiva de futuro tão diferente do que tinha imaginado. – Claro, hoje vou lá e falamos. Agora tenho de ir. – beijou-a rapidamente e dirigiu-se para a sua próxima aula. Isabel ficou a olhá-lo, angustiada, Tiago era seu namorado há alguns anos, tinha sido o seu primeiro homem, mas se lhe pedisse casamento depois de terminarem os cursos, sem filhos pelo meio, tinha a certeza de que diria que não, pelo menos num primeiro impulso.”

- Isabelinha! – Mariana chamou a filha, que olhava para fora da janela absorta com os seus pensamentos.
- Sim, mãe.
- A Adelaide disse-me que o tal Psiquiatra tem ligado todos os dias e que tu não atendes… Mas afinal o que se anda a passar? – perguntou preocupada.
- Sim, ele tem telefonado, mas eu não tenho a certeza do que quero. – confessou.
- És capaz de me traduzir isso em miúdos? – ironizou, já a perder a paciência com a atitude instrospectiva da filha desde o início da semana.
- Quando voltámos de Cáceres eu estive ao telemóvel com ele, - começou a explicar, sem jeito – mas depois uma mulher qualquer bateu-lhe à porta e disse umas coisas… olhe, não se mace com isso. Acho que os homens são todos iguais, não vale a pena…
- Mas o que foi que ela disse? – insistiu sem dar hipótese.
- Disse que tinha lá deixado “no sábado” os brincos… - sussurrou deprimida – Entende? É uma mulher qualquer que tem intimidade para lá ir bater à porta reaver objetos pessoais ao quarto dele. Não é preciso pensar muito para descobrir o que estiveram os dois a fazer… 
- Mas vocês namoram? – perguntou escandalizada.
- Não, somos amigos. 
- Amigos? Mas porquê só amigos?
- Porque quando o conheci e ele me veio pedir aulas de yoga inventei uma mentira para ele não ficar com ideias sobre nós dois, para me prevenir de avanços da sua parte. – disse corando – Não queria envolver-me com ninguém e manter a coisa profissional.
- E o que foi que lhe disseste? – perguntou cada vez mais confusa.
- Que… - sentia-se escarlate com aquele interrogatório - … era lésbica. – disse quase em surdina.
- Ó meu Santo Agostinho! – exclamou horrorizada com aquelas ideias malucas da filha. – Mas que disparate. Já estou a ver tudo! O rapaz anda apaixonado, não o pode dizer, porque tu inventaste uma mentira horrorosa dessas, e tu agora também gostas dele e não sabes como resolver a questão! – bradou à filha que se encolheu com o tom de desagrado da mãe.
- Pois, é mais ou menos isso… Mas ele não deve gostar de mim como eu dele! – reagiu – Se leva mulheres para dormir com ele, depois de estar comigo… E sinceramente, eu não quero problemas nem desilusões, quero voltar a viver em paz, como estava antes de ele aparecer.
- Mas Isabelinha, o rapaz telefona cá para casa duas vezes por dia, leva sempre uma tampa da Adelaide, que já anda furiosa contigo porque diz que ele é um querido e tem pena do rapaz, se não te quisesse bem, ia ter com a tal outra dos brincos e não se andava a envergonhar. Se ligares o telemóvel, vais ver as chamadas perdidas que lá tens… O que é que queres mais? Pelo menos ouve o que ele tem a dizer, caramba. E se é tudo um mal entendido? Já pensaste nisso? Andas aí emburrada, quase nem comes, e podes estar a ser injusta! 
- Pode ser… - comentou, pouco convencida. Sentia-se especialmente miserável porque João fazia anos naquele dia, e tinha-lhe pedido que ela voltasse nessa data, antes da “Nélia”. Mas o fel que sentia quando pensava naquele nome terrível e feio tirava-lhe a coragem para fazer o que o seu coração pedia.
- Liga o telemóvel, porque se ele telefona mais uma vez sequer aqui para casa, fica ciente de que sou eu que vou falar com ele, e esclareço essa história da mulher! – ameaçou-a, enquanto se afastava possessa com a atitude da filha.
- Não teria coragem… - sabia que sim, que a mãe seria senhora para o fazer. Encaminhou-se para o quarto, ligou o telemóvel e sentou-se na beira da cama com o olhar de Filipe a suplicar-lhe que lhe telefonasse. – És um traidor… Se te dessem a escolher ficavas a viver com ele, não é? – reclamou com o cão.
O aparelho ligou, e uns segundos depois, dezenas de mensagens entravam para a caixa, duas e três por dia, constatou, bem como outras tantas chamadas perdidas. Abriu as mensagens de texto primeiro, uma a uma, lendo-as com a barriga a dar um nó. Ele era terrivelmente romântico e espirituoso, e parecia não querer desistir dela, o que a comoveu. Era preciso ser muito teimoso e auto-confiante para lidar daquela forma com o silêncio dela durante aquela semana de amuo. Leonino duma figa… lamentou-se, bufando de frustração perante a insistência em conversar. Desligou novamente o aparelho e começou a reunir as suas coisas. Se ele queria falar, então ela iria ouvi-lo, mas pessoalmente, e vestida com o conjunto preto. Nada de Marta hippie e boazinha, quem o iria enfrentar seria a Isabel. Preparou um banho, a roupa, organizou tudo para sair depois da hora de jantar em direção a Coimbra, mais concretamente, ao “Pírulas”. Chegaria lá a uma hora mais que perfeita para surpreender um aniversariante mulherengo, já teria bebido um pouco, deveria estar animado, com mulheres ao colo, a fazerem-lhe a festa! Ela entraria de pernas à mostra e acabaria ali o problema, pedir-lhe-ia que não voltasse à sua casa, nem a procurasse para aulas, individuais ou de grupo. Com toda a certeza que ele desistiria de a perturbar. Depois, antes de sair do bar vitoriosa, dar-lhe-ia a sua prenda de anos, um livro de Sexo Tântrico de nível avançado, para ele aprender! E que lhe fizesse bom proveito!
Terminou a sua maquilhagem, pegou nas malas e desceu, cheia de ânimo, deixando todos de boca aberta e ligeiramente aparvalhados com a ida repentina para Coimbra, a uma hora daquelas.
- Mas Isabelinha, não podes voltar só amanhã, durante o dia? – suplicou a mãe, a sentir-se culpada pela decisão drástica da filha depois do discurso de defesa do rapaz de Coimbra.
- Ele hoje faz anos. Tenho uma prenda para lhe entregar. – explicou, beijando-a em jeito de despedida. – Eu volto no próximo mês, prometo! Abraçou Adelaide, que ficara em choque com a ida repentina de Isabel, e pediu que se despedisse por ela do pai, que ainda não chegara da Assembleia Municipal.
- Vai com cuidado… - pediram as duas mulheres, dizendo adeus da porta.
- Eu já tenho telemóvel! – disse-lhes a sorrir, entrando no jipe.
- Não nos deste o teu número… - reclamou Mariana, já ela tinha arrancado.



Salvador esforçava-se por animar João, enchendo-lhe o copo gratuitamente e sugerindo-lhe diversas opções de mulheres que por ali andavam. Qualquer uma delas gostaria de receber a atenção de um aniversariante solitário, carente e bonito, gozara-o, já prestes a desistir. Nélia surgiu à entrada da sala, espampanante e vistosa e Salvador agradeceu aos céus aquela aparição, talvez ela conseguisse animá-lo, pensou, sem saber dos acontecimentos de segunda-feira.
- Olha, chegou a tua amiga! – disse-lhe entusiasmado.
- Onde? – voltou-se prontamente, a pensar que era de Marta que ele falava, ficando automaticamente furioso ao ver Nélia a sorrir-lhe descarada. – Eh pá, não chames a gaja. Não me apetece bater em mulheres. – ameaçou, voltando-se novamente para o balcão e para a sua bebida.
- Estou a ver que correu mal a saída no sábado… olha, mas ela vem aí! – avisou-o - Não faças cenas! Olá! Uma bebida por conta da casa, aqui em homenagem ao aniversariante?
- Olá! Então parabéns! – disse-lhe animada, contente por vê-lo tão abatido no seu dia de anos.
João não lhe respondeu, ignorando-a propositadamente, bebendo um gole da sua bebida para se acalmar, detestava mulheres oferecidas e cínicas, e aquela em particular, odiava-a. Olhou Salvador com censura e levantava-se, quando Nélia lhe agarrou por um braço e se adiantou à capacidade de reação de João, dando-lhe um beijo rápido nos lábios, satisfeita.
- A minha prenda! – explicou, soltando-o.
- Mau timing… - disse Salvador, que olhava Marta à entrada da sala a olhá-los sem expressão definida no rosto, enquanto parecia conversar com Janota.
João empalideceu, desorientado com aquela coincidência cruel, ficando hipnotizado a observar Marta ao longe. Estava deslumbrante, completamente diferente do habitual, e sorria para o Janota, que lhe punha a mão nas costas, animado com alguma coisa que ela lhe dissera. Os pés estavam colados ao chão, presos por alguma força maquiavélica, que o impedia de a ir abraçar e arrancar de perto daquele gigante atrevido. Marta deu dois beijos no segurança e avançou na direção dele, sem revelar o que sentia, deixando-o cada vez mais ansioso. 
- Olá! – cumprimentou os três, João, Salvador e Nélia. – Parabéns! – inclinou-se para o cumprimentar e ele abraçou-a automaticamente, deixando-a amolecida.
- Tudo bem Marta? – perguntou Salvador tentando acabar com aquele silêncio incomodativo.
Soltou-se do abraço e tratou de esclarecer quem era aquela mulher que o beijava na boca.
- Tudo bem. – respondeu-lhe sorridente. Esticou a mão para se apresentar à mulher, que lhe retribuiu o gesto. – Marta, a irmã do João. – disparou, sem perceber de onde lhe surgira aquilo.
- Olá, Nélia. Amiga do João. – explicou satisfeita.
João  agarrou no braço de Marta e puxou-a dali perdido de raiva com aquela sequência de acontecimentos lunáticos. 
- Irmã? – perguntou-lhe alterado, assim que chegaram a um canto isolado do bar.
- Beijos na boca? – berrou-lhe de volta Marta, espetando-lhe o indicador acusatório.
- A tipa é doida. Eu estava a levantar-me dali para a evitar e ela espetou-me um chocho. – explicou, chegando-se mais perto dela, enfeitiçado com a beleza dela.
- Sim, e também dormiu contigo no sábado sem tu quereres, agarrou-te, coitadinho. – ironizou, afastando-se dele.
- Não… - engoliu em seco – Mas foi um erro, não sei o que me deu… - sabia, mas seria pouco educado dizer-lhe que tinha pensado nela o tempo todo, teria certamente o efeito contrário ao desejado – Mas não há nada entre mim e ela.
- Apenas sexo.
- Não, houve sexo. Já não vai haver mais. – exclamou.
- Tudo bem. – suspirou enervada com aquela discussão inútil – Só cá vim para te dar os parabéns e a tua prenda de anos. Não quero saber com que dormes. – mentiu, sentindo-se prestes a chorar. Não tinha sido aquele desfecho que tinha imaginado durante a viagem.
- Queres saber sim. E eu não durmo com ninguém. – puxou-a na sua direção, abraçando-a com força, sentindo todo o seu corpo delicado esborrachado no seu.
- Solta-me… - suplicou-lhe com a voz fraca. Queria abraçá-lo de volta, retribuir aquela necessidade de o ter, mas aquela bisca olhava-os demasiado curiosa para quem era uma companhia esporádica de uma noite.
- Não… Abraça-me. - ordenou-a – Senão beijo-te aqui à força.
- A tua amiga está a olhar… e os irmãos não se beijam na boca. – disse-lhe já a derreter nos seus braços.
- Quem disse que te ia beijar na boca? – brincou ele, mais animado com o efeito positivo do seu abraço.
- Quer dizer, a ela, podes dar beijos na boc.. – começou a ralhar, quando ele a silenciou beijando-a com paixão, elevando-a do chão. 
Isabel pensou que fosse desmaiar, nunca tinha sido beijada daquela maneira, como se tudo dependesse daquele momento. Sentia a cabeça a rodopiar, quando João a poisou no chão, as pernas pareciam não obedecer, moles e sem estabilidade. O que tinha acontecido ali, perguntava-se confusa. Ele não a largou, continuando a abraçá-la, e olharam-se durante uns segundos, meio embasbacados com o que sentiam.
- Bolas… - disse João, ainda ofegante – Beijas bem. – brincou, sentindo-se com as pernas frouxas, dormentes.
- Tenho de ir. – mais um beijo daqueles e teria um aneurisma, pensou divertida, mas se não fosse embora naquele momento iriam precipitar tudo. Não eram crianças, mas Marta não queria pôr a carroça à frente dos bois. Gostava demasiado dele para banalizar as coisas. 
- Mas… já? – estava confuso, agora que a tinha conseguido beijar, quebrando o escudo que ela lhe levantara desde o primeiro dia, queria ir embora?
- Sim, tenho o Filipe no carro, deve estar em pânico com o movimento da noite. Ele tem medo do escuro… - confessou, angustiada com o olhar de desalento dele. Ela tinha de lhe mostrar que não era mais uma Nélia. Queria que ele fosse seu, mas não numa ou duas noites. 
- Tudo bem, queres que vá contigo?
- Podes levar-me até ao carro? Tenho lá a tua prenda. – disse-lhe, deixando-o ainda mais desiludido. 
- Claro. – respondeu sem jeito. O que João queria era repetir aquele beijo, de preferência pela noite dentro, não receber uma prenda… mas não iria pressioná-la, afinal, a assombração da Nélia ainda por ali pairava, e poderia regressar para estragar tudo novamente.
João deu-lhe a mão e despediram-se de Salvador, que os olhava sorridente e prestes a comentar, mas que se continha, pois sabia que aquela mulher era importante para o amigo, e de Janota, que lhes sorriu satisfeito ao vê-los de mão dada. Nélia desaparecera, constatou Marta aliviada, por não ter de a encarar. Seria muito desagradável e ela não tinha feitio para confrontos, mesmo que silenciosos.
Chegaram ao carro e Filipe parecia possuído de alegria ao ver João, esgravatando na porta a pedir para sair do veículo. Marta libertou-o e os dois demoraram-se nos cumprimentos masculinos, sob o olhar deliciado dela. 
- Vês?, este cão não pode viver mais longe de mim, não tornes a levá-lo daqui, por favor. – provocou, puxando-a para mais um abraço.
- Bem, se fizeres muita questão dou-to… Ah a prenda! – libertou-se dos braços quentes dele e recuperou instantaneamente o bom senso, entregando-lhe o volume embrulhado com papel de seda vermelha. – Espero que gostes.
João retirou o papel delicadamente, guardando-o no bolso e abriu um sorriso ao ver a sua obra preferida “nível avançado”.
- Ainda não treinei o de iniciantes… - lamentou-se, sentindo-se um pouco mentiroso, mas com ela ainda não tinha de facto experimentando nada, desculpou-se – Tens muita fé no teu aluno. Obrigado. – deu-lhe um beijo levemente, apenas de gratidão pela lembrança, mas Marta tinha no olhar aquele brilho, que o fez ficar tonto, agarrando-a novamente, mas dessa vez contra o carro, que os selou em mais uma explosão de desejo.
- Para… por favor… - Como era possível que um beijo fosse tão forte? – Há muita coisa que temos de falar. Não quero que seja tudo tão rápido.
- Tudo bem, mas então não me olhes assim. – reclamou, recompondo-se. Se ela queria falar sobre o seu passado era porque não estava a pôr um ponto final, bem pelo contrário, estava a querer fazer parágrafo, e isso deixava-o exultante.
- Falamos amanhã? – perguntou, escapando-se para dentro do carro, seguida por Filipe.
- Sim, claro. Amanhã falamos, por mim era já hoje… - seguiu-a, colocando-se debruçado na janela, a olhá-la bem de perto, com a gloriosa visão periférica das suas pernas despidas. – Não te respondi à primeira mensagem, mas sim. Gosto muito, são as minhas preferidas. – disse-lhe a sorrir. Esticou-se para dentro do carro e beijou-lhe a bochecha longamente, deixando-a novamente fundida no banco, sem reação. – Adeus. 
Ficou a vê-la desaparecer na rua, de mãos nos bolsos, acariciando o papel de embrulho, tão sedoso como a pele dela, com uma felicidade genuína. Ela iria descobrir o que ele andara a fazer toda a semana, em segredo. Tinha sido difícil, mas depois de muitos cordelinhos e chantagens, João conseguira em tempo recorde que terminassem o saneamento na sua rua, alcatroassem, entrara na sua casa, pusera-lhe um esquentador, sais de banho na banheira, uma máquina de lavar roupa, outra de secar e na sala de prática um bilhete a pedir desculpa pela invasão, prometendo-lhe que trancara tudo novamente, depois de arrombado. Garantia que não era doido, pelo menos na acepção popular do termo, mas sim clinicamente apanhado por ela. Nada de muito grave ou perigoso, apenas agradavelmente positivo na vida de uma mulher sortuda.



Marta perdia-se nas recordações excitantes do beijo de João, que nem se apercebera do novo piso da sua rua. Entrou com o jipe pelo portão da casa, fechou-o, e quando voltava para entrar no veículo virou-se para trás, confusa com a sensação diferente debaixo dos sapatos. 
- Alcatroaram isto? – perguntou-se em voz alta, espantada.
Voltou para o jipe, estacionou-o e levou todas as suas coisas para casa, seguida por Filipe que cheirava tudo freneticamente, doido com os diferentes odores que se sentiam na casa, de tantas pessoas diferentes que ali tinham estado nos últimos dias.
Dirigiu-se à cozinha para colocar a roupa suja no cesto, quando viu as máquinas a reluzir no local outrora vazio, por falta de água canalizada.
- Não pode ser… seria isto a surpresa? – o choque inicial deu lugar a uma explosão de lágrimas de gratidão. Como podia ele ter feito aquilo? Correu a abrir a torneira de água quente e um barulho totalmente novo encheu a cozinha. Um esquentador ligou automaticamente, aquecendo a água em segundos. Marta limpava as lágrimas de alegria quando se lembrou de espreitar o quarto de banho e se enterneceu ao ver os sais de banho, prontos a serem utilizados na sua totalmente nova banheira, onde as torneiras funcionavam e não eram de enfeitar. Dirigiu-se à sala de prática para agradecer a Shiva e seu filho Ganesha por aquelas prendas do destino, e leu o bilhete, chorando de espanto e divertimento com o sentido de humor dele. Era um diabo de um leonino maluco, mas adorável.
Ligou o telemóvel e enviou-lhe uma mensagem “És louco… obrigada. <3”


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