sexta-feira, 10 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 22



O Inverno chegava rapidamente a Safara, tornando a vida de todos mais recatada dentro das casas rasteiras que acendiam finalmente os lumes das lareiras, obrigando a população a uma introspeção forçada.
Na Herdade todos lamentavam que a festa de aniversário de Manuel tivesse sido desmarcada, mas ninguém o conseguira convencer do contrário – ele desprezava qualquer tipo de celebração ou festa. Simplesmente não tinha nada que o fizesse querer brindar, tinha dito secamente. A sua atitude piorava consideravelmente a dureza dos dias frios e tempestuosos e arrastava invariavelmente todos os que viviam perto dele para o desânimo generalizado. Só Francisco e a tourada o conseguiam animar um pouco, aos quais dedicava grande parte dos seus dias, bem como à faculdade em Beja, onde se tinha inscrito para terminar de vez o curso que tinha deixado pendurado em Coimbra. Faltavam-lhe poucas cadeiras e sempre lhe distraíam a mente de manhã nas aulas e à noite no quarto. Os dias passavam cada vez mais indolores e Manuel agarrava-se a tudo o que o ajudasse a não pensar. Conseguia estar uma quantidade considerável de tempo sem pensar nela, ou torturar-se com as fotos do telemóvel, que simplesmente não tinha coragem para apagar. De vez em quando permitia-se percorrê-las devagar, relembrando cada uma, o que tinham feito nesse dia, e dava sempre por si a olhar demoradamente uma selfie dos dois na tourada, aquele dia dramático, onde Teresa parecia mais bonita que nunca. Sabia que nada iria ser como a breve vida que tinha tido com ela, e isso sim, era desesperante.

Rita já se encontrava no gabinete a organizar os processos médicos para mais um dia de consultas, agora que tudo voltara ao normal e tinham contratado um médico para substituir Teresa que se encontrava de baixa, sem data para voltar. A enfermeira não dava grandes explicações sobre os motivos do desaparecimento, mantendo a versão de fraqueza generalizada, para contentar os curiosos.
Mas nem tudo eram tristezas, pensava Rita animada, o Dr José Coelho trouxera-lhe um balão de oxigénio, mesmo a tempo de ela não sufocar. Desde a visita de Francisco ao seu gabinete que Rita o evitava a todo o custo e já não o via há algumas semanas, o que a deprimia ligeiramente, mas aliviava os nervos. Com a chegada do novo médico, nasceu uma amizade forte e revitalizante, que fazia dos dias de trabalho uma terapia constante que cada vez a curava mais um pouco. Ele era bonito, espirituoso, simpático, conversador, bom coração e gay. Só ela o sabia, e mantinha a discrição, por ali não era muito usual as pessoas assumirem publicamente outras orientações sexuais, mas para Rita fora um alívio. Soltara um “Graças a Deus!” demasiado alto, quando ele lhe confessou o seu segredo, o que os levou a vários ataques de riso nos dias seguintes. Tudo o que Rita não queria naquele momento eram dramas e paixonetas que a perturbassem. O amor que ainda sentia pelo toureiro era suficiente para a destabilizar, não precisava de mais nada.
- Então, vamos hoje beber qualquer coisa? – perguntou José entusiasmado com o facto de ser sexta-feira e no dia seguinte não ter de acordar cedo.
- Sim, claro. Preferes um local calmo, tipo a Tasca do Tio Lérias, ou Espanha? – e pronunciou o nome do país vizinho com um sorriso aberto que encantava sempre o fiel amigo.
- Espanha será! Tudo para a ver feliz! – disse com carinho.
- Ai que pena não seres do “meu clube”, como diria a minha Tia Miquelina, eras o namorado perfeito! – suspirou, em tom de brincadeira.
- Pois, lamento, mas não há nada a fazer, acredita, eu já tentei! – confessou sorrindo melancolicamente. – Então passo em tua casa às 21h30. Combinado?
- Certíssimo! Agora vou mandar entrar o senhor Alfredo. Reza para que já tenha ido ao dentista a Moura. Da última vez quase vomitei em cima dos processos… - recordou com cara de nojo – que pivete, Senhor!


Lisboa começava aos poucos a render-se ao frio, dizendo adeus aos dias solarengos e ainda amenos de fim de outono. Teresa fazia a sua caminhada diária, como lhe tinha ordenado o médico amigo do pai, que a visitava várias vezes por semana. Pedro sentira-se pela primeira vez assustado com o comportamento vegetativo da filha, depois que esta voltou de Safara. Nunca a tinha visto desanimada ou abatida, sempre fora uma criança enérgica e uma jovem confiante. Aquela Teresa trazia-lhe angústia e preocupação, o que o levou a elaborar um plano com o seu colega psiquiatra, para a manter em supervisão constante, afinal ela estava grávida, não podia ser medicada e tinha de se fortalecer psíquica e emocionalmente para receber o bebé e cuidar dele. Fernanda agradecia diariamente aos seus santos de eleição o facto do marido finalmente se comportar como um pai, mas compreendia que aquele fantasma que um dia fora a sua filha deixaria qualquer um em pânico, e nem mesmo Pedro conseguiria ficar-lhe indiferente.
Todos os dias ela caminhava, ao início com companhia, tal era o medo dos pais que Teresa pudesse fazer alguma loucura, mas lentamente ganhava ânimo e esperança, ao mesmo tempo que a sua barriga crescia, costumava comparar com afeição. Era de facto a única coisa que a conseguia obrigar a levantar-se de manhã desde que chegara de Safara. Por ele comia, bebia, caminhava, sorria às crianças que encontrava pelo caminho, apenas o seu bebé a mantinha viva. O seu pedaço de Manuel, que ninguém nunca lhe conseguiria tirar. O medo de que a sua consanguinidade pudesse afetar a criança desaparecera, para Teresa aquele bebé era sagrado, fosse ele como fosse.
Entrou em casa e repetiu o seu ritual, entrou na cozinha, beijou a mãe, dirigiu-se à casa de banho, ligou o chuveiro, despiu-se, entrou na cabine de duche e encostou a testa à parede, deixando o barulho da água abafar o ruído do seu choro.

- Segunda-feira vamos ao médico! – informou Manuel a Sofia, que parecia descuidada com a sua gravidez.
- Mas porquê? Sinto-me muito bem. – disse incomodada. Ainda não conseguira arranjar as análises adulteradas e seria imprudente deixar-se consultar por um médico escolhido por Manuel.
- Falei com a Rita e tens consulta logo cedo, por isso vê lá se estás pronta às 8h00. – dirigiu-se aos pais, despediu-se dos dois e ignorou Sofia. – Sei que hoje é o meu dia de anos, não quis a festa, mas o Francisco não para de me chatear porque também faz anos e tenho de ir com ele não sei onde. Volto cedo. – saiu, sem mais explicações. Há algum tempo que por ali já se habituavam à forma seca de Manuel conviver, mas Maria dos Prazeres sentiu-se especialmente desanimada, tinha feito um bolo para o filho, uma surpresa para depois do jantar. Sempre aquele Francisco a puxar o seu filho dali… lamentou-se ciumenta.

Rita questionara-se várias vezes frente ao espelho, receosa de que aquele vestido que comprara em Lisboa com Teresa fosse demasiado sofisticado para aquelas bandas, mas depois de muito pensar decidira que a mini-saia com costas à mostra era o que estava a dar, afinal ia a Espanha, logo, seria mais que perfeito! Imaginou Francisco a dar de caras com ela toda produzida e a cair novamente de joelhos à sua frente, ficando pateticamente a visualizar a cena, vezes sem conta, e lamentou não lhe poder dar os parabéns, mas seria muito arriscado vê-lo com aquela roupa vestida. Aquele trapo indecente chamava por problemas, e Francisco era uma tempestade. 
Como ia acompanhada com José tinha sempre a hipótese de fingir que eram um casal, e nenhum homem a chatearia, seria apenas “galada” de longe, o que por vezes até sabia bem à fraca autoestima. A noite tinha tudo para ser bastante agradável, e reforçou as suas intenções de divertimento carregando no rímel e na sombra, e usando, depois de se benzer, um baton que a sua Tia Miquelina chamaria de vermelho sangue, literalmente.
José bateu à porta da casa e Julieta berrou a Rita para que se despachasse, o Dr já ali estava especado e não era educado fazer um Senhor assim tão distinto esperar. Rita apareceu sorridente, provocando um ataque de tosse ao amigo, que se espantou com a ousadia do outfit. Nem ele conseguia afirmar que aquela era a mesma Rita que trabalhava ao seu lado diariamente, aquela era uma mulher sofisticada, bonita e muito bem feita.
- Bem, rapariga, mas tu queres que eu hoje leve nas trombas, não é? – sorriu divertido, beijando-lhe formalmente a mão, para encanto de Julieta que secretamente desejava que aquilo fosse namoro.
- Sim, vamos ver quantos espanhóis lhe gabam a alentejana! – abraçou-o meio encavacada. – Agora vamos rápido que o meu pai nem sonha que eu saio assim de casa. Adeus mãe! Já sabes, não fiques à minha espera. Eu tenho juízo. – acenou em despedida.


Manuel entrou na discoteca espanhola a contra gosto, tinha resistido até ao limite à ideia de ali passar a sua noite de aniversário. Aquele lugar trazia-lhe memórias dolorosas que lhe ameaçavam estragar a disposição, que já de si não andava famosa, mas Francisco era difícil de contrariar. O amigo não se calava com os “conhecimentos” interessantes que tinha por aquelas bandas, loiras, morenas, todas agradavelmente divertidas e sempre disponíveis para uma ou outra dança. 
O espaço já estava cheio e barulhento, e os dois dirigiram-se para uma pequena mesa bem perto de um grupo de raparigas alegres que lhes sorriram automaticamente. Francisco sentou-se propositadamente de frente para o grupo feminino e Manuel agradeceu interiormente poder virar-lhes as costas. Não tinha qualquer vontade ou intenção de se envolver com ninguém.
Pediam as bebidas quando Manuel viu um casal bem animado que ria numa mesa mais perto da pista de dança, e que lhe prendeu a atenção por alguns momentos. A rapariga estava de costas, mas era-lhe estranhamente familiar, não percebia bem porquê.
- Francisco, conheces aqueles dois? – perguntou-lhe curioso.
- Ham? – desviou a atenção das raparigas a quem fazia olhinhos, meio contrariado, fixando o casal estiloso que brindava sem parar. – Não, nunca vi. – voltou novamente a cabeça, quando estacou rígido de olhos esbugalhados, como se tivesse visto um fantasma.
- O que foi? – perguntou Manuel assustado com a reação.
- Nada, - desconversou – parecia-me uma pessoa, mas não. Não é possível. – sentia a barriga a dar voltas, por momentos parecera-lhe o cabelo de Rita, mas ultimamente via-a em muitos lados, como que uma sugestão da sua mente, que teimava em não o deixar em paz.
- Duas cervejas, por favor. – disse em português carregado de sotaque alentejano à empregada espanhola que sorriu cinicamente. – Malcriadona… - resmungou, quando a rapariga voltou para o balcão – Não sei que piada é que tu achas a estas tipas.
Francisco olhava furtivamente para o casal, tentando disfarçar a sua curiosidade, mas não conseguia descontrair e voltar para a sua arte de conquistar desconhecidas enquanto não tirasse a limpo quem era a mulher do vestido bonito.
- Pára de olhar, pá. Parece mal, daqui a nada vem o gajo tirar satisfações contigo. – advertiu-o Manuel.
- Ele é estranho, não é? Ali com uma mulher daquelas à frente e sempre a olhar em volta… - comentou enquanto se posicionava de forma a conseguir olhar sem estar a torcer o pescoço.

- Está ali um pão alentejano que não pára de olhar para nós. – comentou José animado. – Mas infelizmente acho que só está enfeitiçado com as tuas costas. É bastante carrancudo.
- Ai… como é que ele é? Está sozinho? – perguntou Rita nervosa sentindo um arrepio por toda a zona despida que suscitava o interesse do tal homem. Não podia ser o Francisco, dizia a si mesma a tremer das mãos.
- É bonito, e deve ser alto, bem feito,… e, que estranho, o outro é muito parecido. Devem ser irmãos. – explicou José, tentando ser discreto. – Olha agora, que eles estão a falar com umas tipas ao lado.
Rita olhou rapidamente e sentiu-se desfalecer. Era o Francisco e o Manuel…que porcaria, pensou culpada. Não lhes dera os parabéns, estava ali seminua e tinha de os enfrentar, de o enfrentar, corrigiu-se automaticamente. 
- Conhece-los? – perguntou José que ficara desconfiado de que ali havia história.
- Sim, é o Francisco, o toureiro de que te falei… e o Manuel. – engoliu mais um grande bocado do seu whisky cola.
- Oh! – exclamou José entusiasmado. – Então, é aquele? Bem… que bom gosto, aprovado! – disse sorridente.
- Como é que vou sair daqui com ele a olhar? – confessou Rita. – Não tenho coragem de aparecer assim vestida à frente dele.
- Que disparate! Anda! – levantou-se e estendeu-lhe a mão fazendo sinal para a pista.
- Fazer o quê?! – perguntou aterrorizada.
- É hoje que te vamos arranjar um namorado. – puxou-a dramaticamente para o centro, enquanto as pessoas se afastavam automaticamente, antevendo uma exibição de dança profissional.
- Ó meu Deus… - gemeu Rita, que tentou não torcer os pés que amoleciam com os nervos dentro dos grandes saltos. – Eu não sei dançar José! – avisou-o a tremer dos pés à cabeça.
- Não te preocupes, basta deixares-te ir. – disse-lhe confiante.
- Mas tu sabes dançar alguma coisa de jeito? – questionou-o com medo de fazer figuras tristes em frente a tanta gente.
- Se eu sei dançar… - riu-se – Menina, eu fui campeão distrital de danças latinas! – disse orgulhoso. –Ah, salsa, a minha especialidade! – comentou satisfeito ao ouvir os primeiros acordes da música que iniciava.
- José, és um cliché ambulante! – exclamou Rita largando umas gargalhadas de nervos.

- Bem, seja quem for, tem cá umas pernas… - comentou Manuel subitamente distraído com a figura esbelta que se aproximava do centro da pista com o seu par confiante.
- Calma lá… Aquela é… - dizia sem querer acreditar que a mulher do vestido arrojado fosse a Rita.
- É. É essa mesmo. – disse Manuel divertido com o choque do amigo.
- Desavergonhada… O que é que ela traz vestido? – resmungou maldisposto.
- Roupa de mulher. – respondeu laconicamente.
- Eu digo-lhe a roupa de mulher! – exclamou furioso, começando a levantar-se do lugar.
Manuel puxou-o bruscamente para a cadeira, olhando-o com censura.
- Nem penses em fazer fitas. Deixa-a em paz.
- Ele está furioso! – disse José entusiasmado. – Isto vai ser mais simples do que eu pensava.
- Ai Senhor… É melhor irmos para a mesa… - pediu Rita, sendo logo rodopiada como resposta negativa.
- Não te preocupes, os homens são todos iguais. – acalmou-a José, levantando a perna de Rita e posicionando-se de forma sexy, o que levantou os ânimos da plateia que vibrava com a dança arrojada. – Eu não disse? Ele vem aí e traz o amigo arrastado! Agora, a cereja em cima do bolo! – disse-lhe agarrando-a firmemente.
- O quê?! – perguntou em pânico, temendo alguma cambalhota que lhe levantasse o vestivo.
- Isto! – Lançou-a para trás, dramaticamente, segurando-a e dando-lhe um longo beijo cénico.
Rita sentia-se a rodopiar ainda, tonta com toda aquela dança frenética, e percebeu vagamente o que se passou a seguir. Francisco levantou bruscamente o par de dançarinos e aproveitou o embalo para esmurrar José, que caiu quase inanimado na pista. Manuel agarrou o amigo pela cintura e levantou-o do chão em peso, prendendo-lhe os braços, enquanto ele esperneava e tentava ainda acertar no desgraçado que ainda não se conseguira levantar.
Rita ouviu gritos e muitas pessoas a envolveram e acorreram a ajudar José, enquanto observava Francisco a ser levado por outros homens para fora da discoteca. Procurou por José no meio da confusão, e este apareceu sorridente, com sangue na boca, agradecendo a preocupação geral, mas dispensando ajuda. 
- José! – exclamou aflita ao ver sangue na sua cara. – Tu estás bem?
- Podes agradecer-me pagando a conta. O tipo está caidinho por ti. – sorriu e limpou a cara, cheio de si.


- Grande parvalhão! Obrigadinho pela cena, agora estamos os dois impedidos de tornar a aqui entrar! – berrou Manuel empurrando-o em direção à carrinha.
- Tu viste o que ele lhe fez? – exclamou Francisco ofendido.
- Aquilo que tu querias fazer. – rematou Manuel, já sem paciência. – Já estou farto dos teus chiliques por causa da Rita! – berrou batendo a porta da pickup frustrado. – És um idiota! Mete o cinto! – ordenou, terminando a conversa. Fizeram todo o caminho de volta a Safara em silêncio, amuados um com o outro, mas Manuel não podia deixar de sentir pena do amigo. Era um teimoso apaixonado, mas cheio de medo de o admitir. Parou na Tasca do Tio Lérias e baixou a guarda. – Vamos, tu precisas de beber, e eu também. – disse-lhe, dando-lhe uma palmada amigável no ombro, que tirou Francisco da sua apatia.
- Acho que já ouvi isso em algum lado. – gozou o toureiro, recuperando um pouco a disposição. Nada como um fim de noite de sábado a cantarolar um cante alentejano e a beber uns copos de tinto. Espanha estava para já interdita, mas por ali ninguém se melindrava com uns socos à boa portuguesa, pensou satisfeito por se sentir confortavelmente em casa. Nem ninguém se atreveria a beijar Rita à sua frente, lembrou-se angustiado. 


Os dois colegas e amigos despediram-se à porta de Rita, por insistência de José, que não permitia que uma moça andasse de noite sozinha pelas ruas, ainda por cima assim tão despida! – brincara, ao acompanhá-la a casa. Tinha sido uma noite cansativa, cheia de emoções, mas muito esclarecedora, explicara o médico satisfeito. Rita rolara os olhos várias vezes, lamentando não conseguir ser tão otimista relativamente ao toureiro, e não sabia bem se quereria pensar mais nele, depois do ataque da discoteca. Não lidava bem com agressividade, e Francisco era sempre uma bomba prestes a explodir, não raras vezes, na sua direção. Teria que colocar um ponto final naquela novela, decidiu, se ele não a queria, que a deixasse em paz de uma vez e a esquecesse. Entrou em casa em silêncio e já no quarto de banho tratou de se desmascarar de fêmme fatale, regressando à Rita alentejana, que gostava de pijamas grandes e quentes, de dormir com botija de água quente e não perdia um segundo a colocar cremes ou amaciadores, quanto mais maquilhagem. Ela era simples, e gostava de o ser. Pegou no vestido, jogou-o com força no chão e pisou-o dramaticamente, entrando na banheira. Deixou que água quente lhe lavasse a má disposição e ensaboou o cabelo várias vezes para tirar completamente o cheiro a cigarros e perfume que a deixavam nauseada. Enrolou-se no roupão e dirigiu-se à cozinha para aquecer a água da botija que lhe tornaria o sono mais rápido. Olhava a chaleira hipnotizada pelo cansaço e sono quando ouviu um estrondo na porta de casa, que a fez sobressaltar. Julieta apareceu automaticamente, como se estivesse de pé a fazer ronda pelo corredor e dirigiu-se com cara de poucos amigos à entrada da casa.
- Quem é? – perguntou firmemente.
- Quero falar com a Rita! – disse uma voz alterada.
Julieta abriu a porta desconfiada,
- A minha filha está a dormir, o que é que quer com ela, Sr Francisco?
- Preciso de falar com a Rita… - disse, com a voz meio arrastada, forçando a entrada com o corpo amolecido do álcool.
- Já lhe disse que ela está deitada. Amanhã falam. – explicou Julieta que se esforçava por colocar aquele corpo enorme para fora da porta.
- O que é que queres? – disse Rita sem emoção, aparecendo no corredor.
- Rita! – exclamou Francisco animado. – Vem cá, quero falar contigo.
- Mãe, deixa-o entrar. Daqui a nada os vizinhos começam a espreitar das janelas para ver o que se passa aqui. – pediu Rita, apoiando Francisco que parecia de gelatina.
- Sim… deixe-me entrar… - suplicou o toureiro a Julieta.
- Vamos, conversamos lá dentro, não consegues ficar de pé. – disse, encaminhando-o para o seu quarto.
- Mas filha, vais levar esse doido para dentro do quarto? – sussurrou Julieta no corredor, com medo que o marido ouvisse.
- Não há problema mãe. Vou fazer-lhe café e mandá-lo embora assim que melhorar, não te preocupes. – fechou a porta do quarto e ajudou Francisco a sentar-se na cama.
- Olá… - disse o toureiro com cara de miúdo da escola de castigo.
- O que é que queres Francisco? – perguntou-lhe de braços cruzados, olhando-o duramente de pé.
- Ficas melhor assim… de roupão, sem aquela roupa horrível… - comentou, gesticulando a última palavra.
- Ok, vieste a minha casa de madrugada, acordar toda a gente, para me dizer que fico melhor de roupão? – questionou-o sem compaixão.
- Não... – confessou envergonhado, de braços pendentes ao lado do corpo.
- Então? Vieste dizer-me que me amas? É costume, quando te embebedas! – lançou duramente.
- Rita… não te zangues comigo… - pediu, tentando agarrar-lhe o roupão para a abraçar.
- Eu estou farta, Francisco. Se tu não me queres, deixa-me viver em paz. O que vai ser a minha vida agora? Não posso ter um namorado, que tu te lanças em cima dele? – questionou-o furiosa.
- Mas ele é teu namorado? – perguntou aflito com aquela novidade.
- Não, mas podia ser. 
- Eu gosto de ti. – confessou, sem a olhar.
- Eu sei que gostas. Mas isso para mim não chega. Vou fazer-te um café. – saiu do quarto e deixou-o sozinho, sem lhe dar hipótese para mais conversa.
Francisco sentia o álcool a evaporar-se aos poucos, ficando cada vez mais consciente do que estava a fazer. Ouvia-a na cozinha a mexer em armários e ainda pensou em fugir, mas quando se levantou, Rita entrou no quarto com o café e Francisco sentiu-se pequeno e vulnerável. Ela estava linda, com aquele ar doméstico e zangado, de pijama e roupão, com o cabelo solto ainda molhado e sem jeito. Sentou-se novamente, aparvalhado, e aceitou o café, sem falar, nem tirar os olhos dela. Não podia negar mais, ele queria-a, e para sempre. Aquela pequena mulher era o que faltava na sua vida.
- Bebe tudo. – ordenou Rita, ainda de pé e sem perder a compostura. Assim que ele melhorasse iria pô-lo na rua.
- Obrigado. Acho que estou melhor.
- Então já podes voltar para tua casa. – indicou-lhe a porta num gesto de desprezo.
- Eu amo-te. – disse-lhe Francisco, com a garganta a secar com o medo que tinha daquela verdade.
- Não gozes comigo, por favor, sai! – disse-lhe perturbada e a sentir-se perto do choro.
- Não estou a gozar, Rita. Eu amo-te. – confessou, procurando-lhe o olhar. – Não consigo viver sem ti.
- Francisco, está tarde, eu estou cansada, tu ainda nem há cinco minutos estavas a cair, amanhã arrependes-te disso tudo que estás a dizer. Cala-te. – pediu-lhe deprimida.
- O que é que queres que eu faça, para que acredites? – colocou-se de joelhos à sua frente a sentir-se desesperado– que implore?
- Ó céus… levanta-te, por favor. – Pediu Rita confusa.
- Não consigo ver-te com mais ninguém, tenho saudades tuas, ando a ver-te por toda a parte, como uma assombração… e sinto-me sempre assim a variar do juízo, quando fico tão perto de ti… - confessou, agarrando-a e puxando-a para mais perto.
- Francisco… - sussurrou Rita, já sem conseguir pensar, enquanto o toureiro a apertava contra si, sentindo-se ceder ao desejo que ele sempre lhe provocava.
Francisco levantou-se, sem se afastar, beijando-a com paixão, como desejara durante tanto tempo, matando a saudade que teimava em não aceitar que sentia.
- Amo-te. – disse-lhe ao ouvido, com devoção.
Olharam-se durante um tempo, com as cabeças bem perto um do outro, como se falassem por telepatia, dizendo um ao outro que era assim que queriam ficar, juntos.
Rita beijou-o de volta, e encaminhou-os unidos para a porta do quarto, rodando a chave de seguida.
- O que é que vais fazer? – perguntou-lhe o toureiro ansioso.
- Dar-te a tua prenda de anos. – disse-lhe decidida.
- Tens a certeza? – balbuciou nervoso.
Rita tirou o roupão e ficou de pijama na sua frente, e Francisco tirou também o casaco em resposta.
- Com que então, vaquinhas…? - provocou-a, brincando com o estampado do seu pijama infantil.
- É, fazem-me lembrar sempre uma pessoa. – disse, levantando os braços na sua direção e sorrindo.

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(imagem, internet)

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