terça-feira, 21 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 3

 


- Não sejas teimosa, isso não combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de palermices. 

Acordou do transe com o bater insistente da porta do consultório.
- Sim, entre.  – disse, ainda angustiado com as lembranças que não o deixavam em paz.
- Olá boa tarde, Dr. – sussurrou uma mulher de meia idade, de olheiras fundas e cor acinzentada.
- Boa tarde, sente-se por favor. O meu nome é João, - cumprimentou-a com um passou bem, fazendo o ar mais profissional que conseguia, impressionado com o aspeto degradado e sem vida a que algumas pessoas chegavam.
- Obrigada.
- Então, comecemos pelo início, como se chama?


A casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la. Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois. Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele, a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso. Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro “filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado afogar-se… 


- Dr., peço desculpa, mas acho que já passou uma hora… - disse a medo, não queria ser indelicada.
- Sim, claro. Estava aqui a pensar no que me tinha dito. – desculpou-se sem grande convicção. As mãos começavam-lhe a suar, e teve de limpar as palmas nas calças, antes de prescrever os remédios. – Quero que comece por tomar 1 destes, e consoante a sua recuperação, quando se sentir mais calma, reduza para meio. Se conseguir, até à próxima consulta, deixe de tomar, e depois conversamos melhor. – sorriu-lhe satisfeito, ao ver um rasgo de esperança no olhar da paciente. Se ao menos ele fosse tão fácil de convencer. Seria tudo mais simples. Alguém lhe diria: “toma um destes e vais ficar curado!”
- Muito obrigada, Dr. – exclamou feliz, pegando na receita como se de algo sagrado se tratasse. – Então até daqui a um mês.
- Adeus, e as melhoras. – levantou-se, como habitualmente e acompanhou a senhora à porta, fechando mais um dia de loucuras e desesperos alheios.
Tinha estado todo o dia em ansiedade, não percebia bem o motivo. Desde o dia do chá de camomila que sentia umas ânsias que iam e vinham, e a culpada era ela, a porcaria da mala. Já pensara em arranca-la à força da mulher, queimá-la num ermo, acabar de vez com aquilo, mas por ironia do destino, ou simples azar, a mulher evaporara-se. Quase que entrara no piso da Oncologia, só para a procurar, mas as pernas não obedeciam, e limitava-se a fazer tempo no hall de entrada, na esperança de que ela tornasse a sair pelas escadas de incêndio. Sentia-se um perseguidor ridículo, mas tinha de resolver aquele assunto, senão nunca mais teria paz.
Tornou a sentar-se no sofá impessoal do rés-do-chão, esperou duas horas, e nada. A maluca desaparecera. Passou pelo café, só para se certificar de que ela não estava a beber o chá horroroso, mas também não havia sinal dela, nem a tinham visto desde o dia em que conversaram na mesa do canto.
Já pensara em telefonar-lhe, mas dir-lhe-ia o quê? “olha, dá cá a tua mala que tenho de a destruir! Obrigado”, era tão ridículo que assustaria a mulher. Olhou o cartão e estranhou uma vez mais alguém só ter número de telefone fixo. Maluca… rosnou frustrado. Não tinha morada, só nome, telefone e umas estrelas desenhadas à mão, poderia aquilo ser mais excêntrico? 
- Que burro!  - exclamou de repente, ciente de que na sua paranóia não percebera o óbvio; o número fixo e o nome deviam aparecer na lista amarela, ou como é que se chamava aquele antigo calhamaço com os números de todos e de toda a gente, pensava com o coração na boca, enquanto corria de volta para a clínica para tentar encontrar uma Lista Telefónica. 
Entrou esbaforido em direção ao balcão de informação e por sorte havia lá numa gaveta uma lista significativamente mais fina que aquelas de que se lembrava. Claro, só as empresas e meia dúzia de pessoas mantinham números de telefone  fixos, concluiu cheio de si, enquanto folheava o livro freneticamente. À primeira não encontrou o apelido dela no local óbvio, mas depois de reler as páginas dos nomes começados por P descobriu o local onde estaria o objecto da sua tortura. Arrancou a página sem pensar, meteu-a no bolso e dirigiu-se à garagem da clínica em passo apressado. Escreveu a morada no GPS do computador de bordo e esperou batendo os dedos no volante pela direção correta.
“Avance 50 metros e vire à direita!” – ordenou a voz de José Sócrates, uma piada que tinha instalado na memória do GPS, para distrair a cabeça sempre que não lhe apetecia ouvir música. 
- Sim, Sr Ex-Primeiro Ministro! – respondeu animado, acelerando para fora da garagem e cortando à direita.


Nunca tinha estado naquela zona verdejante da cidade, onde não havia um único asfalto decente, o que o aterrorizava, visto que o seu carro era pouco dado a caminhos de todo-o-terreno. Cada solavanco eram facadas na suspensão do desportivo coupé que lhe tinha custado os olhos da cara. 
- Caramba!, se te estás a enganar no caminho, troco-te pelo António Costa. – praguejou contra as indicações do GPS falante. Seria possível que alguém no seu perfeito juízo quisesse morar num sítio daqueles? Se ali houvesse um fogo morria tudo.
Um buraco enorme surgiu sem que João percebesse a tempo, ou conseguisse evitar, raspando o carro com demasiada força no chão, provocando-lhe um arrepio na espinha.
- Merda! – praguejou alto, parando o carro e saindo para se certificar de que ainda não havia peças soltas pelo chão. Deitou-se na terra batida para espreitar por debaixo do carro, que parecia ainda intacto, suspirou de alívio, quando vislumbrou um dos pneus bastante mais vazio que os restantes. – Oh não… - engoliu em seco, pensando na trabalheira que iria ser mudar ali um pneu sozinho, sem assistência em viagem, e nem sabia ao certo se aquele modelo ainda trazia pneu sobresselente, ou vinha equipado com aquelas modernices de remendos que não sabia como funcionavam, muito menos ao final da tarde que ameaçava a escuridão da noite num ermo isolado. As guinadas na coluna começaram a avisá-lo de que precisava de ser mais calmo e pragmático, senão iria entrar em pânico no meio de nenhures, como uma adolescente com chiliques. Respirou fundo e decidiu conduzir mais um pouco até à casa da maluca, já não faltava muito e talvez ela o ajudasse.
Sentou-se ao volante, sentindo-o escorregar das mãos suadas e sujas de terra, desabotoou alguns botões da camisa outrora imaculada e abriu o vidro para respirar melhor, sentindo-se a ceder à ansiedade. Conduziu o mais lentamente possível, na tentativa de minimizar os estragos na roda, praguejando contra os seus impulsos idiotas que lhe iam custar caro. Tudo aquilo para encontrar a mala e ainda não conseguira imaginar como a iria “roubar” da mulher para concluir o seu plano alucinado. Respirava ritmadamente, como uma mulher em trabalho de parto quando “Sócrates” o felicitou pela chegada ao destino. Olhou em volta e ficou estático sem saber como reagir. Não havia sinais de campainha, nem badalos que avisassem o proprietário de visitas, como se faria anunciar?, pensou, cada vez mais ansioso. Não podia sequer fugir dali, precisava de ajuda para arranjar o carro…
Saiu do veículo, trancou-o e avançou receoso, só esperava que não houvesse cães na quinta, suspirou aterrorizado com a ideia de ser mordido. Detestava aqueles bichos barulhentos e estúpidos, e não era amado de volta. Desde criança que transmitia uma energia maléfica qualquer que fazia o mais fofinho dos cachorros morder-lhe os calcanhares. Empurrou o portão, e entrou no terreno, em posição de defesa, em alerta total para correr no sentido contrário se ouvisse ladrar.
Já fizera metade do caminho que dava acesso à casa de madeira pré-fabricada, quando surgiu das traseiras o mais horrendo de todos os canídeos, que avançava em silêncio na sua direção, com cara de poucos amigos. João deu meia volta e começou a correr, olhando freneticamente o portão e o cão. – Merda, merda! – berrava – Isto não está a acontecer! – choramingou desesperado, percebendo que não teria hipótese de ser mais rápido que aquelas quatro patas enormes. O cão saltou apanhando balanço do sprint e deitou-o ao chão com facilidade, mantendo-se  possessivamente em cima de João, que se mantinha de olhos fixos e aterrorizados na bocarra babosa do bicho.
- Filipe! Filipe! – gritou uma voz de mulher ao longe, mas quem seria o Filipe, perguntava-se João confuso, mas mais aliviado por saber que afinal alguém o iria ajudar. – Filipe! – ralhou a voz – Larga já o Senhor!
Marta tirou o enorme cão de cima de João, que parecia em pânico, pálido e sem reação. – Eu peço desculpa, espero que ele não o tenha aleijado… - começou a dizer estendendo-lhe uma mão para o levantar – Mas… és o psiquiatra do café! – exclamou nervosa. O que faria ali aquele doido, e como tinha dado com a sua casa?
- Ainda bem que apareceu… - sussurrou João de joelhos, tentando levantar-se com as pernas trémulas.
- Está todo sujo, veio até aqui a pé? – perguntou receosa de que ele fosse ainda mais maluco do que lhe parecera naquele dia do café.
- Não, vim de carro. Aliás, precisava que me ajudasse… - conseguiu dizer, ainda em choque com a queda e o ataque daquela besta. – Tenho um pneu furado.
- Vamos lá então ver isso. – disse mais aliviada. – Filipe, Fica! – ordenou, sendo prontamente obedecida pelo cão, que se sentou diligente.
- Está aqui fora, vim até aqui com medo que escurecesse no meio do caminho. –confessou sem se aperceber. – Estava a ver que partia o carro todo por baixo…
- O que é isto? – exclamou Marta com entusiasmo ao ver o carrão desportivo de João parado ali à sua porta.
- Um BMW 420d coupé… - respondeu prontamente, satisfeito com a reação dela. Era de facto um carro muito bonito. Olhava-a de boca aberta a admirar a sua bomba azul metalizado, e abriu o carro com o comando, para que ela pudesse verificar também os interiores, que não ficavam atrás daquela primeira impressão de quem via de fora. Marta deslizava com a mão nas curvas do carro e aquela visão era demasiado sexy para não o perturbar. Deixou cair as chaves com a surpresa dos gestos sensuais da mulher e regressou à realidade, concentrando-se no pneu, a fazer esforço para não a olhar como um tarado. Precisava de ajuda e ela era a única habitante das redondezas.
- E trouxeste este carro até aqui? Que crime. – afagou o tecto do veículo, como se acariciasse algum animal gigante em sofrimento.
- Sim, já me arrependi. – disse secamente, ao se aperceber de que o modelo era dos tais que traziam remendos. – Porra! – resmungou – Eu agora sei lá onde está o furo para remendar…
- Ah, pois, estes bebés são assim, muito temperamentais. – brincou, apreciando o mau humor do homem que precisava da ajuda de uma mulher para solucionar problemas masculinos. – Agora só chamando a assistência em viagem. – concluiu, começando a caminhar de volta para casa. – Se quiseres, podes entrar e esperar lá dentro. 
João seguiu-a frustrado, aquilo iria demorar, mais valia esperar com companhia.


A decoração da casa surpreendeu-o pela positiva, tinha imaginado velas e incensos a fumegar, à imagem e semelhança da forma excêntrica de vestir de Marta, mas tudo ali era simples e acolhedor, como se estivessem em casa de uma terceira pessoa.
- Senta-te. – ordenou-lhe Marta, enquanto se dirigia à cozinha, como se aquela presença não a incomodasse. Tinha percebido o efeito que a sua espontaneidade provocara no homem, quando admirava o carro, e isso seria um problema. Não estava minimamente preparada para lidar com emoções carnais ou sentimentais.
- Porque é que o cão se chama Filipe? – perguntou a medo, intimidado pela vigilância que o animal lhe fazia, mesmo sentado à sua frente, sem piscar os olhos. 
- Porque tem cara de Filipe. – respondeu de volta.
- Ah… ok. – engoliu em seco, tentando desviar o olhar do cão.
- Chá? – ironizou Marta, trazendo um tabuleiro com duas chávenas e um bule que fumegava. – Parecia que estava a prever receber visitas, tinha colocado água ao lume e tudo. – sentou-se no sofá, cruzou as pernas à chinês, colocando a longa saia por cima e serviu-os. – Então agora, antes de eu mandar o Filipe atacar, explica-me o que fazes aqui em minha casa e convence-me de que não és um criminoso, maluco e psicopata.
- Claro, desculpa, deves achar que sou tudo isso… - tentou alcançar a chávena no tabuleiro, mas o cão não lhe permitia qualquer movimento para fora do sofá, e Marta teve de lha entregar, sorrindo sarcasticamente. – É de Camomila? – perguntou submisso.
- Não, Tília.
- Ah, cheira muito bem…
- Vamos, chega de salamaleques. – disse já a perder a paciência.
- Eu fiquei a pensar naquela tua proposta das aulas de yoga… - começou a inventar à pressão, tentando abstrair-se do animal – e…, bem, queria saber se sempre estavas disposta a ajudar-me,… porque eu não queria ir praticar isso no meio de uma sala cheia de gente. Ou seja, precisava de aulas particulares, se estivesses disposta, claro. Poderia pagar-te o que achasses ser justo pela tua exclusividade, claro. – disse, sem perceber de onde lhe vinha aquele discurso maluco.
- Hum… e não podias ter telefonado? – perguntou desconfiada daquele motivo.
- Pois… - merda, pensou envergonhado, não tinha pensado nessa hipótese – Eu liguei, várias vezes, mas nunca atendeste. – mentiu, sem vergonha, suspirando de alívio ao ver a cara de convencida dela.
- É possível. Eu detesto telefones, se fosse ao contrário, possivelmente também iria falar pessoalmente. – pensava em voz alta.
- E então? Podes ajudar-me a conviver melhor que o meu lado profissional? – perguntou já a encarnar no personagem.
- Talvez. Apenas preciso que saibas de uma coisa sobre mim, para então decidires se sempre queres aulas particulares. – explicou séria – Eu sou lésbica. – lançou sem piedade, angustiada ao ver um desapontamento no olhar dele. Mas porque é que tinha dito aquilo? Lamentou-se em pensamentos. Queria distância sentimental, não enganar o homem.
- Ok, parabéns. – que pena, pensou desiludido. Era bonita demais para ser gay. Mas o importante ali era encontrar a mala e resolver o problema. 
- Não é um problema para ti? – perguntou espantada com a frieza dele.
- Não, eu só quero aulas de yoga, não arranjar namorada. – escarneceu, sentindo-se miserável. Como poderia uma lésbica ser tão sensual, ali sentada à chinês de roupas andrajosas?
- Bem, se fosse hétero poderíamos chegar à lição prática do sexo tântrico, mas sendo assim, dou-te a teórica apenas e depois tu praticas em casa. – respondeu vingativa, reagindo à frieza com que ele a desdenhava. 
João cuspiu parte do chá que bebia com ar de superior.
- Sexo quê? – balbuciou, limpando a boca com um guardanapo que ela lhe estendeu.
- Bem, estou a ver que vamos começar Mesmo pelo princípio. – lamentou-se teatralmente, enquanto se dirigia a uma prateleira carregada de livros e procurava um dos manuais da prática para principiantes. – Aqui está! Levas este e vais lendo em casa. Agora vou arranjar-te uma roupa confortável e vamos esticar a coluna. – saiu da sala e deixou-o aparvalhado com o livro nas mãos. 
João olhava o calhamaço sem saber o que pensar, era tudo tão estranho e diferente do que estava habituado, a casa, a mulher, os modos dela, talvez fossem assim as lésbicas, matutava, de facto não conhecia pessoalmente nenhuma, pelo menos que soubesse. Pegou no telemóvel, que tinha pouquíssima rede dentro de casa e levantou-se devagar, sem tirar os olhos do cão, que o seguiu em silêncio até ao alpendre, para tentar chamar a assistência em viagem. Pediu a ajuda necessária e foi informado de que o serviço seria efetuado nas próximas quatro horas, o que o deixou mais aliviado com a esperança de que ainda sairia dali a tempo de ir jantar e dormir.
A mulher demorava-se lá dentro e João aproveitou para dar uma vista de olhos pela sala para tentar encontrar a mala, o que o tinha levado até aquele sítio inóspito. Não podia mexer-se com rapidez, temia que o cão o atacasse, e mantinha-se calmo a olhar todos os cantos, mas nada de carteira, pensava frustrado.
- Quando quiseres, podes mudar de roupa e vamos lá para dentro. – disse Marta que apareceu de repente, entregando-lhe uns trapos coçados e feios.
- Lá para dentro? – perguntou desconfiado. Ainda bem que ela era lésbica, pensou aliviado, aquilo estava a tornar-se bem desconfortável.
- Sim, fica à vontade, eu vou andando para a sala, quando estiveres pronto, última porta à direita. – explicou calmamente, deixando-o sozinho com Filipe.
João tirou as suas roupas sujas e formais e vestiu as calças largas e a t-shirt  olhando-se ao espelho horrorizado. Parecia um hippie desvairado, de meias caras calçadas. Avançou na direção da sala e entrou receoso em silêncio. Não se sentia nada confortável, aquilo tinha sido a pior ideia de sempre, mas agora o mal já estava feito, disse a si mesmo resignado, sentando-se no chão a observar a mulher que se mantinha de costas para ele, naquela posição de chinês, virada para a parede, que continha símbolos estranhos e bonecadas feias, serpentes, elefantes, mulheres com dezenas de braços, dantesco e nada acolhedor, como o resto da casa que conhecia.
- Quando quiseres, podemos começar. – disse quebrando o silêncio enervante da sala.
- Shhhh, aqui não se fala, sussurra-se. – avisou-o baixinho, num tom quase em surdina, voltando-se para ele e indicando-lhe com um gesto de mão que imitasse a sua posição. – Pernas cruzadas, por favor, a esquerda por dentro, mãos poisadas nos joelhos, palmas para cima. Olhos fechados, e respira calmamente. – enumerou num ritmo cadenciado, fazendo os gestos correspondentes. –  Para praticar yoga é preciso apenas isto, silêncio, respiração controlada, e é isso que hoje vamos fazer: Pranayama, a expansão da força vital com exercícios respiratórios, traduziu calmamente. 
Aquilo era difícil, muito mais difícil do que imaginara. Ficar sentado de olhos fechados apenas a respirar, lamentava-se João que ouvia a sua mente em agitação com aquela prática anti-natural. Estava constantemente a ser tentado a espreitar a sua professora, que se mantinha num transe qualquer sem reagir, a fazer o tal Prayamama ou como é que aquilo se chamava.
- Pouco barulho! – repreendeu-o Marta, que sabia que ele continuava a pensar demais. Levantou-se em silêncio e colocou-se por trás de João a corrigir-lhe a postura das costas e cabeça. Carregou-lhe nos rins, forçando-o a inclinar a bacia para a frente, baixou-lhe os ombros hirtos e colocou-lhe a cabeça na posição certa, sentindo-o muito quente e nervoso. – Agora mantém-te assim, o polegar a tocar o dedo do meio, em Shuni Mudra, que te vai ajudar a concentrares-te e deixares os pensamentos de lado. Respira só com o abdómen, sem levantar os ombros, inspira devagar, barriga para fora, até onde conseguires, e expira pela boca, apertando o estômago, deitando todo o ar fora, até aquele que achas que já não tens lá dentro. – enumerou naquele tom melódico e quente, que o descontraiu automaticamente.
Marta levantou-se e colocou uma música suave de um Mantra calmante, observando-o curiosa. Era um bom aluno, com um bom corpo para a prática, talvez ainda conseguisse fazer dele um yogi. Sentou-se na sua frente, limpou a cabeça de emoções e dúvidas e imitou-o. 
Passou mais de meia hora, e Marta regressou à realidade, abrindo os olhos e espantando-se ao dar com João caído de lado, a dormir profundamente, como uma criança, com a cabeça de Filipe, que também ressonava, sobre o seu peito. A respiração ritmada acalmara-o demais, pensou divertida, saindo da sala e voltando com uma manta para o tapar. Deixou-o aconchegado e desligou a luz.

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(imagem, internet)

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