segunda-feira, 27 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 7





- Quando é que aprendeste yoga? – perguntou João, enquanto esperavam pelo empregado de mesa com a ementa.
- Há cinco anos decidi experimentar, andava nervosa e precisava de encontrar um método natural para lidar com os problemas. – confessou, sentando-se à chinês – Na primeira aula percebi que era aquilo que queria fazer, ser professora de yoga. Estudei, fui tirar a formação, e pronto.
- Mas conseguiste logo fazer aquelas posições todas? Sem nunca ter experimentado antes? – admirava-se da capacidade física dela. Tinha-a observado na última aula, parecia uma mulher de borracha, mas ao mesmo tempo, bastante forte. Não era possível que se ficasse assim de um momento para o outro, pensava desconfiado.
- Eu sempre fiz desporto, cuidei do corpo. Em pequena andei na ginástica acrobática, ainda ganhei umas medalhas, e o yoga precisa de muita elasticidade, principalmente da coluna. – explicou, sorrindo para o empregado que chegara naquele momento cerimonioso com as cartas da ementa.
João ignorou o funcionário, como habitualmente fazia, mais por hábito, que snobismo, continuando concentrado nela e na conversa dos dois, ligeiramente aborrecido pela interrupção do homem.
- Obrigada. – disse Marta educadamente, fazendo uma pausa na atenção a João, voltando-se para o empregado. – És sempre assim tão rude com as pessoas? – perguntou-lhe de chofre assim que o homem se retirou.
- Rude? Como assim? – reagiu espantado.
- Eu diria mesmo mal educado. – recriminou-o, virando-se para a grande ementa.
- Mas eu tratei mal alguém?
- João, ignorar alguém que te vem servir é extremamente indelicado. Se fosse eu a empregada, cuspia-te na comida. – disse, sorrindo para os nomes das comidas chiques.
- Não me apercebi. – comentou com honestidade – Talvez faça isso sem notar. – dedicou um pouco de tempo a matutar naquele advertimento, enquanto decidia o que comer. Isabel também o criticava pela mesma razão, mas estranhamente João nunca concordara com as suas queixas. – Lavagante, é isso que me esta a apetecer…e… sangria de champanhe. Aqui é deliciosa, tens de provar.
- Parece-me bem, a sangria, claro. Para mim pode ser a salada de verão. – olhou-o satisfeita, pousando a ementa. – Chama o empregado.
João obedeceu e sentiu-se ligeiramente encavacado ao perceber que o funcionário trazia uma atitude de descontentamento no seu semblante. Ela tinha razão, tinha sido malcriado.
- Já escolhemos. – tentou olhá-lo o mais diretamente possível, sorrindo de forma simpática, para tentar remediar a má impressão que tinha dado. Não queria sequer imaginar que o seu lavagante pudesse trazer uma cuspidela de rancor por cima. Fez o pedido e agradeceu, submissamente.
- Assim está melhor. – comentou Marta orgulhosa da sua atitude mais cívica. – Vês?, não custa nada sermos simpáticos.
- Eu não quero é que ele me cuspa o prato. – explicou João genuinamente preocupado.
Marta soltou uma gargalhada, ele parecia uma autêntica criança em certas ocasiões. Era tão enternecedor observar como a sua mente funcionava, tão autêntico e básico.
- Nem o teu prato, nem a nossa sangria, porque eu não lhe fiz mal nenhum e não tenho de pagar por isso. – exclamou, levantando-se e pedindo licença para ir ao wc.
João ficou a observá-la, aos seus modos educados e cheios de classe, naquele ambiente, parecia-lhe diferente, num meio mais snob. Escolhera aquela cervejaria porque a frequentava com regularidade, e porque se lembrou que poderiam levar Filipe com eles, se comessem na esplanada. Uma mulher humilde, e João já não tinha bem a certeza de que ela fosse de origens pobres, ficaria intimidada ou maravilhada com os nomes pomposos da ementa, os salamaleques dos empregados e os diferentes talheres. Mas Marta encaixava em todos os cenários, desde o tanque da roupa onde lavava os lençóis, ao clima betinho que ali se respirava. Apenas a sua aparência a fazia destoar, mas nem isso a incomodava ou inibia. Entrara naturalmente, sentara-se à chinês e fora mais Senhora que muitas tipas, filhas de muito boa gente fina da cidade, com quem já ali partilhara umas Sapateiras. Era um absoluto quebra-cabeças aquela mulher. 
Perdia-se nos seus pensamentos, quando Salvador e o segurança do “Pírulas” que entravam na cervejaria lhe acenaram entusiasmados assim que o viram e se dirigiram à sua mesa.
- Então pá? Por aqui? – Salvador inclinou-se para o cumprimentar, quando Filipe se endireitou e fez cara de poucos amigos. – O que é isto? Mas tu tens um cão? – exclamou assustado com o semblante do animal.
- Não é meu, é de uma amiga. – explicou João, cumprimentando-os sem grande entusiasmo. Conhecia bem o amigo, e assim que ele visse Marta não iria deixá-los a sós. Queria estar com ela sem terceiros, tentar saber mais do seu passado, de onde vinha, etc. Salvador seria uma distração e nunca se calava quando uma mulher bonita estava presente, nem mesmo se esta fosse lésbica. 
- Amiga, heim? Deve ser coisa boa, que tu odeias cachorros. – gozou Salvador, olhando em volta à espera de conseguir localizar a mulher que acompanhava João.
- Não comeces, é apenas amiga. E o cão é porreiro, chama-se Filipe. Dá-lhe um “passou bem”, não sejas mal educado. – disse divertido e curioso por saber se o cão o deixaria aproximar-se o suficiente para lhe fazer uma festa.
Marta aproximou-se nesse mesmo instante, com a sua calma natural e sentou-se, sorrindo aos dois homens estranhos que conversavam com João.
- Olá! – cumprimentou-a Salvador com um sorriso de orelha a orelha.
- Olá. – respondeu divertida.
- Marta, este é o Salvador, um amigo meu de curso, mas que não trabalha na área, tem um bar na Praça. – explicou, ligeiramente incomodado com a abordagem do amigo à então apenas sua conhecida.
- Ah, o “Pírulas”? – exclamou Marta esticando a mão para o cumprimentar.
- Sim!, esse mesmo! Já lá foste? – perguntou entusiasmado com a fama do seu estabelecimento e o ar saudável da rapariga.
- Já. Mas não gostei muito. – disse com franqueza.
João desatou a rir, satisfeito com o súbito ar de desânimo do amigo, ele ainda não conhecia o estilo pragmático e sincero de Marta, que desconcertava qualquer um.
- Este é o Janota, o segurança do bar, nosso amigo há vários anos. – apresentou João, mais animado.
- Olá Janota! Muito prazer. De ti lembro-me bem, obrigada pela ajuda no outro dia, o homem estava realmente a pedi-las. – disse, apertando-lhe a mão sorridente.
- Prazer. E não é preciso agradecer, não gosto de machistas. – explicou.
- Sentem-se connosco. - sugeriu Marta, desejosa de alguma distração que a ajudasse a engolir o almoço. João estava demasiado bonito, descontraído e sexy. Era demais para a sua sanidade mental.
- Eles têm mais que fazer… - e ainda não tinha acabado a frase, Salvador já saltara para a cadeira ao lado de Marta, colocando-lhe o braço por cima do encosto, e bombardeando-a com perguntas.
- Com licença. – Janota puxou da cadeira vazia perto de João, sentando-se com dificuldade, e bufando de esforço.
- O que tens? – perguntou Marta, curiosa com aquele esgar estranho que denunciava que o grande segurança tinha uma dor.
- Nada, - desconversou, envergonhado com a situação – apenas uma dorzita nas costas.
- Espera, eu ajudo-te. - Marta levantou-se e colocou-se por detrás do homem, para espanto dos três, que a olhavam sem compreender o que pretendia fazer. Colocou uma mão no fundo do pescoço e começou a percorrer toda a zona cervical pressionando levemente, à procura do problema. Com a outra mão posicionou o queixo do segurança ligeiramente de lado, e ao descer a mão pela coluna encontrou a zona traumatizada, sorrindo. – Descontrai, por favor. – ordenou, rodando nesse mesmo instante a cabeça amolecida do paciente, ao mesmo tempo que pressionava sabiamente a vértebra correta. Um som seco e forte assustou a plateia masculina, que se retesou admirada, ao mesmo tempo que o segurança suspirou aliviado. – Pronto. Já está. – rematou, voltando para a sua cadeira.
- Obrigado… como fizeste isso? – perguntou-lhe Janota maravilhado com o milagre que se dera nas suas costas.
- Técnicas… - piscou-lhe o olho divertida.
- Não, a sério, como é que sabes fazer isto? – perguntou João.
- Tenho o curso de Osteopata, e algumas aulas de Quiroprática. Estas dores são facílimas de tratar. – respondeu-lhe com naturalidade.
- Não fazia ideia que tinhas esses cursos. Pensei que só fosses professora de yoga. – disse, ainda espantado.
- Há muita coisa que não sabes sobre mim. – retorquiu Marta, lançando uma pequena farpa de curiosidade na direção dele.
- Ah, então tu és a professora de yoga? – exclamou Salvador.
- Sim, pelos vistos sou a professora de yoga. – olhou João, que corara ligeiramente com a falta de tato do amigo.
- A Marta tem me dado aulas de yoga durante a semana. – balbuciou encavacado, sem saber como explicar o facto de que já havia falado nela a terceiros. 
- E hoje, como é sábado, não houve aula! – provocou Salvador, sorrindo – Vieram almoçar fora. – rematou satisfeito.
- És da zona da Beira Baixa? – perguntou Janota a Marta, curioso com o leve sotaque que detetara na voz dela.
- Sim… Porquê? – respondeu Marta um pouco perturbada com aquela descoberta tão inesperada. Normalmente esforçava-se por eliminar os hábitos e as características que a pudessem denunciar relativamente às suas origens, mas nem sempre conseguia disfarçar o modo de falar albicastrense.
- Tinha família em Castelo Branco, fizeste-me lembrar a minha avó… “não sâbes sôbre mím” – explicou Janota, imitando-a.
- Mais uma novidade. – disse João meio emburrado com o facto de todos os presentes estarem a partilhar com ele de detalhes privados sobre Marta.
- Não sejas ciumento João! – gracejou Salvador, que o conhecia bem demais para não notar que ele gostava da professora, e não como aluno dedicado. – E parem de chatear a rapariga com perguntas. Diz-me lá, na sexta feira, como é? Queres que reserve o bar só para ti?
- Não… - respondeu sem jeito. – Já te tinha dito que não queria festas. – resmungou.
- Não é todos os dias que um gajo faz 39 anos! – comentou Salvador inflamado.
- Fazes anos na sexta? – perguntou Marta a sentir as pernas bambas. Não podia ser… pensou nervosa. Um leonino é que não… seria demasiado perfeito para ser verdade. Já compreendia a facilidade com que se tinham relacionado. Uma alma gémea, ali, à mão de semear, bonito para piorar as coisas, e ela “lésbica” e ex-mulher de um psicopata.
- Sim, faço. Para mal dos meus pecados. E pro ano são 40… - rosnou, bebendo um grande gole de sangria e distraindo-se com Filipe, que lhe colocara o focinho na perna, em solidariedade masculina.
- Então está combinado! Sexta-feira vamos todos festejar o último ano de validade do Dr. João Marques! – exclamou Salvador, levantando o copo a pedir um brinde.
Cada um se libertava a pouco e pouco, ligeiramente embriagados, contando episódios cómicos e situações inusitadas, rindo com vontade, e Marta descontraiu, bebendo um pouco mais que aquilo a que estava habituada, encorajada por Salvador que lhe enchia o copo regularmente, sem cerimónias. Tinha as pernas dormentes, da posição em que estava há tantas horas, e sem pedir licença colocou-as esticadas no colo de João, que se reposicionou à mesa para as poder acomodar confortavelmente, como se fossem um casal e aquele fosse um hábito íntimo já usual entre os dois. 
Salvador notou as manobras encobertas pela toalha da mesa e esforçou-se por não comentar, estava a ficar preocupado com aquele relacionamento tão atípico entre o amigo, visivelmente apaixonado, e a professora lésbica, que o olhava languidamente, sempre que este falava. Estava treinado para identificar todo o tipo de relacionamentos humanos. Sobrevivia no negócio da noite com esse dom, era vital perceber quando alguém, apenas com a linguagem corporal, poderia ser um problema, e sabia que o Janota também notara, trocando olhares consigo. Se aquilo era apenas uma amizade, ele era o Papa!
João sentia-se totalmente fascinado com o sentido de humor de Marta, que gargalhava a todas as parvoíces de Salvador, mestre em disparates, mas que normalmente as mulheres não entendiam nem apreciavam. Mas ela encaixava naquele ambiente pseudo-masculino como se toda a vida tivessem partilhado da companhia uns dos outros. Talvez o facto de ser homossexual a tornasse mais masculina nos relacionamentos, matutava, com um leve ardor no estômago, ao lembrar-se de que ela não era sua quase conquista, mas uma amiga, inatingível. A pele suave das suas pernas enlouquecia-o, à medida que ia explorando com a mão o seu tornozelo, delicado e macio. Como poderia aquilo ser possível? A mulher quase perfeita, do pouco que já conhecera, inteligente, divertida, bonita, e com pele de bebé… pensava, massajando-a com as duas mãos, ritmadamente. Seria possível que ela um dia acordasse e já não gostasse de mulheres? Perguntava-se, aparvalhado com o álcool que já bebera e lhe toldava a razão. Queria percorrer-lhe as pernas até ao limite, sentir aquela suavidade em todos os locais diferentes da sua anatomia, não ter de se ficar pela cova luxuriante da parte de trás do seu joelho, até onde conseguia chegar sem parecer mal no meio de mais pessoas. Olhou-a de repente, Marta ruborescia, com um brilho no olhar que o fez perder a noção, dando-lhe coragem para alcançar mais terreno na pele suave das pernas dela, que reagiu subitamente, retirando-as, e desviando os olhos dos dele. As mãos de João penderam frustradas por debaixo da mesa, e Filipe aproveitou para solicitar alguns carinhos, ciumento com as “festas” que João dera a Marta, devolvendo-lhe um pouco da boa disposição de momentos antes. Marta evitou olhá-lo o resto da refeição, concentrando-se nos outros dois companheiros de almoço, esforçando-se por disfarçar a sua excitação e desejo. Se ali estivessem os dois sozinhos teria sido uma calamidade!

Despediram-se já a tarde ia a meio, depois do efeito do álcool estabilizar para conseguirem conduzir sem problemas, e Marta ofereceu-se para um dia ajudar Janota a resolver o problema de costas que o massacrava há alguns meses, deixando João incomodado e mordido de ciúmes. Entraram os dois no jipe, seguidos por Filipe, que se acomodou no banco traseiro, estrategicamente no meio, para os observar com curiosidade. Olhava um e outro alternadamente, à espera, de orelhas em pé.
- Gostei muito dos teus amigos. – iniciou Marta, tentando quebrar o gelo que se sentia dentro do pequeno veículo.
- Hum… - João olhava a janela amuado, sentia-se péssimo, irritado, excitado, ciumento, e de mãos e pés atados, sem possibilidade de resolver o seu problema. 
- Desta semana a oito vou combinar com o Janota e dar-lhe umas massagens… e já agora, porque é que lhe chamam esse nome tão ridículo? Não fazes ideia de como ele tem aquelas vértebras… Tudo torto. – continuou descontraída e ocupada com a condução.
- Foi o Salvador que lhe deu a alcunha, já não sei porquê. – respondeu secamente, esforçando-se por não a olhar.
- O que tens? – questionou-o admirada com tanto silêncio.
- Nada. – disse secamente.
- Ok. – decidiu calar-se e conduzir até casa. Sabia perfeitamente porque ele estava amuado. Aquela situação começava a tornar-se impraticável e insustentável. Talvez visitasse os pais mais cedo do que tinha previsto. Seria bom para os dois uns dias de afastamento, pois mesmo que doloroso, que tinha a certeza que seria, era necessário. – Amanhã vou visitar os meus pais a Castelo Branco, fico por lá uns dias, ainda não sei se volto antes do fim de semana. – informou-o tentando não transparecer na voz nenhuma altivez ou desdém, o que o deixaria irritado.
- Porquê? – perguntou chocado com aquela ideia de estar sem a ver uma semana inteira.
- Porque tenho de os ver, e a viagem é longa e cansativa, não gosto de ir e vir de repente. – esclareceu.
- Mas… não estás cá nem na sexta feira? – perguntou quase em súplica, sentindo-se agoniado.
- Bem… - recordou-se do aniversário dele – Vou tentar, mas não prometo.
- Ok, tu é que sabes. – o jipe parou naquele momento junto do carro dele, estacionado num local fresco e seguro, e João saiu com vontade de bater a porta com força. Respirou fundo, deu meia volta ao jipe e colocou-se inclinado na janela do condutor, sorrindo-lhe com esforço. – Desculpa, às vezes sou meio estúpido. Quando voltares diz qualquer coisa, faz boa viagem. -  beijou-lhe a cara, demoradamente, deixando-a derretida no banco, sem forças para reagir e disse adeus ao cão, acenando-lhe. – Adeus Filipe, até pra semana. Toma bem conta dela.
O cão ficou em sonoros lamentos a olhá-lo a dirigir-se para o carrão desportivo, mexendo-se freneticamente no banco. 
- Para com isso! – ralhou Marta, com os olhos rasos de água. – Machos estúpidos, devia ter ficado com uma cadela! Ou se calhar era pior, também se apaixonava por ele, e podia facilmente lambê-lo quando quisesse, e depois tinha de a matar! – berrou dizendo coisas sem nexo, a expulsar a tristeza e a raiva de dentro de si, enquanto fazia de carro o restante caminho até casa, bem devagar. Mas porque tinha a vida dela de ser tão cínica e maldosa, lamentava-se a sentir-se miserável e cheia de autocomiseração. 


João saiu do duche mais fresco e revigorado, mas ainda com aquelas cólicas incómodas na barriga, que não o deixavam em paz. Tinha prometido ao Salvador que o ia visitar à noite, e por muito que não lhe apetecesse, seria bem melhor que estar para ali sozinho a pensar nela. Vestiu-se, sempre revivendo a imagem dela na canoa, a espalhar suavemente água pelo corpo, cada vez mais intensa nos movimentos, e a olhá-lo provocadoramente. Quando calçou os sapatos, Marta já vinha de joelhos equilibrada na canoa na sua direção, agarrando-se-lhe ao pescoço, beijando-o.
- Porra! – bufou, levantando-se da cama enfurecido com a sua mente indisciplinada. – Mas que merda! – agarrou nas chaves e carteira com um gesto brusco e saiu batendo a porta com estrondo. A sua vontade era ir direito à casa dela e tirar a limpo a história de que ela não gostava de homens, pensava enraivecido, carregando nos botões do elevador com força. Tinha quase a certeza de que ela tinha ficado excitada quando lhe massajou as pernas e os pés debaixo da mesa ao almoço. Já não era nenhum garoto sem experiência, sabia que ela tinha gostado, e aquele brilho no olhar… - Podes parar, pelo amor de Deus? – pediu a si mesmo em voz alta, engolindo em seco com a lembrança do toque suave da sua pele. Entrou no carro e carregou no acelerador obrigando-se a manter a rota em direção ao bar. Tinha de se acalmar, recuperar o bom senso, aquela energia sexual frustrada era muito má conselheira, pensou, abrindo o vidro e respirando o ar fresco da rua. E era só isso que o punha louco, falta de sexo, explicava a si mesmo. Nada mais.

“-Volta aqui, não torno a pedir… - Tiago esticou a mão, num raro gesto de carinho, pedindo-lhe que voltasse para dentro do carro. Isabel engoliu em seco e obedeceu, não queria chateá-lo, faltava muito pouco para se livrar daquele pesadelo. Só mais um mês… encorajava-se, pedindo aos Céus que ele não lhe batesse, não ali, à luz do dia. Filipe seguiu-a, entrando no carro com um leve rosnar. – O que é que esse cão quer? – berrou Tiago, canalizando a sua fúria para o pequeno animal que gania, tentando esconder-se debaixo dos bancos do carro. -  Para, por favor, ele ainda é bebé! Bate-me a mim! – implorou, chorando e agarrando-lhe nos braços que se mexiam freneticamente. Tiago endireitou-se no banco e retomou a respiração calma, ignorando-a e ligando o motor do carro, como se nada se tivesse passado. Filipe não emitiu mais nenhum som, mantendo-se em pânico escondido, e Isabel fazia força para não chorar, o que o irritaria ainda mais. Nenhum dos dois falou até casa, Isabel pegou no pequeno animal e entrou no solar, sorrindo para a Dona Adelaide, sua segunda mãe, que a conhecia melhor que ninguém e que não aprovava aquele casamento. Entrou no quarto, evitando conversas e Tiago seguiu-a, trancando a porta e colocando a chave no bolso, devagar e ameaçadoramente. – O que foi, Tiago? – gemeu, a tremer com o silêncio dele. – Não me pediste que te batesse?”

Acordou do transe quando Filipe lhe começou a lamber a cara, limpando-lhe as lágrimas que caíam sem parar. Marta isolara-se na sala de prática de yoga, onde normalmente conseguia recuperar a estabilidade emocional e evitar preocupações, mas o facto de estar a envolver-se com outra pessoa exumava velhos cadáveres que tinham sido enterrados com dificuldade. Lembranças dolorosas sobre casamento, relacionamento amoroso, sufocavam-na, destabilizando-lhe as emoções que, desde que conhecera João, andavam em remoinho dentro dela. Abraçou o cão, companheiro do seu martírio, e chorou mais um pouco. Precisava de se afastar de tudo aquilo, disse a si mesma decidida. Levantou-se, fez a mala, trancou a casa e saiu. Quanto mais depressa, melhor.


- Olha, olha, o Pinga-Amor! – gozou Salvador, cumprimentando João que se sentou amuado ao balcão.
- Um whisky. – disse secamente, olhando-o com cara de poucos amigos.
- Então ouve lá, não trouxeste a professora para beber um copo?
- Não. Ela foi a Castelo Branco. – resmungou, já sem paciência para o aturar.
- Que pena… Mesmo lésbica, é uma alegria para as vistas! – brincou, à espera da reação do amigo.
- Olá! Era mesmo o gajo que eu precisava de encontrar! – disse entusiasmado a um amigo que acabava de se sentar ao seu lado.
- Então João, tudo bem? Olá Salvador, o mesmo que aqui o Dr. – disse, divertido com a súbita rima.
- Ainda trabalhas na Câmara Municipal?
- Claro! Precisas de alguma coisa? – respondeu prontamente.
- Sim, cobrar aquele favorzito. – explicou, sorrindo-lhe satisfeito.
- Fala baixo. – advertiu-o, olhando desconfortável ao seu redor, com medo que João falasse algo que o prejudicasse. – O que é que queres?
- Sim, João, o que é que tu queres dos serviços municipais? – perguntou Salvador, a rejubilar com aquilo, e posicionando-se mais de perto para descobrir o que o amigo andava a magicar, mas já com uma leve ideia do que seria. Marta explicara-lhes ao almoço os problemas que tinha com a Câmara há vários anos, e um mais um eram dois.
João olhou-o com censura, mas ignorou-o propositadamente, voltando-se para o amigo do lado.
- Tens de me resolver um problema de saneamento. Aponta aí a morada, e nada de desculpas de político. – disse prontamente, indicando a morada e o local exacto.
- Não sei se consigo isto para já… - reagiu sem jeito, pensando na trabalheira que iria ter para conseguir corresponder ao pedido.
- Esta semana. A proprietária vai estar fora esta semana, e é bom que quando ela chegue possa abrir a torneira da água em usar a água da rede! – ordenou, dando-lhe uma palmada de solidariedade nas costas.
- Fogo João, só me lixas… - resmungou, levantando-se e afastando-se com o whisky na mão.
- O Amor é louco, não façam pouco, dessa loucura! – cantarolou Salvador, fugindo do braço de João, que o tentava agarrar para o calar.
- Eu não gosto dela! Para com isso! Só estou a tentar ajudar. – explicou-se, aborrecido.
- Então se não gostas, prova-o. Chegou agora a tua outra amiga do peito, a louraça. – indicou-lhe com o queixo. – Quero ver se também lhe vais pedir algum favor para a Marta…
- Vai-te f… - não terminou a palavra, sendo abraçado por Nélia, sem cerimónias.
- Olá… - ronronou, beijando-o nas duas faces.
- Olá, tudo bem? Vamos? – agarrou-a por um braço e indicou-lhe o caminho, dirigindo-a para fora do bar, enquanto Salvador abanava a cabeça divertido com o temperamento explosivo de João. 
- Mas que pressa! Vamos aonde? – perguntou entusiasmada.
“Aonde”?, pensou João entristecido com a forma parola com que a Nélia falava sem disfarçar. Se havia coisa que lhe tirava a tesão eram gajas brejeiras, lamentou-se. Mas sentia-se carregado de fúria, frustração e energia por gastar, e ela gostava do sexo ranhoso que ele conseguia oferecer-lhe. Melhor que aquilo, impossível.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário