quarta-feira, 22 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 4



João e Filipe ainda dormiam na mesma posição quando o carro da “Assistência em Viagem dos ricos” chegou. Marta não conhecia aqueles serviços chiques de mecânico à porta, mas ficou impressionada com o profissionalismo do funcionário. O homem tratava-a com muita delicadeza e algum espanto, porque na realidade ela e o carro eram dois mundos distintos. Inventou uma mentira para justificar a ausência do proprietário do veículo, ofereceu um chá e alguma simpatia ao senhor Manuel, e conseguiu resolver o problema sem acordar João. Ele parecia precisar de descanso, e o Filipe também dormia como um bebé em cima dele, seria cruel ir incomodá-los. Apanhou as roupas de João do chão da sala, tentou limpá-las o melhor que conseguia, dobrou-as e colocou-as em cima do pequeno sofá, começando a preparação do jantar. Não sabia se teria companhia, mas decidiu fazer para dois, se ele não comesse já teria almoço para o dia seguinte, decidiu.
- Marta! – uma voz chamou-a da sala de prática. – Podes chegar aqui, por favor?
- Sim, o que se passa? Já acordaram, os meninos? – brincou divertida.
- Ele não me deixa sair… - explicou amedrontado com os olhares profundos que o animal lhe deitava.
- Filipe, anda. Vamos comer.  – ordenou, sendo obedecida sem hesitações. – Comer, é sempre a palavra mágica para os teimosos. – disse, voltando para a cozinha.
- Acho que dormi… - disse confuso com o que tinha acontecido, seguindo-a. – Já telefonaram da assistência?
- Há horas que já cá estiveram, arranjaram o pneu e foram-se embora. Não te acordei porque estavas a dormir profundamente. Queres jantar? – disse sem parar, enquanto cortava legumes para saltear com nozes e amêndoas.
- Não sei… bem, obrigado pelo trabalho com o carro. Mas, acho que vou para casa. – sentia-se bastante intrigado por ter adormecido sem remédios, depois de tantos anos, mas precisava de tomar banho e pensar sobre tudo aquilo.
- Ok, quando quiseres, volta. – pegou no livro e entregou-lho – Não te esqueças, vai lendo, e quando tiveres dúvidas, pergunta.
- Vou só trocar de roupa, se entro assim no prédio os vizinhos chamam a polícia. – gracejou, sentindo-se logo envergonhado com o ar desagradado dela. – Não foi isso que quis dizer… - desculpou-se.
- Eu percebo. – disse com mágoa, mas sorrindo educadamente.
Despediram-se formalmente, sem que João combinasse o dia e a hora da aula seguinte, o que deixou Marta um pouco desanimada. Gostava muito daquele livro, não queria perder-lhe o rasto. Acenou-lhe adeus e entrou em casa melancolicamente, pegou nas roupas que lhe tinha emprestado e não resistiu a cheirá-las. – Lésbica… - sorriu, dirigindo-se para a cozinha. – Sim, pois, está bem, antes fosses.


Depois de muito suar, João conseguiu chegar a casa com o carro minimamente intacto. Não poderia lá voltar naquele meio de transporte, pensava, estranhando estar a cogitar visitar a mulher novamente. Sentia-se bastante bem depois de ter dormido aquelas horas. Aquela tal de Prayalama, ou como é que se chamava, era de facto mágica. Quem diria que respirar pudesse ser tão eficaz, matutava ao entrar no banho. O cheiro a cão parecia não querer sair, constatava divertido pois ironicamente, não dormia tão bem há anos e fizera-o logo com um cão em cima do corpo.
Comeu uns restos que a Rosário lhe deixara preparados num prato, pegou no livro e acomodou-se no seu sofá, bem mais rijo e desconfortável que o de Marta, que parecia moldar-se perfeitamente ao corpo, concluiu, levantando-se e levando o livro para o quarto. Deitou-se na cama e iniciou a leitura “imprópria” cheio de curiosidade. Sentia-se um miúdo a ver pornografia às escondidas, excitado e maravilhado. 
Leu o livro até ao final, sem conseguir parar, resultado da insónia que aquela sesta de fim de tarde lhe provocou, e obrigou-se a dormir já passava das quatro da manhã, engolindo um comprimido. Assim que adormeceu começou a sonhar com uma mulher de vários braços que o envolvia num abraço sufocante, mas bom, dizendo-lhe palavras em sânscrito que nunca ouvira antes. Marta surgia ao longe, sempre a caminhar de costas voltadas, apenas olhando furtivamente para ele, com censura. O que estaria ele a fazer mal? Tinha as pernas cruzadas, como ela ensinara, as costas direitas… Filipe lambeu-o, e seguiu-a, deixando-o sozinho no meio do nada. Vislumbrou uma mancha vermelha nos arbustos e começou a sentir-se ansioso, correndo até ao local, seria a mala?

Acordou transpirado e com uma angústia a apertar-lhe o estômago, já perto da hora a que a empregada deveria chegar. Levantou-se e meteu-se no duche, passando pelos comprimidos da felicidade instantânea sem se dar conta. 
Fazia a barba, quando notou que não tinha tomado a medicação da manhã, metendo um comprimido na boca e recriminando-se por estar tão distraído. Acabou de se arranjar e dirigiu-se à cozinha, estranhando a Rosário não estar lá, mas a mesa estar posta.
Onde andará ela?, procurou na sala, no quarto de hóspedes, no escritório, e foi encontrá-la no quarto principal a folhear o livro do “Sexo Tântrico” que Marta lhe emprestara, o que lhe provocou uma gargalhada. – Isso não são livros para a sua idade! – gracejou, apanhando o livro do chão que lhe saltara das mãos em voo, com o susto de ter sido apanhada.
- Mas o que é isto, Dr.? – perguntou honestamente chocada.
- Foi a minha professora de yoga que me emprestou. – explicou sorridente.
- Meu Deus, Santíssimo Sacramento, mas que professora é essa? Eu não sabia que nas aulas de yoga se aprendiam estas badalhoquices. – recriminou, benzendo-se, enquanto caminhava para a cozinha.
João olhou o livro, sorrindo com a cena e visualizando mentalmente Marta numa das “badalhoquices” que o entusiasmara especialmente na sua leitura noturna. – Graças a Deus que é lésbica… - comentou aliviado com o facto de que poderia imaginá-la à vontade sem mais tarde se sentir incomodado ou culpado. Ela nunca seria um problema nessa matéria, concluiu satisfeito. 


- Bom dia. – cumprimentou a sala de espera que já começava a encher, sendo cumprimentado de volta por vozes menos animadas que a sua.
- Bom dia Diana. Precisava que me encomendasse uma bicicleta e uns adaptadores para colocar no tejadilho do carro, por favor. – disse com naturalidade, como se lhe estivesse a pedir um café ou uma tosta do bar da clínica.
- Claro, tem alguma preferência na marca? Modelo? – perguntou tentando não demonstrar espanto.
- Não, ah, quer dizer, tenho sim. Tem de ser todo-o-terreno. – explicou, lembrando-se do piso acidentado até casa da Marta. Se pudesse ser ainda hoje, agradecia. Pode mandar entrar o primeiro paciente. Até já. – concluiu sorrindo e entrando no gabinete. 
Tinha pensado bastante naquela opção da bicicleta durante o pequeno-almoço. Cogitou várias possibilidades, comprar um jipe, mas isso demoraria alguns dias, uma moto, mas não era fã de duas rodas que tivessem motor, ir a pé também não seria prático, por isso a bicicleta vencera. Já sabia onde deixaria o carro estacionado, recordava-se de um local seguro que não ficaria muito longe do destino final, pensava satisfeito.
- Posso? – uma voz perguntou, depois de bater à porta.
- Sim, faça favor. Sente-se.

- Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… - perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa? Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? – perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.


- E foi assim, Sr Dr., eu e o meu marido já não dormimos no mesmo quarto nem nada. – explicava a paciente ainda na casa dos cinquenta.
- E como se sente com essa mudança? – perguntou, realmente curioso por saber a opinião feminina sobre esse tema tão comum nos casais de longa data.
- Triste, muito triste. – confessou – Sabe, não é muito moderno dizer isto, mas eu sei que desde essa data, que obviamente não partilhamos intimidade, ele tem andado cada vez mais longe da família. Eu sempre me recusei a aceitar que o meu marido, tão intelectualmente superior, fosse primitivo nessas questões, mas tenho quase a certeza de que ele tem outra. – uma lágrima caiu desamparada no colo da paciente, que pediu desculpa por gestos, recompondo-se.
- Acha? Não poderá ser o receio de que ele a substitua que a faz pensar nessa opção tão drástica? – perguntou angustiado, porque ela tinha toda a razão. O marido já tinha outra, ele mesmo tinha trocado Isabel por bem menos que dormir em quartos separados.
- Também pode ser… afinal, ele continua a tratar-me bem, apenas me sinto mais longe dele, de todos, lá em casa. Comecei a ter estas malditas insónias e crises de choro depois da “separação”… - explicava – Sinto-me muito cansada e infeliz.
- O facto de não dormir despoleta uma série de sintomas que lhe podem sugerir depressão, mas que por vezes não são necessariamente tão sérios. Primeiro vamos pô-la a descansar à noite, depois vemos como se sente. – sugeriu carinhosamente. Gostava especialmente de alguns pacientes, e aquela em particular lembrava-lhe a mãe, tão perdida e tristonha, carregada de responsabilidades, trabalho familiar e tão pouco reconhecida pelos seus. Já conhecera centenas de mulheres com todos aqueles “sintomas”, as mães e esposas perfeitas casadas com bestas quadradas e com filhos egoístas e cínicos. Aguentavam-se até aos cinquenta, depois batiam-lhe à porta a pedir ajuda. Se ao menos ele já fosse médico na altura, relembrava-se magoado do triste fim da sua mãe. Tudo poderia ter sido diferente, ainda hoje a teria na sua vida, pensou abatido. 
- Se conseguisse descansar seria meio caminho andado, não é? – perguntou esperançosa.
- Claro, olhe, eu por exemplo, quando não durmo fico doente, nem consigo pensar. – comentou aliviando o clima com uma pequena confissão pessoal. – Já pensou, aliado ao tratamento que lhe vou prescrever, fazer yoga? – disse num impulso, ao se recordar da sesta em casa de Marta – Dizem que ajuda muito.
- Olhe, tenho umas amigas que andam, talvez vá experimentar. Obrigada Sr Dr. – agradeceu a sugestão atenciosa daquele médico bonito e simpático.
- Aqui tem a receita, é só tomar um diariamente depois do jantar, mais ou menos uma hora antes da altura em que pretende adormecer. É uma dose levezinha, mas como não está habituada a estes fármacos não será preciso mais. – levantou-se e acompanhou-a à porta, despedindo-se formalmente e chamando o próximo paciente.

- Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho… - disse o pai que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe? Gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe.


- Dr., desculpe interromper… - disse a funcionária o mais delicadamente possível, sabia bem que ele ficava tempos infinitos a matutar em coisas e não gostava de ser incomodado.
- Sim, diga. – regressou das suas recordações tristes, aliviado pela interrupção.
- Há um pequeno problema… - confessou envergonhada. – Telefonei para a sua oficina e disseram-me que não é possível colocar barras de transporte no modelo 420 coupé…, mas a bicicleta há para entrega hoje! – rematou, tentado compensar a má notícia com a boa.
- Que chatice… - resmungou frustrado com aquele contratempo. – Agora como é que vou levar a bicicleta?... – perguntava-se.
- Bem, eu estive a pensar numa solução, e se me der autorização, vou à garagem, meço a mala do carro e vejo se cabe a bicicleta. Já pedi as medidas dela por isso mesmo. – sugeriu Diana eficazmente.
- Isso, faça isso. – deu-lhe as chaves do carro e sorriu satisfeito. – Obrigada.
A funcionária saiu do escritório radiante por conseguir agradar o chefe difícil. Aquilo era uma estreia, pensava animada, só esperava que a sua ideia resultasse.


- Bem, Filipe, o melhor é deixarmo-nos de sonhos patetas, não achas? Ele nunca mais cá vai aparecer. – lamentou-se Marta levantando-se do banco corrido do alpendre. Tinha imensas coisas para fazer e dera-lhe para pastelar à entrada da casa a olhar o portão. – Idiota! – insultou-se, arrastando os pés até às obrigações caseiras. Por ali era tudo feito à antiga, a Câmara prometera há anos canalização e saneamento, mas Marta já deixara de pensar nisso. Lavava tudo à mão, tirava água do poço e mantinha-se na era medieval com algum esforço e pesar. Nem sempre vivera assim, apenas se tinha mudado para ali há cinco anos, a princípio provisoriamente, mas foi ficando, ano após ano e presentemente gostava bastante de ali estar. Já não se adaptaria a um prédio ou bairro urbanizado, com gente por toda a parte e barulhos humanos. Mas se um dia pudesse ter máquina de lavar roupa outra vez, pensava sonhadora, enquanto enchia o tanque com água e colocava algum detergente para mergulhar umas peças grandes que precisavam de ficar de molho um bom bocado. No verão ainda suportava lavar à mão, mas no inverno era doloroso, fisicamente esgotante. Filipe olhava-a preocupado, como se sentisse as suas mágoas e lhe ouvisse os pensamentos, quando ficou subitamente hirto, de orelhas em pé a rodar à procura de um som em particular e de cauda alegre.
- É ele? – perguntou-lhe animada, sorrindo de orelha a orelha. – Vai lá palerma! Vai recebê-lo e trá-lo aqui. Agora não posso deixar isto por fazer. – ordenou ao cão que parecia compreender tudo o que ela dizia, afastando-se. 
Tirou os lençóis do tanque com alguma dificuldade, deu-lhe algumas voltas e preparava-se para os torcer, quando João surgiu com Filipe a saltitar à sua beira, como um cachorrinho feliz.
- Olá… - cumprimentou-a, curioso com as manobras estranhas que ela fazia com um pedaço de tecido gigante.
- Olá, então voltaste? Estou a ver que gostaste da sesta. – brincou Marta que começava a suar com a força que era necessária para torcer lençóis.
- Queres ajuda? – perguntou preocupado ao vê-la ganhar tantas cores com o esforço.
- Obrigada, agarra nessa ponta. – disse decidida – Agora viras para a direita, com força. Isso… - agradeceu aos céus ter aparecido ajuda, logo naquele momento. Normalmente ficava com dores nos pulsos depois daquela tarefa, mas adorava deitar-se em roupa de cama cheirosa, não tinha perfil para ser porca, nem mesmo por preguiça, pensava pesarosa dos seus hábitos aristocratas.
- Lavas sempre assim a roupa? – perguntou-lhe chocado com aquelas tarefas pesadas para uma mulher sozinha. – Isto parece ser muito difícil de se fazer sem ajuda…
- Às vezes o Filipe agarra numa ponta e eu noutra, mas hoje está preguiçoso. – gracejou, fugindo à ideia de que não pudesse ser independente.
- E quando chove? Como é que fazes? – continuou o interrogatório, enquanto esticava a sua ponta do lençol na corda e a prendia com uma mola que Marta lhe tinha dado.
- Tenho de esperar que fique sol. – respondeu simplesmente.
- És muito pragmática. Devias ensinar alguns dos meus pacientes a serem assim, menos emocionais com as vicissitudes da vida. – sugeriu.
- Que profundo, Sr Dr. – ironizou sorrindo e fazendo sinal para que ele agarrasse no outro lençol e repetisse com ela a técnica anterior. – Acho que os seus clientes ricalhaços têm é falta de lavar umas colchas num tanque com água fria, que é para verem o que é bom para a tosse. – escarneceu.
- Calma, não lhes podemos dizer como é que ficam automaticamente curados. Eu preciso de me sustentar! – gozou, torcendo a sua ponta do lençol e esticando-a perfeitamente na corda.
- Muito bem. Está ótimo! Vamos ao chá, antes da prática? – disse sorrindo e caminhando para casa. Era muito fácil conversar com ele, se ali ficassem distraídos perderiam a luz natural que ainda entrava na sala.
- Mas desta vez pode ser Camomila? – brincou, fazendo a mesma careta de nojo que se lembrava ter feito no café.
- Com mel! – acrescentou bem disposta.
- Arghhh – grunhiu arrepiando-se, só de imaginar a junção de duas coisas que não gostava.
- Eu logo vi que tinhas cara de não gostar de mel. 

- Pensei que fosses desistir das aulas, - comentou ao levantar as chávenas da mesinha de centro onde tinham estado demasiado tempo à conversa – não furaste mais nenhum pneu?
- Hoje vim de bicicleta, - respondeu preguiçoso sem vontade de se levantar do cadeirão fofo – amanhã não me consigo sentar, já não me lembrava de como um selim podia ser doloroso. – bocejou longamente a sentir-se cada vez mais sonolento. – Mas que raio tem esse chá que tu fazes? Fico sempre com sono…
- Vamos, levanta-te daí. – deu-lhe a mão e puxou-o com vigor. – Hoje faremos menos tempo de Pranayama, senão não aprendes nada. Precisas de roupa?
- Não. – disse esfregando os olhos sem vontade nenhuma de se ir exercitar. – Trouxe uma mochila com um fato de treino. Podes ir andando que já lá vou ter.
- Estás proibido de te tornar a sentar aí, não me vais andar a pagar para dormires a sesta. Vamos Filipe. – chamou o cão que lhe obedeceu sem reclamar, e dirigiu-se à sala de prática, deixando os chinelos à porta. Sentou-se no seu lugar, virada para a parede, a contemplar Ganesha, pedindo orientação para aquela aula. Conetava-se com o poder daquele deus quando João entrou fazendo barulho e desconcentrando-a. Teria de o educar para o silêncio, que homem barulhento, constatava divertida. Parecia ele próprio um pequeno elefante cheio de braços e orelhas gigantes, que batiam em tudo ao seu redor. O som dele a sentar-se com estrondo fê-la virar-se e olhá-lo com censura.
- Estava a conversar com Ganesha, a pedir-lhe ajuda para a nossa aula. Ele diz que vai tentar manter-te acordado e que tu fazes muito barulho. – gracejou, colocando-se na posição de pernas cruzadas e mãos abertas nos joelhos.
- E qual destes é esse tal de Gane… - apontou para a parede.
- O elefante fofinho. – respondeu já de olhos fechados.
- Fofinho? Eu acho ligeiramente perturbador. – confessou, tentado imitar na perfeição a posição inicial.
- Hum… isso diz muito sobre ti. Já reparei que vês sempre o pior de tudo em primeiro lugar. – comentou num tom já mais lento.
- A Drª hoje está muito perspicaz! – gozou ligeiramente incomodado com aquele comentário.
- Shh… Mãos em Shuni Mudra. – ordenou – Agora repete comigo “Ommmm”.
- Tem mesmo que ser?
- “Ommmm” – reforçou mais alto, tentando não sorrir.
João fechou os olhos, satisfeito por ter finalmente encontrado uma amiga que compreendia o seu sentido de humor. A primeira mulher bonita a que apenas teria de dedicar amizade, pensou feliz.


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(imagem, internet)

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