terça-feira, 14 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 24




- O que é que tens? Estás doente? – Francisco surpreendeu-se com o ar abatido e esbranquiçado do amigo, que o encaminhou até à sala, pedindo privacidade com o gesto. 
Rita percebeu que teria mais do que tempo para cozinhar e aproveitaria para ir a casa da tia tirar uma dúvida culinária porque a velha Miquelina raramente ouvia o telefone. Não queria ser testemunha de mais nenhum segredo que envolvesse Manuel ou pudesse implicar Teresa. Morria de medo do dia em que lhe chegasse aos ouvidos que Manuel e Sofia iam casar, como desejavam as vozes de Safara. Ninguém compreendia porque ainda não haviam dado esse passo, eram livres e desimpedidos e esperavam um filho. 
Bateu à porta da tia Miquelina, que ficou de antenas no ar com o semblante da sobrinha.
- Olá querida, vieste visitar-me? – disse-lhe carinhosamente, dando-lhe dois beijos repenicados.
- Sim, queria fazer o jantar ao Francisco, mas já não tenho a certeza de como é que faço o raio da açorda. – confessou atrapalhada.
- Ó querida, eu vou lá fazer-ta! Já me sinto melhor, e assim podes ficar a namorar em vez de ficares agarrada às panelas. – disse decidida, agarrando o casaco e saindo apressada.
- Não é preciso tia… - disse em vão, seguindo a velha mulher que estranhamente parecia ter mais energia que ela.
- Que disparate, faço-o com todo o gosto, e pareces-me muito cansada, querida. – comentou preocupada, mas bastante curiosa com as olheiras fundas da sobrinha.
- Ando a dormir pouco, talvez. – justificou-se abrindo a porta de casa de Francisco devagar com medo de que se ouvisse a conversa dos dois amigos.
- Estás muito misteriosa, rapariga. Entra lá duma vez! – empurrou-a com vigor, dando de caras com Manuel e Francisco com cara de caso, que se calaram subitamente com a presença das duas. Miquelina sentiu uma emoção no peito, uma compaixão pelas estranhas, mas sempre certas, leis do Senhor. Ali estavam eles, os dois irmãos gémeos, paridos pela mesma mãe e separados à nascença pela bruxa da Perpétua, juntos novamente. Fitou-os sorrindo, mais tempo que o que seria normal, esquecendo-se de que só ela e Maria dos Prazeres sabiam da verdade.
- Boa noite Dona Miquelina, - cumprimentou Francisco incomodado com o sorriso da velha – o que a traz por cá?
- O Destino… - disse sem pensar – quer dizer, o jantar! – corrigiu com um grande sorriso desdentado.
- Vamos tia, vamos para a cozinha, eles estão a conversar. – apressou-se Rita a interromper aquela estranha atitude da tia. – Até já! – e saiu em direção à cozinha empurrando-a.
- Ó rapariga, olha lá que me desequilibras, queres que eu parta a bacia e morra? – exclamou Miquelina.
- Não vê que eles estão a falar sobre algo muito sério? – censurou-a.
- Ai valha-me Deus, já descobriram? – agarrou o peito com fervor, como se estivesse de frente para o Altar.
- Descobriram o quê? – questionou-a Rita, que sentiu um arrepio pela coluna, como só lhe acontecia quando algo de grave estava para acontecer.
- Ham? – disse confusa, atrapalhando-se com a sua reação precipitada – Não ligues, ando tonta da cabeça. É da idade.
- Tia, não se faça de parvinha, o que é que eles descobriram? – sentia as pernas a tremer de expectativa.
- Tu não me fales assim! – ralhou Miquelina ofendida, mas fechando a porta da cozinha para poderem falar em privado – Eu sei de um segredo, uma coisa muito antiga… mas que mais ninguém sabe. Quer dizer, a Maria dos Prazeres também sabe… - começou a explicar nervosa.
- Um segredo? Que a mãe do Manuel também sabe? – perguntou Rita a sussurrar com medo que um deles ouvisse.
- Sim querida… um segredo. – assentiu Miquelina em jeito de conclusão.
- E…? Que segredo é esse? – disse exasperada.
- Não posso dizer. Mas pensei que eles tivessem descoberto. Foi só isso. – resumiu sorrindo e começando a preparar o jantar.
Rita olhava a tia incrédula, o seu comportamento sempre fora um tanto bizarro, mas aquilo era demais. Tirou-lhe o tacho das mãos e virou-a para si, enfrentando o seu ar chocado.
- Tia, vai-me desculpar, mas não pode dizer uma coisa dessas, que sabe um segredo sobre o meu namorado e o Manuel e ficar calada. Faça o favor de se explicar! – ordenou já sem paciência.
- Sim, faça o favor de se explicar e já! – rematou Francisco, que as encarava da porta da cozinha, com cara de poucos amigos.
Miquelina benzeu-se e largou o avental devagar, tirou quatro copos do armário e fez sinal para que fossem para a sala.
- É melhor trazeres a aguardente, vamos todos precisar. – sentenciou.
Rita engoliu em seco, agarrando a garrafa e olhando Francisco com compaixão. Não deveria ter forçado a tia a falar, não ali. E se o que ela soubesse fosse grave, ou triste? Tinha quase a certeza de que deveria estar relacionado com o passado do seu toureiro, que se sabia não ter pai nem mãe e ter crescido desde bebé com uma tia velha. O que Manuel tinha a ver com isso, já era mais estranho.
- Meninos, não era eu que deveria contar-vos isto, afinal, o segredo não é meu. – começou Miquelina, parando momentaneamente para beberricar o copo e fazendo o gesto como uma ordem para que o grupo a imitasse, o que todos obedeceram. – Mas o Destino trouxe-me hoje aqui, talvez seja um sinal…E o menino Manuel perdeu a doutora por causa disto… não está certo… - matraqueava quase para si mesma.
- O que é que a Teresa tem a ver com o assunto? – disse Manuel incomodado com a ligação que pudesse haver entre as coscuvilhices da velha com o facto de ele ter perdido Teresa.
- Já lá vamos. – bebeu mais um gole e foi imitada pelos três, que a escutavam nervosos com o dramatismo da cena.
- Mais um gole e já não vai conseguir falar nada! – resmungou Francisco impaciente.
- Bem, quando vocês nasceram, naquela noite fria e chuvosa, aconteceu uma das coisas mais tristes que eu já vi. – limpou uma pequena lágrima no canto do olho. – A Dona Perpétua veio cá à aldeia e levou-o, menino Manuel, sem dó nem piedade. – agarrou-lhe na mão, olhando-o com carinho.
- Mas levou-me, a minha avó? – perguntou confuso com a conversa sem nexo. – Levou-me para onde?
- Levou-o da sua mãe, lá para a herdade. Ela coitadinha chorava tanto, gritava pelo seu bebé... 
- Por favor, tia, cale-se. – suplicou Rita, que percebera naquele instante a gravidade do que dizia.
- A minha mãe chorava? Ó por favor, a mulher está louca! – berrou Manuel, já nervoso com aquelas maluqueiras de velhas.
- Não está a perceber, menino, a sua avó roubou-o da sua mãe e do seu irmão, - olhou Francisco que deixou cair o copo no chão com o choque – e levou-o lá para a herdade…
- Chega! – gritou Rita, agarrando as mãos dos dois, que pareciam atónitos, ainda a processar toda aquela informação. – Tia, cale-se com esses disparates!
- Disparates? – reagiu Miquelina ofendida. – Aquela bruxa da Perpétua matou a pobre de Cristo de desgosto! Roubar um bebé de uma mãe… isso é um crime diabólico! – continuava Miquelina – Separar dois irmãos gémeos, dois meninos lindos, sem culpa nenhuma.
- Tia, o que é que está a dizer, enlouqueceu!? – gemeu Rita, que começara a chorar ao ver a tristeza nos olhos dos dois amigos.
- Eu não sou doida! A Perpétua tirou o Manuel da mãe verdadeira para a Maria ter um filho quando o António voltasse. Eu estava lá, ajudei a Madalena a parir os rapazes, ficou muito fraquinha, foi muito difícil, mas o que a matou foi tirarem-lhe um dos meninos. – explicou zangada. – Queriam ouvir o segredo, aí está. 
- Dona Miquelina, o que está a dizer é muito grave, tem a certeza disto? – perguntou Manuel quase sem voz. Mil pensamentos surgiam na sua cabeça, pai, mãe, avós, tios, tudo era de mentira, apenas o irmão, Francisco, que sempre adorara mais que os outros, sem perceber porquê, somente esse era verdadeiro. E Teresa, não era sua prima, constatou com alívio. Maria dos Prazeres sabia disso e não dissera nada, deixara-a ir, vira-o sofrer por isso, ficara calada. – A minha mãe, quer dizer, a Maria dos Prazeres, ela participou nesse roubo? – precisava saber – Ela foi culpada disso?
- Não, a sua avó de criação, a Dona Perpétua, levou-o sem ela saber. Foi apanhada no meio das doideiras da bruxa, como todos os outros. – explicou com convicção.
- Então, o Manuel é meu irmão? Gémeo?... – perguntou Francisco emocionado com aquela revelação.
- Sim, menino, são irmãos, de sangue. Paridos da mesma mãe, ao mesmo tempo.
Francisco levantou-se, sendo imitado por Manuel, e de olhos nos olhos lançaram-se um no outro, num abraço violento e desesperado. Rita soluçava descontrolada, sem perceber se de alegria ou tristeza, e Francisco puxou-a por um braço, sem largar o irmão, trazendo-a para o abraço de grupo, que se manteve apertado durante uns segundos. Quando se largaram, olharam em volta e perceberam que Miquelina desaparecera, sem deixar rasto.
- Bem, - disse, limpando as lágrimas – pelo menos agora está explicada a vossa semelhança estranha. – e olhando Manuel – E a Teresa não é tua prima. – sorriu-lhe encantada da vida. – Lamento que descubras assim desta maneira que o Sr António e a Dona Maria não são os teus pais biológicos, mas eles amam-te, isso é tudo verdade. E o Francisco é teu irmão. – beijou o toureiro, que estava visivelmente mais satisfeito com a descoberta.- Acho que preciso de me sentar…
- Senta-te, e toma. – Francisco encheu-lhe o copo e estendeu-lho, enchendo de seguida o seu e o de Manuel, que ainda se mantinha branco e pasmado. – Eu sei que isto para ti é duro, - começou por dizer ao irmão – mas a partir de hoje tenho família de sangue, não sabes o que isso significa para mim. – confessou emocionado, levando Rita novamente às lágrimas.
- Também estou feliz, Francisco. Estranhamente feliz. – deram mais um abraço e Manuel pediu licença para se retirar, mesmo sem jantar. Sentia-se agoniado e com um nó no estômago. A sua verdadeira mãe chamava-se Madalena…o nome soava-lhe bem, doce, e a ideia de arrancarem um recém-nascido a uma mulher e esta morrer de desgosto doía-lhe fisicamente. Queria ver o pai, abraçá-lo, pensar como iria contar-lhe o que sabia, sem que ele “matasse” Maria dos Prazeres. E Teresa… não lhe saía da cabeça o facto de que o grande amor da sua vida lhe tinha escapado por conta de uma mentira. E como tinha sido fácil para ela deixá-lo, sem remorsos, ou arrependimentos. 
Caminhava pensativo, inspirando devagar, para recuperar alguma clareza de espírito depois daquela revelação inesperada, quando estacou em frente da casa de Teresa. Ficou alguns momentos a admirar como tinham crescido agrestes as flores da entrada, desgovernadas pelo abandono, e como isso o punha angustiado. Ele próprio sentia-se assim, e agora, cada vez mais, só. Num impulso meteu a mão no bolso e confirmou que ainda trazia a chave que ela lhe tinha dado, abrindo a porta e entrando devagar. Um monte de cartas caídas no chão impediam a passagem, e Manuel pegou-lhes sem curiosidade. Colocou-as na mesa da cozinha depois de as olhar superficialmente, só dando caso ao nome dela que aparecia no destinatário. Contas de luz, água, cartas do hospital de Moura, talvez devesse entregá-las depois a Rita, pensou. Subiu ao primeiro andar, arrastando os pés, e entrou no quarto frio e escurecido, ligou a luz e olhou a cama onde dormira durante uns tempos. Tempos felizes e demasiado breves, lamentou-se, em que Teresa ainda era sua. Deitou-se na cama, enrolando-se como em criança, sentindo ainda a presença dela na casa e adormeceu.


- Estás feliz, não estás? – perguntou Rita, deitada ao lado de Francisco, que sorria como um garoto depois de a ter convencido a comer apenas umas tostas, poupando o tempo de fazer o jantar.
- Muito! – abraçou-a e suspirou longamente, beijando-lhe a cabeça.
- Sobre o que é que vocês falavam na sala quando cheguei com a tia Miquelina? Estavam tão sérios. – questionou-o curiosa.
- Queria falar contigo sobre isso. – endireitou-se um pouco na cama e olhou-a gravemente. – O Manuel estava desorientado, a Sofia agarrou-se a ele e os dois quase que se embrulharam no quarto dela…Só não foram até ao fim porque a Teresa telefonou naquele momento e ele ficou aparvalhado…
- Aquela porca… - exclamou chocada com o descaramento de Sofia – Mas, como assim, a Teresa telefonou ao Manuel?
- Sim, mas desligou logo, olha não sei. – concluiu – Queria pedir-te para não te meteres nos assuntos deles. Não contes nada disto à Teresa, eles que conversem os dois, ok?
- Tudo bem, não digo nada. – prometeu, sentindo uma angústia por não poder ajudar os dois, mas Francisco tinha razão. – Mas ele ia deitar-se com ela? – disse, com cara de nojo.
- Bem, o homem já anda de jejum há meses, Rita. A tipa sabe disso, agarrou-o pelos colarinhos e… - esforçava-se por defender a honra masculina, sendo prontamente interrompido.
- Ai é assim tão fácil enganar um homem? – perguntou escandalizada com a fraca personalidade de Manuel.
- Ele não ia ao engano… - gozou.
- Pois, estou a ver, um dia que me ausente, ficas de “jejum”, – e ironizou o tom da palavra – e uma sirigaita qualquer agarra-te, prende-te, e aqui vai disto!!
- Claro que não! – apressou-se a clarificar, vendo que o assunto tomava caminhos perigosos – Primeiro, porque não me vais fugir para lado nenhum, e depois porque eu ia-te lá buscar e trazia-te amarrada de volta para casa. O Manuel é burro, já devia ter resolvido o assunto e prefere andar a matar-se pelos cantos.
- Ias-me buscar? – disse maravilhada, agarrando-se mais a ele.
- Sim. Até na Conchichina… - começou a beijar-lhe o pescoço sem parar, enfeitiçado pelo cheiro do cabelo de Rita.
- Não quero se desmancha prazeres, mas tenho de ir para casa… - confessou Rita, zonza com aqueles carinhos.
- Ah não! Agora não sais daqui! – exclamou decidido.
- Sabes,… tive uma ideia… - confessou a corar.
- Ai sim? – perguntou Francisco com os olhos sorridentes.
- Bem, não sei se vou conseguir fazê-lo,… - sentia-se a tremer das pernas só de o imaginar – mas, eu podia ir para casa, deitar-me, e quando todos já estivessem a dormir, saltava a janela e vinha ter contigo. De manhã, bem cedo, voltava para casa.
- Vou casar com uma delinquente…- pensava Francisco em voz alta – Gosto disso!
- Promete-me que nunca vais contar isto aos nossos filhos! – brincou Rita enquanto se vestia para voltar para casa.
- Filhos? – disse a meio de um ataque de tosse provocado pelo susto.
- Sim, no plural. Há grandes possibilidades de eu ter gémeos, sabias? – explicou animada – Sempre sonhei em ter um casal de gémeos!
- Vá, vá, vai-te lá embora e volta depressa. – disse Francisco empurrando-a pela casa, fingindo-se desagradado da ideia. Levou-a até à porta, deu-lhe uma palmadinha no rabo e fechou-se em casa. – Gémeos…- pensou, sentindo um arrepio na espinha, ao recordar-se de um sonho que tinha tido com Rita, em que ele e Manuel apareciam pequenos, a correr no quintal. Iam dar-lhe cabo do juízo, dois bebés a berrar toda a noite…pensava, dirigindo-se à casa de banho, quando olhou o espelho e viu-se a sorrir. – Estás a rir de quê? – perguntou-se – Ri-te ri-te, que logo choras.




Fernanda teve de se sentar e beber um copo de água, depois da conversa ao telefone com o irmão, que lhe contara desgostoso a verdade sobre Manuel, que afinal não era seu filho verdadeiro. António não parecia merecer uma tristeza daquelas, saber-se enganado pela mãe e pela mulher, todos aqueles anos. Como ela queria estar naquele momento com ele, abraçá-lo e dar-lhe algum consolo, conversar com Manuel, dar-lhe colo, e dizer-lhe que Maria dos Prazeres continuava a ser sua mãe, e António o melhor pai que poderia ter tido. Não acreditava que eles não o amassem como se fossem pais biológicos, apenas tinham sido todos apanhados no meio de uma desgraça, mas tinham construído uma família, ainda assim. Para António era mais duro, eram muitos desgostos de uma vez só, compreendia o seu pesar na voz, e gostava cada vez mais daquele irmão que a vida lhe tinha trazido de volta, que muito embora chorasse a sua dor, pensava em Teresa, e em como o motivo da sua fuga era agora desfeito. Para António, a sua prioridade era que a sua sobrinha voltasse e reatasse com Manuel, que ainda sofria pelos cantos, como ele mesmo definira. Primeiro a felicidade dos seus, depois a sua.
Foi ao quarto da filha espreita-la, para ver como estava depois da crise de choro da hora do almoço. Antes de lhe contar fosse o que fosse sobre Safara tinha de falar com o marido e o psiquiatra, conforme combinado no início do tratamento. Para manterem Teresa equilibrada o suficiente era necessária uma ginástica diplomática sobre tudo o que envolvesse o Alentejo. Faria tudo o que estivesse ao seu alcance para que o seu neto nascesse com uma mãe com capacidade emocional para o amar como ele merecia. Nada de depressões ou tristezas, um filho era alegria e esperança.
Teresa dormia, sossegada, um sono pesado, Fernanda desligou a luz do quarto e saiu.
- Amanhã é outro dia. – disse baixinho.


A casa silenciava-se aos poucos, à medida que a noite escurecia toda a herdade, e Sofia aguardava silenciosamente pela oportunidade de fugir. Já tinha feito as malas, arrumado todas as suas roupas e pertences, e estava decidida a deixar Safara para sempre, assim que ouvisse António a entrar no quarto. Pagara uma boa quantia a um saloio que ali trabalhava há pouco tempo, sem grandes ligações emocionais aos patrões, que eram reverenciados por todos os funcionários, dificilmente subornáveis, para a levar até Moura e ficar de bico calado. A sua estadia por ali chegara a um ponto de saturação e rutura, não conseguira fazer o filho que a garantiria segura e os segredos de Maria estavam a acabar. O momento de sair de cena chegara. Tinha dentro de si uma frustração carregada de ódio, que desejava ter tempo suficiente para descarregar, mas a sorte não a acompanhava nos últimos tempos, por isso decidiu jogar pelo seguro e engolir toda a mágoa que o Alentejo lhe trouxera à sua vida. 
Pegou nas malas e em silêncio encaminhou-se para o lugar combinado, bem perto do portão da herdade. Lá estaria o seu cúmplice à espera, que a levaria para longe dali. O caminho estava escuro e quase imperceptível, e Sofia sentiu uma ponta de ansiedade a crescer, suando-lhe as mãos que seguravam com dificuldade as malas pesadas. A terra batida e os socalcos criados pela passagem de todas as maquinarias agrícolas atrasavam-lhe o percurso, que ficava cada vez mais invisível, à medida que Sofia se afastava da casa em direção ao portão. 
Um barulho vindo do seu lado direito fê-la gritar de medo, e Sofia obrigou-se a respirar devagar para não se descontrolar com os nervos, afinal, deveria ter-se encostado demais às cercas que ladeavam a estrada em toda a extensão. De um lado e doutro havia animais, mas estavam devidamente presos, concluía pragmaticamente. Pegou no telefone e esforçou-se por reconhecer o local onde estava, usando a lanterna por alguns segundos apenas, para que nada a denunciasse. Redireccionou-se na estrada e mais confiante continuou a caminhada. Conseguia sentir a presença dos toiros, que bufavam à sua passagem, talvez curiosos, obrigava-se a deduzir. Um cheiro agoniante saía deles, picando-lhe as narinas e fazendo-a espirrar violentamente, o que surtiu uma reação na manada que Sofia não previra. Barulhos de alerta soavam pelo grupo de animais, que se movimentavam em defesa, como que por instinto, devido à presença que não conseguiam entender. Sofia começou a caminhar mais rapidamente, em pânico, sentindo as passadas fortes dos toiros na terra, que lhe pareciam demasiado perto. Um declive na estrada fê-la torcer um tornozelo e lançou-a para o chão, perdendo o telemóvel que levava preso em dois dedos que também seguravam uma mala. O medo invadiu-lhe o discernimento, e Sofia tacteava o chão a tremer, de joelhos, com as lágrimas a cair sem que as conseguisse controlar. Avançava naquela posição, gritando ocasionalmente ao ouvir os sons das bestas, que se adensavam à sua volta, por toda a parte, quando sentiu o telemóvel frio na relva e um alívio a percorreu de alto a baixo. Pegou histericamente no aparelho e abriu-o, para ligar a luz e conseguir retomar o seu caminho, e ao voltar a lanterna para a sua frente a besta caminhou a trote na sua direção, e lá estava a bandarilha, pequena e brilhante, que dançava no seu dorso, ao ritmo das passadas. Sofia colocou-se de pé, com os joelhos frouxos, recuou uns passos instintivamente e fechou os olhos.

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(imagem, internet)

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