quarta-feira, 8 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 21



Na Herdade ouviam-se os primeiros pássaros a denunciar o dia, num chilrear contínuo e esganiçado que enchia as árvores de vida. Manuel estacionou a pick-up e entrou em casa levando o seu saco de viagem, que nos últimos tempos parecia não ter descanso. A cabeça latejava-lhe de dor, tinha bebido demasiado, sentia-se intoxicado, doente, e basicamente infeliz. Toda a esperança que ainda lhe restava no coração relativamente a Teresa fora eliminada quando viu Rita a dormir no quarto de Francisco. Ela tinha ido levar a amiga a Lisboa e voltara sozinha, percebeu depois. Teresa escolhera aquele desfecho e pedira-lhe para a respeitar, que mais poderia ele fazer? Mesmo sentindo no fundo da sua alma que a vida sem ela seria incompleta, nada havia a fazer. Aprenderia a estar sem uma parte de si, ainda havia o bebé de Sofia para ele cuidar, e os cavalos, disse a si mesmo. A ideia de montar e voltar às touradas trouxera-lhe um sopro de oxigénio na sua bolha de desespero, e iria agarrar-se a isso com unhas e dentes, senão enlouqueceria.
Voltava por isso para a Herdade, retomaria os treinos e aquele saco de viagem ficaria arrumado para sempre, prometeu a si próprio. Dali só sairia para a última morada.


O telemóvel de Rita vibrava sem parar no bolso de trás das calças e a enfermeira acordou sobressaltada de um sono pesado e reparador. Estava agradavelmente quente, agarrada ao tronco de Francisco, que ressonava a plenos pulmões. Pegou no telefone e retesou-se de culpa ao ver a quantidade de chamadas que a sua mãe já tinha feito naquela manhã, e ainda não eram 7h00! Levantou-se suavemente para não perturbar o sono do toureiro, calçou-se e procurou na casa de banho por analgésicos. Depois de encontrar os remédios, escreveu um bilhete e deixou-os na mesa-de-cabeceira de Francisco. Olhou-o mais uns segundos, era tão bonito, mesmo a ressonar de boca aberta, pensou deprimida. Seria aquela a sua sina? - Perguntou-se angustiada – amar um homem que nunca a iria querer da mesma forma estando sóbrio? Beijou-lhe a testa e ajeitou-lhe o edredon, tinha refrescado de manhã, dizia a si mesma preocupada. Tinha de ir enfrentar Julieta que certamente dera de caras com o carro vazio parado no meio da rua e recompor-se o suficiente para aguentar o dia de trabalho que ainda tinha pela frente.

Francisco acordou com o barulho da porta, cheio de sede e com uma dor de cabeça que lhe chegava à nuca. Tinha sonhado toda a noite com a enfermeira, danças eróticas e beijos à esquimó. Sentia-se ridículo, mas divertido com a imagem dela a fazer stripe-tease enquanto ele bebia aguardente de medronho. Que maluqueira… riu-se, enquanto caminhava dificilmente até à cozinha para beber água. Refrescou-se, e mais recomposto voltou para o quarto, ainda precisava de dormir mais umas horas, e aqueles sonhos até valiam a pena. Sentou-se na beira da cama e inclinava-se para fechar totalmente o estore da janela para retirar a luz que entrava, quando viu a caixa dos analgésicos em cima da mesinha ao seu lado e um bilhete: “Bom dia, toma dois destes, se precisares de alguma coisa liga-me. Bjs Rita”. Virou o papel e viu um “smile” e o número dela. Olhou de repente para a cama cheio de culpa. Mas afinal ela tinha ali estado? O que teria ali acontecido para ela estar a pôr carinhas sorridentes em bilhetes carinhosos? Engoliu os dois comprimidos como ela mandara e deitou-se, sentindo o cheiro dela na almofada, nos lençóis, por toda a parte… Só tinha pena de não se lembrar de nada. Nesse exato momento sentiu o estômago apertar-se. Teria de a ir visitar e saber o que tinha acontecido de noite, estaria ela bem? Será que ele a tinha tratado decentemente? Mas que mariquices de sentimentos eram aqueles? Seria possível que estivesse a apanhar a moléstia do Manuel e a Anã fosse o seu remédio?... 


- Bom dia mãe. – Manuel entrou na cozinha sobressaltando Maria dos Prazeres que preparava o café do pequeno almoço.
- Querido, que susto! Mas tu dormiste aqui? – beijou o filho e fez-lhe sinal para se sentar.
- Não, voltei cedo. Trouxe as minhas coisas para casa. – explicou resumidamente.
- Já não vais viver em mais lado nenhum? – disse entusiasmada – Que maravilha!
António entrava naquele momento na cozinha, apanhando a conversa a meio, mas ficando desconfiado do semblante carregado do filho. 
- Então, rapaz. O que é que se passa? – deu uma palmada nas costas de Manuel e olhou a mulher com censura.
- A Teresa voltou para Lisboa. Eu voltei para casa. Não quero falar mais sobre isso. – disse gravemente.
- Tudo bem filho, não se fala mais nisso. – concordou António, cruzando o olhar com Maria dos Prazeres que ficou repentinamente branca e nervosa.
- Mas… foi para Lisboa e não volta? – perguntou incomodada com aquele desfecho drástico e tão repentino.
- O teu filho já disse que não quer falar sobre isso! – ralhou António – Bolas! Não entendes?
- Não se zanguem, por favor. – pediu sem emoção na voz – Pai, vou voltar a tourear. – informou-o, obrigando-se a engolir um pouco de pão.
- Quê?! – soltou Maria dos Prazeres surpresa.
- Bem, fico feliz que o faças, claro. – começou António a comentar aquela novidade – Mas tens muito que trabalhar até lá, já não enfrentas os toiros há muito tempo.
Manuel olhou-o de esguelha com superioridade. Havia coisas que não se esqueciam. – Acho que não vai haver problemas, pai. Quando estiveres pronto vem ter comigo ao estábulo. – levantou-se sorumbático e saiu, beijando a mãe na testa.
- Ai valha-me Deus… - lamentou-se Maria dos Prazeres persignando-se ao mesmo tempo. – Não me faltava mais nada.
- Ele está infeliz Maria, deixa-o. – avisou a mulher – Só espero que com a Teresa não tenha ido também o juízo… - bebeu o resto do café e suspirou. Teria de supervisionar os treinos do rapaz, para se certificar de que ele não estava a abusar. Quando um homem ficava sem chão, raramente aquilo dava bom resultado.

Sofia escutava a conversa do outro lado da porta, regozijando com as novidades que não paravam de acontecer. Agora seria muito mais fácil terminar o que ali tinha ido fazer, levá-lo novamente para a cama e fabricar o seu PPR convenientemente. Deus, ou outra bodega mística qualquer, fosse louvado! 

A pequena casa de Maria Rosa voltava a ser fechada por tempo indeterminado, lamentava Fernanda, que se consumira toda a noite com antigos fantasmas e destinos a que a sua família parecia estar condenada. A mãe nunca lhe permitira conhecer mais do que aquilo que achava que era importante, era uma filha desejada e muito amada. Tudo o resto era mantido numa redoma de segredo e imaginação, a que a pequena Fernanda se tinha dedicado durante anos a tentar decifrar. Maria Rosa era linda, educada, corajosa, altruísta, uma mãe invejada por todas as suas amigas de escola, e desejada por todos os homens que a conheciam. Mas nunca a vira sequer olhar de frente para um, ou deixar-se seduzir, mesmo que casualmente. Era de pedra, quando o assunto eram amores e Fernanda aprendeu a respeitar o seu jeito de ser e a respeitá-la muito mais, principalmente por causa disso. E ali, onde tudo tinha começado, Fernanda sentia Maria Rosa ainda presente, viva, apaixonada e vulnerável. A jovem mulher que ali tinha um dia chorado por Joaquim da Silva, escondido as provas desse sentimento e fechado também aquela porta, para sempre. Arrepiou-se ao rodar a chave, e dando um último toque na madeira pintada de vermelho, fez uma pequena prece para que um dia ainda ali pudessem voltar todos, ela, Teresa e o bebé. 


Rita arrumava o armário do material dos tratamentos, perdida em pensamentos deprimentes, quando um leve bater na porta a fez voltar à realidade.
- Sim, pode entrar! – esforçou-se por sorrir.
- Olá… - Francisco meteu a cabeça para dentro do escritório a medo. Estava nervoso e ansioso, e não fosse a chata da Dona Miquelina a insistir, não teria ido ali tão cedo.
- Ah…olá. – disse secamente, era a última pessoa que lhe apetecia ver naquele momento, mas a única que a podia curar, pensou, mergulhando um pouco mais fundo na sua depressão.
- Bem, mas que simpatia… - gozou, tentado esconder o seu desconforto pelo ar abatido com que ela o recebera.
- Então, mais bem disposto? – perguntou sem o olhar, mantendo-se ocupada na sua tarefa de arrumação frenética e absolutamente desnecessária de compressas e pensos.
- Sim, obrigado pelos comprimidos. – aquela postura distante não era compatível com o bilhete atencioso que ela lhe deixara no quarto. Que raio teria ele feito para a deixar tão chateada?
- De nada. – suspirou, sentindo-se a caminhar lentamente para o choro. – Precisas de alguma coisa?
- A tua tia obrigou-me a vir trazer-te o almoço. – disse com desdém.
- Obrigada, põe aí em cima. – as lágrimas começavam a cair sem controlo. – Estou ocupada, Francisco. 
- Estás a chorar? – mas que grande porra, pensou desorientado, sem saber o que fazer.
- Não… - gemeu, engolindo um soluço.
- Rita… Anda cá. – puxou-a para si, abraçando-a. – O que foi? Estás a chorar porquê? – perguntava-lhe angustiado. Nunca tinha estado em semelhante situação, a consolar uma mulher, aquilo era muito desagradável. – Eu fiz-te algum mal ontem? – questionou-a receoso de que fosse esse o motivo da choradeira.
- Não… - gemeu ela, continuando a chorar.
- Tratei-te mal? – sentou-se na cadeira destinada aos utentes e puxou-a para cima de si, continuando o abraço curativo.
- Não…– fungou alto. – Tu não me trataste mal Francisco, eu é que estou cansada, muito cansada disto tudo. – começou a soltar, mantendo as lágrimas numa corrente contínua. – Deixei a Teresa como um farrapo velho lá em Lisboa, conduzi toda a noite, a minha vida está toda embrulhada e preciso de dormir.
- Desculpa aquilo de ontem… Não me lembro de nada, não aconteceu nada entre nós, pois não?
- Não, está descansado, ainda estou pura! Purinha da Silva! – escarneceu, tentando levantar-se do colo do toureiro.
- Calma lá, não te zangues. Só tinha medo de te ter faltado ao respeito. – confessou.
- Francisco, o que aconteceu ontem foi pior do que se me tivesses violado à bruta. – disse-lhe, olhando-o duramente. – Estavas quase inconsciente, bêbedo, e nunca foste tão amoroso. Disseste que me amavas… - conseguiu dizer.
Francisco ficou paralisado, sem saber o que argumentar. Onde é que ela queria chegar com aquilo tudo? Ele sentia coisas por ela, especialmente quando estava assim tão perto. Perdia a noção do tempo e começava a variar do juízo com aquele cheiro a flores que lhe vinha não sabia bem se do cabelo, da roupa, da pele. Mas amar era outra história. Isso já era demais. Manteve-se cobardemente calado, não sabia o que dizer.
O silêncio mantinha-se, aumentando a dor de Rita. Tal como ela suspeitava, ele apenas tinha tido aquele comportamento porque estava com os copos. Na realidade, ele não sentia nada de especial por ela. E para isso, preferia acabar de vez com aquela tortura.
- Eu nunca vou aceitar menos que isso. – disse-lhe, encarando-o. – Ou tu me amas, ou esquece-me de vez. – levantou-se, recuperando o que restava da sua dignidade. – Obrigada pelo almoço. – dirigiu-se à porta, sem desviar o olhar do dele, que quase a fez amolecer nas suas intenções, de tão perdido que lhe parecia. Indicou-lhe o caminho num gesto teatral e ficou a vê-lo arrastar-se confuso para fora do gabinete. Fechou a porta e entregou-se uma vez mais ao desespero. 
Francisco ouvia-a chorar do outro lado da porta e consumia-se de dúvidas e culpa. Mas porque é que ela tinha de ser tão difícil? Amar!? É que não podiam simplesmente gozar a vida e estarem juntos quando lhes apetecesse? Caramba, que feitio tinham as mulheres. A culpa daquelas exigências todas era ela ainda ser virgem, só podia! Quanto mais tempo passava, mais exigente. Ainda se arriscava a acabar sozinha! Engoliu em seco e fugiu do Centro de Saúde, aquela enfermeira era demasiado complexa para si, argumentou, tentando convencer-se de que estava a tomar a decisão certa.


Manuel penitenciava-se em cima do cavalo, deixando o pai cansado só de o ver montar.
- Ó rapaz, já chega! Ainda matas o cavalo! – gritou-lhe António para dentro do picadeiro.
- Mande entrar o toiro. – gritou Manuel de volta, decidido.
- Santíssimo Sacramento, ainda o levo mais é ao médico dos doidos, se isto não acalmar. – resmungava António preocupado, enquanto dava a ordem para encaminharem um bicho para dentro do picadeiro. 
- Eu disse toiro! Não bezerro! – ralhou Manuel ao ver o espécime que o pai lhe arranjara para o primeiro treino.
- Não queres voltar a tourear? Então recomeças como todos os outros! O bezerro chega-te muito bem e o cavalo está cansado. – explicou sem hipótese de argumentação. 
Manuel olhou duramente o pai, mostrando o seu desagrado, mas conformou-se com o bicho desmamado, dando voltas e piruetas, relembrando as danças necessárias para tourear um toiro a sério. O pai tinha razão, como habitualmente, o cavalo já não teria conseguido fintar um bicho adulto. 
Ao fim de alguns minutos, já os trabalhadores paravam as suas atividades e aplaudiam entusiasticamente a beleza da Arte de Manuel, que ganhava ânimo com os urras da “plateia” improvisada. Aquilo estava-lhe no sangue, tinha sido a decisão certa, voltar à Tourada, e um breve sorriso voltou-lhe aos lábios, enquanto galopava em agradecimento à volta do picadeiro, quando viu Sofia a bater palmas, também ela entusiasmada com o espetáculo. Não me faltava mais nada… resmungou, saindo do picadeiro com o cavalo e passando por ela sem a olhar. Aquilo ia ser um problema, metê-la no seu lugar.

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(imagem, internet)

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