quinta-feira, 30 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 10




Registou com emoção o primeiro contacto no seu novo telemóvel, depois de alguns anos de “abstinência” telefónica regular, com o nome de João M, guardando o número pessoal dele nos favoritos. Ficou uns momentos a contemplar aquele nome, tão longe e tão perto, à distância de um toque, quando foi acordada do seu transe pela voz da mãe que finalmente escolhera o fato ideal.
- Isabelinha, vamos? – perguntou animada com a próxima tarefa maternal, vestir decentemente a sua menina.
- Mãe… estou cansada. Vamos voltar para casa. – suplicou, escondendo o aparelho na mala, depois de se ter livrado da caixa, instruções e papeladas inúteis.
- Nem penses. Vais fazer-me este gosto. – agarrou-lhe num braço e encaminhou-se para a loja perfeita.
- Mas por favor, só um vestido, pode ser?
- Menina, primeiro experimentas, depois falamos. – rematou, sem dar hipótese a discussão.
Entraram na loja sofisticada, sendo prontamente rodeadas de assistentes de compras, que educadamente se disponibilizaram para as ajudar. Mariana instruiu as raparigas, explicando o tipo de roupa que pretendia para a filha, e uma azáfama de tecidos, peças, mulheres e nervos agarraram em Isabel, levando-a para os provadores. Dezenas de hipóteses diferentes lhe foram apresentadas, sendo que a maioria nem sequer passava pela sua primeira avaliação, rejeitando qualquer tecido espampanante ou metalizado. Depois de muito vestir e despir, um simples conjunto preto lhe assentou como uma luva, revelando todas as suas curvas bem feitas e pernas esguias, transformando a Marta em Isabel instantaneamente. Uma antiga conhecida a olhava de frente, rodando com ela no espelho, trazendo-lhe a memória de como um dia tinha sido feliz na pele dela, antes de Tiago. Aquela mulher bonita e moderna irradiava confiança na sua figura, e seria o par perfeito para João, o Dr., constatou corando.
- Meu amor! Estás linda! Esse tens de levar! – exclamou a mãe entusiasmada.
- Não sei… gosto dele, de facto. – confessou, mirando-se mais uma vez de todos os ângulos – Mas ia usar isto quando? – uma ideia surgiu-lhe na mente, o aniversário de João seria uma boa ocasião, mas não se sentia capaz de se transmutar à frente dele. Só lhe tinha mostrado a Marta, yogi, simples, e lésbica, pensou angustiada. Como poderia aparecer-lhe à frente com aquela versão feminina de si mesma?
- Uma mulher precisa de ter uma coisa destas no guarda-roupa! – sentenciou Mariana – Levas este e todos os outros que separei por ti.
Isabel olhou o monte de roupas que as funcionárias seguravam satisfeitas e resignou-se. Talvez fosse boa ideia ter uma alternativa à sua disposição.


- Dr., sente-se bem? Quer que chame um médico? – perguntou Diana aflita ao entrar no gabinete e ver o patrão a desfalecer na secretária, pálido e ofegante.
- Cancele as consultas da tarde. Tenho de ir para casa. – levantou-se cambaleante, agarrou nas suas coisas e saiu, sem notar que a sala o observava curiosa.
Arrastou-se até à garagem, esforçando-se por respirar devagar, entrou no carro e deixou-se ficar uns minutos no silêncio do espaço escurecido. Precisava de se acalmar, tirar aquelas frases da cabeça, vê-la de carne e osso e certificar-se de que estava bem. A ideia de que ela voltara sozinha para o local onde tudo aquilo se tinha passado, e que ele lá pudesse estar, punha-o em pânico. Estava demasiado longe para poder ajudá-la, para a proteger, lamentou-se.
O telemóvel tocou, e João agarrou-o prontamente, olhando o número com indicativo espanhol espantado. Não conhecia ninguém em Espanha.
- Estou?
- Olá.
- Marta? – um aperto na barriga obrigou-o a contorcer-se e poisar a cabeça no volante.
- O que foi? O que se passa? – perguntou nervosa com a voz perturbada de João.
- Nada, desculpa. – disfarçou, endireitando-se e esforçando-se em colocar a voz num tom o mais natural possível. – Estás bem?
- Sim. Vim a Cáceres com a minha mãe, ela adora vir aqui fazer compras… consegui agora fugir dela, disse-lhe que ia à casa de banho. – explicou.
- E já compraste alguma coisa para ti? – empatava a conversa à medida que fazia os exercícios abdominais do yoga para retomar a respiração normal.
- Por acaso já… - confessou envergonhada com a visão do vestido curto e revelador – Algumas roupas… e este telemóvel.
- Ah, finalmente… é este o teu número?
- Sim… podes gravar, eu já gravei o teu.
- Nos favoritos? – perguntou mais animado.
- És o único nos contactos, e nos favoritos. – a cara esquentou-lhe de tal forma que olhou em volta receosa de que alguém notasse que estava encavacada.
- Acho bem. – reagiu brincalhão – Eu também te vou gravar nos favoritos. Não és a única, desculpa, mas a principal. – uma dormência boa invadia-lhe o peito, deixando-o cada vez mais recuperado.
- Agora podes ligar-me sempre que quiseres. Se te apetecer, claro. – apressou-se a acrescentar, envergonhada com a sua insinuação.
- Nem sabes como me apetece… volta… - disse-lhe ousado. Não queria mais fingir nada. Precisava de a ter, bem perto de si, longe das incertezas e perigos.
- Também tenho uma surpresa para ti… - sentia-se a escorregar pelo pequeno sofá do corredor, amolecida com aquela voz sensual do outro lado do telefone.
- Volta… - pediu novamente.
- Tenho de ir. Daqui a uns dias já te posso mostrar o que é. Mas agora a minha mãe vem aí. Liga-me.
- Quando estiveres sozinha no quarto manda-me uma mensagem. Eu ligo.
- Beijos.
Isabel apressou-se a desligar o telefonema, guardando o aparelho na mala, sentindo-se uma criminosa, a cometer alguma ilegalidade. A cara fervia-lhe da excitação , há muito tempo que não vivia aquelas emoções nem sentia borboletas na barriga. Talvez fosse vestir a roupa ousada mais cedo que o que imaginara. Isso era quase certo.
- Vamos?



João conduziu devagar pela cidade, procurando organizar as ideias. Dizia a si mesmo que tudo aquilo que descobria era passado, um acontecimento terrível na vida de Marta, Isabel, corrigiu, mas passado. Ela reconstruira a sua vida, recriara-se, e vivia em paz atualmente, estava livre para seguir em frente, e João não a deixaria ir sozinha a partir dali, decidiu. Não gostava tanto de alguém desde que namorara com Isabel, e mesmo assim, desta vez era diferente, mais forte, se isso fosse possível. A mulher tinha sido a sua grande Paixão, este era definitivamente o seu Amor. 
Dirigiu-se a casa dela, tinha de se certificar de que as obras já tinham começado. Queria que ela chegasse e pudesse ligar uma torneira da água quente. Esse era o seu objetivo até ao final da semana. Não via a hora de ver a sua reação ao perceber que nunca mais teria de lavar nada à mão, nem carregar água pela casa. Queria-a ver feliz.
              - Filipe, meu amorzinho… - abraçou o cão com carinho, aliviada ao vê-lo são e salvo.
- Não te sujes toda de pelos de cão, Isabel! – ralhou a mãe aborrecida ao vê-la de gatas a beijar o animal.
- Vou tomar banho. – endireitou-se, deu um beijo na mãe e abraçou-a – Obrigada pelo dia maravilhoso. Vou guardar as minhas roupas novas na mala e dormir. – disse, mentindo relativamente ao dormir. Estava demasiado excitada para sequer considerar dormitar, quanto mais. Levou Filipe consigo, que saltitava sentindo a animação interior da dona. Entrou no quarto e trancou-se. Queria privacidade total, sem interrupções. Poisou tudo na cama e apressou-se a fazer um banho de espuma digno de uma estrela de cinema. Descontrairia um pouco antes de mandar o sms a João, pensou, precisava de pensar antes, como lhe diria tudo aquilo que estava a sentir, o que queria fazer dali em diante. Despiu-se, mas hesitou antes de entrar na banheira. Correu a pegar o telemóvel e levou-o consigo. Uma ideia ousada e maluca passou-lhe pela cabeça, não sabia se teria coragem de o fazer, mas sentia-se especialmente excitada. Mergulhou o corpo na água quente e perfumada, ajeitou a espuma convenientemente e fez uma série de fotos das suas pernas, em diferentes perspectivas, e posições trabalhadas. Queria conseguir uma imagem sugestiva o suficiente, mas não ordinária. Utilizou todos os filtros de edição de fotos disponíveis, ganhando cada vez mais coragem para o fazer, tal era o resultado cinematográfico que obtinha. Sabia que ao concretizar a sua ideia erótica já não haveria volta a dar, acabaria ali, naquela noite, a parvoíce do lesbianismo fictício. Estava apaixonada, e como lhe tinha dito a mãe, já se haviam passado cinco anos. Mesmo que Tiago ainda a ensombrasse mentalmente, tinha todo o direito de ser feliz, ou tentar, na pior das hipóteses. Era-lhe claro que João também se sentia atraído por ela, porquê adiar a felicidade que se adivinhava? 

João sentava-se à mesa para jantar em casa de César e Elisabete, quando o telemóvel deu sinal de mensagem. Esperara eternidades em casa pelo sinal de “Marta” para continuarem a conversa, mas talvez ela ainda andasse a passear com a mãe por Espanha, concluiu, desistindo de aguardar. Teriam a noite toda para falar, se fosse preciso, queria muito dizer-lhe que não acreditava que ela não gostasse dele, esclarecer tudo, sem denunciar que já sabia parte da verdade sobre o seu passado, e tentar fazê-la contar o que se tinha passado.
Serviu-se de vinho, descontraidamente, e levava o copo à boca, quando abriu a mensagem dela e um soluço de espanto o fez engasgar-se e cuspir todo o líquido descontroladamente, sujando a superfície à sua frente, bem como a sua camisa branca.
- Querido? Estás bem? – Elisabete perguntou assustada.
- Hum, hum… - conseguiu dizer, tossindo o vinho que o entupira. Limpou-se o melhor que conseguiu, sentindo-se a corar com a ideia de estar em frente a dois amigos e a ver as pernas maravilhosas de “Marta” numa banheira de espuma, com a legenda “E deste tipo de pernas? Gostas?”.  – Engasguei-me… Foi-me pro goto!
- Bebe um bocadinho de água… - sugeriu preocupada.
- Eu estou bem… - grunhiu com a voz rouca da irritação na garganta.
- E dizias tu há pouco que a tua paciente Sara já te pareceu mais animada? Eu tratei o filho mais velho aqui há uns anos, - explicava César sem dar importância ao ataque de tosse do amigo – era uma peste. O garoto era manipulador e ligeiramente cínico. Inventava cada coisa para conseguir o que queria…
- Hum, hum… - João queria muito disfarçar a sua excitação com a imagem que tinha no telemóvel, mas a conversa com os amigos iria ser demasiado difícil de acompanhar. 
Pediu licença para se ir recompor e fugiu para a casa de banho, queria cinco minutos de privacidade para pensar o que lhe iria responder. Sentou-se na sanita fechada e olhou demoradamente a mensagem, com um sorriso apatetado no rosto. Se apenas umas pernas o deixavam assim, o que seria quando e se visse o resto… Escreveu várias hipóteses de resposta, mas todas lhe pareciam fúteis, ordinárias, rascas, era impossível dizer fosse o que fosse depois daquele choque, concluiu. Por fim concordou consigo mesmo, e remeteu-se a um “queres matar-me?!?!”. Esperava que ela entendesse o sentido de humor, escrever era sempre ingrato. Cada um lia com a entoação que a sua mente pretendia.
Voltou para a mesa e tentou dar atenção ao casal, e engolir alguma coisa do jantar caprichado de Elisabete. A sua fome era outra, e muito mais primitiva.

Isabel riu-se durante bastante tempo, como uma miúda histérica, sob o olhar surpreso do cão que nunca a tinha visto a mandar mensagens, e parecia não entender a que ou quem ela reagia daquela forma. O seu peito parecia rebentar de emoção, tinha sido corajosa ao enviar a foto, pensava, continuando debaixo de água, preguiçosa. Mas não ia parar por ali, decidiu. Iria provoca-lo até ele considerar meter-se no carro e conduzir até Castelo Branco. Claro que isso não poderia acontecer, mas vê-lo em sofrimento físico seria uma delícia. Aquilo era o melhor sexo tântrico que ela conhecia, a prolongação do desejo no imaginário. 
Tinha uma ideia para outra foto, e tratou de caprichar na água, colocando ainda mais sais de banho e duplicando a quantidade de espuma. Colocou em câmara frontal o aparelho e fotografou-se várias vezes, sem mostrar a totalidade do rosto, se alguém que não eles os dois alguma dia visse aquilo não conseguiria identificar a mulher assanhada que ali estava registada para todo o sempre. E a Marta nunca faria uma coisa daquelas, era demasiado envergonhada. A Isabel já era outra história… Conseguiu apanhar-se sugestivamente, quase  totalmente nua, apenas com espuma “cirurgicamente” colocada nos pontos chave, e enviou sem remorsos, soltando novas gargalhadas com a legenda “Se sentires picadas no braço esquerdo, por favor, chama o INEM. És muito novo para morrer”.

Elisabete contava como as aulas de yoga lhe faziam imensa falta, um dia sem praticar e já se sentia perra, explicando exaustivamente todas os benefícios que lhe trouxera aquele exercício regular. Olhou João com curiosidade e perguntou sem cerimónias:
- Não sentes falta da nossa professora?
- Ham? – a sua concentração estava nula, olhando furtivamente o telemóvel na esperança de receber mais uma notificação de mensagem, quando o som chegou e fê-lo corar como um garoto. Abriu a mensagem o mais discretamente possível e não se conteve, soltando alto e bom som – Cristo! – a cara passou de corada a brasa incandescente, obrigando-se a beber um gole de água, enquanto fechava o telemóvel a contragosto. Se não saísse dali depressa pensariam que era maluco, ou mal educado. – Sim, claro. Sinto falta das aulas… - respondeu depois de se desculpar pelo grito.
- Estás muito interessado nesse telefone. – gozou César, intrigado – Aconteceu alguma coisa de grave? – perguntou a fazer-se de sonso.
- Não, não… desculpem. Um amigo mandou-me uma mensagem. – disse, atrapalhando-se todo e respondendo rapidamente “Tinoniiiiiiii”. Tratou de comer mais um pouco e apressou-se a sair, inventando uma mentira sobre um pedido de ajuda de um conhecido que ficara avariado no trânsito.
Dirigiu-se a casa o mais depressa que conseguiu, queria ouvi-la e continuar a conversa num local sossegado, sem testemunhas. Felizmente vivia bem perto de César e Elisabete, e assim que fechou a porta de casa, largou tudo o que trazia nas mãos, ficando apenas com o telemóvel e esticando-se no sofá, a sorrir para o vazio. Isabel revelava-se, acabando com  a distância logística que havia criado entre os dois, e João começava a entender porquê. A sua convivência com homens era mantida em banho-maria desde que se separara do filho da puta do ex-marido. Medo, sensatez, tudo aquilo era compreensível em alguém que sofrera na pele o tipo de agressões que ela vivera. Tinha estado sem ninguém, desejava João de forma egoísta e possessiva, à espera dele. Carregou no botão do telemóvel e foi prontamente atendido por uma voz arrastada e doce.
- Sim?
- Marta… não achas que já estás há muito tempo debaixo de água? – perguntou, fugindo-lhe a imaginação para Castelo Branco.
- Ainda nem me enrugaram os dedos… - lamentou-se, esticando-se mais um pouco na água já quase fria.
- Vamos, sai lá da banheira. Espero que tenhas levado uma toalha para perto de ti. Não te quero a andar por aí toda despida. – E engoliu em seco com a imagem que se desenhava nitidamente na sua mente, induzida pelas suas palavras.
- Mas que controlador… - gozou, erguendo-se devagar – Pronto, eu saio, Filipe, passa-me a toalha!
- Esse cão não sabe a sorte que tem… - lamentou-se.
- Sabe, sabe… Ele venera-me.
- Odeio-o. – rosnou brincalhão.
- Então? Como foi o resto do teu dia? – perguntou Marta mudando de tema.
- Uma chatice, até há vinte minutos atrás. – confessou naturalmente – Quando voltas? 
- Ainda não sei.
- Eu quero a minha surpresa no meu dia de anos. – ordenou, deitando-se de barriga para cima no sofá, descontraído.
- Vou tentar. Irias gostar muito. – disse misteriosa.
- Mais que as mensagens de hoje? – esperava que sim.
- Acho que sim. Mas não sejas curioso. Não me contaste a tua surpresa, eu não conto a minha.
- É justo. Quando voltas? – perguntou metendo-se com ela novamente.
- Por mim ia agora, - confessou corando – mas tenho compromissos aqui até sexta. – explicou.
- Amanhã o que fazes depois das 19h30? – lançou meio receoso de que ela não o pudesse ou quisesse ver enquanto estivesse em casa dos pais. Castelo Branco era perto, poderia lá dar um salto e voltar depois do jantar.
- Ham? – não compreendia a pergunta.
- Se estiveres livre e quiseres, eu vou aí ter e jantamos. – sugeriu, sentindo as mãos a suar de nervos.
- Mas vinhas até aqui de propósito só para jantar? – perguntou surpreendida.
- Não ia aí “só para jantar”… ia para jantar contigo. – explicou, com a garganta seca.
- Eu gost… - começava a responder quando a campainha da porta de casa de João tocou, obrigando-o a interromper a conversa.
- Espera só um minuto. – dirigiu-se à porta, abrindo-a contrariado com aquela distração e ficando confuso com a visita – Nélia?
- Olá querido! – ronronou Nélia, engolindo o orgulho e sorrindo-lhe com algum escárnio – Acho que no sábado deixei no teu quarto os meus brincos! – entrou sem ser convidada e deu-lhe um beijo na bochecha, deixando-o perplexo à entrada de casa.
- Marta? – disse aflito para o telemóvel, receoso de que ela tivesse ouvido.
- Sim? – respondeu engolindo uma porção de saliva que lhe soube a fel.
- Desculpa, eu já te ligo. – apressou-se a dizer, nervoso com o tom de voz dela e consequente silêncio. – Ouviste? – perguntou ansioso.
- Sim, claro. Beijos. – desligou o telefone e largou-o  para cima da cama. Mas seria possível que só acertava em homens com defeitos? Filipe sentiu a sua tristeza e saltou para o seu lado, enroscando-se nela. – Só tu é que não me desiludes.

Seguiu Nélia até ao quarto, onde esta tinha entrado sem cerimónias, numa atitude de intimidade despropositada e lunática.
- Queres explicar-me o que vem a ser isto? – berrou, sentindo-se a explodir de raiva com o comportamento dela.
- Desculpa, mas não sei o teu número de telefone, - explicou cinicamente, sem se intimidar com os modos alterados dele – e como certamente não irei mais entrar nesta casa, queria certificar-me de que não deixava aqui coisas minhas perdidas. – continuou a busca pelos brincos imaginários. Tinha ali ido para se vingar, e parecia-lhe que sem querer, nem fazer qualquer esforço, uma Marta qualquer iria vingá-la convenientemente. –Ah!, encontrei! – exclamou, mentindo e fingindo agarrar os objetos perdidos debaixo da cama. – Pronto, obrigada. Adeus. – deu meia volta e saiu, rejubilando de gozo ao ver o ar perdido com ele ficara.
João bateu a porta com força, depois de Nélia sair, expulsando alguma da raiva que sentia naquele momento. Apressou-se a telefonar para Marta, mas, tal como ele imaginara, ela não atendeu. Repetiu a chamada algumas vezes, mas acabou por desistir, frustrado e consumido pela culpa. Se não tivesse desnorteado na noite de sábado, nunca se tinha metido naquela alhada, pensou angustiado. Mandaria uma mensagem a pedir desculpa e explicar quem era a Nélia, ou talvez não, pensava nervoso. Talvez fosse melhor ir até lá pessoalmente e tentar resolver  o “mal entendido”. Dir-lhe-ia o quê?, perguntava-se, Que era tão estúpido ao ponto de ter levado para a cama uma ordinária qualquer, sem amor próprio, que se sujeitava a ser usada por parvalhões como ele? Ou que a culpada era ela, que o tinha deixado carente e precisara de resolver o seu problema físico, fazendo sexo com uma qualquer?
Pegou no telefone e escreveu simplesmente “Desculpa, atende para te explicar o que se passou aqui.” 

Marta abriu a mensagem e desligou o telefone, encerrando-o. Não precisava daquilo, ordenou-se, limpando uma lágrima teimosa que surgiu. Aconchegou-se a Filipe e fechou os olhos, soluçando baixinho, pois não queria preocupar ninguém da casa, até adormecer, muito tempo depois.

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(imagem, internet)


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