sexta-feira, 17 de julho de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 1






“Nada do que aprendera nas aulas da faculdade me fora útil antes, durante ou depois do cancro. O desgraçado invadiu-me a casa, revoltou tudo e decidiu levá-la, ficando um espaço vazio, ironicamente cheio de Isabel, e eu. Três anos de arrombamento forçado, sem nos dar hipótese de reagir. Demasiado rápido para nós, infinitamente lento para ela. Nada, mas mesmo nada do que alguma vez estudei me serviu ou ajudou, apenas me tornou mais fraco e susceptível, o elo mais fraco dos dois, a afogar-se dia após dia no seu próprio veneno….”

- Foda-se…, não consigo fazer isto. – João fechou o portátil com força, batendo o ecrã no teclado e recuperando a respiração que se tornara rápida e ritmada, naquela espiral de loucura que o assombrava novamente desde a morte de Isabel, fazia já quatro anos. O seu amigo e tutor de curso, o famoso psiquiatra da alta sociedade, Dr. César Nogueira, acompanhava-o desde que ele e a mulher receberam a notícia e pedira-lhe para escrever o que sentia sobre a doença, já era tempo de enfrentar o fantasma e avançar, dissera-lhe. 
Estavam no auge da relação, a fazer planos e compras, quando a consulta de rotina se tornou no prenúncio do fim. As hipóteses eram boas, tudo estava a favor dos dois, a idade, o peso, os hábitos saudáveis. Deveriam manter-se confiantes, dizia a médica sorridente, a ciência avançava todos os dias mais um bocado no alcance da cura, “nada de desistir ou pensar negativo”, tinha sido o seu conselho de despedida, antes de fechar a porta do gabinete. 
Lembrava-se perfeitamente de ter relacionado aquele movimento da porta com o início da sua agonia. Desde aquele momento nunca mais dormira sem remédios e a sua vida virara um inferno. 
















Capítulo 1


Levantou-se com o corpo dorido da posição em que estivera nas últimas duas horas em frente ao computador a tentar escrever meia dúzia de linhas, foi tomar um duche e preparar-se para sair. Ficar ali era demasiado deprimente, solitário e doentio. A teoria já a sabia, era preciso lutar contra ela, não se deixar ficar a remoê-la, a famosa maleita invisível, sugadora de ânimo, energia, alegria de viver, mas que ironicamente engrossava os bolsos a muitos profissionais e sectores, e  João era um deles. O que seria de um Psiquiatra sem a Depressão? Um médico sem doentes com o gabinete às moscas.
Engoliu um dos mágicos comprimidos da alegria instantânea e enfiou-se no duche. Naquela noite iria até ao Bar de um amigo de faculdade que em boa hora trocara os “doidos pelos noctívagos”, como gostava de se gabar quando conversavam. Chamara-lhe o “Pírulas”, uma piada que nem todos atingiam, mas um nome que ficava no ouvido, servindo de marketing perfeito para quem queria beber uns copos e arranjar distracção do sexo oposto de algum nível. Por ali só andavam tipas da Universidade ou já doutoras, muito ou pouco desesperadas, normalmente sem grandes interesses em romances eternos, como lhe convinha.



Entrou irradiando confiança e boa disposição, como sempre se apresentava em público, largando charme por todas as mesas e pequenos grupos de conhecidas que o bajulavam sem pudores. Era o protótipo do homem das comédias românticas que as parvinhas viam desde a adolescência, sexy, educado, bem na vida, disponível e com uma história triste para contar. Não utilizava a sua condição de viúvo para engatar ninguém, mas por ali tudo se sabia, e o mito urbano crescia, sendo difícil não usufruir das suas vantagens físicas. Se queriam tentar a sua sorte e convencerem-se de que o iriam curar do seu desgosto, quem era ele para lhes negar essa tentativa? Estava certo de que não seria tão linear ou simples como nos filmes, o romantismo cego não fazia parte da sua personalidade, e a antiga disponibilidade para amar alguém tinha sido substituída há muito tempo pelo cinismo calculista masculino, na pior acepção do conceito. Nem sempre lhe apetecia levar alguém a casa ao final da noite, mas naquele dia sentia-se especialmente motivado. Precisava de desanuviar a cabeça.

- Olá Dr! – cumprimentou-o Salvador, o proprietário do Bar e amigo de longa data.
- Então Salvador, tudo bem? Um fino, faz favor. – respondeu dando-lhe um aperto de mão sentido, enquanto se acomodava no banco alto junto ao balcão, a analisar o espaço com o olhar científico e decidido.
- Ontem houve aqui uma bronca… - lamentou-se o amigo colocando a bebida junto de João e inclinando-se para reservar a conversa apenas aos dois – Um tipo entrou aqui, já quase de dia, estávamos mesmo a acabar de limpar. Eu estava lá em cima a contar o dinheiro e a meter no saco para levar ao banco, quando ouvi uns barulhos de copos a partir. “Ó que merda”, pensei. Isto da noite é tudo muito lindo e divertido, mas temos de aturar cada boi! – explicava ainda chateado com o assunto – Estava todo lixado, drogas, de certeza, queria ir cagar! Vê tu bem! – exclamou furioso – Vá lá cagar na casa dele! Dei-lhe duas lambadas e ali o Janota resolveu o resto do problema. – acenou em direcção ao segurança sorridente. Era dos poucos que trabalhavam na área dos murros e dos socos e mantinha um ar feliz, constatava João, bastava-lhe o seu físico assustador para manter a ordem.
- Tu és demais... – confessou João divertido com as histórias sempre cómicas de Salvador – Se o homem vinha entalado, deixava-lo ir resolver o problema.
- Nem penses! Deixava-o uma vez, e depois? Vinha para aqui cagar todos os dias! – disse inflamado – Espera, tenho de ir ali servir aqueles tipos. Já volto. – afastou-se para atender outros clientes que já o olhavam de lado à espera das suas bebidas e João voltou-se novamente para a frente, retomando a sua análise feminina. Ainda não tinha concluído o scanner a todo o espaço quando uma loira generosa em atributos lhe sorriu e piscou o olho. 
Salvador voltara nesse instante e recomeçava as suas lamúrias de gerente de bar nocturno quando João se levantou avançando em direcção à rapariga e o deixou a falar sozinho.
- Ah, ok, vai lá, vai lá, meu menino. Depois deixa-a infeliz e carente que só assim é que elas me dão hipótese. – gozou em voz alta. 


Sempre que a via sentia-se assim, parvinho de todo, sem saber como lhe dizer todas aquelas coisas inteligentes que pensara no dia anterior. Era impossível ser natural e descontraído quando ela estava por perto, lamentava-se. Naquele dia combinaram ir beber um café ao Samambaia, sentaram-se um em frente ao outro, pediram café, depois água, um bolo, uma torrada, dois finos, tremoços, e acabaram a tarde a serem repreendidos pelo empregado de mesa para pararem com os beijos, havia clientes incomodados. Invejosos, dissera ela divertida. 


- Desculpa, o que é que disseste? – apercebeu-se de que se perdia nas memórias quando a rapariga… Célia? Amélia? Cornélia?, o abanou com cara de ofendida. 
- Queres ir dançar? – repetiu pela quarta vez.
- Sim, claro. – poisaram as bebidas numa mesa e João enlaçou-lhe a cintura, levando-a até à pista e fazendo os possíveis para remediar aquele começo já meio inquinado. – Desculpa, estava a pensar onde gostava de te levar hoje, quando sairmos daqui. – inventou à pressão, fazendo olhos de carneiro mal morto.
- Vamos a algum lado, mais logo? – perguntou satisfeita.
- Sim, mas é surpresa! – beijou-a repentinamente, já não tinha mais nada para lhe dizer e ela mostrava-se bem contente com a ideia.

Depois de vários finos e danças escaldantes, João já perdera a noção das horas, sentindo o cansaço a apoderar-se dos seus membros. Uma consequência da falta de sono e dos remédios que deixara em casa e já lhe faziam falta no organismo. Tentava livrar-se dela educadamente, não conseguiria sair dali para lado nenhum, a não ser para a sua cama e dormir. Os músculos pediam-lhe descanso, mas a Nélia, conseguira finalmente decorar, era persistente e já bebera demais, o que dificultaria o problema. Já tentara fazer contacto visual com Salvador, mas o amigo mantinha-se ocupado a trabalhar e parecia não perceber a angústia de João.
- Podes ir buscar-me outro fino? – pediu-lhe beijando-o – Tenho de ir à casa de banho, já volto! – saiu cambaleante em direcção aos wc, dando-lhe a hipótese de fugir cobardemente.
Pagava a sua conta apressado, quando a viu, a balouçar num ombro pequeno de uma hippie  de saia até aos pés, que se mantinha de costas. A garganta secou-lhe automaticamente, o coração batia furioso e descontrolado e as mãos frouxas deixaram cair o troco que Salvador lhe entregara.
- Então, pá? Está-te a dar uma trombose, ou quê? – gozou Salvador.
- Quem é aquela? – perguntou furioso.
- Quem? – procurava Salvador com a cabeça, sem conseguir ver uma mulher que pudesse dar um enfarte a um homem.
- Aquela da mala vermelha! – exclamou demasiado nervoso.
- A Hippie? Sei lá. Mas agora gostas desse tipo? – questionou preocupado – Acho que é melhor reduzires a dose dos ansiolíticos. – brincou para desanuviar. Andava a ficar realmente preocupado com o vício de João pelas drogas que devia receitar aos outros, não engolir ele próprio desenfreadamente.
- Voltei! – guinchou a loira demasiado perto dos ouvidos de João, que se sobressaltou com o susto e foi agarrado possessivamente para mais um beijo escaldante.
- Com licença… - retirou-se Salvador de mansinho, regressando ao seu trabalho.
João tentava ver onde se tinha metido a Hippie, engolido pela excitada rapariga, mas sem sucesso. Já se sentia enojado com tanto fogo despropositado da loira, libertando-se à força, só depois de a repelir diversas vezes e a trazer de volta à realidade.
- Chega! – gritou-lhe, avançando em direcção ao local onde a vira. Procurou por todos os cantos do Bar, esperou à porta da casa de banho das mulheres durante algum tempo, na esperança de que estivesse lá dentro, mas nada. Tinha desaparecido. Arrastou-se para a rua, respirou fundo, onde estaria ela? A mala vermelha de Isabel…


Agora que já somos namorados oficialmente, temos de pensar num assunto de extrema importância, João! – disse muito séria, deixando-o alarmado. Sentou-se para a olhar melhor, ali deitada na relva de braços atrás da cabeça parecia-lhe a coisa mais bonita que já vira.
- Diz lá, então. – sorriu-lhe acendendo um cigarro.
- De que cor é que compro a minha mala? – continuou séria, a esforçar-se para não se rir – É que vamos andar sempre juntos, e preciso de saber qual a cor que vai ficar melhor com as tuas roupas!
- Estás a brincar, ou a falar a sério? – perguntou meio aparvalhado.
- Palerma! – disse-lhe rindo agarrada à barriga – Achas mesmo que ia querer combinar a carteira contigo? Adoro esta, só me separo dela quando uma de nós morrer! – profetizou, continuando a rir do ar apalermado com que João tinha ficado.


Precisava respirar ar puro, e depressa. Levantou-se da cama, já depois de ter tomado os comprimidos de SOS para os ataques de pânico, mas que ainda não tinham dado sinais de calmaria no seu organismo descontrolado. Embrulhou-se no edredon e sentou-se no chão da varanda, obrigando-se a respirar calma e compassadamente, de olhos fechados. Podia sentir o coração a martelar nas têmporas, e esforçava-se por tirar aquela imagem da cabeça. “Não era possível que aquela pessoa andasse com a mala dela… tinha-a deitado no lixo no ano passado, mas pensando melhor, os hippies eram estranhos o suficiente para aproveitarem um objecto do caixote do lixo… pára!”, berrou a si mesmo em pensamentos. Encostou a cabeça ao vidro da porta da janela e cantou baixinho uma lenga lenga da sua avó, esforçando-se por se recordar da letra, até cair suavemente para o chão e adormecer sob o efeito dos calmantes.

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(imagem, internet)

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