segunda-feira, 13 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 23




- Bom dia, podemos entrar? – Manuel assomou-se à porta do consultório, abrindo-a para que Sofia entrasse, como mandava a etiqueta. Tinha um nervoso miudinho que teimava em não lhe largar o pescoço, fazendo-o sentir-se ligeiramente deprimido com aquele passeio matinal com a ex-namorada. Se tudo lhe trazia uma lembrança angustiada de como era Teresa, aquela mulher caprichosa e de sorriso forçado ainda o punha mais triste. Os termos de comparação não o largavam e Teresa era simplesmente a única perfeita para si, por muito que Maria dos Prazeres desejasse que ele se “entendesse” com a mãe do seu filho.
- Façam favor, - respondeu José, cumprimentando-os formalmente – então, como têm passado?
- Bem, obrigado. Olá Rita. – disse sorrindo com vontade na direção da enfermeira que o cumprimentou de volta e corou automaticamente. O dia anterior tinha tentado em vão falar com Francisco e o motivo era a pequena amiga, com quem o toureiro se fechara em casa, sem dar qualquer explicação. Não os podia censurar, afinal sabia bem o que era estar apaixonado.
-  Então, vamos lá ver como vai essa gravidez. Quando foi a última menstruação? – perguntou José, chamando Sofia para a marquesa ao lado, e solicitando-lhe que se deitasse de barriga para cima, descontraída.
Depois de um exame completo e de inúmeras credenciais de análises passadas, José pediu a Sofia que o acompanhasse ao consultório do lado para um exame ginecológico, onde teriam privacidade, o que colocou Rita em alerta. Aquilo não era um procedimento normal, nem havia marquesa própria para o efeito no gabinete do lado. Colocou o seu ar mais profissional possível e ficou com Manuel à espera, mais tarde mataria a curiosidade do que se estava a passar naquela consulta.
- Então, o Francisco está vivo? – gozou Manuel, satisfeito com o ar envergonhado de Rita.
- Sim, está…- sentiu-se corar até às orelhas. – Desculpa ele não ter atendido a porta ontem… - esforçava-se por se explicar.
- Não é preciso dares-me explicações, - disse sorrindo e levantando as mãos em sinal de compreensão – fazem muito bem em aproveitar o tempo perdido, afinal estava difícil ele deixar de ser parvo.
- Hoje vou lá fazer-lhe o jantar, a minha tia está adoentada, e ele é péssimo na cozinha, queres comer connosco? – perguntou-lhe entusiasmada. Não queria que os dois deixassem de conversar e conviver por causa dela.
- Se não for fazer de vela, tudo bem. Qual é a tua especialidade? – disse animado com a ideia de não estar mais tempo com Sofia.
José e Sofia entraram no consultório, interrompendo a conversa, como se nada de estranho se tivesse passado, constatava Rita curiosa.
- Bem, Sr Manuel, vamos aguardar pelos exames e marquem nova consulta para daqui a um mês na secretaria. – disse formalmente José.
- Mas está tudo bem com o bebé? – quis saber Manuel, que estranhou o tom do médico.
- Sim, está tudo bem. – respondeu secamente, olhando Sofia demoradamente, que não se mostrou incomodada ou alterada, mantendo a postura de sempre.
- Bem, sendo assim, obrigado. – pegou nos exames e despediu-se dos dois colegas, abrindo novamente a porta para Sofia e sorrindo a Rita. – Até logo então!
Assim que a porta se fechou Rita olhou José sem falar, e este suspirou longamente e esfregou a cara antes de ganhar coragem para explicar o que se passara.
- Esta é a tal que veio de Coimbra atrás do rapaz a dizer que está grávida, não é? – perguntou-lhe olhando-a de esguelha.
- Sim, a cabr… a Sofia, ex-namorada dele. – confirmou – Mas o que é que se passa? Conta! – exclamou nervosa.
- Ela não está grávida. – pegou na caneta nervosamente, pousando-a logo de seguida.
- Como assim?! – berrou Rita demasiado alto.
- Assim que lhe fiz a apalpação do útero percebi que não está grávida. Pode estar gorda, mas ali não há bebé nenhum. – explicou – Por isso a chamei à parte, para tentar perceber porque é que ela diz que está grávida. Já vi muitas situações destas, mulheres desesperadas, iludidas, mas como esta nunca. A tipa é doida. Continuou a afirmar que está, mostrou-me a ecografia, onde é que ela a arranjou não sei, mas que não é dela, não é! – concluiu zangado.
- Eu sabia… eu sabia que isto devia ser tanga para se manter por perto, ali na herdade. – mil e um pensamentos passavam pela cabeça de Rita, que empalidecera com o choque da revelação. Teresa tinha fugido de Safara com medo de Sofia e do que esta lhe pudesse fazer enquanto vivesse perto deles todos. Se ela contasse a verdade ao Manuel e aos pais, Teresa poderia voltar… - Como é que alguém pode ser assim tão dissimulado? – perguntava em voz alta, enquanto matutava no que deveria fazer com aquela informação.
- Bem, agora pedi os exames, não sei como é que ela vai descalçar essa bota. Não te preocupes, mais tarde ou mais cedo ela vai ter que contar a verdade. – disse-lhe, tentando acalmá-la.
- Não estás a entender José, ela destruiu a vida do Manuel. Ele vai matá-la, no mínimo, quando souber de tudo. – profetizou.
- Depois falamos sobre isto. Ainda há o “pequeno problema” de que esta informação é segredo clínico entre mim e a paciente. – relembrou-a – Isto tem de ser resolvido sem me meter ao barulho.
- Ai meu Deus… como é que eu vou guardar um segredo destes?... – colocou a cara nas mãos em desespero. – Tenho de contar pelo menos à Teresa. Ela pode voltar e… - pensava em voz alta, sem certeza do que dizia.
- Espera uns dias, ela vai ter de ir fazer os exames, pode ser que caia em si e resolva o problema de uma vez. – sugeriu. – Agora manda entrar o próximo utente, daqui a nada estão a ralhar na sala de espera.



Teresa desligava o longo telefonema de Rita, que finalmente se entendera com Francisco e estava nas nuvens com o novo namorado. Para Teresa aquela era uma excelente notícia, como há muito não surgia na sua vida. Se havia alguém que lhe era querido e merecia de facto ser feliz, era Rita. O breve tempo que vivera no Alentejo fora intenso em muitas coisas, e a amizade da enfermeira era-lhe preciosa. Podia até afirmar que até então nunca conhecera realmente um amigo. Sabia que contaria para sempre com Rita, para o bem e para o mal, e também por conhecer a sua natureza leal e emocional, ficara desconfiada de que havia algo mais que ela não lhe contara. Não a forçou a confessar o que a incomodava, se Rita quisesse e pudesse, falaria mais tarde ou mais cedo. O medo de que Manuel já se tivesse entendido com a ex-namorada e continuasse com a sua vida também a assombrava, e se o assunto fosse esse, preferia não saber. Sofia já devia estar no segundo trimestre da sua gravidez, feliz, ao lado do pai do seu filho, e só essa imagem já a consumia noite após noite. Tinha frequentemente pesadelos com os dois, cenas realistas no quarto de Manuel, onde a mulher deitada ao seu lado se transmutava de Sofia para ela própria, angustiando-a durante todo o dia. Nessas ocasiões sentia-se mais deprimida que o habitual, mas não confessava nada ao médico que a tentava ajudar semanalmente. Porque haveria de repetir e verbalizar aquilo que a magoava profundamente? Sabia que tinha sido cobarde, fraca, egoísta, e por isso mesmo sofria. Deveria ter enfrentado Sofia, explicado a toda a gente que aquela mulher a tinha tentado matar, fora a culpada do acidente de Francisco e a ameaçara de novo. Deveria ter dito ao Manuel que estava grávida, também. Sabia que tinha de o fazer, um filho era do pai e da mãe, todos os três tinham direitos uns sobre os outros. Sabia que Manuel talvez nunca a perdoasse por ter escondido a gravidez. Sabia tudo isso, deveria ter feito tudo aquilo, para quê continuar a falar sobre isso se no fundo não tomava uma atitude? De que lhe serviria escarafunchar nas suas falhas, se não fazia nada para as resolver? Várias vezes pegou no telefone, marcou o número dele e quase fizera a chamada. Eram os breves momentos em que se sentia novamente próxima dele, à distância de um toque. Mas a revolução que iria provocar seria demasiado grande e cruel. Pensava muitas vezes no filho de Sofia, que poderia nascer na prisão se ela falasse. Que tipo de pessoa mandaria uma mulher grávida para a cadeia?
Regressava invariavelmente à sabedoria de Maria Rosa, aos seus conselhos pragmáticos, e procurava encontrar alento nas memórias da avó. “O que é nosso, por Deus está guardado”, repetia mentalmente para não enlouquecer. Se a avó o dizia frequentemente deveria ter uma boa razão.


- Já estás despachada? – Francisco surgiu à porta do consultório sem ser anunciado, com cara de poucos amigos.
- Sim, estava só a arrumar as papeladas de hoje à tarde. – disse Rita naturalmente, sem se intimidar pelos modos rudes do toureiro.
- Olá Dr… - disse com esforço, ainda chateado com a dança da discoteca em Espanha.
- Olá Sr Francisco. – respondeu o médico sorridente.
- Bem, até amanhã José. – dirigiu-se ao colega para lhe dar dois beijinhos, como habitualmente, aumentando o mau humor do namorado.
- Mas que intimidades!... – censurou Francisco que abraçou Rita à saída do Centro de Saúde.
- Ele é gay Francisco. Não sei se já tinhas percebido. – comentou olhando-o divertida. – Eu é que devia fazer cenas de ciúmes, porque ele acha-te um “pão alentejano”. – brincou.
- Quê?! – olhou-a horrorizado. – Já me podias ter avisado! 
- Não sejas assim, ele é meu amigo. – censurou-o – E por falar nisso, ainda lhe deves um pedido de desculpas pelo soco de sexta-feira!
- Não estou arrependido. – disse amuado com a advertência.
- Mas devias. Se não fosse ele não estávamos juntos. – abraçou-o carinhosamente.
- Tu estás bem? Pareces meio tristonha. – comentou preocupado com um leve enrugar de testa que Rita trazia, e principalmente desejoso de mudar o rumo da conversa. Não tinha intenções de pedir batatinhas ao médico que lhe tinha apalpado a namorada toda naquela dança ordinária, muito menos depois de saber que ele gostava era de homens.
- Sim, um pouco cansada só. – mentiu Rita que teria de se esforçar por não deixar transparecer a sua preocupação.
- Então não vais pôr-te a cozinhar, - exclamou atencioso – eu faço o jantar.
- Não, deixa estar. Prefiro fazer eu, aquelas tostas de ontem ainda me andam aqui às voltas! – brincou, fazendo cara de enjoada. – Ainda por cima convidei o Manuel para comer connosco, não vamos tratar mal o rapaz!
- Tu és muito atrevida, sabias? – disse, feliz da vida.





- E o que disse o médico? Está tudo bem? – perguntou Maria dos Prazeres curiosa com a progressão da gravidez de Sofia.
- Sim, tudo ótimo! – respondeu Sofia satisfeita, enquanto comia mais um prato de marmelada com queijo.
- Agora é preciso ir fazer uns exames, - explicou Manuel encostado ao balcão da cozinha – vamos a Moura amanhã tratar disso.
Sofia empalideceu um pouco, sentindo-se ansiosa com a perspectiva de tirar sangue e o que poderia acontecer se não conseguisse influenciar os resultados dos exames.
- O que foi, querida? Sente-se bem? – perguntou Maria preocupada com a palidez da rapariga.
- Acho que foi a tensão arterial… - mentiu Sofia – Manuel, ajudas-me a ir até ao quarto? Preciso de me deitar um pouco. – pediu, fingindo-se fraca.
- Sim, claro. – Apoiou-a enquanto ela se levantava devagar e agarrava ao seu tronco.
Entraram no quarto de hóspedes e Sofia fechou discretamente a porta com o pé, tornando o espaço mais privado.
- Podes fechar um pouco o estore? Assim descanso melhor, com pouca luz. – pediu com a voz fraca. Teria de tentar a sua sorte, pensou, encorajada pela atenção que Manuel lhe dirigia. 
- Assim, está bem? – perguntou-lhe, atenciosamente.
- Sim, obrigada. – miou – Ah, desculpa estar a abusar, mas podes trazer-me essas almofadas que estão no chão? – disse, esticada na cama.
- Claro. – Manuel apanhou as almofadas e dirigiu-se à cama, colocando-as por trás da cabeça de Sofia, que se inclinou para a frente e o beijou apaixonadamente, agarrando-o firmemente, tempo suficiente para que o desejo do homem o inflamasse.
Manuel sentia-se tonto, beijando-a de volta, automaticamente, sem sentimentos românticos, ou formigueiros no peito, apenas um desejo carnal primitivo, resultado de tanto tempo sem estar com uma mulher.
Agarravam-se com violência, como sempre tinha sido entre os dois, depressa e maquinalmente, e Sofia despiu-lhe a camisa, tirando logo de seguida a sua camisola e sentando-se por cima de Manuel. O escuro do quarto propositado permitia a Manuel não pensar muito no que estava a fazer, nem com quem, e voltou-a para cima da cama, despindo as calças com rapidez. Agarrou-a com força e preparava-se para consumar a sua longa frustração sexual quando o telefone começou a tocar no bolso das suas calças, distraindo-o momentaneamente.
- Deixa tocar… - pediu Sofia ao seu ouvido.
- Espera… - aquele som era diferente do habitual, começava a razão a invadir-lhe de novo a mente. – A Teresa. – soltou-se bruscamente de Sofia, apanhando a roupa toda do chão e procurando freneticamente pelo aparelho que parara entretanto de tocar a melodia específica das chamadas dela. Tinham-na escolhido os dois, um dia, deitados na cama de Teresa, e uma angústia tomou-lhe a garganta, queimando-o por dentro. Saiu do quarto de rompante, entrando no seu apressado, com medo que alguém da casa o visse naquela figura. Fechou a porta e olhou o telefone paralisado. Ela tinha-lhe ligado…Deveria retribuir a chamada, perguntava-se com as lágrimas de raiva a surgir nos olhos. Respirava com dificuldade, enojado com o que quase tinha feito no quarto ao lado, culpado pela traição que sentia ter quase consentido e que o consumia agora que via o nome dela no ecrã do telefone. Decidiu esperar um pouco e ver se ela ligava de novo, ficando a olhar o aparelho mudo, enquanto se tentava acalmar um pouco. Depois daquele tempo todo, Teresa ligava-lhe, teria sido sem querer? Premiu o botão e sentou-se na beira da cama, com as pernas a tremer.
- Estou? – a voz dela surgiu do outro lado, logo depois do primeiro toque. – Manuel?
A garganta fechou-se-lhe, e duas lágrimas caíram, sem que ele pudesse evitar.
- Manuel? Estou? – repetia a voz nervosa.
- Teresa… Estou aqui, sim. O que foi? – conseguiu dizer, saindo-lhe o tom mais duro do que esperava.
Teresa sobressaltou-se com aquela voz zangada e arrependeu-se de ter feito aquela chamada. Uma urgência em ouvi-lo levara-a a quebrar uma das promessas que tinha feito a si própria, não o tentar contactar se não estivesse segura de que queria voltar para Safara. Desligou o telefone cobardemente. 
- Estúpida… - recriminou-se a si própria, entregando-se uma vez mais ao choro de culpa.


Sofia tremia de raiva e frustração, sentada na cama, ainda sem a camisola vestida. Sentia-se prestes a rebentar de fúria, nada do que planeara ou imaginara corria bem, e aquela Teresa era a grande culpada dos seus falhanços. Já se arrependera de a ter enxotado para Lisboa, se ela ainda estivesse por perto arranjaria uma forma de dar cabo dela. Estivera tão perto de recuperar o Manuel, a uma unha negra de o conseguir fisgar. Um homem carente e triste, em abstinência há alguns meses, a presa mais fácil do mundo, e ela perdera aquela oportunidade. Agora sem bebé, nem perspetiva disso, como podia manter-se ali em Safara, com médicos a descobrirem a sua farsa e exames para fazer… Uma sensação de pânico subia-lhe pela garganta, invadindo-lhe  o bom senso, com imagens suas a ser presa pelos crimes que cometera até ali, a tentativa de homicídio da médica, o acidente de Francisco que quase o matara, o bebé que não existia… As lágrimas caíam sem parar, num desespero crescente, que não a deixava pensar claramente. Manuel era seu, dizia a si mesma, revoltada. Sempre fora seu e seria. Levantou-se, vestiu a camisola e caminhou decidida até ao quarto dele. Não seria derrotada por um fantasma do passado.
Bateu à porta do quarto de Manuel, para se certificar de que ele ainda lá estava. As lágrimas seriam o seu adereço cénico perfeito.
- Manuel? – fungou baixinho – Posso?
- Deixa-me em paz. – a voz fria fê-la estremecer ligeiramente.
Abriu a porta devagar, apreensiva quanto às reações de Manuel, que continuava sentado na cama, de telefone na mão e a olhou sem sentimento.
- Queria pedir-te desculpa, não sei o que me deu…- disse num sussurro, deixando cair algumas lágrimas.
- Estás desculpada, agora sai. – limitou-se a dizer.
- Tens toda a razão de estar chateado… - começou a dizer, sendo interrompida por Manuel, que se levantou bruscamente e dirigiu a ela.
- Até podia um dia destes terminar o que começamos lá dentro, mas eu disse-te para me deixares em paz, para saíres do meu quarto, educadamente. Tens o grande defeito de te impores na vida dos outros, tudo tem de ser sempre à tua maneira, não é? – berrou-lhe, agarrando-lhe num braço com força, o que a surpreendeu e assustou.
- Manuel… estás a magoar-me… - choramingou, sentindo o braço a ficar sem pinga de sangue, dormente.
- Vieste aqui para quê? Pensas que sou parvo? – vociferou, sem afrouxar a mão que segurava Sofia.
- Por favor, larga-me. – suplicou Sofia amedrontada, que chorava agora de dor.
- Mete uma vez por todas na tua cabeça, nós nunca vamos ficar juntos, nunca! – gritou, enraivecido.- E só não te magoo mais porque estás grávida, não é porque não mereças. – concluiu, abrindo a porta de sopetão – Agora sai. – lançou-a bruscamente para fora.
Sofia cambaleou para o corredor desamparada, completamente vulnerável e humilhada. Nunca em toda a sua vida fora tratada daquela maneira. E aquilo não era nada do que se adivinhava se ele descobrisse que ela não esperava filho nenhum, pensou, engolindo em seco. 


Rita procurava pelos armários por uma panela com o tamanho indicado para fazer sopa, distraída com os seus pensamentos, sem prestar grande atenção ao que fazia. Detestava saber coisas importantes sobre os outros das quais teria de guardar segredo, era uma sensação angustiante e que a corroía por dentro. O futuro de uma amiga estava em causa, teria de encontrar uma forma de conseguir desenrolar aquele novelo sem prejudicar ninguém, salvo Sofia. Essa, Rita queria que sofresse. 
- Mas afinal, o que é que fazes aí de cu pro ar há tanto tempo? – perguntou Francisco divertido.
- Ham? – endireitou-se repentinamente, percebendo que de facto estava atarantada e ainda não tinha começado o jantar com todas as suas preocupações.- Estava à procura de uma panela… tu tens uma?
- Panela? Acho que sim. Mas talvez estejam lá dentro, acho que vi lá uma noutro dia… - disse, pensativo, dirigindo-se ao quarto e sendo prontamente seguido por Rita.
- Lá dentro? Mas porque raio é que tens panelas no quarto? – perguntou a meio do caminho, surpreendida com aquela arrumação excêntrica.
- Não tenho, mas esse aventalzinho estava a pôr-me doido. – disse-lhe a sorrir, puxando-a para si.
- Francisco! Tenho de ir fazer a sopa! – repreendeu-o divertida.
- Deixa lá a sopa. Eu nem gosto de sopa. Comemos tostas. – disse decidido, enquanto a beijava no pescoço.
- Acho que ouvi a campainha… - advertiu-o, sentindo-se amolecer com os avanços românticos de Francisco.
- Ouviste mal, isso são as campainhas do Amor! – gozou, tirando-lhe o avental.
- Não, está alguém a tocar à porta. – conseguiu sussurrar, sem se soltar dele.
- Deixa tocar, eu não gosto de pessoas. – disse, já com a camisa a sair pela cabeça.
- Pode ser o Manuel, talvez tenha vindo mais cedo. – lembrou-se Rita.
- Camelo… - bufou Francisco frustrado. – Mas não penses que me esqueci onde íamos. – ameaçou-a sorridente enquanto voltava a vestir a camisa.
- Por falar nisso… - ainda não tinha tocado no assunto com medo da reação dele – bem, tu sabes que os meus pais já estão a par da nossa… - embrulhava-se no nó do avental e nas palavras, nervosa – relação…mas eu não posso cá ficar logo à noite, só lhes disse que vinha fazer-te o jantar.
- Como assim? Jantas e vais-te logo embora? – perguntou surpreendido.
- Sim…- respondeu envergonhada. – Os meus pais não são modernos o suficiente para me deixarem aqui estar de noite sozinha contigo. – explicou.
- Rita, por mim ias a tua casa agora buscar a escova de dentes e o pijama e ficavas aqui comigo a viver em minha casa. – sugeriu esperançoso.
- Achas? A minha mãe tinha um colapso. – disse-lhe, abanando a cabeça em desaprovação.
- Temos de casar depressa, então! – exclamou animado, saindo do quarto em direção à porta da rua.
- Temos de quê? – soltou Rita desafinada com o choque, seguindo-o.
Francisco voltou-se prontamente e segurou-lhe a cabeça com as mãos, olhando-a sem pestanejar.
- Eu não te disse já que te amo? – perguntou-lhe sério.
- Sim… - engoliu em seco as palavras.
- E então? – continuou sem desviar os olhos dos dela.
- Então o quê? – gemeu meio aparvalhada com a emoção.
- Quando é que casamos? – perguntou-lhe beijando-a levemente nos lábios.
- Amanhã? – respondeu sorrindo de orelha a orelha.

António terminou as suas tarefas mais cedo que o habitual, deixando o seu empregado mais capaz a supervisionar os preparativos da viagem até ao Campo Pequeno em Lisboa que se realizaria no fim de semana seguinte. Estava quase tudo pronto, para aquela que seria a corrida mais importante do ano, ao apresentar os seus animais na capital, e especialmente significativa para si, já que a sua famosa casa levaria também dois toureiros, Manuel e Francisco, ensinados e treinados por si. Seria uma tourada carregada de emoção e adrenalina, como há muito não vivia. A sua ida a Lisboa tinha também um outro objetivo, que não partilhara com ninguém, visitar Teresa e rever a sua irmã, Fernanda. Sentia a falta da médica e da sua alegria jovial, das boas sensações que ela lhe transmitia, ao contrário daquela mulher que lhe tinham imposto na sua própria casa. Já combinara tudo com a irmã, e seria a primeira coisa a fazer, assim que lá chegassem. Iria resolver aquela história do filho e de Teresa, e já tinha feito uma promessa aos santos que andavam lá por casa a espiolhar toda a gente. Se conseguisse juntá-los de novo e trazer Teresa de volta, iria à missa todos os domingos, até morrer. O seu amor por todos eles, a sua família, ia até ali, ao sacrifício mais difícil de cumprir, aturar o ritual católico para sempre.
Caminhou até à cozinha, e encontrou a mulher parada junto ao balcão, a olhar a janela de cara endurecida. Maria dos Prazeres andava bem estranha, pensou preocupado. Resistiu ao impulso de a abraçar, sentia-se ainda amuado por conta da residente que a mulher o obrigava a suportar. Aquela seria uma pedra no sapato difícil de aturar.
Maria dos Prazeres olhou-o longamente, estava perdida nos seus pensamentos há muito tempo, desde que colocara o bolo no forno, e já lhe começava a cheirar a massa cozida. Ficara chocada com os acontecimentos daquele dia, o filho a sair nu do quarto de hóspedes, Sofia a insistir em falar com ele, sendo depois expulsa com violência por ele. O que significaria tudo aquilo, perguntava-se, olhando os montes ao longe. Porque seria aquela rapariga tão desagradável e portadora de problemas? Poderiam aqueles dois alguma vez casar ou entenderem-se, se Manuel ainda não tirara Teresa da cabeça? O que seria daquele bebé que aí vinha, se a mãe continuasse a ser escorraçada pelo Manuel? Tudo aquilo a angustiara todo o dia, relembrando-lhe velhas histórias e invadindo-a de culpa pelo estado miserável em que o filho se encontrava desde que a médica fugira para Lisboa. Cada dia que passava tornava-se mais difícil encarar o filho quando este estava visivelmente triste e acabrunhado.
- Então, Maria? O que é que tens? – António aproximou-se da mulher, preocupado com o seu ar abatido e distante.
- Nada… estava aqui à espera que o bolo cozesse… - mentiu, sentindo-se amolecer com o abraço que o marido lhe dava e que há tanto tempo não sentia. Abraçou-o de volta e ficaram uns momentos naquela posição cúmplice, sem falar.
- Vamos, diz lá o que foi… - insistiu António, sem a largar.  
- Desculpa-me, por favor António, eu juro que tudo o que fiz foi sem intenção de te magoar. – Maria dos Prazeres não aguentava mais a culpa de guardar tantos segredos. O seu marido era um homem bom, sempre gostara dela e a apoiara, não podia continuar a omitir-lhe a verdade.
- Mas o que estás para aí a dizer? – António abraçava a mulher que tremia de nervos.
- O Manuel, e a Teresa… A tua mãe, ela obrigou-me a fazer uma coisa que me custou muito, por favor, perdoa-me. – as lágrimas caíam-lhe sem parar, fungando alto.
- Mas que raio tem a minha mãe a ver agora com as histórias do Manuel e da Teresa? Tu sentes-te bem? – por momentos temeu que a mulher estivesse a perder o juízo, parecia-lhe descontrolada e irracional. Ajudou-a a sentar-se e colocou-se na cadeira em frente, agarrando-lhe as mãos com carinho.
- Ouve António, - começou Maria a dizer, depois de respirar fundo e se acalmar um pouco. – aquilo que te vou contar devia ter sido falado entre nós há muitos anos. Enquanto a tua mãe foi viva, nunca me deixou fazê-lo, e eu tinha muito medo dela, como sabes.
- Maria, estás a deixar-me nervoso. Conta logo tudo de uma vez.
- Quando foste para a Guiné, eu fiquei aqui sozinha com ela, foi a pior época da minha vida. – confessou emocionada – Ela destratava-me, humilhava-me, fazia-me sentir reles e inútil, por não ter tido ainda filhos. 
- Sim, eu sabia que não ia ser fácil ficares aqui sozinha, mas depois nasceu o Manuel, ela deve ter mudado um pouco, não? – António sentia-se culpado por nunca ter conseguido fazer com que a mãe aceitasse Maria e a respeitasse. Era uma mulher dura e implacável.
- O Manuel foi a salvação desta casa. – fungou, recomeçando a chorar – Mas… - as palavras não saíam, ficando presas num soluço. – Ela trouxe-o numa noite gelada, era quase hora de dormir…
- Mas trouxe-o donde? Não percebo nada desta conversa. – António levantou-se exasperado. – Onde é que queres chegar com isto tudo? – berrou.
- Ele não é nosso filho, eu nunca o pari, compreendes? Ela inventou uma mentira e obrigou-me a aceitá-la… e pior, proibiu-me de te dizer a verdade. – confessou desesperada.
- Como assim, o Manuel não é nosso filho? Perdes-te o juízo mulher? – gritou, batendo com o punho na mesa e fazendo-a tremer de medo.
- Eu nunca consegui levar nenhuma gravidez até ao final, tu sabes disso. Sofri muito, mas estava resignada a não ter filhos. E ela nunca o aceitou. Chegou a dizer-me que faria de tudo para que tu me deixasses e arranjaria uma mulher que “funcionasse”, se eu não fizesse o que ela queria. – lamentou-se em prantos – Naquela noite entrou pela casa a dentro com o bebé, apenas com dias de vida e espetou-mo nos braços, como se estivesse a desfazer-se de alguma trouxa de roupa suja. Fiquei em pânico, sem saber o que fazer, ela tinha enlouquecido… E o bebé chorava de frio, e de fome… Tive de cuidar dele, afinal era um infeliz sem culpa nenhuma da loucura dela. Chorei muito, aflita sem saber como reagir, nunca tinha cuidado de um filho, e sabia lá eu o que tinha ela feito à mãe da criança, quem seria a desgraçada… Só me vinha à ideia que uma mulher estaria a chorar por aquele anjinho. – António ouvia de costas voltadas, sem se mexer e Maria dos Prazeres ganhou coragem para falar o que faltava perante o silêncio do marido. – Queres que te diga que me arrependo? Não, não me arrependo. Amei-o desde o momento que lhe peguei. Mesmo sendo um crime o que ela tinha feito, roubar um filho dos braços de uma mãe… Perguntei-lhe durante dias de quem era aquele menino, e ela só me respondia – É teu e do António, já lhe escrevi a contar da novidade. Eu ia enlouquecendo, não fosse a responsabilidade de tratar do bebé, acho que tinha fugido daqui. Meses mais tarde, um dia fui à Vila com o Manuel e vi-o. Assim que lhe deitei os olhos percebi logo que eram irmãos. – O marido retesou-se, mas continuou calado, sem se mexer. Maria teria que terminar a confissão. – O menino era idêntico, uma coisa do diabo… Fiquei em pânico, com medo de que as pessoas notassem, o que diria eu à polícia se desconfiassem que eu tinha um bebé roubado? Vim para casa a correr com o Manuel todo embrulhado, não queria que o vissem e mo tirassem… A minha vida já não fazia sentido sem ele. Nos dias seguintes andei a investigar de quem era aquele menino igual ao nosso, e foi a Dona Miquelina que me contou a verdade. Eram gémeos, filhos de uma triste que tinha parido sem marido e sem ninguém. A tua mãe já sabia que a rapariga ia ter um filho e andou a preparar tudo para ficar com ele. Tentou comprá-lo, ameaçou-a, enfim, azucrinou a pobre de Cristo para conseguir ficar com o menino. Mas no dia do nascimento ela pariu dois rapazes, e não um, e a tua mãe trouxe o Manuel e deixou o outro nos braços da mãe moribunda. Ela não sobreviveu ao parto, morreu dias depois e foi a Miquelina que o entregou a uma tia já velha que o criou até morrer, coitada. Depois tu voltaste… no dia em que viste o Manuel nasceu-te uma alma nova, estavas radiante com o menino. Que havia eu de fazer? Magoar-te, dizendo que aquele não era teu? Que a tua mãe era uma criminosa e eu cúmplice? Nós amámos o Manuel desde o momento em que o vimos, e foi por isso que fiquei calada. Era nosso, não tinha ninguém e nós podíamos cuidar dele…
- O irmão… - António tentava disfarçar a emoção na voz, que saía frouxa e rouca – é o Francisco, não é?
- Sim…
- Nunca consegui entender o teu ódio por aquele rapaz… 
- Não era ódio António… Eu morria de medo que tu um dia os olhasses e visses a verdade. Como é que eu poderia explicar-te que o nosso filho era igual ao desgraçado do Francisco?
- Não lhe chames desgraçado! Desgraçada és tu, que deixaste uma criança a crescer daquela maneira, a passar fome e frio, todo roto. – António explodia de fúria em direção à mulher – Como? Como podes ter passado pelo garoto, dia após dia, ano após ano, de mão dada com o seu irmão e não te ter doído o coração? Que raio de mãe és tu? Eu pedi-te,! Não, eu implorei-te para adotarmos o Francisco. Ele podia ter crescido aqui connosco, mas não! A ti só te preocupava que descobrissem que eras uma mentirosa! 
- Por favor António, eu nunca quis nada disto, nenhuma mentira… - lamentava-se Maria – Não podia perder-te, perder o Manuel… Só imaginava que mo levavam e me abandonavas, se descobrissem tudo.
- Não me conheces Maria, tu não me conheces… Sempre vos amei acima de tudo, nunca vos iria deixar… O Francisco sempre foi meu filho de coração, - sorriu amargamente – bem, neste caso, é o mesmo que o Manuel. Dentro de mim nunca houve distinção dos dois. Tu é que deverias ter percebido isso. – saiu sem a olhar e deixou-a na cozinha, arrastando-se dolorosamente até à rua.
Caminhava em silêncio, sem sentir o chão que pisava. Nada do que se passava em sua volta fazia sentido. O campo continuava verde, como nos tempos em que Manuel corria sem parar, de um lado para o outro e ele o admirava com ternura. Tinham sido tempos felizes, mais felizes ainda se Francisco também ali estivesse. Uma lágrima ameaçava cair, e António pigarreou para a afastar. Como podia a sua mulher ter ignorado aqueles sentimentos? Amaria assim tanto a sua paz de espírito, que não considerara contar-lhe a verdade? A recordação amarga da sua mãe manipuladora trazia-lhe uma nostalgia ainda maior. Seriam todas as mulheres mentirosas? Não conhecia uma que não justificasse a mentira com algum sentimento, fosse ele egoísmo ou amor, tudo era argumento para enganar. Lembrou-se de Fernanda, a sua irmã de sangue. A única que o poderia ajudar naquele momento…

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