quarta-feira, 1 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 16



Manuel ficou amuado com aquela viagem relâmpago das duas amigas. Sentia-se ridículo, com ciúmes de Rita, mas a realidade é que desejava ter sido ele o convidado para a súbita escapadela de fim de semana a Lisboa. Para cúmulo dos cúmulos, Francisco exigia-lhe demasiada atenção, agora que já tinham recuperado a antiga amizade, e fizera-o prometer que o iria buscar ao hospital nesse sábado de manhã pois iria ter alta. Aturar o toureiro cheio de dores a resmungar o tempo todo era uma tarefa difícil, que só uma santa como a Rita conseguiria aguentar, lamentava-se, pontapeando pedras à saída da estação. Teresa também parecia demasiado entusiasmada com a ideia de se separar dele, encurtando os abraços da despedida e deixando-o a sentir-se carente e estúpido. Não ia correr nada bem aquele fim de semana, profetizava. Ou Francisco mudava de atitude e se deixava de maus humores, ou ainda iriam acabar à porrada. Decidiu levar António com ele, decerto o pai seria o balde de água fria necessário para acalmar os ânimos dos dois amigos. Respirou fundo com a ideia e virou costas ao comboio que partia apressado. Teresa tinha de voltar rapidamente, já não sabia viver sem ela e não lho tinha dito. Mandou-lhe um sms piroso e resignou-se à sua solidão arrastando-se para a carrinha.

“Não te esqueças de mim. Estás proibida de sair à noite e ir ver os teus antigos amigos lisboetas! Bjs” Teresa sorriu melancólica ao ler a mensagem de Manuel. Adorava aqueles modos rudes mas enternecedores do namorado. Outra pessoa ficaria melindrada com as ordens possessivas e diretas de Manuel, mas ela sabia que tudo aquilo era só o seu jeito de a amar, e achava-lhe bastante graça. Nunca iria encontrar outra pessoa com quem se entendesse tão bem, concluía angustiada. Sentiu-se esmorecer, pensando na pequena vida que trazia dentro de si, um pedaço deles os dois, vivo e em contagem decrescente na sua chegada ao mundo. Sentia-se culpada por não ter partilhado esse facto com Manuel, e assustada com o futuro.
- Pareces angustiada, - disse Rita que a analisava – só vamos estar longe durante dois dias. Aproveita para treinares o teu discurso, quando voltarmos tens mesmo de contar ao Manuel sobre a gravidez. Já adiaste demasiado esse assunto, qualquer dia começa a barriga a aparecer.
- Obrigadinha pela ajuda… já estou muito mais relaxada! – resmungou Teresa, que sabia que a amiga estava certa, aquele não era um segredo que lhe pertencia, mas as últimas descobertas que tinha feito nas cartas da avó eram a sua prioridade no momento.
- De nada! – sorriu Rita divertida. – Eu sei que não vais descobrir nada de grave sobre a tua família, por isso, estou descansada. Quando tirares essas ideias malucas da cabeça de que tu e o pai do teu filho são primos, podemos voltar para Safara e fazer uma festa para celebrar estares grávida do meu afilhado!
- Afilhado?! Estás cá com uma sorte!... – gracejou Teresa. – Mas tens razão, vamos dar uma festa. – apressou-se a mudar de assunto, a sua árvore genealógica deixava-a com cólicas de nervos - O Manuel faz anos, e curiosamente o Francisco também, no mesmo dia. Não é estranho?! Eles vão celebrar os dois lá na Herdade, a pedido do Sr António. Vais ter de beber uns copos valentes, mas estás proibida de me deixar sozinha com aquela fulana lá na herdade. Espero que aguentes olhar o Francisco durante uma noite inteira. Eu prometo que não te deixo cair em tentação. – sorriu, imaginando Rita a desfalecer ao ver a sua paixão novamente. 
- Não… por favor não me façam isso. – gemeu Rita.
- Ah pois. Se eu tenho de enfrentar a Sofia e contar a todos da minha gravidez, tu tens de te aguentar sem tocar no Francisco Carriço! – sentenciou divertida.
- Bolas, com amigas assim… - Rita suspirou. No fundo ficara em pulgas com a ideia de o ver bem perto novamente. Queria despachar rapidamente a viagem a Lisboa e voltar para Safara para começar a preparar a sua roupa para a festa. Teria de arrasar, pensou preocupada com o facto de não ter nada de “Tchanam” no seu guarda-roupa. 
- Não te preocupes, - disse Teresa, que conhecia bem a amiga – vamos às compras em Lisboa e o Francisco vai arrepender-se do dia em que decidiu dar um beijo à lambisgoia da Helena. Eu seja cega se ele não vai chorar!

Francisco ficou ainda mais mal disposto ao perceber que Rita não iria aparecer para o ajudar a voltar para casa. Tinha imaginado que ela viria com Manuel, pelo menos para se certificar de que ele chegava confortável a Safara. Ainda tinha alguns pontos a chateá-lo e hematomas por sarar. Quando o amigo o informou que Rita e Teresa tinham viajado para Lisboa, ficou subitamente enraivecido. As mulheres eram de facto umas falsas imprestáveis.
- Ao menos podia ter-te dado algumas instruções de como se transporta um doente a recuperar duma cirurgia tão delicada!! – resmungou, enquanto Manuel o empurrava na cadeira de rodas até ao estacionamento do hospital.
- A mim parece-me que já estás muito bom! E não me chateies muito, senão dou impulso à cadeira e vais ladeira abaixo! – reclamou Manuel, sem paciência.
- Meninos! Parem lá com isso. – Ralhou António que se sentia bastante bem disposto com a companhia dos dois novamente. – Manuel, livra-te de largares a cadeira. Deixa-te de parvoíces. Francisco, se gostas tanto da rapariga, porque não a pedes em namoro?
- Namoro?! – grunhiu o toureiro – Que disparate! Eu não gosto dela. Só acho que como enfermeira do nosso centro de saúde deveria ter mais consideração pelos utentes! Se algum destes pontos abre ela é que se lixa que vai ter de os coser a todos novamente! Mas na segunda-feira ela tem de lá ir a casa porque eu vou exigir o atendimento domiciliário. Vai só ver. – esclareceu Francisco.
Manuel e António olharam-se sorrindo. Francisco estava caidinho pela enfermeira e a desgraçada condenada a aturá-lo em convalescença. 

Na Herdade os preparativos para a festa dupla de aniversário de Manuel e Francisco já ocupavam grande parte dos empregados que, a pedido de António, se desdobravam em trabalhos de limpeza e pinturas da casa principal e jardins adjacentes. Maria resistira enquanto pôde à ideia de celebrar o aniversário de Francisco em sua casa, mas o marido mostrara-se intransigente nessa matéria, os seus dois “filhos” estavam novamente por perto e António queria festejar com todos esse acontecimento. Só Sofia estragava o bom humor do engenheiro, que continuava desconfiado das intenções da hóspede indesejada, evitando-a sempre que podia. Maria desesperava quando ele bufava de forma audível à presença da rapariga, e o casal que formava uma dupla coesa até então, estava cada vez mais distante. Aquela festa tinha sido a gota de água no relacionamento dos dois, quando António usara de toda a sua prepotência de marido e obrigara Maria a comportar-se como uma mulher submissa, sem voto na matéria. Sem Manuel por perto, António perdera as estribeiras com a teimosia de Maria, ameaçando-a de que expulsaria Sofia da Herdade se ela não colaborasse na organização da festa, sorrindo convenientemente a todos os convidados, principalmente a Francisco. Nunca compreendera a embirração da mulher com o rapaz, um comportamento tão diferente da sua natural personalidade doce e calorosa. Mas o seu sentimento paternal para com o toureiro ganhara aquela batalha conjugal, António amava Francisco quase tanto como Manuel, a mulher teria de aceitar isso, ou sofria as consequências, dissera-lhe numa discussão. Maria passara os dias seguintes de olhos inchados e em silêncio, sendo consolada por Sofia, que parecia um abutre que se alimentava do sofrimento alheio. Se António precisava de alguma prova de que a rapariga não era boa pessoa, a forma como parecia rejubilar com o ambiente de discussão entre os dois, era o suficiente. 
Como bom pragmático, assim que resolveu a questão da resistência da mulher à festa começou a distribuir ordens e tarefas, mais animado que nunca. Iria gastar uma pequena fortuna naquela celebração, mas a sua natureza generosa e um tanto impulsiva faziam-no adorar cada cheque que passava. Fazia anos que não se sentia tão vivo e algo lhe dizia que aquela seria uma noite memorável e única nas suas vidas. Lamentava que Maria não se sentisse da mesma forma, mas resolvia os seus problemas de consciência rapidamente, sempre que vistoriava o andamento das reformas no exterior da casa. A Herdade parecia renascer, ganhando cor e frescura. 


- Pronto! Já estás instalado, agora vou falar com a dona Miquelina, que disse que se encarregava de ti nestes primeiros dias. – disse Manuel, enquanto acabava de arrumar a última peça de roupa no armário de Francisco. 
- Essa velha desdentada? – bufou o toureiro frustrado, que imaginara uma companhia mais interessante na sua convalescença.
- É velha mas voluntariou-se para te vir fazer o comer e aturar, e olha que não houve mais propostas! – ralhou Manuel, um tanto divertido com a ideia de ver Francisco a ser lavado e vestido pela dona Miquelina. – E se pensares bem, é quase como ter aqui a Rita, afinal, é tia dela! – riu-se, fugindo com a cabeça de uma almofada que Francisco lhe lançara.
- Essa lambisgoia traidora também as vai pagar bem caras! – resmungou o toureiro. – Isto é o que dá um gajo ser cavalheiro, se lhe tivesse feito o que me apetecia na altura, ela não se ficava a rir agora.
- Sim, é muito cavalheiresco da tua parte não teres violado a rapariga na tourada! Acho que ela te ficou eternamente grata pela delicadeza! – ironizou Manuel.
- Ao menos tinha ficado satisfeito. Sei lá agora quando vou ter forças para agarrar uma mulher novamente? – lamentou-se, sentindo ainda algumas dores.
- Deixa de ser parvalhão, Francisco. Tu e eu sabemos que gostas da enfermeira, por isso tiveste o bom senso de a tratar um pouco melhor que as outras vítimas que se cruzaram contigo antes. Talvez se deixares de ser parvo e lhe disseres o que sentes ela torne a vir-te dar sopinha na boca. – disse paternalmente, divertindo-se com o ar amuado de Francisco que olhava a janela evitando-o. – É só uma ideia. Mas talvez a companhia da dona Miquelina te faça dar-me ouvidos. Agora tenho de ir, mais logo passo por cá e janto contigo. Os meus pais andam às turras um com o outro, e ainda há aquele problema chamado Sofia a assombrar a Herdade… - recordou-se abatido. Sem Teresa por perto para o fazer esquecer por momentos a sua realidade angustiante tudo parecia dramático.
- Espero que a velha ao menos saiba cozinhar… - resmungou Francisco.


Lisboa estava luminosa e barulhenta, como Teresa se recordava. A sensação de voltar a casa não era tão feliz como idealizara, e só o facto de rever a mãe a animara o suficiente. Uma parte de si ficara no Alentejo, que em pouco tempo se entranhara na sua pele e no seu coração. Muito mais que o Amor de um homem, aquela terra possuía uma parte da sua alma que não sonhara nunca encontrar. As suas raízes alentejanas pouco conhecidas tinham-na surpreendido. Sentia-se incapaz de tornar a morar naquela capital agitada, onde não conseguia distinguir o som dos pássaros no meio do trânsito, e onde curiosamente até parecia sentir falta do cheiro a vacas. Rita absorvia a cidade de forma mais entusiástica, olhando freneticamente para tudo e soltando risinhos indiscretos quando se cruzavam com alguém excêntrico ou diferente dos pacatos alentejanos. Teresa abençoou o facto de não ter ido a Lisboa sozinha, pois o seu descontrole emocional provocado pela gravidez tornava-a numa chorona compulsiva e até a memória da sua bicicleta cor-de-rosa a fazia verter umas lágrimas. Chegaram a casa da médica ainda Fernanda não tinha terminado o almoço, e Rita reconheceu logo o aroma que vinha da imaculada cozinha da filha da Maria Rosa. Se não soubesse que estava no bairro de Benfica em Lisboa poderia jurar que entrara numa casa alentejana. A mãe de Teresa possuía hábitos culinários muito próximos daquilo a que estava habituada e a médica pareceu também reconhecer esse facto que até então nunca lhe tinha passado pela cabeça. Teresa e Fernanda não tinham nascido no Alentejo mas possuíam raízes fortes daquela terra, como os hábitos alimentares provavam. Maria Rosa tinha ensinado tudo o que sabia à sua única filha, e era uma mãe e avó exigente mas amorosa. Possuía uma riqueza de conhecimentos nos mais variados temas, que iam da lida da casa à profundidade da natureza humana, tendo sempre uma palavra sábia e um dizer para cada situação ou problema. Fernanda herdara da mãe a mão para a cozinha, para os bordados, plantava hortelã e sardinheiras na varanda, mantinha uma casa limpa e arrumada com aparente facilidade, e com alguma mágoa de Teresa, aguentava estoicamente um marido frio e pouco presente sem dar a entender que tal a afetava. Do pai não sabia que qualidades ou defeitos possuía. Maria Rosa nunca lhe dissera quem era o seu progenitor, apenas desvendara, já numa fase muito adiantada da sua doença, que o tinha amado muito e fora amada. Fernanda contentara-se com essa revelação, uma doce confirmação de que tinha sido fruto de um Amor e não de um acidente ou azar. O respeito que tinha pela mãe proibia-a de lhe exigir mais informações, ficando assim em eterno secretismo a história de amor de Maria Rosa, uma mulher que ficara sozinha em Lisboa com uma gravidez ilegal e que nunca deixara a filha passar qualquer tipo de privação. Só por isso, Fernanda a considerava uma autêntica heroína.
- Estás tão amarela filha! – lamentava-se Fernanda enquanto abraçava uma vez mais Teresa.
- Bem, dormi mal hoje com a ansiedade da viagem, mas também há outro motivo. – engoliu em seco.
- Sentem-se as duas. A sopa de cação está no ponto. Tens de recuperar essas cores, tantas horas no comboio a ser sacudida de um lado para o outro deve ter-te feito mal.
- Mãe,… hum… que delícia! – Teresa provava com entusiasmo a sua sopa preferida. – Não foi bem da viagem. – confessou a medo – Eu estou grávida. – enterrou a cabeça no prato da sopa, ruborizando. Sentia-se como uma adolescente prevaricadora.
- Ham?... – Fernanda corou do choque, olhando alternadamente as duas amigas. – Grávida?... Bem… - pigarreou para recuperar a voz – Mas isso é uma excelente notícia. – disse com sinceridade. – Vou ser avó…
- Pois. Mas há um problema, que foi o que me trouxe aqui a Lisboa tão de repente.
- Um problema? Mas está tudo bem contigo? Com o bebé? – Fernanda sentia os instintos maternais a subirem-lhe à cabeça.
- Comigo e com o bebé, para já penso que está tudo bem. O problema é com o pai, o Manuel. Já te falei dele. – lamentou-se, tentando ganhar coragem para contar todas as suas suspeitas que também envolveriam a mãe, pois revelariam a identidade do Amor de Maria da Rosa, o pai de Fernanda, e de toda uma família alentejana que a mãe desconhecia, meio irmão, cunhada, sobrinho…
- Ai meu Deus. Conta lá qual é o problema com o rapaz. Estás a pôr-me nervosa.
- Bem, vou começar pelo princípio da história. – pousou a colher que lhe tremia ligeiramente na mão e bebeu um gole de limonada. – Desde que cheguei a Safara que o nome da avó suscitava reações muito… particulares. Nada de muito flagrante, mas eu notava sempre um certo desconforto nas pessoas ao perceberem de quem eu era neta. A família do Manuel foi uma delas. São pessoas muito simpáticas, dou-me muito bem com o pai, o Senhor António, de quem já te falei várias vezes.
- Sim, sim. Mas porque é que a avó os incomoda? – Fernanda não suspeitava de nenhuma fama para além de que a mãe tinha saído nova da terra para melhorar de vida e em Lisboa tinha engravidado e criado uma filha sozinha. 
- Não sei se os incomoda, mas havia qualquer coisa que não estava bem. Os zunzuns que ouvi foi que ela tinha trabalhado na Herdade do Manuel, quando era novinha, e tinha sido expulsa de lá porque foi acusada de um roubo qualquer. O que achei impossível, conhecendo a avó.
- Roubo? Mas que disparate!- Fernanda bateu com a colher no prato, furiosa, assustando as duas amigas.
- Calma. Isso é tudo mentira, claro. Mas então porque é que a bisavó do Manuel expulsou uma empregada da sua casa, acusando-a de um roubo? Isto foi o que eu pensei e nunca me saiu da cabeça. – olhou Rita, procurando coragem para continuar. – Até que um dia encontrei isto. – Procurou dentro da carteira que se encontrava pendurada nas costas da cadeira e retirou o maço de cartas antigas, entregando-as à mãe, que estremeceu ao ver provas históricas do passado de Maria Rosa.
- E o que é isto? – Fernanda temia que ali se encontrasse um segredo terrível que pudesse manchar a memória da sua mãe, e resistia à curiosidade de ler o seu conteúdo.
- Isso são cartas secretas que a avó recebeu nos últimos tempos em que viveu em Safara, antes de vir para Lisboa. Como vais perceber depois de ler, ela correspondeu-se durante algum tempo com um homem, Joaquim Silva, que era seu amante, e estava a estudar em Coimbra.
- Mas como é que a minha mãe conheceu um homem de Coimbra? – sentia as mãos suadas em contacto com o papel ressequido, virando o pequeno maço freneticamente.
- Esse homem foi estudar para Coimbra, mas era de Safara. Era o avô do Manuel… - duas grossas lágrimas apareceram instantaneamente. – Ou seja, vais perceber, quando leres, que eles mantinham um caso físico. Amavam-se e ele queria casar com ela. Algo aconteceu e ela veio para Lisboa. As cartas eram secretas, e ele relata claramente que a diferença social dos dois não era impedimento para se casarem, mas que os pais dele, nomeadamente a mãe, era absolutamente contra aquele namoro. Ela chegou a ir visitá-lo às escondidas a Coimbra, tudo parecia um conto de fadas, até que a última carta dele lhe pede que espere para resolverem um problema. Ele não explica qual é o problema, mas diz-lhe para ela esperar em Safara por ele. – as lágrimas avolumavam-se nos seus olhos.
- Ai senhor… até estou tonta. Não estou a perceber nada. – recostou-se na cadeira, bebeu um gole do sumo fresco e olhou as cartas, passando-as pelas mãos, mecanicamente.
- Aquilo que vocês não sabem, - e olhou Rita, que ficou petrificada ao perceber que ali também havia uma revelação para si – porque só descobri ontem ao ler as cartas mais recentes, é que a última carta dele é do ano em que tu nasceste mamã. – soluçou engolindo o choro – a avó devia estar no primeiro trimestre da tua gravidez.
Por momentos não se ouviu um som, as três olhavam-se emocionadas, sem conseguir falar.
- Querida… - Fernanda  percebia a gravidade daquelas descobertas, sentindo as lágrimas a correr, num misto de felicidade e angústia. Levantou-se e abraçou a filha que chorava como um bebé, desesperada por ter descoberto o avô misterioso ao mesmo tempo que uma família inteira e um primo por quem estava apaixonada e de quem ia ter um filho.
- Teresa… - Rita não conseguia esconder a sua tristeza e juntava-se ao choro de grupo – afinal tu já sabias a verdade… porque é que não me disseste nada antes? Ó meu Deus… isto muda tudo. Afinal ele é mesmo teu primo… tens de ir fazer exames, por causa do sangue e do bebé… tens um tio, uma tia, a senhora tem um irmão! E o seu pai era o Joaquim da Silva! É herdeira daquilo tudo também!! – Rita disparava factos como uma metralhadora, sem filtro.
- Rita! Cala-te! – implorou Teresa desesperada.
- Desculpa… estou chocada… acho. Mas o que vais fazer em relação ao Manuel? O facto de serem primos não impede que se amem! – a enfermeira insistia.
- Sim, filha. Uma coisa não tem nada a ver com outra. – acalmou-a Fernanda – Tudo bem que hoje em dia é pouco usual, mas antigamente os primos direitos casavam. E vocês nem sequer suspeitavam disso quando se conheceram.
- Pois, casavam… e tinham filhos malucos! – Teresa perdia o bom senso, chorando e lamentando-se como uma criança, embalada pela mãe.
- Que disparate. Deixa-te de parvoíces rapariga. Não há nada como fazeres uns testes sanguíneos para despistares as probabilidades de problemas. Para além de que hoje em dia há medicação para tudo e mais alguma coisa. O teu pai passa a vida a falar nas maravilhas da medicina, tem de haver um remédio para o meu neto, se ele precisar, claro.
- Como é que eu vou ter coragem de contar esta história toda à família dele… como é que lhe vou dizer que sou prima? E que estou grávida, vamos ter um priminho…!? – choramingava.
- Vamos as duas contar-lhes tudo. Eu vou contigo e levamos as cartas. – disse Fernanda decidida. – Não te esqueças de que estamos todos envolvidos nisto. É uma situação familiar, não é um problema teu. – beijou-lhe a cabeça e endireitou-a na cadeira. – Agora toca a terminar a sopa que está a ficar fria! O meu neto vai precisar de muita sustança para crescer gordinho e saudável!
Rita obedeceu imediatamente às ordens maternais de Fernanda, dando uma leve cotovelada em Teresa para que ela terminasse o comer. Afinal, nem Julieta fazia uma sopinha de cação daquela qualidade, não poderia haver desperdícios.


- Ora então, muito boa tarde, menino Francisco! – Miquelina sorria, pousando uma grande cesta de verga na cozinha. Trazia o almoço quentinho para o doente em recuperação e estava decidida a pô-lo rapidamente em forma, a sobrinha precisava de casar com urgência e aquele era um pedaço de um magano, dizia a si própria orgulhosa do seu plano. 
- Boa tarde… - o toureiro sentia-se ainda mais deprimido ao perceber que a velha iria querer conversa, conhecia bem aquele tom de voz. A voz das coscuvilheiras…
- O Senhor António pediu-me para vir aqui tomar conta de si enquanto está a recuperar do acidente… meu Deus, quem havia de imaginar que uma coisa daquelas pudesse acontecer aqui na terra… estava uma festa tão bonita, as ruas todas enfeitadas, andámos lá todas até às tantas a espalhar o alecrim, uma beleza… e depois já nem o senhor padre quis fazer a procissão. Aquele homem é um sentimental, ficou destroçado, sabia?  
- Hum… - Francisco tentava não manter o contacto visual, pensando que assim ela se calaria, ao ver que não obtinha reação.
- Foi uma desgraça!, disse-nos de lágrimas nos olhos, uma tragédia! E eu não queria acreditar, não fosse ter visto a minha Ritinha toda ensanguentada a sair da praça de touros a segurar-lhe na mão e a entrar na ambulância. Todos pensávamos que estava morto, até os bombeiros! – olhou-o profundamente, como se estivesse a fazer-lhe uma confissão – Mas ela não o largava, tadinha. – fungou, limpando o nariz à ponta do avental – Olhe, foi a coisa mais triste que vi em muitos anos. – lembrava-se perfeitamente de uma outra ocasião ainda mais triste, mas essa era uma outra história, para um dia mais tarde lhe contar.
Francisco não demonstrou, tal como Miquelina previra, mas tinha sentido uma pontada de orgulho ao saber que Rita não o tinha abandonado e se sujara com o seu sangue. Tentou visualizar a cena, aproveitando para se distrair e bloquear a mente do discurso infinito da velha. 
-E pronto, - Miquelina uniu as mãos em reverência – Deus Nosso Senhor não o quis levar naquele dia, Ele lá sabe o que lhe tem destinado! – acabou de colocar a comida na mesa e desejou-lhe bom apetite. 
- Pode deixar que eu lavo o prato depois. – tentou despachá-la, não queria aturar Miquelina o resto da tarde a falar como uma matraca.
- Nem pense nisso! – ralhou – Não o quero a fazer nada. Depois de comer vai descansar deitadinho na cama. Eu só vou embora quando o menino Manuel chegar.
- Ó sorte… - disse entredentes. – Hum… isto cheira bem! Já não aguentava comer nem mais uma faneca frita com arroz de ervilhas gelado. – Francisco sentou-se à mesa animado com a iguaria que a velha lhe tinha trazido. Podia ser uma chata, mas se todos os dias lhe fizesse aqueles petiscos não seria assim tão mau.
Miquelina deixou-o sozinho e dirigiu-se ao quarto para fazer a cama de lavado com um sorriso vitorioso na cara. Aquilo ia ser mais fácil do que ela previra. Ensinaria à sobrinha os segredos de uma boa cozinheira alentejana e pronto! A Ritinha casaria antes do ano acabar.


Teresa  arrastava-se pelo shopping, cansada dos quilómetros que já tinham percorrido à procura do vestido ideal que Rita teimava em querer encontrar. Fernanda insistira que preferia ficar em casa, não tinha paciência para compras, e as tarefas domésticas sobrepunham-se à ociosidade permitida aos jovens. As duas amigas prometeram trazer-lhe uma dúzia de blusas frescas para a sua visita ao Alentejo, todas tinham um objetivo muito claro nessa viagem, e o aspeto físico não poderia ser descurado.
- Já vais no vestido número 89… - lamentava-se Teresa, sentada num banco de provador a sentir-se nauseada.
- Teresa, estou tão indecisa… - dizia Rita a olhar-se ao espelho – acho que vou experimentar novamente aquele azul. Sabes? O da outra loja lá de baixo.
- Não aguento mais! – disse Teresa, levantando-se furiosa – Vou beber um café na esplanada do primeiro andar, quando terminares vem lá ter!
- Mas qual é que eu levo? – Rita desesperava cheia de dúvidas femininas.
- Se queres realmente impressionar o Francisco o melhor é ires nua! – bufou Teresa saindo da loja cheia de mulheres de várias idades que a olharam escandalizadas.
Noutros tempos aquele seria o seu passatempo preferido, horas intermináveis de escolhas fúteis, sem orçamento definido e uma festa marcada para aguçar o entusiasmo. Porque é que agora não conseguia encontrar nisso nenhum prazer?… perguntava-se meia tonta enquanto rezava para encontrar uma cadeira vaga na zona da restauração. Felizmente a hora de almoço já passara há muito e pôde escolher um lugar mais sossegado numa das suas gelatarias preferidas. Pediu um gelado sem culpas, quase tão caro como uma das blusas que comprara para a mãe, quando um homem se sentou na sua mesa sem cerimónias.
- Então estás de volta?
- Rui?! – Teresa quase não o reconhecia com o novo penteado mais sofisticado e atual que o eterno penteadinho de beto que Rui mantinha desde o liceu.
- Até ontem acho que sim! – gracejou, dando-lhe um beijo na face, meio encavacado. – Então? Voltaste lá do meio das vacas?
- Não querido, vim só passar o fim de semana a casa dos meus pais. – respondeu sem paciência para o aturar naquele momento. Tinha imaginado comer o gelado em silêncio, demorando-se na parte do chantilly.
- Casa dos teus pais?! Mas já moras definitivamente noutro sítio? – questionou interessado.
- Sempre foste muito perspicaz… - disse com sarcasmo – E tu? O que tens feito? – o telemóvel emitiu o som de SMS e Teresa ruborizou ao ver uma mensagem escaldante de Manuel.
- O mesmo de sempre. Trabalho, casa, café, bares, discotecas. – franziu o sobrolho ao perceber o interesse de Teresa no telefone – Estou a ver que já começaste a confraternizar com os nativos. Algum agricultor de suíças e botas de borracha? – ironizou.
- Se te sentaste só para seres malcriado, então podes ir. Acho que dissemos tudo um ao outro antes de me ter ido embora. – fulminou-o com o olhar. A decisão de acabar o namoro com Rui tinha sido a acertada, disse a si mesma. Só se questionava como poderia ter gostado de um parvalhão emproado daqueles…
- Olá! – Rita olhou o homem na mesa de Teresa com algum interesse. – Já encontrei o tal! – sorriu a Teresa e pediu um gelado igual. A maratona tinha-lhe dado imensa fome.
- Olá! Sou o Rui, o ex-namorado. – apresentou-se sem cerimónias, depositando dois beijos sonoros na enfermeira, que se surpreendeu com os modos lisboetas bem mais descontraídos do que estava habituada.
- Sou a Rita, a presente amiga! – brincou – prazer!
- E eu a pessoa que só queria comer um gelado sossegada. – resmungou Teresa enojada com a atenção que Rui depositava em Rita. 
- Então és lá da terriola onde a Teresa se decidiu enfurnar? – perguntou, mostrando um tom de crítica à decisão profissional da ex-namorada.
- Sim, de Safara. Fica perto de Espanha. Sou lá enfermeira no centro de saúde que a Teresa foi salvar. Antes dela os médicos eram todos velhos e malcheirosos. – brincou Rita que não se sentia nada melindrada com a arrogância citadina de Rui.
- Enfermeira, ham? Que interessante. – os olhos brilharam de entusiasmo. – Teresa, podias ter-me dito que no Alentejo há assim enfermeiras tão bonitas, eu próprio teria ido para uma dessas colocações fora de portas!
- Ó por favor! Daqui a nada vomito o gelado… quase dez euros de desperdício! – a médica rolou os olhos e recostou-se contrariada. Não suportava aquelas conversas patéticas.
Rita deliciou-se com o gelado gigante e os piropos do médico bem parecido, ignorando o mau humor de Teresa, que não descansou enquanto não voltaram para casa. Rui fê-las prometer que iriam jantar com ele nessa noite, apelando à curiosidade que tinha sobre o trabalho de Teresa em Safara, e fazendo olhinhos de carneiro mal morto à enfermeira. Não havia nada que o entusiasmasse mais que uma subalterna de boas proporções e feições agradáveis.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário