quarta-feira, 15 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 25

 



António e Maria dos Prazeres foram acordados antes do sol nascer, alguém batia violentamente na porta de entrada da casa, o que nunca indicava boas notícias. António vestiu-se apressadamente, deixando a mulher para trás, sem lhe dirigir qualquer palavra. Saiu em direcção ao seu encarregado mais antigo, que todos os dias era o primeiro a chegar e se encontrava pálido, gelando-lhe o sangue de medo. Manuel não voltara a casa naquela noite e o medo de que algo de mal lhe tivesse acontecido invadiu-lhe o peito, que picava.
- O que foi tio Zé? – perguntou com a garganta seca – Foi alguma coisa com o meu filho?
- Não patrão, - decansou-o prontamente – foi a menina Sofia.
- A Sofia? Mas ela não está em casa? – estranhou o facto, pois a hóspede era preguiçosa e dormia todos os dias até tarde.
- Venha depressa! – pediu o empregado ainda em choque com a descoberta da manhã.
Correram os dois carreiro abaixo, poupando as palavras para ganharem fôlego, até António começar a temer o pior, quando vislumbrou duas malas grandes perto da cerca e o tio Zé os encaminhar para dentro do cercado, onde estavam os animais adultos. Um vulto grande surgia no chão, numa posição desengonçada e humanamente impossível, como só os cadáveres conseguiam ter, e António benzeu-se, sendo imitado pelo empregado, que retirou a boina em respeito à situação dramática.
- Encontrei-a aqui, assim neste estado…não lhe mexi, mas já não há nada a fazer. – explicou a António, que se mantinha sem mostrar qualquer sentimento – Deve ter agonizado toda a noite, pelo aspeto do corpo já morreu há algumas horas. – concluiu sabedor.
- Vou chamar a guarda, não deixe que toquem em nada. – ordenou, voltando costas ao corpo de Sofia e caminhando de volta para casa.
Maria dos Prazeres não poderia ver o cadáver, não aguentaria aquele choque de quando se dá de caras com a morte. Seria difícil mantê-la em casa, assim que lhe contasse a desgraça, mas ninguém a podia salvar mais, nem ao bebé que trazia, concluiu. Deus tinha-os levado. António sentiu uma pequena mágoa ao pensar no neto que poderia ter tido e que brevemente lhes povoou o imaginário e pediu perdão em silêncio pelo que dissera inúmeras vezes sobre Sofia e a sua gravidez. Nada daquilo era seu desejo, e rezou pelas suas almas até chegar a casa. Mandaria chamar o Padre para benzer a herdade, pensou, estranhando a sua beatice espontânea, mas havia ali coisa má, nada mais justificava o rol de desgraças que não paravam de acontecer. 



- Bom dia, Dona Julieta, a sua filha já acordou? – perguntou Francisco sorridente à porta de casa de Rita, que entrara pela janela uma hora antes, depois de passar a noite com o toureiro.
- Bom dia, Sr Francisco, vou ao quarto chamá-la, quer entrar? – disse por educação.
- Não vale a pena, eu espero aqui fora. – respondeu satisfeito.
- Riiita! – berrou Julieta afastando-se da porta em direção ao quarto da filha. – O toureiro está lá fora à espera.
- Bom dia mãe, - disse prontamente, saindo do quarto já arranjada – e porque é que diz isso assim, não gosta dele?
- Ele é esquisito filha. – confessou baixinho – Umas vezes é bruto que nem uma porta, hoje está todo sorridente…
- Não ligue, ele gosta de se armar em durão, mas é um amor. – beijou-lhe a bochecha e despediu-se, saindo de casa aliviada por ninguém ter desconfiado das suas manobras noturnas.
- Bom dia! – exclamou Francisco agarrando-a – Já tinha saudades tuas!
- Bom dia! Dormiu bem? – perguntou-lhe com ar de sonsa.
- És cá uma bisca… - gracejou, sendo interrompido pelo som dos veículos que passavam com urgência pelo centro de Safara – Sirenes, a esta hora, tão cedo? – disse, espantado com o rebuliço nada normal naquelas bandas.
- Ó meu Deus, vamos, depressa. O que será que aconteceu? Não é só sirene de ambulância, parece ser a guarda também. – exclamou Rita assustada, puxando-o pela rua acima, em direção à zona central da aldeia.
Passavam pela antiga casa de Teresa quando a porta se abriu repentinamente, fazendo Rita dar um pulo de susto.
- O que é que está a arder? – perguntou Manuel, que não perdeu tempo a explicar-se, acompanhando-os na passada larga, genuinamente preocupado.
- Não sabemos, - respondeu Francisco – vamos lá espreitar o que se passa.
Chegaram à Praça principal da aldeia e as pessoas já se juntavam em alarme, curiosas por perceber quem estava em apuros, quando Manuel ficou subitamente apreensivo ao ver que os veículos se dirigiam para fora da localidade, no sentido de sua casa.
- Entrem na carrinha. – ordenou automaticamente, entrando na pickup que ali estava estacionada perto.
- Mas tu sabes onde é que eles vão? – questionou-o Rita nervosa.
- Acho que aconteceu alguma coisa na herdade. – disse gravemente.

Fizeram todo o caminho calados, seguindo a ambulância e o carro patrulha que de facto se encaminhavam à herdade, pondo-os cada vez mais nervosos. Rita mantinha-se de mão dada com Francisco, como que em busca de apoio, temia uma desgraça com o Engº António ou Maria dos Prazeres, que viviam com uma criminosa, sem o saberem. Se algo lhes tivesse acontecido sentir-se-ia culpada para todo o sempre, pois era a única, para além de Teresa e Sofia, que conhecia a verdade sobre a tentativa de homicídio na tourada. 
Manuel parou a carrinha atrás da ambulância e do carro patrulha, saindo desesperado em direção ao ajuntamento de curiosos que se mantinham perto da cena macabra, quase à saída da herdade, sendo seguido pelos dois amigos.
- Pai! – exclamou nervoso, mas aliviado ao ver António perto do capataz. Abraçou-o e beijou-o na face, como sempre fizera desde pequeno, sendo apertado por António, que não queria que o filho visse o cadáver daquela maneira.
- Filho… - respondeu emocionado – Não quero que vejas. – disse, agarrando-lhe a cara em direção à sua. – A Sofia teve um acidente…
- A Sofia?! – o seu coração ficou momentaneamente acalmado, para seu espanto. Temera que algo de grave tivesse acontecido aos seus pais, e mesmo depois de todas aquelas revelações do dia anterior, amava-os como se fossem os biológicos, afinal, nunca conhecera outros. – Mas o que foi que aconteceu?
- Não percebemos bem, o tio Zé encontrou-a dentro da cerca, morta, certamente por algum touro de noite, e estas malas aqui caídas no chão. – explicou resumidamente.
- Ia fugir… - comentou Rita em voz alta, sem querer.
- Fugir? – disse Manuel espantado, voltando-se para Rita.
- Como assim, fugir? – reforçou Francisco, olhando-a também.
- Bem… se levava malas, - gaguejou, corando até às orelhas – deve ter decidido ir embora.
- O Dr José já chegou. – disse António, afastando-se em direção ao médico da terra que vinha confirmar o óbito. – Deixem-se estar aí, que isto não é espetáculo para miúdos.
Manuel não obedeceu ao pai, e seguiu-o prontamente, com as mãos a suar, mantendo-se, no entanto, um pouco atrás de António. Nada do que imaginara que seria a morte de uma pessoa fora o suficiente para o preparar para a visão de Sofia, e o seu filho, relembrou-se angustiado, sem vida. Já não se conseguia ver a cara do corpo, tapada logo à chegada dos bombeiros experientes em desgraças, mas a cor dos seus braços era impressionantemente baça e acinzentada. Um ligeiro espasmo do estômago ameaçou a chegada iminente de um vómito, e António empurrou-o para fora do campo de visão possível no meio de todos os curiosos que se tinham juntado no local. Manuel deixou-se levar dali, direcionado pelos funcionários que lhe puxavam pelo cotovelo em solidariedade e davam leves palmadas nas costas, e toda uma série de imagens de Sofia lhe invadiam a mente: quando a conheceu anos antes, cenas da sua vida em comum em Coimbra, o lado mais feliz dessa relação e momentos em que pensou verdadeiramente que talvez gostasse dela. Como diriam os velhos, quando uma pessoa morre, virava santa, e Manuel sabia que essa designação seria uma heresia, no caso de Sofia. A ex-namorada tinha-se revelado numa pessoa desagradável, egoísta, manipuladora, e agora estava morta. 
Rita e Francisco mantinham-se longe da confusão, a falar aos cuchichos, quando Manuel os alcançou ainda nauseado e confuso.
- Rita, o que é que tu sabes sobre esta tipa? – perguntou Francisco preocupado com o facto de a namorada parecer compreender o que ali se tinha passado.
- Cala-te Francisco, ele vem aí! – ralhou, corando novamente, ao ver que Manuel estava bem perto deles.
- Se sabes alguma coisa, agora é a hora ideal para falares. – disse Manuel endurecendo a voz. Não queria ser desagradável com a enfermeira, afinal era sua amiga e namorada do irmão, mas algo lhe dizia que ainda não era hora de enterrar de vez a Sofia.
- Desculpa, Manuel, mas temos de falar longe desta gente toda. – Disse gravemente, olhando os dois irmãos receosa das suas expressões zangadas e semelhantes.
- Vamos lá a casa. – lançou Manuel decidido a acabar com aqueles mistérios todos. Já estava farto de segredos e histórias mal contadas, e se Rita sabia de alguma coisa sobre Sofia, Teresa também. A desculpa de se terem de se separar porque eram primos nunca o tinha convencido.

Entraram na casa e Maria correu na direção deles, chorando desesperada com a desgraça que tinha acontecido, agarrando-se ao filho como que a uma bóia de salvação. Manuel consolou a mãe, beijando-lhe a cabeça, como a uma criança, compadecido com o estado lastimável em que Maria dos Prazeres se encontrava.
- Mãe, vá lá, não chore. – disse-lhe carinhosamente.
- Manuel, que horror, que horror, o teu filhinho… aquele anjinho que ainda nem tinha nascido… - lamentava-se em lágrimas.
- Não havia anjinho nenhum… - disse Rita baixinho.
- O que estás a dizer? – perguntou Francisco que a tinha ouvido.
- Não havia bebé nenhum. A Sofia não estava grávida. – repetiu, assumindo a revelação do segredo, agora que já nada havia a fazer.
Todos os três a olhavam calados, sem saber o que dizer em choque, e Rita ganhou coragem para se explicar e acabar de vez com aquele luto desnecessário. – Desculpem não ter dito nada, - olhou Manuel que a observava incrédulo – mas fui impedida de o fazer pelo meu superior hierárquico, e pelo código de conduta dos médicos, que os proíbem de revelar dados clínicos dos seus pacientes. – explicou, sentindo-se a caminhar para o choro de tantos nervos – Quando foste ontem com a Sofia à consulta o José percebeu que ela não estava grávida, tentou falar com ela, quando se ausentaram para irem ao outro gabinete, mas ela continuou a insistir na farsa…por isso ele pediu tantos exames e recomendou que marcassem logo outra consulta, para a forçar a contar a verdade.
- Por isso é que disseste que ela ia fugir? – perguntou Francisco para quebrar o silêncio momentâneo que se fizera.
- Sim… e também por outra coisa. – era agora ou nunca, pensou a tremer das pernas.
- Ainda há mais? – vociferou Manuel, que se mantinha a suster a mãe de pé, que amolecera com o choque da verdade sobre Sofia e o neto que afinal nunca existira.
- No dia em que fui levar a Teresa a Lisboa… a Sofia esteve a falar com ela aqui em casa… - dizia devagar, sem conseguir alinhar os pensamentos cronologicamente.
- Rita, fala de uma vez! – berrou Manuel, com o coração na boca.
- Ela confessou à Teresa que a tentou matar na tourada, foi ela que a fechou no corredor dos toiros, que lhe deu a pancada na cabeça, e que se ela não voltasse para Lisboa e te deixasse em paz, tentaria matá-la novamente, a ela e aos que ela gostava. Disse que tu a tinhas convencido a ficar aqui na herdade, que nem queria aqui estar, e que a Teresa não tinha o direito de destruir a vossa família que se estava a formar. – disse de rompante, omitindo com dificuldade o facto de Sofia também ter ameaçado a vida do bebé de Teresa e Manuel.
- Espera… - disse Manuel quase sem voz, a empalidecer. – A Sofia tentou matar a Teresa?...
- Rita, tens a certeza disso tudo? – perguntou Francisco quase no mesmo tom sumido do irmão.
- Sim. – rematou, olhando Maria dos Prazeres com censura, por toda a campanha que a mulher tinha feito a favor da criminosa.
- A carta… - Manuel recordou-se do correio de Teresa, num flash, e da carta do Hospital de Moura, especialidade de Obstetrícia, procurando o braço do irmão, que o apoiou prontamente. – A Teresa tinha uma carta do Hospital de Moura que deve ter chegado depois de ela ter ido embora… - explicava, com a boca a secar – obstetrícia. – olhou Rita que sorria, satisfeita com o raciocínio rápido de Manuel.
- Sim, é verdade, a Teresa está grávida, foi por isso que fugiu daqui. – explicou com as lágrimas nos olhos - A Sofia queria matá-la e ela tinha de proteger o vosso filho. Por isso não disse nada a ninguém, com medo da maluca. – concluiu, já sem conseguir conter o choro, agarrando-se a Francisco que a abraçou.
- Manuel, senta-te! Dona Maria, sente-se, por favor. – aconselhou Francisco, com medo que caíssem desmaiados com aquelas emoções todas.
- Agora, trata de ir a Lisboa busca-la, que ela está a morrer de tristeza e o lugar dela é aqui, no Alentejo. – concluiu Rita, abraçando Manuel.



- O telefone dela não para de tocar desde ontem, Pedro. – sussurrou Fernanda, que suplicava ao marido que deixasse Teresa atender Manuel.
- Esse tipo é o culpado desta situação toda, não sei se te lembras! – exclamou Pedro secamente – A nossa filha precisa de estar calma, ninguém atende! – ordenou, saindo da mesa do pequeno-almoço para ir trabalhar.
- Mas… - o marido conseguia ser detestável, pensou frustrada, mesmo tentado proteger Teresa. Ele não percebia que a cura da filha era o “tipo”, nunca iria entender, afinal, pouco ou nada sabia do Amor romântico e os seus caprichos. Se nem a deixava atender o telefone, nunca iria permitir que Fernanda a levasse à tourada, lamentou, pensando nos bilhetes que António lhe enviara pelo correio, para irem assistir no sábado à Corrida no Campo Pequeno. Sentia-se uma garota entusiasmada com a ideia do espetáculo, recordando as touradas que via com a mãe, sempre que o grande…deixou a chícara de café cair na mesa, com a súbita recordação do toureiro bonito que a mãe adorava ver tourear. O amigo da mãe do fato garrido, que ela conhecera pessoalmente no camarim. Fora um dos melhores dias da sua vida, recordava emocionada, ao visualizar a boneca que ele lhe oferecera, a única que tinha tido completamente nova, sem ser em segunda mão. O rosto do homem bonito era feliz e meigo, e a mãe sorria com lágrimas, quando Fernanda lhe agradecera a prenda, abraçando-o carinhosamente. Deitou a cabeça nas mãos e chorou copiosamente, afinal, Joaquim da Silva estivera na sua vida, ali tão perto, sempre que a mãe a levava à tourada, e as duas aplaudiam o toureiro bonito. O seu pai.
Teresa entrou na cozinha, sobressaltando-se com o choro silencioso da mãe, que soluçava violentamente, sentada à mesa da cozinha.
- Mãe! O que se passa? – perguntou nervos, correndo para ela.
- Ó filha… - conseguiu dizer, no meio dos tremores da sua garganta – Eu… lembrei-me… eu lembrei-me do meu pai.
- Lembrou-se, mas como? Afinal conheceu-o? – questionou Teresa, abraçando-a com carinho.
- Sim, como é que eu nunca pensei nisto… que burra que eu fui. – lamentava-se, limpando a cara a um guardanapo que a filha lhe estendera.
- Acalme-se, por favor, mãe. – dirigiu-se ao armário, retirou dois copos e encheu-os de água, dando um a Fernanda e bebendo do outro.
- Senta-te querida, vou-te contar tudo. Mas antes, quero que mintas ao teu pai no sábado e lhe digas que queres ir ao shopping comigo fazer compras para o bebé. Nós vamos à tourada, mas ele não pode saber.



- Tem calma Manuel, a Rita disse que ia falar com ela. – disse Francisco, tentando convencer o irmão a largar o telefone e a ir treinar com ele para sábado.
- Tu terias calma? – berrou-lhe Manuel descontrolado. – Se fosses tu já tinhas ido a Lisboa busca-la!
- Sim, é verdade, mas se a mãe dela pediu para não aparecermos lá de repente, porque ela está frágil, é melhor obedecer! – berrou Francisco de volta.
- Mas porque é que não atende o telefone, e o meu pai conseguiu falar com a mãe dela? – gemeu, tirando um cigarro do maço do irmão.
- Aquilo que o Mestre António explicou é que o pai dela não quer ouvir falar do teu nome, mas a mãe vai levá-la à tourada no sábado para vocês conversarem. – explicou mais calmamente – E tu precisas de treinar, Manuel, tourear não é uma brincadeira, não podes lidar toiros sem estares pronto.- Aconselhou-o paternalmente – No sábado vais vê-la, agora por favor, vem treinar o teu cavalo.
Manuel sabia que o irmão tinha razão, mas estava pouco convencido de que alguma vez fosse capaz de tourear pensando que Teresa estava nas bancadas a vê-lo, sem a poder abraçar antes e ter a certeza de que ela não iria desaparecer novamente. Só mesmo o orgulho de António naquela tourada é que o mantinha de pé, pois não fosse a responsabilidade de ir representar a Herdade a Lisboa, e já tinha mandado tudo às urtigas. Mandou o cigarro fora e seguiu Francisco até ao picadeiro, se continuasse a olhar o relógio e o telefone até sábado, enlouquecia.


- Sim, Rita. – fungou Teresa ao telefone – Até logo.
Desligou o telefone da mãe e guardou-o novamente na carteira de Fernanda, esgueirando-se até ao quarto, com o coração na boca.
Sentia-se a querer desmaiar, só de imaginar aparecer à frente de Manuel, vê-lo de perto, depois de tanto tempo. Não saberia o que dizer, como se comportar, no seu imaginário lançara-se-lhe nos braços milhares de vezes, em cenários diferentes, mas sempre com a mesma emoção. Agora que se aproximava a altura de o rever, tinha medo de se sentir rejeitada, de que ele tivesse mudado, que o tempo e a distância tivessem arrefecido aquilo que sentiram um dia. Haveria mágoa no olhar dele?, conseguiriam retomar o amor dos dois sem que nada o afetasse? Duvidava muito, e isso secava-lhe a boca e provocava suores frios. 
Olhou-se no espelho e a sua ansiedade ainda cresceu mais, como poderia abraçá-lo com aquela barriga? Olhou o filho com carinho, envolveu-o com as mãos e sorriu-lhe, cada vez mais apaixonada pelo volume que comprovava a sua existência. Se ela o amava tanto, ao seu pedaço de Manuel, como é que ele não iria também amá-lo? Vestiu um casaco grosso e largo, agasalhou-se bem e respirou fundo. Estava na hora.


-Ó rapaz, concentra-te! – exclamou António já irritado com o comportamento do filho. Sabia que Manuel estava nervoso, mas se continuasse a deixar-se levar pelos emoções ainda se magoava na arena.
- Desculpe. – disse envergonhado – Deu as mãos ao pai e ao irmão, e em roda fizeram a oração que pedia proteção para as suas lides, como mandava a tradição.
- Vá, agora podes continuar a arrancar os cabelos. – gozou Francisco, para desanuviar o ambiente. – Vou ali dar um apertão na Rita, que está mais histérica que tu. Volto já.
- Filho, tem calma. Confia que tudo vai dar certo. Ela veio ver-te e vocês vão ficar juntos. – disse-lhe António baixinho, para não ser ouvido pelos outros homens. – Se depois destas desgraças todas, pelo menos tu e o Francisco não forem felizes, vou lá à Igreja e parto os Santos todos! – ameaçou, fazendo o filho sorrir.
- Eu também quero que o pai seja feliz. Perdoe a mãe, por favor. Ela não teve culpa, e se pensar bem, se ela tivesse agido de outra forma, talvez eu não fosse seu filho. Eu não queria outro pai. – beijou-o na face e dirigiu-se até ao seu cavalo, estava quase na hora da entrada de apresentações. Precisava de sentir o bicho para se concentrar.



Teresa e Fernanda levaram mais tempo que o que seria normal para conseguirem entrar no Campo Pequeno. Nos últimos anos as touradas eram cada vez mais contestadas por grupos de defesa dos animais, pessoas singulares, associações pró-animal, que se mantinham nas imediações das arenas em protesto, com cartazes, palavras de ordem e apupos a quem queria entrar no espaço. Eram normalmente inofensivos, mas criavam algum constrangimento na logística das bilheteiras e portas de entrada. Já se ouvia a música do desfile de apresentações, quando elas finalmente passaram as portas e conseguiram encontrar as indicações de onde estavam os seus lugares vips. António exigira que as suas convidadas ficassem na tribuna dos famosos e Teresa e a mãe agradeceram por esse capricho, ao verem a qualidade dos assentos e a vista privilegiada que iriam ter. Teresa acomodou-se ansiosa, dando a mão a Fernanda, que se mantinha ligeiramente emocionada, por recordações antigas, imaginou a médica, sorrindo-lhe com carinho.
- Por favor não chore, olhe que tenho estado a conter-me, não me obrigue a borrar a maquilhagem toda! – brincou Teresa, estendendo-lhe um lenço.
- Desculpa filha, nunca pensei recordar-me de tanta coisa…estou muito feliz de aqui ter vindo. – disse, limpando a lágrima que aparecera no canto do olho. – Olha, estão a entrar!
O coração de Teresa encheu-se de ar, ficando maior no peito e batendo furiosamente, quase de forma audível. Viu Francisco a entrar, depois de vários cavaleiros, e uma lágrima de alegria desceu-lhe pela cara. Tinha tantas saudades de o ver, constatou emocionada. Continuava belo, como só ele podia ser, em cima de um cavalo. Procurou por Rita na plateia, automaticamente, mas a amiga ainda não aparecera.
Um apertão que Fernanda lhe deu repentinamente na mão chamou-a de volta para a arena e lá estava ele, mais bonito ainda que Francisco, se é que isso era possível. Conseguia perceber que ele também a procurava com o olhar, distraído do protocolo, visivelmente nervoso. Teve vontade de se levantar e esbracejar, gritando o nome dele, mas não teria tempo de o fazer, pois no momento em que acabara de o imaginar, já ele a detetara na bancada, fazendo-a estremecer dos pés à cabeça. Tudo desapareceu naquele instante, público, toureiros, arena, num instante de apneia visual, em que apenas os dois se mantinham paralisados. O sangue corria-lhe furiosamente nas veias, aquecendo-lhe todos os centímetros de pele, fazendo renascer nela sensações que pensara mortas dentro de si. Manuel sorriu-lhe e Teresa sentiu-o pela primeira vez, como que um estremecimento involuntário dentro de si, acordando-a da hipnose em que estivera, não sabia bem quanto tempo. Olhou a mãe surpresa, contando-lhe a novidade, e quando procurou por Manuel na arena, este já tinha saído. O seu filho dera o primeiro pontapé, tinha de o encontrar e dizer-lhe.


- Passou-se alguma coisa! Eu tenho de lá ir! – berrava Manuel, tentando convencer o pai a deixá-lo sair para ir ver o que tinha provocado em Teresa aquela reação. – Não percebe que ela pode ter-se sentido mal?
- Manuel, não podes sair agora daqui. Por favor, acalma-te! Francisco, ajuda-me! – suplicou António, já sem saber o que dizer para manter o filho sossegado.
- Sr Manuel da Silva? – chamou um funcionário do espaço. – Tem uma visita no camarim. Por favor acompanhe-me. – disse formalmente, orgulhoso por estar a obedecer a um pedido de alguém que deveria ser famoso, pois tinha bilhete VIP. 
- Não te demores! – pediu António ao filho, receoso de que ele se distraísse com as horas e não regressasse a tempo de entrar na arena. – Estamos tramados…
Manuel tentava acelerar o passo descontraído do funcionário, que absorvia com entusiasmo a adrenalina dos corredores do espaço.
- Vamos, onde é esse tal camarim? – perguntou ansioso.
- É no primeiro andar, - respondeu sorridente – segunda porta à direita. – E mal terminara de falar já Manuel se lançara em corrida escada acima, deixando-o para trás, aparvalhado.

Teresa suava das mãos, olhando-se nervosa ao espelho e encontrando mil e um defeitos na sua imagem refletida, quando viu, na parede por detrás de si, um cartaz antigo de uma Corrida à Portuguesa com um toureiro em destaque que a sobressaltou. Virou-se e chegou perto do quadro vintage, sentindo-se tentada a tocar-lhe. Ali estava anunciado o “Grande Joaquim da Silva”, da Herdade de Safara, com o mesmo sorriso da mãe e os olhos de António. Tão bonito e altivo, como eram os homens das fotos daquela época, os abonados e ricos, que mesmo pisando palha malcheirosa deveriam ter sempre o aspecto de um Senhor. Admirava a imagem com afecto, quando ouviu a voz de Manuel, bem perto de si: “O nosso avô”…
Virou-se a sentir-se em câmara lenta, e ele mantinha-se a uma distância de um palmo, sem recuar, nem vacilar. Teresa abraçou-o com força, enfiando a cabeça no seu peito, de forma a esconder a emoção que não conseguiu controlar.
- Manuel… - conseguiu dizer, chorando como um bebé, sem afrouxar o abraço. 
- Não chores. – disse-lhe beijando-lhe a cabeça, quando sentiu claramente um movimento na barriga de Teresa, espalmada contra si. – O que foi isto? – perguntou surpreendido.
- O nosso filho. – confessou, olhando-o receosa da sua reação.
Manuel beijou-a com força, agarrando-lhe a cabeça com as mãos, estava possuído pela saudade e paixão que quase o tinham levado à loucura durante aqueles meses de afastamento. Amava tanto aquela mulher que conseguia sentir dor física quando pensava que nunca mais a veria. Sentir o filho dos dois era uma sensação nova e ainda mais forte, que não conseguia controlar, expressando-a fisicamente.
Caminhavam colados um ao outro, sem direção definida, até baterem na cadeira, abrindo os olhos devagar.
- Outro pontapé, - comentou Teresa corada, sorrindo de orelha a orelha – Hoje foi a primeira vez que o senti.
- Amo-te tanto… - confessou Manuel, ainda aturdido com as emoções. – Amo-vos tanto. – corrigiu, sorrindo e espreitando a barriga de Teresa, que se encontrava escondida pelo casaco.
  Sentou-se na cadeira, para recuperar a lucidez e a força nas pernas, que se sumira por instantes, e puxou Teresa para o seu colo, ficando com as testas coladas um no outro, a respirar com dificuldade.
- Desculpa-me Manuel… - foi Teresa a primeira a quebrar o silêncio daquele momento. – Eu não sabia o que fazer… estava tão aflita com a ideia de que ela podia tentar matar-me novamente, e eu grávida… como iria defender o nosso filho se ali continuasse? Não consegui contar nada a ninguém, só pensava que ela também esperava um bebé, que não tinha culpa nenhuma de nada… - lamentou-se, precisava que ele a perdoasse por o ter abandonado de repente.
- Shhh… Por favor, eu é que tenho de te pedir desculpas, por ter levado a Sofia para as nossas vidas. Só de pensar que quase te matou a ti e ao Francisco… Nunca podia imaginar que ela fosse tão doida… - disse.
- Tinha tantas saudades tuas. – confessou, beijando-o levemente, e sentindo novamente os movimentos do bebé. – Mau, mas então agora não posso beijar o teu pai? – ralhou carinhosamente com a barriga.
- É ciumento, quer a mãe toda para ele. – brincou, tocando-lhe pela primeira vez – Ai, que força, isso não te magoa? – exclamou preocupado.
- Não, é estranho, mas bom. – explicou, olhando-o com mais atenção e admirando a sua roupa de cavaleiro que reluzia. – Meu Deus, estás tão sexy… - confessou, divertida.
Manuel puxou-a mais para si, com cautela para não fazer força na barriga de Teresa, beijando-a com paixão.
- Ainda mais que o Francisco? – perguntou animado.
- Sem comparação… quer dizer, acho que só ali o Joaquim é que te chegava aos pés.
- Vou-te confessar, essa tua saia, vestido, ou lá o que é isso estão a matar-me. É melhor irmos, senão ainda traumatizamos o avozinho, e na sua idade é perigoso ver certas coisas. – gozou.
- Que horas são? Vê lá se te chamam e tu não estás lá para entrar. – exclamou preocupada, olhando o relógio e levantando-se, ajeitando a saia.
- Espera… - Manuel dirigiu-se à porta, trancou-a, pegou de seguida no quadro de Joaquim da Silva, virou-o contra a parede e agarrou em Teresa possessivo. – Acho que vamos ter de ser silenciosos, ele não vê, mas ouve. E saias acima do joelho, que ainda por cima esvoaçam?… fizeste de propósito!
- Tantas saudades, Manuel… - confessou apaixonada, enlaçando-o pelo pescoço.
- Casa comigo.



- Eu não digo? – bradava António a suar em bica. – O rapaz quer-me dar cabo da reputação!
- Ó Mestre António, um homem é um homem, ele lá ia conseguir chegar perto dela sem… - comentava Francisco divertido, quando Rita lhe deu um encontrão nas costas, silenciando-o automaticamente. – Ah, estavas aí, amor? – perguntou sem jeito, corando.
- Estive a falar com a mãe da Teresa, eles ainda não apareceram?
- Não, mas deve ser por um bom motivo, não fiques preocupada. – disse, abraçando-a.
- Já ali vem! – exclamou António, fazendo uma reverência aos céus.
- Desculpem, - disse a sorrir – estive a conversar com a Teresa. 
- Rita, ainda falta algum tempo até eu entrar, queres vir “conversar”? – gozou Francisco agarrado à namorada – Onde fica mesmo essa sala de reuniões? – perguntou a Manuel, que tentou, mas não conseguiu deixar de sorrir, dando um empurrão em Francisco.
- Deixem-se de palermices, - ralhou maternalmente com os dois – vou ter com a Teresa e a mãe e ficar a torcer por vocês. Livrem-se de se magoarem!


(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário