segunda-feira, 6 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 19




Fernanda sentia-se nas nuvens. Dormira toda a noite enroscada na sua filha, como antigamente acontecia quando o marido viajava e ficavam sozinhas em casa. Não havia nada melhor que o cheirinho da sua menina, que mesmo com quase trinta anos e grávida, conseguia transportá-la novamente para os anos felizes em que lhe fazia tranças no cabelo e apertava os cordões dos sapatos. Ser mãe era a sua paixão, e a recente ideia de ser avó quase que a fazia levitar de êxtase. Levantou-se animada e preparou o pequeno almoço reforçado para o grande dia que se adivinhava. Tinham combinado que iriam naquela manhã visitar a herdade e conversar com António e Maria, os parentes que iriam ganhar, se o conteúdo das cartas antigas se confirmasse. Na sua cabeça nada poderia dar errado, ou correr mal. A família era um bem precioso, e ter uma casa cheia de irmãos, cunhados e sobrinhos sempre fora um dos sonhos de Fernanda, que crescera sozinha apenas com a mãe. Esperava que também eles se alegrassem com aquelas revelações, e por via das dúvidas acendeu uma velinha num altar improvisado e rezou uns “Pai Nossos” antes de acordar Teresa e a chamar para comer.


- Bom dia! – Manuel entrou no quarto do toureiro com algum receio, na noite anterior os ânimos tinham-se exaltado e Teresa despejara no amigo alguma raiva reprimida, sem dó nem piedade.
- Bom dia. Ainda aqui estás? Pensei que a tua dona não te tivesse deixado dormir cá em casa. – disse Francisco com sarcasmo.
- Eu prometi-lhe que te insultava mais um bocado e ela deixou-me ficar. – gozou, satisfeito por saber que o amigo se sentia bem o suficiente para desdenhar.
- Sabes fazer café decente, ao menos?
- Já fiz, vinha saber se querias que te trouxesse aqui ao quarto. Vou ter de sair. A Teresa e a mãe pediram-me para as levar à herdade agora de manhã. Sinceramente não percebi porquê, e achei estranho, mas vá-se lá entender.
- Vai, vai. Deixa aqui o café e mexe-te. Ainda ficas de castigo se te demoras. – gozou o toureiro.
Manuel ficara cismado com aquela visita das duas à sua casa. Teresa fez segredo dos motivos que a levavam a querer apresentar Fernanda aos seus pais e ele acabou por desistir de tentar compreender. Como tinham pouco tempo para estarem juntos, porque Fernanda estava em casa da filha a dormir, decidira que o ocuparia com temas e atividades mais agradáveis, como passear de pick-up pelos montes escuros com Teresa, com a desculpa de que lá é que se viam mesmo bem as constelações! 
Deixara-a relutantemente em casa, já bastante tarde, custava-lhe separar-se dela e da sua cama fofa e ir dormir no sofá rijo e pequeno da sala de Francisco, sozinho. 


Sofia comia a terceira fatia de bolo regada com café forte, saboreando com prazer o pequeno almoço farto que Maria dos Prazeres todos os dias lhe proporcionava. Já se sentia maior, com as calças a exigirem um número acima, mas ainda não eram efeitos diretos da sua gravidez, mas sim da realidade de que comia exageradamente, há muito tempo seguido. Na herdade todos notavam a sua figura roliça e comentavam como estava a ficar bonita a mãe do primeiro neto dos patrões, afinal uma grávida saudável tinha de estar gordinha. Sofia sorria em resposta aos comentários simpáticos e permitia-se comer sem restrições, afinal os quilinhos extra ajudavam-na a manter a sua mentira. Terminava o café quando ouviu uma carrinha chegar e as vozes de António e Manuel bem dispostas. Levantou-se rapidamente e tratou de ir espiar convenientemente a visita matinal inesperada.
- Então filho? Passa-se alguma coisa? – Uma visita assim tão cedo, ainda por cima com convidados, sem anúncio prévio era um pouco suspeito, matutava, mantendo um ar simpático e educado, cheio de curiosidade por saber quem seria aquela mulher bem parecida que os acompanhava.
- Pai, esta é a mãe da Teresa, a Fernanda. O meu pai, António Silva. – apresentou-os.
Fernanda e António cumprimentaram-se, olhando-se por alguns momentos e sentiram-se automaticamente confortáveis um com o outro, como se já se tivessem conhecido antes.
- Muito prazer. Já nos conhecíamos antes? – perguntou António cismado. – Tenho a impressão de que a sua cara não me é estranha…
- Prazer. Não, é impossível. É a primeira vez que venho a Safara. – esclareceu Fernanda, que conseguia detetar algumas semelhanças nos traços de António. A forma como sorria, fazendo umas pequenas covinhas na cara, os olhos azuis acizentados, o cabelo castanho escuro farto. Não teve qualquer dúvida, aquele era seu irmão.
- A que devo a honra da vossa visita assim tão cedo? – dirigiu-se a Teresa, que lhe deu um abraço familiar, descontraída. 
- Queríamos conversar consigo e com a sua esposa. – adiantou-se Fernanda, assumindo o controle da situação.
- Claro, entrem por favor. Vou mandar chamar a Maria. – dirigiu-os à sala, onde se acomodaram distribuídos pelos sofás.
Fernanda sorriu a Manuel, maternalmente, sentia que aquele rapaz estava mais nervoso que todos eles juntos. Iria de facto apanhar um grande susto - as revelações que trazia dentro da mala não eram irrelevantes no futuro de ninguém ali presente, muito menos no caso dele e de Teresa, o casal apaixonado, apanhado no meio daquela confusão familiar até então secreta.
Maria dos Prazeres entrou na sala afogueada e nervosa. Reuniões repentinas com Teresa e Manuel ao barulho eram indicador de problemas. Ainda não tinha resolvido a situação de Sofia e já lhe aparecia outra rapariga em casa, desta feita com a mãe atrás. Só esperava que o filho não tivesse engravidado outra…
- Bom dia. Sou a mãe do Manuel. Maria dos Prazeres. Posso servir-lhes alguma coisa? Café… - sentia-se sempre descontraída quando desempenhava alguma tarefa e esperava que alguém tivesse sede ou fome…
- Bom dia, Fernanda, mãe da Teresa. Obrigada, já tomamos café. – respondeu educadamente, sorrindo à pequena alentejana que parecia desorientada. – Desculpem invadirmos assim a vossa casa, logo cedo, com certeza que devem ter afazeres, mas precisávamos muito de conversar convosco. O assunto que me trouxe aqui e à minha filha é sério e tinha de ser falado o quanto antes. – olhou a filha com cumplicidade.
- Não me digas que também engravidaste a Drª?! – exaltou-se Maria dos Prazeres, dirigindo-se bruscamente ao filho.
- Ham? – Manuel sentiu-se atrapalhado, procurava respostas nas caras de mãe e filha. Seria esse o assunto mistério?
- Não! – exclamou Teresa nervosa. – Não é essa a questão. – mentiu, olhando a mãe suplicando-lhe em silêncio que desviasse dali o tema.
- Calma. Eu vou explicar tudo. – Fernanda retirou o embrulho das cartas da sua mala e iniciou uma breve contextualização do seu conteúdo, resumindo que ali estavam informações importantes sobre todos eles e que todos deveriam lê-las para depois ela explicar o seu significado.
Manuel, António e Maria liam as cartas à vez, em silêncio, e António foi o primeiro a entender, sem qualquer explicação o que de facto se estava ali a passar. Sorriu a Fernanda que lhe acenou afirmativamente com a cabeça, enquanto mãe e filho continuavam a leitura frenética.
- Mas afinal, o que quer isto tudo dizer, Teresa? – Manuel começava a perder a paciência para tanto suspense. O avô Joaquim namorara com Maria Rosa, isso já era quase do domínio público, porque tinham elas montado aquele circo todo? – Vamos, fala!
- Manuel, tem calma. – Fernanda impôs-se em defesa da filha. – A Teresa descobriu estas cartas em casa por um acaso, leu-as e ficou aflita, porque percebeu que eu, poderei ser filha do teu avô, o Joaquim Silva, ou J.S., como está assinado nas cartas. Nunca conheci o meu pai, sempre foi assunto proibido com a minha mãe. E a verdade é que ela me teve sozinha em Lisboa, seis meses depois da data da última carta que recebeu do tal J. S.. Compreendes?
Manuel levantou-se, perturbado, sem saber o que pensar.
- Teresa, o que a tua mãe está a querer dizer, é que nós somos primos e tu já sabias e não me contaste nada? – berrou na direção da médica.
- Manuel, não é preciso gritar! – António insurgiu-se contra o filho que reagia intempestivamente.
- Não é preciso gritar? Eu ando a deitar-me com a minha prima! – dirigiu-se ao pai, furioso. – Tu podes estar contente porque ganhaste uma irmã, mas para mim isto é horrível.
- Manuel, por favor… Eu fui a Lisboa tirar tudo a limpo com a minha mãe, para tentar perceber se poderia ser verdade, antes de te contar. Não queria que ficasses perturbado. – esclareceu, tentado aproximar-se dele, que a repeliu instintivamente.
- Desculpem, eu preciso de pensar. – Manuel saiu da sala, sem olhar para trás. Sentia-se desesperado com a hipótese de Teresa ser sua familiar direta e isso modificar tudo entre os dois, e furioso por achar que ela não estava preocupada com a ideia de terem de se separar.
Teresa afundou-se no sofá, em transe. Manuel voltara a ser o “brutamontes” que conhecera no comboio. Acabaria assim tudo tão depressa? Perguntava-se a entrar em pânico, afinal ali não era só ela que importava, ainda havia um bebé.
- Eu vou ver do Manuel. – Maria dos Prazeres não sabia o que pensar de tudo aquilo. De facto parecia-lhe que as cartas eram explícitas, e juntando dois mais três, também concluía que António e Fernanda deveriam ser os dois filhos do seu sogro, Joaquim Silva. Precisava de encontrar o filho e ganhar coragem para lhe contar um segredo. Mais um… pensava nervosa. Só esperava que António lhe perdoasse. – Sofia!, desculpe, já conversamos, preciso de encontrar o Manuel! É urgente! – explicou alterada.
- Mas o que se passa? Está tão aflita! Venha beber um copo de água com açúcar primeiro. Não vai agora nesse estado falar o com seu filho. – Sofia ouvira a conversa do grupo e chorara de alegria sozinha no corredor da casa. Nem nos seus sonhos poderia imaginar um desfecho tão dramático para o casal “maravilha”, tão enamorados, coitados… - Sente-se, - ordenou-lhe carinhosamente, indicando-lhe uma cadeira na cozinha – diga-me, o que foi que a pôs neste estado? Aconteceu alguma desgraça?
- Ai filha… Não aconteceu, mas vai acontecer. – lamentou-se Maria, que parecia ter uma bomba dentro de si, prestes a explodir.
- Beba, beba… - pediu Sofia, oferecendo-lhe um copo de água com um pouco de açúcar. – se não quiser, não precisa de me contar. – mentiu.
- Bem, isto é muito grave, muito grave. – começou Maria a choramingar – Aquela senhora que veio com o Manuel e a Drª Teresa, a mãe dela, parece que é meia-irmã do meu marido. Trouxeram provas e tudo. – lamentou-se, dando outro gole na água e olhando a porta – E agora o Manuel pensa que é primo da Drª.
- Como assim, pensa!? – rugiu Sofia, surpreendida com o rumo da conversa.
- Pois…, a verdade é que ele… não é nosso filho de verdade. – Maria entrelaçava os dedos na toalha enquanto as lágrimas lhe caíam – Eu não conseguia engravidar, abortei muitas vezes, e eles nasceram, coitadinhos, já sem pai, e dias depois a mãe morreu não tinham mais família… O António estava na Guerra, e a minha sogra inventou de trazer um deles para cá. Queria um neto à força, percebe?, para continuar a linhagem, e obrigou-me a inventar esta mentira. – assoou-se ruidosamente a um lenço que trazia no bolso.
Sofia corava de raiva com a confissão, pensando freneticamente como reverter tudo aquilo a seu favor. Tinha estado tão perto de solucionar o seu problema e agora andava outra vez para trás…
      - Mas então a senhora enganou o seu marido e o seu filho estes anos todos?
     - Eu não tive culpa! – suplicou chorosa – Não sabe como a mãe do António era má. Eu sofri horrores aqui sozinha com ela na herdade, quando o António esteve aqueles meses na guerra. Só faltava bater-me. E quando o bebé chegou, coitadinho, era tão lindo… fiquei logo apaixonada por aquele anjinho. – desculpou-se, limpando os olhos ao lenço – Quando dei por mim, já não conseguia separar-me dele… O meu Manuel. – recordou sorrindo – Depois a Dona Odete, a mãe do António, escreveu ao filho e contou-lhe uma história do arco da velha, que a gravidez tinha sido de risco, e não queríamos dar-lhe uma vez mais esperanças, por isso não tínhamos dito nada e tal… ela era uma cobra astuta…fez tudo de tal maneira que nem na Vila duvidaram de que eu tinha mesmo parido um filho.
      - E agora, acha que o António a vai compreender?... não sei… talvez a compreenda, se lhe explicar tudo bem explicadinho…- fingiu tentar ajudá-la. – agora o Manuel…
      - Acha que não me vai entender? O meu filho? – recomeçou a chorar, talvez Sofia tivesse razão. O Manuel conseguia ser bem duro quando estava zangado. – a sua angústia crescia, deixando-a cada vez mais nervosa. – E o irmão… se ele souber que eu os separei… - continuava a rezar, sem reparar que cada vez falava mais segredos.
     - Irmão? Como assim? Afinal ele tem família verdadeira? – Sofia vibrava com as revelações cada vez mais escandalosas.
       - A família verdadeira dele é a nossa! – bradou Maria dos Prazeres descontrolada com aquela acusação.
    - Claro, que disparate. Desculpe-me, falei sem pensar. É que é tudo tão grave… - desculpou-se Sofia cinicamente. Teria de se acalmar se não queria perder a confiança de Maria. Ali havia tanto esturro que até dava vontade de rir, bem alto.
Maria respirou fundo, como se precisasse de coragem para contar o resto da verdade que guardara durante tanto tempo.
      - Ele tem um irmão, um irmão gémeo. Falso, claro, não são exatamente iguais. – confessou com a voz trémula – O Francisco Carriço. Não podíamos ficar com os dois, seria demasiado suspeito. Ninguém sabe disto, e quem já soube, há muito que morreu.
       - Meu Deus… - Sofia sentia-se verdadeiramente arrebatada com tudo aquilo. – Mas que história…- o seu cérebro trabalhava a mil à hora.
    - Vai ser uma desgraça, se agora isto se souber… não vai? – Maria dos Prazeres desfalecia na cadeira, olhando Sofia à procura de alguma solidariedade.
      - Pois vai! – exclamou Sofia decidida. – Não pode contar a verdade ao Manuel agora. Ele nunca a iria perdoar. Acredite, se bem o conheço, fazia as malas ainda hoje e nunca mais voltava ao Alentejo. – continuou – E o Sr António? Descobrir assim no mesmo dia que tem irmã e sobrinha e o filho não é filho dele, mas de um coitado qualquer da Vila?
      - Ai valha-me Deus, que horror. O que é que eu faço Sofia? Ajude-me por favor! – suplicou Maria dos Prazeres desesperada com a ideia de que seria abandonada por causa dos seus segredos antigos.
     - Tenha calma. Tudo se vai resolver. Não nos podemos é precipitar, quer dizer, não se pode precipitar! – corrigiu prontamente. – Eu ajudo-a a contar toda a verdade, mas não agora, que estão todos nervosos com a novidade das familiares de Lisboa. Vamos deixar a poeira assentar.
      - Mas, se eu não contar tudo o Manuel vai pensar que é primo da Drª Teresa…E se eles se separam por causa disso?
     - Dona Maria, se o Amor deles não resistir a esta provação, então é porque o destino não quer que fiquem juntos… – olhou com carinho para a sua barriga oca – e afinal esteja a trabalhar para que o pai do meu filho volte para mim. – confessou esperançosa avançando para a alentejana e dando-lhe um abraço.
Maria dos Prazeres aceitou aquela demonstração de carinho por parte da mãe do seu neto e sentiu-se verdadeiramente aliviada com aquela argumentação. Talvez fosse melhor assim, concluiu. O destino talvez estivesse mesmo a congeminar para os juntar de novo, disse a si mesma. Por agora não diria nada e deixaria a poeira assentar, como Sofia lhe sugerira, a moça era muito sua amiga, talvez também a pudesse ajudar guardando o segredo.

António e Fernanda partilhavam as suas conclusões sobre o conteúdo das cartas, e todas as lembranças que podiam ajudar na resolução daquela história familiar. Para eles não havia dúvidas de que eram irmãos, para além de todas as certezas que surgiam nos factos escritos, eram parecidos, com alguns anos de diferença, mas obviamente familiares diretos. As características físicas não deixavam dúvidas, e Teresa apreciava o entusiasmo dos dois com uma amarga alegria. Para Fernanda, filha única até então, aquela descoberta era uma bênção, para ela, simplesmente uma maldição. Precisava de encontrar o Manuel e conversar com ele, dizer-lhe que não mudara nenhum sentimento dentro de si depois de descobrir que eram primos, e que o futuro teria de ser discutido, afinal havia um bebé a caminho. Um bebé dos dois. Pediu licença e saiu em direção aos currais, algo lhe dizia que Manuel se refugiara perto dos bichos.
Caminhava apressada com o coração na boca, como iniciaria o seu discurso?, iria ele novamente afastá-la e recusar-se a ouvir?, quando Maria dos Prazeres a chamou do fundo do quintal, com um ar demasiado abatido para Teresa ignorar. A pobre senhora deveria estar abalada com tudo aquilo, pensou.
     - Drª Teresa, por favor, gostaria de falar consigo, se não se importar… - pediu Maria dos Prazeres, indicando-lhe a porta da cozinha.
      - Claro, ia à procura do Manuel, ele ficou muito perturbado com esta história toda…mas em que posso ajudá-la? –Teresa pegou carinhosamente na mão da alentejana, que recomeçou a chorar, visivelmente emocionada.
     - Minha querida, eu nem sei o que dizer. Se isto se confirmar, a nossa vida vai dar uma volta. Mas diga-me, o que pensa fazer relativamente ao Manuel? 
     - Bem, acho que primeiro é preciso confirmar legalmente que a minha mãe é filha do Sr Joaquim Silva, depois… bem, depois… ainda não consegui conversar com o Manuel sobre isso, estava agora para o fazer. – Teresa engolia em seco, sentia a censura no olhar de Maria dos Prazeres, como se estivesse à espera de uma resposta concreta, uma decisão que ela sabia que todos esperariam que tomasse, afastar-se do primo.
      - Claro, claro. Primeiro temos de ter a certeza. – suspirou, seria difícil fazer o que Sofia lhe aconselhara. Calar-se e deixar que o filho e a namorada sofressem desilusões em vão. Tinha-se calado durante décadas a mando da sogra e o resultado estava à vista. Teria ela o direito de lhes estragar o futuro? – Eu… gostava de lhe contar uma história, uma história antiga… 
    - Dona Maria, quer ajuda para fazer o almoço? – Sofia entrou intempestivamente na cozinha, ouvia a conversa do lado de fora da porta e entrou em pânico quando se apercebeu que a velha não lhe ia obedecer. Estava prestes a abrir a bocarra. – Ai, desculpe, não sabia que estavam aqui a conversar. Bom dia, Drª Teresa. – apressou-se a ronronar, esticando o mais que pôde o abdómen, imitando uma barriga proeminente de grávida em direção à médica, que automaticamente dirigiu o olhar para o “irmão” do seu filho, ficando pálida e sem reação.
     - Olá. – conseguiu verbalizar – Como vai a gravidez? Tem se sentido bem? – a médica educada dentro de si ajudava-a a manter o discurso coerente, pois a Teresa morria lentamente na cadeira, sem capacidade de reação.
      - Tem andado mais bem dispostinha, - respondeu Maria dos Prazeres que ficara aflita com a súbita entrada de Sofia na cozinha. Estivera quase a confessar-se à médica que lhe parecia tão frágil e triste como ela um dia se sentira naquela mesma cozinha, há muitos anos atrás, quando pensara que perderia o amor de António por não conseguir ter filhos. – A vida no campo também ajuda, não é? Comida saudável, bons ares… - tremia com o olhar de Sofia, que a julgava em silêncio, como se ela fosse uma criminosa. – Bem, vou até à sala ver do António, ele deve estar muito emocionado com isto tudo. – acrescentou fugindo daquele clima pesado que se tinha criado na cozinha.
      - Se me dá licença, também tenho de ir. Estava à procura do Manuel quando… - iniciava uma desculpa para se retirar, quando Sofia estacou na sua frente, impedindo-a de avançar.
       - Deixa-o em paz, não chega de problemas na vida dele?
       - Como? Desculpe, não estou a perceber…. – conseguiu dizer no meio do espanto. Quem é que aquela mulher pensava que era para lhe barrar o caminho?!
       - Deixa-o em paz, e isto não é um aviso de amigas, é uma ameaça, já que parece que não compreendes que o teu tempo acabou. – Sofia deu um passo na direção da médica, que recuou instintivamente.
     - Mas…o que é que isso significa? – Teresa sentia a cabeça confusa, como tinha ela coragem para se lhe dirigir naqueles termos?
     - Pelos vistos tens mesmo genes alentejanos, és lenta, demasiado lenta. – disse com sarcasmo – Afasta-te do Manuel, para teu bem, não queremos que te tornes a encontrar esticada num corredor de toiros, pois não? É que o Francisco Carriço não está em condições de te salvar novamente. – ironizou.
Teresa deixou-se cair na cadeira, com a força das pernas a falhar.
      - Está a querer dizer que… - seria possível que Sofia estivesse envolvida no acidente que quase tirara a vida ao toureiro?
    - Por favor… a tua rapidez de raciocínio é ridícula. – escarneceu – Deixa-nos em paz, e nada de mal acontecerá a ninguém. Se fosse a ti voltava para Lisboa ainda hoje! Agora que já descobriste que andaste às cambalhotas com o teu primo, acho que é o melhor para todos. O Manuel saiu daqui disparado, furioso com isto tudo, deste-lhe cabo da vida desde que chegaste ao Alentejo. Nós íamos casar, por isso vim atrás dele, assim que descobri que estava grávida. Já tínhamos planeado o futuro e tu estragaste tudo! – encarou-a, continuando o seu discurso lunático – Enfeitiçaste-o de alguma maneira, eu sei disso! Mas aquilo que eu e o Manuel tínhamos era tão forte que nem mesmo tu foste o suficiente para apagar da sua memória. Ou pensas que o facto de eu ainda aqui continuar na casa dos pais dele é pura coincidência? Se ele realmente quisesse que eu desaparecesse da sua vida já me tinha expulsado daqui! Com ou sem filho no meio. Mas não me mandou embora. Eu nem queria ficar, sentia-me humilhada, depois de descobrir que ele tinha arranjado uma “amante” na terriola. Disse-lhe que não suportaria essa vergonha, mas ele pediu-me para ficar. Eu fiquei, por Amor. E tu? Vais fazê-lo sofrer ainda mais? Deixa-o viver em paz. Ele tem a oportunidade de retomar a vida que tínhamos planeado, deixa-o!
     Teresa levantou-se cambaleante, não tinha capacidade para reagir, só queria deixar de a ouvir. Era tanta informação de uma vez só: toiros, Francisco, bebés, tudo se misturava numa salganhada sufocante de angústia e tristeza. Passou por Sofia, que regozijava de satisfação, em direção à rua. Precisava de ar, de respirar e de silêncio. Não havia ninguém por perto, nem Manuel, nem Fernanda, nem António, tudo estava calmo, como se nada de extraordinário tivesse de facto acontecido. Teresa queria chorar, mas uma parte de si recusava-se a ceder, não daria esse prazer a Sofia. Quebraria em casa, sem testemunhas, disse a si mesma. Só precisava de encontrar uma forma de ir até à Vila. Não tinha carro, estava à boleia, recordava-se a obrigar-se raciocinar…Manuel tinha-os levado até ali – e o som do nome dele no seu pensamento fê-la estremecer. Não conseguiria encará-lo naquele momento, não depois de ouvir aquelas barbaridades todas, não poderia dizer-lhe que tinha sido Sofia a homicida que todos procuravam…não a mãe de um dos seus filhos. Teria de engolir aquilo tudo e levar dali para bem longe, como sugeria ela…Levaria para Lisboa toda aquela história, a tentativa de homicídio, o parentesco entre os dois, o fruto dessa relação condenada…Um bebé inocente que era também um alvo das ameaças de Sofia. Tudo ficaria mais simples, mais leve, mais certo. Só precisava de arranjar uma forma de voltar para casa. Contornou a casa e a solução surgiu - uma bicicleta encostada à parede era o ideal. Montou-a e pedalou o mais depressa que conseguia, era urgente sair dali, e pela primeira vez desde que chegara ao Alentejo não sentiu medo dos animais, nem percebeu sequer que estes a olhavam curiosos à sua passagem repentina. Simplesmente tinha de sair dali. Para sempre.

Manuel voltava do campo, depois de ter pontapeado todas as pedras que encontrava no caminho e dito asneiras cabeludas em cada uma delas, quando a viu ao longe a desaparecer para lá do portão da herdade. Tinha sido brusco demais, pensava angustiado, mas o choque daquela notícia deixara-o desvairado. Mas para onde ia ela naquela velocidade? E nem esperara pela mãe? Sentiu um calafrio repentino no momento em que Sofia surgiu à porta de casa com cara de caso.
     - Manuel, desculpa, eu tentei fazê-la esperar por ti, mas ela estava decidida a ir-se embora.
    - Não estou com paciência Sofia, deixa-me. – passou por ela sem a olhar, as chaves da carrinha tinham ficado na sala e queria apanhar Teresa antes de ela chegar à Vila. Precisavam de ficar sozinhos, de conversar sobre tudo aquilo, sem mirones nem vizinhos curiosos.
    - É verdade! – guinchou, agarrando-lhe um braço. – Ela está decidida a ir embora. Falei com ela, e o facto de serem primos é demais para a Teresa.
- Não digas o nome dela como se fosse amigas! Cala-te! O que é que tu sabes sobre a nossa vida? Larga-me já, que não tenho intenções de te magoar… - berrou-lhe, nervoso.
    - Manuel, por favor, sê coerente. Eu estou grávida de um filho teu, qualquer dia nasce o bebé e o que vamos dizer a esta criança? – gritou, fazendo um esforço enorme para chorar – Que o pai foi para Lisboa viver com a prima?
    - Lisboa? Mas do que estás a falar? – Manuel sentia pontadas no peito, os nervos tomavam-lhe o corpo e começavam a deixá-lo tonto.
     - Ela disse-me que vai embora para casa, para Lisboa. Que já tinha decidido tudo, assim que descobriu o vosso parentesco. Não aguenta a vergonha e quer esquecer isto tudo. – mentiu, fazendo um ar grave e desalentado.
     - Isso não é possível… - pegou nas chaves e saiu disparado em direção à carrinha. Não ia acreditar em Sofia, tinha que ouvir tudo aquilo de Teresa.


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