sexta-feira, 3 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 18



- Vais dizer-me o que andaste a fazer de manhã, ou não? – Teresa tentava disfarçar a sua irritação arrumando a mala sem prestar grande atenção ao que colocava lá dentro.
- Nada de especial, fui dar um mergulho à praia, não me lembro bem do nome do sítio. – Rita sabia que se tinha comportado como uma garota e sentia-se ridícula por isso. A sua breve aventura adolescente tinha corrido mal e para piorar a situação, Rui atrapalhara-lhe as intenções de se livrar dos sentimentos que nutria por Francisco. Tinha sido beijada cedo demais, concluía, justificando para si mesma a frustração que sentira.
- Espero que não tenhas mais programas clandestinos combinados com esse idiota, daqui a nada temos de ir embora e não quero perder o comboio. – bufou, trancando os fechos da mala com violência.
- Desculpa Teresa, não queria acordar-te tão cedo. Não te preocupes, não aconteceu nada demais. Para além disso, não tenho intenções de ver o Rui outra vez. – nem nunca mais, pensou aliviada.
Teresa sentou-se na cama e olhou a amiga com curiosidade. Parecia-lhe que Rita lhe escondia alguma coisa, mas ou por vergonha ou sensatez não lho dizia. Decidiu não forçar a amiga a falar naquele momento. A verdade é que voltariam para Safara e lá acabavam as investidas agressivas do ex-namorado à enfermeira inocente. A amiga não tinha estofo para lidar com um tipo daqueles, concluía sentindo-se culpada por ter aceite o jantar do dia anterior.
- Bem, vou telefonar ao Manuel para lhe dizer a hora a que chegamos. Temos de ir cedo porque ainda tenho de instalar a minha mãe lá em casa e ir fazer uma visita ao Francisco que já saiu do hospital. – olhou de soslaio para Rita que corou com aquela informação. – Queres ir comigo vê-lo? Acho que ele ia gostar, e podes sempre alegar que lá vais como enfermeira, sem outras intenções…
- Não sei, não me parece que ele me vá receber muito bem. E depois, hoje estou de folga. – disse com sarcasmo. Na realidade temia mais que tudo ficar perto dele. Iria relembrar-se do ataque beijoqueiro que sofrera de manhã cedo na praia.
- Ok, logo vês. – sorriu-lhe com amizade. Ali estava um casal que precisava mesmo de um empurrão para se entenderem. Estava mais que visto que gostavam um do outro, só tinham de se deixar de tretas, pensou, entendida em relações humanas. – Vamos almoçar!


- Bom dia mãe, - Manuel entrou na cozinha com ar de quem tinha levado uma tareia, escorria suor por todo o corpo, estava encardido do pó que se colara à pele e sentia-se exausto do exercício. – Estou morto… aquele cavalo ia dando cabo de mim.
- Bom dia filho, mas que horror! Por onde é que tu andaste? – António tinha razão, pensou culpada, o filho tinha estado a penitenciar-se toda a manhã em cima do bicho.
- Fui quase até Espanha, há muito tempo que não andava assim sem hora nem destino. Já tinha saudades. – disse sorrindo – Mas amanhã não me mexo, até fiquei aqui com uma dor na anca. Deve ser da idade! – gozou enquanto se lavava na torneira para se sentar à mesa.
- O teu pai disse-me que andavas por aí e eu fiz almoço a contar contigo. Espero que fiques. Há muito tempo que não vens cá a casa sem ser para vir buscar roupa e fugir logo a seguir. – recriminou-o, tinha muitas saudades do filho e sentia ciúmes de Teresa que o levara dali sem cerimónias.
- Claro que fico. – Sofia entrou na cozinha e mostrou o seu melhor sorriso, deixando-o irritado. Por momentos tinha-se esquecido da hóspede. – Olá Sofia, estás boa? Como tens andado? – Acrescentou por educação.
- Olá Manuel, estou boa. – sentia-se nas nuvens desde cedo, não poderia estar melhor, dizia a si mesma, tentando disfarçar a alegria com um ar submisso e apaixonado.
- E o bebé? – o estômago revoltou-se-lhe com aquela conversa e mais uma vez sentiu-se um canalha por não conseguir gostar da ideia daquele filho.
- Está bom, para a semana vou à consulta no Centro de Saúde. – os olhos brilharam em desafio, tinha marcado uma consulta para ser atendida por Teresa e se Manuel estivesse de facto separado dela seria uma doce coincidência. Nada lhe daria mais prazer do que humilhar a sua rival esfregando-lhe o filho de Manuel na cara. Mesmo que este ainda não existisse. Já tinha feito o trabalho de casa e sabia os procedimentos médicos das primeiras consultas de rotina. Seriam pedidas análises, nada que depois não conseguisse resolver. Tinha alguns amigos num laboratório em Coimbra que lhe deviam uns favores.
Manuel retesou-se incomodado. Não queria que Teresa fosse obrigada a atender Sofia sozinha. A ex-namorada era imprevisível e desconfiava no seu íntimo de que era mesmo má pessoa.
- Depois diz-me a hora, quero ir também. – rematou, seria melhor controlá-la por perto.
- Claro! – seria bom demais ele acompanhá-la, rejubilou. Teria de rever o seu discurso, mas com certeza que lhe daria ainda mais gozo ver o ar de Teresa quando ela entrasse no gabinete com Manuel.
O telefone de Manuel tocou e Sofia percebeu que talvez se tivesse precipitado a tirar conclusões sobre o casal. Os olhos dele brilhavam de emoção, constatou furiosa.
- Sim Teresa, olá Amor. Então, está tudo bem? – Manuel esmerou-se no tratamento, queria que Sofia se colocasse no seu lugar, parecia-lhe demasiado esperançosa e alegre. – Sim, estou bem, a que horas chegas? … Ok, vou-te buscar à estação. Estou cheio de saudades. Amo-te. – pronto, concluiu. Assim não havia dúvidas, nem para Sofia nem para Maria. – Então, esse almoço sai ou não sai? – sorriu para as duas mulheres que se apressaram a disfarçar a atenção que tinham dado à sua conversa telefónica.


Fernanda olhava a paisagem com um ar sonhador, parecia uma jovem aventureira, pensava Teresa com carinho. Era tão estranho aquilo que sentia pela mãe, se por um lado não havia ninguém mais importante na sua vida, era também fácil deixá-la e partir em busca do seu próprio futuro, sem culpas. Num momento precisava dela de uma forma desesperada, de consolo, comida caseira e mimos, e noutro conseguia estar semanas sem a ver. Talvez fosse mesmo assim aquilo que os filhos sentem pelas mães, um amor egoísta. Não pôde deixar de se lamentar ao imaginar o seu próprio filho a abandoná-la depois de anos sob os seus cuidados e sustento. O pequeno ingrato que nem sonhasse em ir-se embora sem dar cavaco a ninguém, sentenciou.
- Será que o teu pai fica bem estes dias todos sozinho? – perguntou Fernanda preocupada, trazendo Teresa para a realidade.
- Ele não vai estar sozinho, mãe. A dona Deolinda vai lá todos os dias e faz-lhe o comer. – não era muito diferente do dia a dia de Pedro com a mulher, pensava Teresa com mágoa. Para o pai, Fernanda era uma empregada, ponto final.
- Mas não é a mesma coisa, querida. – lamentou-se, sentindo-se culpada por deixar o marido para ir tratar de assuntos seus. Não estava habituada a colocar-se em primeiro plano.
- Olhem, estamos a chegar! – disse Rita entusiasmada. – Finalmente! Que raio de sítio mais no fim do mundo, já nem sinto o cóxis…
Teresa apertou a mão da mãe, ganhando coragem para enfrentar Safara, desta vez como uma legítima alentejana, com tios, primos, familiares de segundo, terceiro e nem sabia bem de quantos mais graus… Se o Alentejo já a conquistara e se instalara no seu coração, a partir dali sentia-se literalmente engolida por ele.
- Vamos rapariga! – disse-lhe Fernanda otimista – Vamos enfrentar esses bois pelos cornos! – rematou com sotaque alentejano, o que provocou um ataque de riso às três viajantes.
Saíam animadas da carruagem, quando Teresa acenou a Manuel, que já as aguardava encostado ao muro, na sua pose habitual. Fernanda olhou sorridente e cúmplice para Rita que não conseguiu esconder o divertimento da cena. Manuel era de facto muito impressionante, e nem a mãe de Teresa parecia conseguir disfarçar o impacto que aquela imagem causava numa mulher, fosse ela uma jovem de vinte e poucos anos ou uma senhora madura de cinquenta.
- Uau! – sussurrou Fernanda ao ouvido da filha.
- Mãe! Por favor… - sentia-se ruborizar. Sim, Uau, pensava ela, a mãe tinha razão, já se esquecera de como ele era sexy. O seu primo… engoliu em seco e repeliu esse pensamento da cabeça. Queria abraçá-lo, como mulher, depois resolveria os seus dilemas internos.
- Olá meninas! – Manuel aproximou-se animado, dirigindo-se primeiro a Fernanda que se engasgou ao tentar retribuir o cumprimento, provocando uma gargalhada em Rita.
- Manuel, esta é a minha mãe, Fernanda. – apressou-se Teresa a esclarecer – Mãe, este é o Manuel, o meu namorado.
- Muito prazer, - disse Manuel estendendo a mão e esforçando-se por causar uma boa impressão. A mãe de Teresa era uma mulher tão bonita como a filha, e isso causou-lhe um prazer inesperado. Conseguia ver a mulher que amava com mais trinta anos e agradava-lhe o que o futuro lhe reservava.
- Muito prazer, tenho ouvido falar muito de si. – acrescentou Fernanda com a voz pouco segura – Mas é muito mais bonito ao vivo. – confessou ficando automaticamente ruborizada e envergonhada.
- Bem, espero que não tenhas vindo ao Alentejo para me roubares o namorado! – brincou Teresa que se esforçava por não beliscar Rita que parecia tola sem parar de rir. E ela é que andava com um descontrole hormonal devido à gravidez…
Manuel deixou que Rita e Fernanda se encaminhassem até ao exterior da estação agarrando Teresa por um braço, queria abraçá-la longe dos olhares das outras mulheres. Quando as duas desapareceram do alcance visual matou as saudades da forma possível para um espaço público e à luz do dia. Se havia alguma coisa de certo e garantido na sua vida era aquela mulher. Toda a angústia que sentira até então e as dúvidas sobre o impacto daqueles sentimentos por Teresa na sua sanidade mental se esfumaçaram, voltando apenas a sensação serena de estar completo e feliz.
- Não tornas a ir para lado nenhum sem mim! – resmungou sem conseguir deixar de sorrir.
Teresa sorriu ainda a recuperar o fôlego daquelas demonstrações de saudades tão efusivas. Podia ser seu primo, mas que se lixasse, disse a si própria, não iria perder aquele homem para nada nem ninguém.


- A minha menina volta hoje de Lisboa, - disse Miquelina cheia de entusiasmo enquanto servia a Francisco uma sopinha de tomate- ai que preocupação, aquela rapariga sozinha numa cidade tão grande, nem dormi nada de noite.
Francisco olhou-a recriminador, a hora do comer era sagrada, não queria perder o apetite com conversas sobre Rita.
- Ela já é grandinha, não se preocupe. – disse com sarcasmo.
- Ai filho, mas uma pessoa tem sempre medo. Sabe-se lá o que lhe podiam fazer, aquilo é só bandidos. Então a gente não vê nas notícias? É só gente a ser assaltada, agredida, morta, ou pior, moças a serem violadas! – enfatizou.
Francisco engasgou-se divertido, aquela velha era cómica. Não fazia ideia, mas era uma comediante nata.
-Pfff, violada,… - disse com escárnio – tomara ela!
- QuÊ?! Ai meu Deus, que disparate. Não diga uma coisa dessas, a minha menina desgraçada. – deitou as mãos à cabeça, horrorizada com os modos pouco sensíveis do toureiro.
- Dona Miquelina, por favor, deixe-me comer sossegado. Não quero saber, e tenho raiva de quem sabe alguma coisa sobre a sua querida sobrinha! – esclareceu o toureiro sem paciência. A mulher passava os dias a falar sobre Rita, e ele queria sobretudo tentar esquecê-la, o que se tornava numa tortura constante.
- Bem, vou lá a casa da minha irmã dar-lhe um beijinho e ver se está tudo bem com ela. – continuou, como se Francisco não tivesse dito nada. – Quer que lhe mande algum recado?
- Ó Deus… - começava a desconfiar que o intuito da velha era enlouquece-lo, e já não faltava muito, pensava exasperado – Não, dona Miquelina, não quero mandar recado nenhum à sua sobrinha… - esclareceu resignado.
- Está bem, eu digo-lhe. – rematou sorridente.
- Mas diz-lhe o quê? – pousou a colher com estrondo, mas a mulher era louca?
- Que anda abatido, filho. Anda triste, deve ser por estar sempre aqui sozinho, sem se poder mexer livremente. Tem de ter cautela, ainda apanha uma daquelas depressões!
- Não ando nada triste nem abatido! – gritou, já sem se conseguir controlar. – Não quero que dê recado nenhum à Rita, percebeu? Aliás, eu proíbo-a de lhe falar de mim. Não preciso de nada nem de ninguém, estou muito bem aqui sozinho, sossegado! – Francisco encolheu-se de dores, uma forte pontada atingiu-o no abdómen, como se algo se tivesse rasgado na sua pele.
- Está a ver? – gritou Miquelina desesperada. – Ai valha-me Deus, não se pode enervar. Ainda rebenta alguma dessas costuras! Deixe-me ver.
Francisco não se conseguia endireitar, a dor era forte e sentia um líquido quente a escorrer pela barriga.
- Acho que estou a sangrar… - disse com dificuldade. – Por favor, chame lá o raio da enfermeira. – acrescentou em voz baixa. Tinha de admitir que naquele momento pagaria para Rita ali aparecer, estava literalmente “borradinho de medo”.
Miquelina desapareceu a correr, da forma mais rápida que as suas velhas pernas conseguiam, exclamando lamúrias em voz alta. Queria aproximar a sobrinha do toureiro, mas também não pensava que uma coisa daquelas pudesse acontecer. Malditas rezas e promessas que tinha feito a Santo António, aquilo lá era forma de fazer as coisas, recriminava Miquelina as intervenções divinas. A casa de Rita era bem próxima da de Francisco, mas não teve de bater à porta porque a sobrinha descia a rua naquele momento, ficando em pânico ao ver a velha tia desaustinada a correr na sua direção.
- Ai Rita, acode! Acode filha que o teu namorado está a esvair-se em sangue! – gritou Miquelina.
- O meu namorado?! – a mulher devia ter estado a beber ginja novamente, pensou Rita.
- O Francisco, o toureiro, estávamos a conversar lá em casa dele, e de repente ele contorceu-se de dores, começou a sangrar e suplicou para te vir buscar! – esclareceu, enquanto a puxava já rua abaixo em direção à casa do toureiro.
- A sangrar? – aquilo não era bom – Suplicou? – não conseguiu evitar um sorriso. Francisco tinha suplicado pela sua ajuda. – Espere! – parou a corrida, assim que começou a pensar claramente. – Tenho de ir a casa buscar material para o curativo, se ele rebentou alguma costura preciso do meu estojo de primeiros socorros. – correu em direção a casa o mais rapidamente que conseguiu, entrou como um tiro e saiu novamente, sempre com um sorriso que teimava em não lhe deixar a cara.
Entraram na casa de Francisco minutos depois, sem fôlego com a corrida e  Rita obrigou a tia a sentar-se, não queria ter de a assistir também. Dirigiu-se à cozinha cautelosamente, nunca ali tinha estado, mas estranhamente tudo lhe parecia familiar e acolhedor, era da reação de Francisco que tinha medo.
- Posso? – espreitou para dentro da divisão, procurando o toureiro.
- Aqui… - Francisco encontrava-se caído no chão, não se conseguia manter direito com as dores e o cheiro do sangue dera-lhe uma tontura que o fez perder as forças.
- Eu ajudo-te, calma. – Rita avaliou superficialmente o estado do toureiro e decidiu que o melhor seria movê-lo para a cama para conseguir tratar do curativo com cuidado. – Vamos levantar devagar e caminhar até ao teu quarto. Tens de te deitar para eu ver a ferida. – informou-o colocando-se debaixo do braço para o ajudar.
Francisco obedeceu em silêncio, não queria discutir com quem lhe ia coser a barriga, mordeu os lábios para evitar gritar com as dores e arrastou-se até ao quarto, tendo Rita como bengala.
- Pronto, agora relaxa, vamos ver o que é que fizeste à costura. – disse-lhe enquanto o deitava. Levantou-lhe a camisola o mínimo possível, com as mãos meio trémulas dos nervos, e avaliou a situação. A ferida era pequena, mas precisava de um reforço na costura, decidiu.
- É preciso usares agulha e linha? – perguntou Francisco enjoado com a visão de Rita a empunhar o material de sutura.
- Sim, rasgou um pouco, não pode ficar assim. – respondeu-lhe. – isto vai doer um bocado, aqui não tenho anestesia para te dar. – olhou-o com carinho.
- Ok… cose lá isso duma vez… - Tapou os olhos com um braço e o outro utilizou para se agarrar aos lençóis enquanto a enfermeira refazia a costura.
- Então, mas o que foi que fizeste para rebentar isto? – queria entretê-lo de forma a que lhe custasse menos passar o tempo enquanto era picado a sangue frio.
- A tua tia enervou-me… - confessou.
- Consigo imaginar, - disse Rita divertida – ela consegue ser bem chata! – mantinha o ritmo da sutura o mais rápido que conseguia.
- Chata é favor… é uma autêntica sarna… au!
- Desculpa, está quase a terminar. – aquilo devia doer, dizia impressionada com a resistência do toureiro. – Pronto, mais um ponto e terminei!
- Caramba! Esse doeu mais que os outros todos juntos! – reclamou ralhando.
- Já está! – sorriu-lhe, assim que Francisco tirou o braço destapando os olhos. – Como podes ver, nem se nota que não é a primeira costura! – disse orgulhosa da sua habilidade com as agulhas.
- Podes limpar esse sangue daí? Desde o acidente que não me dou muito bem com o cheiro do sangue… - confessou a sua fraqueza meio atrapalhado.
- Claro, faz parte do serviço. – brincou Rita, que deixou a ferida imaculada. – o melhor é trocares de camisola, essa está toda suja. – sugeriu enquanto procurava uma roupa lavada na cómoda do quarto.
Francisco sentia-se estranhamente envergonhado quando precisou de tirar a camisola e ficou em tronco nu, era um disparate, pensou. O olhar dela era profissional, o que o incomodou ainda mais, ficando sem jeito perante uma mulher, pela primeira vez em muitos anos.
- Agora não te podes levantar. – aconselhou Rita, que começou a arrumar o seu material de trabalho. – E eu vou avisar a minha tia para te deixar sossegado, nada de discussões nem zangas. – acrescentou.
- Obrigado, era um grande favor que me fazias se ela parasse de me azucrinar com conversas sobre ti… - confessou, sentindo-se dorido e cansado.
- Mas o que é que ela anda a dizer sobre mim? – de repente temeu que a velha tia se tivesse descaído e andasse a contar confidências suas ao toureiro.
- Nada de especial… - engoliu o comprimido para as dores que Rita o forçou a tomar para conseguir dormir melhor. – Obrigado.
- Bem, já estás cosidinho, agora tenta dormir. Amanhã de manhã venho ver como passaste a noite…. – queria mesmo era ali ficar a vigiar de perto, pensava angustiada – e já sabes, se precisares de alguma coisa, telefona-me. Acho que nunca te cheguei a dar o meu número, - confessou atrapalhada – vou deixar aqui na mesinha de cabeceira.
Francisco alcançou-lhe a mão, o cheiro a flores do campo começava a mexer-lhe com o juízo, tinha vontade de a cheirar mais de perto e tê-la ali de noite a velar-lhe o sono.
- Podes não ir já? – perguntou-lhe com sinceridade.
- Hum?... Sim, claro. Vou só ver como está a tia, ela fez uns sprints demasiado fortes para a idade. – o seu coração rebentava no peito, não queria acreditar que ele a quisesse por perto. Precisava de beber um copo de água para acalmar os nervos, dizia a si mesma enquanto procurava pela velha Miquelina.
A espertalhona tinha saído de fininho, concluiu divertida, a porta estava fechada e não havia mais ninguém em casa. Regressou ao quarto e sentou-se numa cadeira em silêncio a observar o toureiro que parecia dormitar, era tão bonito… e tinha tantas saudades de o ver assim de perto… O seu telemóvel tocou, sobressaltando-a e acordando Francisco que a fitava com aquele olhar perturbador.
- Estou? Sim, quem fala? – não conhecia o número que lhe ligava – eh, olá, tudo bem? – Rui telefonava-lhe naquele momento, só podia ser brincadeira, lamentava-se, evitando o olhar do toureiro que ficara curioso com o telefonema mistério. Levantou-se, com as pernas bambas, saindo de mansinho do quarto para falar em privacidade. Tinha de o despachar depressa. – Sim, chegámos bem, obrigada… Não, não fiquei zangada. – por favor, que raio queria ele agora com aquela conversa da treta… choramingava impaciente – Claro, amigos na mesma. Ok, irei, claro… - só podia estar a gozar, o parvalhão, ainda queria que ela voltasse a Lisboa, só se fosse doida. – Desculpa, mas agora tenho de ir, não é uma boa hora. Beijinhos Rui. – desligou o telefone e suspirou de alívio.
- Desculpa, era um amigo a querer saber se tinha chegado bem a casa… - tentou explicar resumidamente.
- Sim, o tal Rui! – bufou Francisco furioso com aquele telefonema do lisboeta. – Olha, não te quero empatar mais, podes sair, eu fico bem. Vai lá devolver a chamada ao teu novo amigo betinho! – o facto de estar preso na cama e de não a puder arrastar porta fora deixava-o louco.
- Mas… - a súbita mudança de humor do toureiro apanhou Rita de surpresa, que ficou perplexa sem saber como reagir.
- Já disse. Quero dormir, obrigada pela ajuda. Até amanhã. – olhou-a duramente, sentira-se ridículo por se ter exposto, vulnerável à presença dela, afinal ela já tinha outras distrações e amizades, não iria mendigar a sua atenção.
- Tudo bem, mas deixa-me dizer-te que para a próxima, podes estar com as tripas de fora, escusas de me chamar, - pegou na folha de papel com o seu número e arrumou-a furiosa dentro da carteira – és um ingrato e um parvalhão. – berrou-lhe a sentir-se ferver. Aquele homem era demasiado imprevisível e insensível. Seria possível que num momento era simpático e logo de seguida se tornava num estúpido? Antes de sair do quarto, voltou-se e olhou-o uma última vez:
- Fica sabendo que não és o único homem à face da terra, e sim, o Rui está interessado em mim. Como parece que te incomodo tanto, acho que lhe vou mesmo devolver a chamada e começar a visitar mais Lisboa! – saiu apressada, as lágrimas já começavam a querer cair e não lhe daria esse gosto.
Francisco queria partir o quarto todo, ou ir atrás dela e dizer-lhe das boas. Mas a sua condição impedia-o, o que o fez ficar mais frustrado e furioso. Maldita mulher que só tinha aparecido na sua vida para o infernizar… lamentava-se. Também tinha de confessar que o olhar magoado dela o perturbara, deixando-o confuso. Se já tinha interesse no tal Rui, porque se incomodava tanto quando ele a expulsava de sua casa? Devia era ficar aliviada.
Teresa e Manuel entravam em casa de Francisco no exato momento em que Rita saía esbaforida de lágrimas nos olhos, passando pelos dois sem abrandar a marcha.
- Rita! Mas o que aconteceu? – Teresa tentou em vão comunicar com a amiga, que pediu que a deixassem em paz com linguagem gestual, fugindo em direção a casa. – Aquele merdas… o touro não o conseguiu matar, mas eu estou prestes a fazê-lo! – bradou, entrando de supetão pela casa a dentro.
- Tem calma. Eles são adultos, que se entendam. – pediu-lhe Manuel, seguindo-a até ao quarto de Francisco.
- Ó meu parvo, o que foi que lhe fizeste agora? – rugiu Teresa completamente descontrolada.
- Desculpa?! Manuel, controla a tua mulher! – desdenhou o toureiro fingindo-se impassível perante o confronto inesperado.
- Eu digo-te o que é que me controla! Tu és um grandessíssimo ingrato, a rapariga esteve semanas a dormir numa cadeira à tua beira no hospital, a dar-te papinha na boca, vem aqui visitar-te e tu consegues pô-la a chorar outra vez?
- Outra vez? – perguntou confuso – Ela esteve aqui em serviço, não me veio visitar, só para te esclarecer. Tive uma emergência e ela foi obrigada a vir coser-me a barriga. Depois recebeu um telefonema do tal Rui e eu disse-lhe para ir embora. – resumiu sem escrúpulos.
- Vês? – disse Manuel na direção de Teresa. – Afinal ela deve ter chorado por causa desse lisboeta d’uma figa! 
- Mas quando é que ela chorou por mim? – Francisco ficara curioso com aquela informação.
- Ó homem, és mesmo um básico! Ela está apaixonada por ti, a cuidar de ti no hospital e um dia dá de caras contigo aos linguados à tua antiga namorada, que fazes questão de bradar aos Céus, ter sido o grande Amor da tua vida!! – gritou Teresa já sem paciência. – Querias que voltasse de lá a saltitar de alegria?
- Apaixonada… tretas! Saiam mas é os dois de minha casa. Preciso de dormir e já estou cheio desta conversa. – pediu com maus modos, desejoso de ficar sozinho e pôr a cabeça em ordem com aquelas novas informações que o incomodavam.
- Com todo o gosto! Espero que te doa muito a barriga e que precises de uma enfermeira novamente e a única disponível em Safara se vingue das tuas maneiras! Só se ela for muito parva é que algum dia te torna a ajudar. – bradou, agarrando Manuel por um braço e puxando-o possessiva.
- Não precisavas de o amaldiçoar… - Manuel sentia-se bem divertido com aquela faceta explosiva de Teresa que ainda não conhecia. Que instintos maternais tinha aquela mulher pela amiga…
- Que ódio! Só me apetece comer uma sandes de torresmo e esquecer isto tudo.
- Sandes de torresmo? – as mulheres eram um mistério.

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(imagem, internet)

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