terça-feira, 7 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 20




Rita esticava-se ao sol no seu lugar preferido da casa, o pátio exterior onde a mãe cultivava ervas aromáticas e o pai insistia em manter algumas gaiolas com coelhos e galinhas, heranças culturais de outros tempos. Tinha conseguido impor algumas mudanças estéticas ao local, colocando uma rede de pano e um local de sombra com cadeiras reclináveis, o que perturbava os pais de uma forma que ela não entendia. Sempre que ousava estar no quintal sem ser de cócoras a tirar ervas daninhas aos vasos e aos canteiros, estava a pecar! Se já se tinha visto em algum lado, uma rapariga na flor da idade a ler ao sol, quando havia capoeiras para limpar e folhas para varrer…  
Sorria ao imaginar como seria bom um dia ter uma casa com um quintal só dela, onde pudesse dar ao ócio e ao prazer o tratamento desejado… Comeria de prato no colo, aproveitando o clima maravilhoso que o Alentejo tinha no Outono, e não haveria coelhos enfiados em casotas escuras, nem galos furiosos para atacar quem se lhes atravessasse no caminho. Só ela, os livros, o sol e as suas açordinhas! E Francisco… disse-lhe uma voz esperançosa que surgiu para lhe apertar o estômago de angústia. Maldito toureiro, era tudo o que faltava num quintal como deve de ser…
Revolvia-se em memórias tauromáquicas quando a campainha da porta começou a tocar insistentemente.
- Caramba! Não há ninguém em casa? – berrou em direção à cozinha. 
Arrastou-se pela casa. Uma criada, sim… nem que fosse só para abrir a porta… imaginava sorridente.
- Teresa! O que se passa? – o aspeto tresloucado da médica fê-la sobressaltar-se.
- Rita, preciso de ajuda. Tenho de voltar para Lisboa ainda hoje.


Fernanda sentia-se ansiosa, Teresa e Manuel tinham desaparecido da herdade sem dar nenhuma explicação e aquela Sofia mantinha um ar de superioridade que a deixava desconfortável. Notou que António também não ficava satisfeito na presença daquela hóspede, mas Maria dos Prazeres desfazia-se em cuidados e atenções de forma submissa, pondo o marido visivelmente maldisposto. Era um ambiente estranho, aquele que se vivia naquela casa, matutava.
Os telefones dos filhos não davam sinal, e António acabou por levar pessoalmente Fernanda ao centro de Safara, não podiam esperar eternamente pelos dois.
Havia qualquer coisa de errado naquilo tudo, admitiam, receosos de que os jovens tomassem alguma atitude irrefletida. Fernanda temia acima de tudo que a filha se sentisse mal e pudesse prejudicar o bebé, mas não iria partilhar esse medo com o irmão. Não ainda.
- O Manuel é muito parecido com o meu… quer dizer, com o nosso pai. – corrigiu, com satisfação. – Um feitio um pouco difícil, mas um excelente coração.
- Não vamos pensar no pior. Eles devem ter ido conversar os dois, com calma. – tinha mais esperança que certezas no que dizia.
- Claro, coitados, levarem assim com uma notícia destas. Assim que souber de um dos dois aviso-a.
- Claro, combinado. E trata-me por tu. Afinal, somos irmãos. – sorriu ao despedir-se. – Queria que soubesses que fiquei muito feliz com a família que ganhei. Assim que souber de alguma novidade, eu aviso.
António despediu-se de Fernanda e ficou alguns segundos a olhá-la a afastar-se do carro. Conseguia ver o jeito do pai a andar, aquele desengonçar de ancas tão característico do Joaquim Silva. Não tinha qualquer dúvida, ela era sua irmã. Afinal os sonhos dos velhos também se realizavam, não iria ficar mais sozinho, teria sobrinha, netos, filho, irmã, mulher. Podia ser tudo uma salganhada, mas eram todos seus, pensou com carinho.

- Manuel, onde está a Teresa? – Fernanda sentia que algo de errado estava a acontecer, a filha não estava com o namorado que parecia desesperado.
- Não sei, vim logo atrás dela, estou farto de bater à porta e nada… - conseguiu explicar, meio confuso com tudo aquilo.
- Mas como é que ela veio da herdade? Pensávamos que tinham vindo os dois de carro.
- Ela saiu disparada de bicicleta, eu fui a casa buscar as chaves, meti-me na carrinha e vim para aqui. Pensei que já estivesse em casa. – lamentou-se, omitindo a pequena discussão com a Sofia, que o fez perder alguns minutos.
- Bem, pode ter ido espairecer, tomado algum carreiro, antes de vir para casa. Vamos entrar e esperar. De certeza que está quase a chegar. – Encaminhou-o sorrindo-lhe, não era nada bom que se enervassem sem motivos. Assim que a filha chegasse queria que os dois conversassem com calma. Apressou-se a fazer um chá, era necessário ocupar o tempo com algo de útil, e aquele rapaz precisava mesmo de um tónico calmante.

-Tens a certeza? – Rita tremia que nem varas verdes de tantos nervos.
- Achas que sim? Que tenho alguma certeza neste momento? – berrou-lhe Teresa descontrolada. – Não posso continuar aqui, isso eu sinto. Aquela Sofia tentou matar-me, não compreendes isso? Foi ela… e se me atropela aí numa estrada qualquer? Eu sei lá o que aquela mulher pode fazer…  Não sou só eu que estou em perigo, e ela nem sabe disso, porque quando soubesse era capaz de me passar por cima, até de tractor! O filho é o único trunfo que ela tem. Ou pensa que tem. Não vou utilizar o meu como escudo ou arma nesta guerra. – concluía resignada - Eu desisto, ela que fique com o Manuel, a Herdade, os bois todos, não quero saber de mais nada disto. Só quero que me leves embora e nunca abras a boca sobre nada do que sabes. – suplicou, enquanto limpava as lágrimas. 
Rita acelerou a fundo na velha carrinha do pai, só rezava para que Teresa desistisse daquela viagem maluca de fuga para Lisboa antes que o veículo pré-histórico avariasse. Como explicaria ao pai que tinha “roubado” a sua relíquia e pior, que a tinha sujeitado a uma viagem daquelas? Não sabia se havia de chorar ou gritar, tantos eram os nervos. Sentia-se pronta a matar a tal Sofia, a mulher que quase lhe tinha morto o “seu” toureiro, ameaçava a sua amiga e iria causar uma catástrofe na sua casa, assim que alguém percebesse que a garagem estava vazia. 
Benzeu-se e beijou a imagem de S. Cristóvão, o padroeiro dos viajantes que balouçava no espelho retrovisor. Precisariam de toda a ajuda possível. 

Manuel começava a perder a paciência de tanto esperar. Tinha acontecido alguma coisa, estava cada vez mais convencido disso. Teresa já tinha tido mais que tempo para chegar e começava a escurecer. 
- Chega, é impossível a Teresa ter vindo para casa. Aconteceu alguma coisa. Vou à procura dela. - aquela espera enlouquecia-o.
- Por favor diz qualquer coisa assim que a encontrares. – suplicou Fernanda que também já começava a ser invadida pelo medo. Fechava a porta quando o telefone tocou.
- Filha! Mas onde é que tu andas? Está tudo bem? – Um alívio percorreu-lhe o corpo, tirando-lhe toneladas de cima. – Sim, o Manuel estava aqui comigo, temos estado à tua espera. Ainda o consigo apanhar, saiu mesmo agora para ir à tua procura… Ok… mas, para Lisboa Teresa? Hoje? Mas como… Querida, não estás a precipitar as coisas?... – Fernanda ouviu as explicações emocionadas da filha, e uma mágoa muito grande invadia-a. Como podia a história repetir-se daquela forma? Teresa a sacrificar-se como a sua mãe, a fugir com um filho. Não!, decidiu, depois de desligar o telefonema e prometer não dizer a ninguém que sabia onde Teresa estava. Se dependesse dela a filha não iria ter um bebé sem pai e desaparecer para sempre do Alentejo como uma criminosa. Teria de haver outra solução.

Manuel percorreu todos os caminhos possíveis da herdade à vila, vezes sem conta, sem sucesso. Uma dor inexplicável crescia dentro de si, nunca se tinha sentido tão miserável e impotente. Todos os cenários lhe passavam pela cabeça, morte, acidente, rapto, não havia disparate que não o assombrasse, sendo cada vez mais difícil de aguentar a frustração de não a encontrar. Como podia uma pessoa desaparecer assim? Nem da bicicleta havia vestígios, ela só podia andar perdida em alguma parte daqueles intermináveis caminhos de terra batida que levavam a centenas de destinos diferentes no campo. A facilidade com que Teresa podia perder o norte e não saber orientar-se espacialmente era o que lhe mantinha a esperança e obrigava a continuar a busca. Não podia simplesmente aceitar que ela fugisse daquela situação, seria o princípio do fim. Temia acima de tudo que Sofia estivesse envolvida no desaparecimento de Teresa, temia-se a si mesmo, do que poderia fazer-lhe se descobrisse alguma influência da ex-namorada. Daria mais uma volta pelos carreiros improváveis, dali iria para a GNR. Não aguentava mais ouvir-se a si mesmo sem enlouquecer.

- Já há notícias dos dois? – Maria dos Prazeres sentia o marido mais distante ainda depois de ter voltado da Vila. 
- Não. – respondeu sorumbático. Qualquer coisa lhe dizia que a mulher estava a esconder-lhe algo, e não sabia bem se queria descobrir o que era. Toda a vida sentira aquele remoinho na nuca, como um formigueiro a atravessá-lo na parte de trás da cabeça. Por vezes desaparecia, mas logo alguma coisa no comportamento dela o fazia ligar as antenas de novo. – Ouve lá, ó Maria... Essa tipa não fez nada de estranho hoje? – perguntou de chofre, olhando-a duramente.
- Quem? A Sofia? – os dedos de Maria dos Prazeres não lhe obedeciam, rodando a ponta do avental sem parar. – Que disparate, o que haveria ela de ter feito?
- Não sei, não estive aqui na cozinha. – concluiu ironicamente. – Por isso te estou a perguntar. Ouviste alguma conversa, viste-a a chatear a Drª?
- Bem, nós estivemos aqui as três, - a boca secava-lhe violentamente, levantou-se nervosa para beber água e pensar no que havia de dizer. – mas… só falámos coisas banais. Quer dizer, sobre a gravidez da Sofia, e depois eu saí. Ficaram aqui as duas um bocado. – bebeu mais um gole, poisando o copo com a mão trémula.
António agarrou-lhe o pulso e tirou o copo da mão de Maria dos Prazeres. Queria consolá-la, a mulher estava visivelmente afetada com os últimos acontecimentos e António recriminava-se por andar frio com ela. Desde a chegada de Sofia que quase não conversavam os dois, sem ser para gritar e discutir.
- Ouve Maria, eu tenho sido bruto contigo, já te devia ter pedido desculpa… - dizia, ao mesmo tempo que a puxava para um abraço, gesto que tinham perdido o hábito. – Tu andas nervosa com esta história do neto, e a mulher cá em casa, o Manuel a viver longe de nós. Não fiques triste, pelo menos tenta ver as coisas pelo lado positivo. Agora já não estamos os dois sozinhos, é parentes por todo o lado. Tudo se vai resolver, não te preocupes. – beijou-a na testa, determinando o fim da breve conversa. – Agora preciso de descansar. Vou esticar-me um bocado na cama, se o Manuel telefonar a dar notícias, avisa-me.
Maria dos Prazeres ficou imóvel no meio da cozinha. Sentia-se uma criminosa, a esconder tanto segredo. Teria de arranjar forças e coragem, muita coragem para enfrentar o passado e António.


- Tou? Manuel! Onde é que andas? – Francisco estava farto de estar sozinho enfiado em casa a ouvir a Dona Miquelina matraquear a toda a hora.
- Francisco, agora não é boa hora. – respondeu com aspereza.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa? – o tom do amigo era estranho.
- A Teresa desapareceu, não sei dela… estou a dar em doido… já procurei em todo o lado, saiu de bicicleta da herdade e nunca mais apareceu – lamentou-se.
- Como assim? Mas está de noite, ela não foi para casa? Em casa da Rita, já viste? – perguntou Francisco que ficou alerta com o desespero da voz de Manuel. Não era normal aquele comportamento.
- Não, aí não vi. Vou lá agora. – desligou sem mais explicações.
- Estranho… - comentava Francisco a olhar o telefone.
- O que foi menino? –A Dona Miquelina entrava no quarto de Francisco com a roupa lavada para o toureiro trocar depois do banho.
- A Dra Teresa desapareceu. – confessou.
- Desapareceu? Ai valha-me Deus, pobrezinha. Mas desapareceu donde?
- Diz que saiu da herdade de bicicleta e ainda não chegou.
- Mas de noite? De bicicleta? Ai meu Deus, que pode ter tido um acidente, ser atropelada… - começava a lamentar-se nervosa.
- Não diga disparates! Vá mas é a casa da sua sobrinha e pergunte-lhe onde é que a Drª está. De certeza que essa sabe. – concluiu com escárnio.
- Sim, vou já lá! Esteja descansado menino, que vou pedir à Ritinha para vir aqui falar consigo. – disse prontamente.
- Eu não quero que a sua sobrinha aqui venha! Pergunte-lhe só se ela sabe da amiga! – gritava em direção à porta enquanto a sua ajudante corria para fora de casa. – O raio da velha é doida… 


- A Rita não está, Dr Manuel. – explicava Julieta nervosa com a atitude do filho do Engº. O que teria aprontado a miúda para o rapaz querer falar com ela.
- Não está? – o medo de que Teresa tivesse desaparecido por livre vontade crescia-lhe no peito, agoniando-o. Como podia ela deixá-lo assim sem explicações?
- Não…Sr Francisco?! – olhou espantada a porta de onde surgia o toureiro com cara de poucos amigos.
- Onde está a sua filha? – perguntou duramente sem sequer cumprimentar ninguém.
- Mas, o que é que estás aqui a fazer? – Manuel ralhava com o amigo.
- Se descobrires onde anda a enfermeira vais ver que encontras a Drª! – disse sarcasticamente – Vamos, onde está a sua filha? – dirigiu-se duramente a Julieta.
- O carro desapareceu! – bradou o pai de Rita meio desfigurado que chegava esbaforido da garagem.
- Eu não disse? – concluiu cheio de si – Era óbvio que a “menina” estava metida nisto! – rugiu.
- Francisco, cala-te, não estás a ajudar! – Manuel sentia-se cada vez mais desesperado com o facto de que Teresa tinha ido embora.
- Esperem lá… ela foi naquele chaço velho, de noite… - Francisco dirigia-se aos pais de Rita de forma autoritária. – E vocês deixam-na?
- Calma lá! – respondeu o pai da enfermeira – Nós não sabíamos de nada! Mas quem é que o Sr pensa que é para nos estar a cobrar explicações?
- Sr Mário, desculpe o Francisco, ele está nervoso com a situação. – Manuel arrastava o toureiro porta fora. – Mas tu estás parvo, ou quê?
- Não percebes? Elas piraram-se de noite num carro todo podre, que certamente não anda há cinquenta anos, nem gasóleo deve ter!! E ninguém sabe para onde foram!! – voltou a entrar pela casa a dentro levando o Manuel de arrasto. – Dona Julieta, telefone à sua filha! – ordenou.
- Sr Francisco, já liguei imensas vezes, ninguém atende… - lamentava-se chorosa.
- Dê-me cá o telefone. – pegou no aparelho e começou a ligar insistentemente andando de um lado para o outro no corredor da casa. – Vamos ver se atende ou não atende!!
- Não se preocupem, nós vamos encontrá-las… - Manuel consolava os pais de Rita que pareciam em choque com o comportamento da filha. – Não devem ter ido longe… - dizia mais para se convencer a si mesmo.


- Teresa, a minha mãe não pára de ligar… - Lamentava-se Rita, na esperança de poder atender o telefone e descansar a mãe.
- Fala lá com ela! Mas por favor não digas para onde vamos, preciso de uns dias para pensar na minha vida. – suplicou Teresa.
Rita suspirava de alívio. Nunca tinha mentido aos pais, agora desaparecia de noite e levava o carro sem autorização… eles deviam estar em pânico.
- Estou, Mãe? 
- Onde é que vocês estão? Pára imediatamente esse carro! Tu não tens experiência a conduzir e vais-te meter de noite na estrada num carro velho? – Francisco lançava sem parar aos gritos.
- Mas… - desligou o telefone automaticamente, ficando petrificada. – Era o Francisco… a ralhar comigo… - não sabia bem se se sentia feliz ou mais assustada ainda.
- Tu livra-te de lhe dizeres para onde vamos! Mas o que é que ele quer? – Teresa sentia as mãos a suar de nervos e culpa. Já andava toda a gente num reboliço à procura delas.
- Não pára de tocar Teresa… - choramingava Rita cada vez mais certa de que os pais a iriam deserdar.
O telefone tocava sem descanso, tornando o som da música de chamada numa tortura no meio do silêncio em que as duas viajavam. Tinha muito receio de não conseguir desobedecer ao toureiro, e simplesmente dar meia volta com o carro e ir pedir-lhe perdão por ter sido tão ousada… Era irresistível aquela maneira possessiva com que ele demonstrava que se preocupava com ela.
- Atende, e desta vez diz-lhe para se meter na sua vida.
Rita acenou com a cabeça, tentaria ser corajosa.
- Sim…? – saiu-lhe quase num gemido de medo.
- Tu desligaste-me o telefone? Bem, minha menina, diz-me já onde é que estás! – berrava o toureiro deixando toda a gente à sua volta em sentido e espantada.
- Francisco… não posso dizer. – sussurava com as mãos a tremer de nervos.
- Sabes por acaso se o carro tem combustível?? – gritava.
Teresa tirou o telefone da mão de Rita abruptamente, aquele toureiro era um descarado e ainda a fazia dar meia volta com o carro.
- Francisco, sou eu, a Teresa. Pára de telefonar, deixa a Rita em paz! – gritou.
- Teresa? – surpreendeu-se.
- Teresa? É a Teresa ao telefone? – perguntou Manuel aliviado, arrancando o telemóvel das mãos de Francisco – Dá cá isso. Teresa, onde estás? O que é que se passou? 
- Manuel… desculpa, mas tenho de ir. – conseguiu dizer, depois de engolir um gemido de choro.
- Mas tens de ir pra onde? – berrou desesperado – Por favor Teresa, volta para casa, temos de conversar sobre isto tudo. – disse já em tom de súplica, sendo observado duramente por Francisco que repudiava homens que suplicavam às mulheres fosse o que fosse.
- Manuel, não há nada para conversar. Nós não podemos ficar juntos, não é saudável. Já decidi que vou voltar para Lisboa. Por favor respeita a minha decisão. – desligou o telefonema a tempo de soltar um grito que fez Rita estremecer e parar o carro na berma da estrada. Teresa rebentou num choro histérico e assustador, era então assim que terminavam os grandes amores, pensava Rita angustiada.


Manuel ficou a olhar o aparelho durante uns segundos, tentando assimilar o que ouvira. Francisco falava-lhe exaltado, mas parecia que os sons não lhe chegavam aos ouvidos, como se se encontrasse numa bolha de ar e tudo vibrasse à sua volta sem parar. “não podiam ficar juntos, não era saudável?!”, seria aquilo uma piada de mau gosto? Como podia algum dia viver sem ela? Como é que ela conseguia separar-se assim? Daquela forma fria… Passou pelos familiares de Rita, encaminhando-se para fora de casa, precisava de ar, de respirar, sentia-se sufocado e quente.
- Manuel! – gritou Francisco, abanando-lhe os ombros com força, como que a chamá-lo para a realidade. – O que foi? O que é que se passa?
- Ela não vai voltar… - conseguiu responder enquanto passava as mãos pelo cabelo, numa atitude nervosa e repetitiva.
- Não penses assim, ela está nervosa. – apressou-se a justificar. – Amanhã vais ver que volta para casa. – não sabia bem o que dizer para tirar o amigo daquele transe angustiado.
- Francisco, eu não consigo viver sem ela.- confessou, olhando o toureiro desorientado.
- Consegues… - abraçou Manuel com força, sabia bem o que era sofrer daquele mal, raios partissem nas mulheres todas. – Vamos, tu precisas é de beber, e eu também!
Arrastou Manuel até sua casa, sem afrouxar o abraço por cima do ombro, parecia-lhe que o amigo desabaria a qualquer momento se o largasse. Entraram em casa e Francisco deixou Manuel na sala indo à procura da garrafa apropriada para aqueles momentos difíceis. Felizmente tinha bastante stock daquele elixir dos infelizes, pensou aliviado.


 
- Tens a certeza de que ficas bem sozinha? – Teresa chorara todo o caminho até Lisboa e parecia um farrapo, desbotado e velho. – Posso ficar aqui contigo, se quiseres…
- Não, obrigada Rita. És uma boa amiga, mas eu preciso muito de ficar sossegada no meu canto. – deu-lhe um beijo na cara – Amanhã telefono. Vai com cuidado, por favor.
Rita queria abraçar Teresa com força, dar-lhe algum consolo, mas sentia-se tão abalada com aquele desfecho que nem conseguia olhar bem a amiga. Teria que fazer todo o caminho de volta quase até Espanha e no dia seguinte iria trabalhar, pensou exausta.
Entrou no velho carro e chorou como um bebé agarrada ao volante. As pessoas passavam pelo veículo estacionado e olhavam curiosas a cena dramática, mas por ali ninguém se metia nos problemas dos outros, reparou. Podia estar prestes a matar-se que não haveria uma alma que lhe oferecesse ajuda… Rita não tinha sido feita para aquela realidade distante, precisava de chegar a Safara rapidamente… limpou a cara e sorriu amargamente… rapidamente… lamentou-se, ligando a ignição. Se lá chegasse seria um milagre!


Manuel já não dava sinais de vida, tendo caído inanimado no sofá da sala de Francisco, mas o toureiro sentia-se ainda capaz de emborcar mais uns tantos copos. As confissões apaixonadas que o amigo, e a bebida, lhe relataram eram demasiado perturbadoras. Afinal ele nunca tinha amado a Helena, concluiu, depois de perceber o estado miserável em que Teresa deixara o amigo. Como é que Manuel iria levantar-se ao outro dia e encarar a vida se a médica não regressasse?
Remoía-se naqueles pensamentos angustiantes quando lhe deu uma vontade terrível de fazer xixi. Levantou-se da poltrona e sentiu a bebedeira a envolvê-lo rapidamente, baralhando-lhe os sentidos. Caminhou cambaleante até à porta de casa e saiu, encaminhando-se para os canteiros da casa da tia Miquelina, sem saber bem o que estava a fazer. Aliviou-se mesmo ali, já não aguentava mais e o bom senso tinha ido há muito, quando abrira a segunda garrafa.
Voltava trôpego, depois de regar as sardinheiras, quando ouviu um carro a entrar na rua. Os faróis encandeavam-no, mas Francisco manteve-se imóvel no meio do caminho, como se fizesse uma pega de caras com o automóvel.
- Francisco, sai da frente! – disse-lhe Rita olhando para fora do carro, sem perceber o comportamento estranho do toureiro àquela hora da madrugada.
- Rita! – exclamou sorridente indo em direção ao carro em movimento.
- Mas tu estás doido? – Rita estacou o carro de repente para não o atropelar. Desligou o motor e saiu furiosa. Estava morta de cansaço, precisava de arrumar o carro na garagem e dormir.
- Voltaste! – disse-lhe o toureiro, que tropeçou e perdeu o equilíbrio, caindo de joelhos à frente da enfermeira.
- Estás bêbedo? – perguntou Rita preocupada.
- Não… - abraçou a cintura dela, enfiando a cabeça na sua barriga, e inspirando longamente.
- Francisco! – ralhou envergonhada com aquela cena tão caricata do toureiro de joelhos a apertá-la – Olha que ainda alguém nos vê! Levanta-te!
- Não me vais deixar, pois não? – olhou-a com devoção – Cheiras tão bem…
- Vamos, tu tens de ir dormir. – ajudou-o a levantar-se, tentado livrar-se dos braços grandes que a tentavam abraçar. – Mas que grande pifo!
- Vens dormir comigo? – cambaleou na sua direção agarrando-a pelos ombros.
- Vou, vou. Vá, anda lá, entra para casa. – Rita encaminhava-o pacientemente para dentro de casa e ajudava-o a dirigir-se para o quarto. – Agora cama!
- Vamos pra cama? – exclamou animado encostando-a à parede do corredor – Ó querida… 
- Vamos, vamos, mas o quarto é mais lá à frente. – respondeu divertida empurrando-o facilmente para a porta.
- Ajuda-me a despir. – pediu a fazer beicinho, depois de cair sentado na cama de forma desajeitada.
- Pára lá com as mãozinhas. Tu tens de dormir, estás podre de bêbedo! – ralhou Rita enquanto tentava dominar os abraços de Francisco e lhe puxava a camisola pela cabeça.
- Agora as calças! – sorriu pateticamente, caindo para trás em cima do colchão.
- Agarra os boxers! Não quero ter pesadelos. – brincou Rita enquanto lhe puxava as calças com esforço. Francisco parecia pesar toneladas.
- Pronto, agora despes-te tu… - colocou as mãos atrás da cabeça, animado com a ideia de a ver tirar a roupa.
- Vá, tapa-te e dorme! – colocou o edredon por cima do toureiro despido, lamentando que só com a bebedeira ele lhe fazia convites daqueles…
- Não vás embora… - puxou-a com demasiada força, fazendo-a cair por cima de si e apertando-a sem lhe dar hipótese de fuga.
- Francisco! – gritou para que a soltasse.
- Não, eu quero que fiques aqui…- disse num tom amuado das crianças.
- Podes ao menos não me sufocar? – suplicou tentando soltar-se um pouco daquele abraço demasiado forte  - Eu fico aqui até adormeceres. – prometeu, enquanto ele a olhava desconfiado e deixava lentamente que ela se acomodasse ao seu lado.
- E um beijinho? – sorriu.
- Nem penses! Se te der um beijo não saio mais desta cama. – confessou sem vergonha, afinal ele estava quase em coma alcoólico, não se iria lembrar de nada.
- Só um chocho… - suplicou – vá lá. Beijinho de boa noite.
- Não! Nada que meta lábios. – respondeu divertida.
- Beijinho à esquimó? – choramingou.
- Ok, beijinho à esquimó pode ser! – disse encantada com aquele Francisco tão amoroso.
- Aqui vai disto, - inclinou-se para roçar o nariz no dela, mas caiu na almofada, com a cara bem perto da dela, apagando, depois de murmurar – Amo-te…
Rita ficou perplexa, de olhos lacrimejantes a olhá-lo sem reação. 
- Também te amo… - beijou-o suavemente nos lábios entreabertos e tirou desajeitadamente as sapatilhas enfiando-se debaixo do edredon totalmente vestida. Sentia-se estupidamente feliz, mesmo sabendo que tudo aquilo era efeito da aguardente de medronho.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário