terça-feira, 30 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 15



Francisco ainda dormia, a noite tinha sido agitada, com algumas dores que teimavam em resistir aos analgésicos. Os médicos tentavam reduzir de dia para dia a quantidade de “drogas” inicial pós-operatório, mas Francisco lamentava-se muito, estando com um mau humor constante, principalmente depois de Rita se ter escusado a continuar com as brincadeiras do primeiro dia. Não a conseguira convencer a dar-lhe o beijo, mesmo depois da sessão de higiene a que ela o submetera. A rapariga parecia embufada com qualquer coisa, e mantinha-se profissional, fazendo tudo ao seu alcance para o ajudar, mas sem entrar em intimidades.
Rita admirava-o a dormir, sentindo-se bastante em baixo. Gostava cada vez mais daquele parvo, e pusera-se a jeito para se magoar, permitindo-lhe avanços que nunca permitira a ninguém, sem ter a certeza dos sentimentos dele. Pela fama do toureiro, assim que se conseguisse por de pé novamente, Rita passaria à história. Estava num impasse, queria continuar ali a cuidar dele, mas cada dia que passava ficava mais dependente da sua presença. Convencera-se de que mais ninguém sabia a temperatura da sopa que ele gostava, só ela o conseguia acalmar quando o seu génio vinha ao de cima exasperado por não se conseguir mexer, parecia-lhe demasiado cruel alguém estar naquele estado sozinho dias seguidos, sem companhia ou assistência. Por isso tinha-se deixado ficar, mas cada hora que passava, arrependia-se um pouco mais. 
- Bom dia. – grunhiu Francisco, ainda magoado no seu orgulho por sentir que Rita se sentava em vigília cada vez mais distante da sua cama.
- Olá, bom dia. Como te sentes? – disse a Enfermeira dentro de si.
- Melhor, acho.
- Tens fome? Vou buscar-te o pequeno-almoço. – saiu com um sorriso largo que não lhe chegava aos olhos.
- Não precisas de…- começou Francisco a dizer, mas Rita já tinha saído disparada. Aquilo estava a tornar-se muito desconfortável, lamentou-se. Fechou os olhos, suspirando, quando ouviu a porta abrir e uma voz familiar soou a medo.
- Posso?
Francisco arregalou os olhos, ficando petrificado com a surpresa.
- Helena? – não queria acreditar que ela ali estava. – Entra.
- Desculpa só vir agora, soube do que te aconteceu, assim que consegui organizar-me lá no trabalho em Beja vim logo. Também estive a ganhar coragem para te ver novamente… – confessou e sentou-se calmamente ao fundo da cama, sorrindo.
- Não precisavas de vir para aqui, o hospital é um sítio deprimente. – gozou, incomodado com aquela aproximação depois de tantos anos. Parecia tão estranho vê-la agora, estava diferente, mais adulta, pensou.
- Como estás? A operação correu bem, já soube, mas como te sentes? – disse preocupada, pousando uma mão em cima da sua, num gesto carinhoso.
- Estou bem, o touro tentou, mas não conseguiu acabar comigo. Agora é esperar para cicatrizar tudo e voltar à luta. – aquela mão incomodava-o. Pesava-lhe como se tivesse 100 kgs, mas por educação não a retirou.- Helena, porque vieste aqui? Não compreendo, passa-se mais alguma coisa?
- Fiquei tão assustada quando me disseram que tinhas quase morrido… - lamentou-se com os olhos brilhantes de emoção. – Eu sempre vos disse que essa profissão era um perigo. – suspirou, chegando-se mais perto e pegando-lhe na mão que poisou no seu colo. – Tenho pensado muito naqueles anos que passámos juntos em Safara, Francisco. Fomos felizes, não fomos? – perguntou-lhe, sorrindo.
- Sim, acho que sim… – estava cada vez mais incomodado, e a ideia de que Rita poderia entrar a qualquer momento no quarto deixava-o inquieto e desconfortável.
- Tenho tido dúvidas e vim aqui hoje para resolver isto, de uma vez por todas. – chegou-se mais perto de Francisco, olhando-o fixamente.
- Mas… que raio de dúvidas? Tu estás bem? – Francisco olhava alternadamente para a porta e para os olhos verdes de Helena, que lhe pediam que a beijasse. Seria possível que logo agora é que ela vinha com aqueles desejos?
Helena beijou-o, e Francisco deixou-se beijar, num gesto que desejara durante anos, com o qual tinha sonhado noites a fio…
- Andei kms para arranjar café fresco… - Rita entrava de costas, empunhando o tabuleiro do pequeno-almoço, quando se deparou com o final de um beijo escaldante entre Francisco e Helena. – Desculpem… não sabia que estavas aqui Helena…- saiu novamente, atabalhoadamente do quarto, levando o tabuleiro consigo.
Francisco retesou-se, incomodado, olhando a porta com mágoa, esquecendo automaticamente a sensação de ter beijado Helena, o amor da sua vida.
- Desculpa, acho que fui inconveniente. – lamentou Helena, que percebeu o embaraço de Francisco. – Não sabia que tinhas companhia… - disse envergonhada com a sua ousadia - Acho que já fiz asneiras de mais por hoje. Espero que melhores depressa, e boa sorte. – acenou para a porta, indicando a presença de Rita no corredor e saiu apressada, evitando o olhar da enfermeira.
Rita sentia-se a querer desmaiar, respirou fundo e ganhou coragem para entrar no quarto. Sentia as lágrimas a querer romper, mas não lhe daria esse gosto, prometeu a si mesma. Se era a Helena quem ele queria, ela não podia fazer nada, nem mudar os seus sentimentos, mas podia ganhar vergonha na cara e pôr-se a andar dali para fora o mais rápido possível.
- Desculpa, devia ter batido. – disse num tom impessoal, pousando o tabuleiro junto dele. – Queres ajuda para comer?
- Rita…eu.. – Francisco nunca tinha estado numa posição daquelas. Estava aliviado por não ter sentido nada ao beijar Helena, mas o comportamento de Rita dos últimos dias tinham-no deixado confuso.
- Por favor, come. Tens de te alimentar. - ordenou secamente - Demorei-me mais um pouco porque me telefonaram do Centro de Saúde. Pelos vistos não posso tirar tantos dias de férias seguidos. Há muito serviço pendente. Vou ter de voltar amanhã. – mentiu, sentindo-se a morrer por dentro. Sabia que assim que saísse por aquela porta, não permitiria que o toureiro tornasse a entrar na sua vida. Gostava demasiado dele para se permitir continuar naquela tortura, muito menos conseguiria suportar aquelas visões de antigas paixonetas aos linguados com o seu Francisco.
- Tudo bem, já fizeste mais que a tua obrigação. – resmungou Francisco, que percebeu que Helena tinha lixado tudo. Era melhor mesmo que ela se fosse embora, ainda se desgraçava com a presença dela por ali. Parecia não ter defeitos, o raio da mulher. Não iria depender de fêmea nenhuma para ser feliz.
- Agora come, que tenho de voltar à copa e deixar as instruções de como tu gostas da sopa e do leite com café. – engoliu um soluço de choro, enquanto se dirigia à casa de banho, fingindo estar atarefada a arrumar coisas. Olhou-se no espelho e fez o ar mais rígido que conseguia, voltando a entrar no quarto para arrumar as suas tralhas que por ali tinha acumulado durante duas semanas.
- Mas vais hoje? – Francisco ficou subitamente ansioso. Estava bastante habituado à sua presença constante, aquilo estava a ser rápido demais.
- Sim, vou agora. Tenho de apanhar a camioneta para Safara e preparar as coisas para iniciar o trabalho amanhã. Mas não te preocupes, eu vou ensinar a enfermeira chefe de como tu gostas de ser tratado. – sorriu-lhe, pegando no saco e na carteira, e num impulso, chegou-se a ele e beijou-o na face. – Vê se ficas bom depressa e não chateias muito o pessoal.
Francisco ficou mudo, sem reação, mas que raio se tinha ali passado em menos de meia hora…Que raio iria fazer agora ao tempo interminável de recuperação que ainda tinha pela frente… Mas que cheiro era aquele que estava a inundar o quarto? Cheiro a hospital…? Rita fora-se embora e levara o cheiro a flores do campo, lamentou-se, praguejando contra ela. Maldita anã… empurrou o tabuleiro para longe, furioso. 


- Manuel, aquela não é a Rita? – Teresa fez-lhe sinal para parar a pick-up, ao avistar a amiga que saía da camioneta, lavada em lágrimas. – Pára, ela não está bem. – saiu apressada, correndo na direção de Rita. Algo de grave parecia ter acontecido, nunca a vira naquele estado. – Rita! – chamou-a, aflita.
- Teresa? – tentou recompor-se, limpando a cara com o lenço ranhoso que trazia nas mãos.
- O que se passa? Aconteceu alguma coisa ao Francisco? – perguntou Teresa ansiosa, mas arrependendo-se logo de seguida ao ver o olhar mortífero que o nome do toureiro tinha provocado. – Pronto, ok, já percebi. Talvez tivesse sido melhor que lhe tivesse rebentado alguma hemorragia interna, estou a ver… - sorriu-lhe, abraçando-a. - Não queres falar sobre isso? – Rita mantinha-se em silêncio, amparando as lágrimas que caíam desgovernadas. – Anda, vamos até minha casa, eu faço-te um chá… Já almoçaste?, Íamos agora comer um resto de lasanha que sobrou de ontem do jantar. Vais adorar, o Manuel tem cá uma mão para a cozinha, é incrível! E tenho umas novidades para te contar, - engoliu em seco – depois de me ouvires vais desejar não ter vindo embora de Moura! – brincou, abrindo-lhe a porta da pick-up e direcionando-a, pois parecia não reagir, como autómata.
Manuel ficou em pânico ao ver o estado lastimável em que Rita se encontrava… uma mulher a chorar era simplesmente angustiante, ficavam naquele transe, sem reagir, chorando, chorando. Até podia imaginar o que teria provocado aquele histerismo… camelo, tinha-o avisado.
Entraram em casa de Teresa e Rita sentou-se num banco da cozinha, sem falar, parecia um fantasma, observava Manuel, que a espreitava desconfortável.
- Mas afinal, o que foi que aconteceu? – Teresa ajoelhou-se de frente para Rita, procurando o seu olhar.
- A Helena apareceu lá hoje… - engoliu um soluço – e quando eu ia a entrar no quarto com o café,… eles… eles estavam a dar um beijo. – não conseguia dizer mais nada. Manuel estava por ali perto, não queria desabar em lamentos histéricos e audíveis com uma testemunha masculina.
- Parvalhão… parvalhona da tipa, ó Manuel, mas quem é essa Helena? É a tal que provocou a chatice toda entre vocês? – Teresa sentia-se revoltada. Porque apareceria agora aquela figura, depois de anos, para assombrar as vidas deles?
- Sei lá, - agora sentia as armas a virarem-se devagar de Francisco para um novo alvo… ele – como queres que eu saiba? – o melhor seria ir almoçar ao café e deixar as amigas conversarem a sós. – Vou vos deixar em privacidade. Daqui a nada passo aqui para te levar de volta ao Centro de Saúde. – beijou-a e saiu o mais rápido possível. Aquele Francisco continuava o mesmo atrasado de sempre… lamentou-se, enquanto caminhava distraído em direção ao café.


Francisco recusou-se a comer a sopa, que estava fria e sem sal, falando torto a todas as enfermeiras e auxiliares que iam tentando manter alguma conversa com o toureiro bem-parecido. Já não tinha paciência para mulheres, estava saturado, doía-lhe tudo, os pontos picavam-lhe na barriga, queria levantar-se e respirar ar puro, aquele cheiro de hospital punha-o agoniado. Amaldiçoava aquela antiga paixão que lhe tinha afugentado a enfermeira privativa, Rita era tão animada e parecia saber perfeitamente como cuidar de um doente, ao contrário daquelas pamonhas todas que por ali andavam a rondá-lo. Bufou contrariado, tentando dormitar, talvez assim o tempo passasse mais depressa. Adormeceu agitado, depois dos analgésicos do almoço começarem a fazer efeito e sonhou com flores do campo, igrejas,  bandarilhas e touros.

- Então, agora que estamos sozinhas, conta-me o que aconteceu entre ti e o Francisco. – disse Teresa, enquanto colocava a mesa para o almoço.
- Ai, Teresa, eu desgracei-me… - lamentou-se Rita, dramaticamente. – Sinto-me tão envergonhada…No dia da tourada deixei que ele me beijasse e… - corou automaticamente.
- Ok, eu percebi nesse dia que algo estava a acontecer entre vocês os dois. Mas desgraçaste-te… como assim? – temia que Rita tivesse ido além do que estava habituada, sabia que a amiga era virgem e não tinha tido grandes namoros.
- Deixei-o apalpar-me toda… - tapou a cara com as mãos – e gostei, foi tão bom. Nunca tinha tido ninguém assim, nem vontade de o fazer. Depois aconteceu aquilo tudo, e eu, parva, pensei que houvesse algum compromisso entre nós. – engoliu em seco, ganhando coragem para admitir o que sentia no fundo da sua alma – Gosto demasiado dele, permiti que ele entrasse no meu coração…
- Bem, mas o que aconteceu quando ele acordou? Ele tratou-te com desprezo?
- Não, ao início não. Mas acho que só estava aliviado por não estar sozinho num quarto de hospital. Deu-lhe jeito ter ali uma empregada à disposição. – fungou, limpando algumas lágrimas que teimavam em cair. – Depois hoje apareceu aquela Helena, e ele mostrou-me ao vivo e em direto aquilo que sente. Tinha de fugir dali…Quando o vi caído no chão, no dia do acidente, todo ensanguentado, parecia morto, foi um dos piores dias da minha vida. Senti-me a morrer com ele… Hoje ainda foi pior… Não consigo lidar com isto. – recomeçou a chorar – Tenho de o esquecer, acabou. Fui-me apaixonar pelo maior nojento das redondezas e tenho de o esquecer.
- Querida, não te culpes, tu só foste honesta e… bem, foste humana e mulher. Um homem lindo estava interessado em ti, sentiste-te atraída por ele, e depois quando aquilo tudo aconteceu, foste amiga dele, não o abandonaste. Se ele é parvalhão o suficiente para preferir os beijos daquela traidora e destruidora de amizades, o problema é dele! – Teresa bateu com o pirex aquecido, enfurecida com o descaramento e falta de sensibilidade de Francisco.
- Sou é uma parva sonhadora, que se pôs a construir castelinhos românticos no ar, a imaginar que um tipo daqueles poderia apaixonar-se por mim…sou mesmo estúpida… - fungou, lamentando a sua natureza fraca e dependente.
- Não senhora! Não te inferiorizes, era só o que faltava. Porque não haveria o Francisco de se apaixonar por ti? – Teresa sentia-se revoltada. Porque seria que as mulheres tendiam sempre a achar-se menos merecedoras de amor que os homens? 
- Não sei, ele nunca tinha olhado para mim em 26 anos, e moramos numa aldeia, Teresa. De repente persegue-me e tenta “quase tudo” comigo… Só podia dar asneira.
- Esquece-o por agora. Aquilo que tenho para te contar vai distrair-te os pensamentos, acredita. – disse Teresa, mudando o tom de voz, que ficou subitamente misterioso e dramático. Sentou-se, respirando fundo. Ia verbalizar o que apenas ela sabia. A partir dali, seria não apenas uma ideia sua, mas a realidade.
- Ai credo, mulher. Diz logo de uma vez, já estou com taquicardia…
- Rita, quando fiquei internada no hospital descobriram que estou grávida. – pronto, pensou Teresa, agora era oficial.
- Grávida? – Rita esbugalhou os olhos, sentindo-se desfalecer.
Teresa tinha lágrimas a ameaçar cair, engoliu um pouco de lasanha, para se controlar.
- Sim, vê lá tu… - uma lágrima caiu no prato – mas ninguém sabe, nem o Manuel. Não tive coragem de lhe contar…
- Mas que… - Rita não sabia se havia de rir, ou de chorar. – E o que sentes? Estás feliz, triste…
- Bem, quando descobri, lá no hospital, pensei que era o fim da minha vida. Mas agora… cada dia que passa… sinto-me cada vez melhor com a ideia. – sorriu, emocionada.
Rita levantou-se, para abraçar a amiga, sem saber o que pensar. Teresa levantou-se também, com as lágrimas da emoção a escorrer pela cara e abraçou a amiga. Soluçaram as duas, libertando a tensão que acumulavam há dias.
- Manuel da Silva, o maior garanhão do Alentejo! – gozou Teresa, levando Rita a um riso histérico, que se misturava com soluços audíveis.
Manuel entrou em casa passados alguns momentos, ficando paralisado à porta, horrorizado com a imagem das duas aos berros a chorar abraçadas. Seria seguro ficar? 


“- Não te atrevas a morrer hoje…Prometeste que me ias pedir em namoro à minha mãe… e ainda temos de terminar aquela nossa conversa… por isso, não me deixes, por favor… - o cheiro a bestas e sangue invadia-lhe as narinas, sufocava-o, sentia-se a morrer sem oxigénio, uma dor quente escorria-lhe na barriga, seria assim a dor de morrer? – Vamos ter dois filhos, talvez gémeos seja o melhor, que é mais prático, e assim brincam os dois e deixam-nos em paz! – a voz dela recomeçava a aparecer, era bonita – e podemos caiar a tua casa, porque sinceramente, está um bocado acabada – riu-se, sabia bem ouvir o riso dela – vou semear lá atrás uns canteiros de ervas, hortelã, coentros, salsa, poejo, erva príncipe, morangos, talvez umas flores, para animar, deves ter aquilo tudo cheio de ervas daninhas e mato, vais ter de limpar tudo para eu poder trabalhar. – conseguia vê-la de cócoras no jardim a enxotar o gato que se metia com ela enquanto apanhava morangos para o lanche. Ria-se com a ousadia do animal, ele também gostava daquele cheiro, o cheiro a flores do campo… era tão intenso… duas crianças corriam, mas não lhes conseguia ver a cara, chamou-as, eram rapazes, tão pequeninos…vinham a lutar um com o outro, a brincar, descalços, olharam-no felizes e correram na sua direção. As suas caras risonhas ganhavam contornos… pareciam… eram eles, Francisco e Manuel, que corriam a rir...”
Francisco acordou sobressaltado, com suor por todo o corpo, a respiração forçada, sufocado e uma dor forte na cabeça. Uma enfermeira entrou rapidamente no quarto, um alarme tinha disparado, colocou uma mão na sua testa e retirou o termómetro para medir a febre. Estava com 39º, disse-lhe mantendo-o calmo e administrando o antipirético no cateter.
- Pronto, agora vai se sentir melhor, tenha calma. É normal ter uns picos de febre, volto daqui a nada para o ver. – saiu apressada, sem lhe dar mais nenhum consolo, havia centenas de pessoas para atender.
Olhou a janela à sua esquerda, o ângulo em que a sua cama se encontrava era péssimo, quase não se via nada da rua, apenas uma cruz de alguma igreja aparecia a espreitar…- Irónico… - pensou fechando os olhos.



- Obrigada, se surgir mais alguma novidade dá-me uma ligadela? – Rita conversava com uma das enfermeiras do Hospital de Moura, com quem tinha mantido o contacto. Desligou o telefonema angustiada, Francisco passara as últimas noites com febre, inquieto, o que não era nada bom para a recuperação interna. Por mais que quisesse, não conseguia ficar sem notícias dele, lamentava-se, sentindo-se em baixo. O que mais queria era estar lá a refresca-lo quando a febre subisse, a controlar todos os graus, de hora em hora, vigiando-lhe o sono… Limpou uma pequena lágrima que surgiu de repente, depois de dias de calmaria emocional. Tinha voltado ao trabalho, poupando os dias de férias que ainda lhe restavam para gozar, mantendo a cabeça ocupada nas horas de expediente. Em casa tinham a decência de não lhe fazer perguntas sobre o toureiro e não fosse a sua curiosidade mórbida que a levava a telefonar todos os dias para o hospital, Francisco parecia nunca ter existido na sua vida. Pelo menos até a noite chegar e as insónias virem perturbá-la com recordações.
Suspirou e sorriu a Teresa, que a esperava ansiosa à porta do consultório para a pausa de almoço na pequena mesa de esplanada do pátio interior. Eram os melhores momentos do dia para a Rita, quando podia relaxar e desanuviar a cabeça com conversas inúteis, mas curativas.
- Com estes acontecimentos todos dos últimos dias, nem tive oportunidade de te mostrar as cartas antigas que descobri lá em casa! – exclamou Teresa, que parecia ter-se recordado de algo muito importante. Procurou na carteira o embrulho e estendeu-o à amiga. – Lê, não vais acreditar, a minha avó tinha um amante secreto aqui em Safara!! Um tal de J.S.. As cartas vêm de um remetente fictício, para não serem intercetadas. – explicou entusiasmada. – E o tal amante estava a estudar em Coimbra. Sabes quem pode ser? – perguntou ansiosa.
- Um J.S. daqui, que estudou em Coimbra, em 1942?... – Rita não teve de pensar muito. Só havia ali uma família que tinha dinheiro para isso… - Bem, acho que só podia ser o Joaquim Silva. – disse, olhando a amiga de forma conclusiva.
- Joaquim Silva? – perguntou Teresa curiosa – Mas de onde? Onde morava? Quem era a família? – estava curiosa.
- Teresa, Joaquim Silva, o avô do Manuel, Manuel da Silva. Não há cá mais Silvas… - explicou facilmente.
- Quê?! – guinchou Teresa, que sentiu a bola de fogo a subir-lhe a garganta. – Maldita azia, - lamentou-se – o avô do Manuel era amante da minha avó? – aquilo não lhe parecia nada bem, bebeu um gole de água, tentando pensar claramente. Antigas recordações de quando chegou a Safara invadiam-lhe a mente, António e Maria da Piedade desconfortáveis com a informação de que a avó dela era a Maria Rosa…
- Não fiques cismada mulher. Pelos vistos apenas tens os mesmos gostos de homens que a tua avó! – gracejou Rita, rindo-se com a sua teoria.
Teresa sorriu sem vontade, milhares de informações familiares faziam questão de surgir cruzando-se entre si, freneticamente. Maria da Rosa namorara Joaquim, a família dele não gostava da ideia, ele foi estudar, prometera casar-se, mantinham uma relação física antes da partida para Coimbra, a avó trabalhava na herdade, ele não voltou antes de ela fugir para Lisboa, ele casou com a mãe de António da Silva, Maria Rosa teve uma filha sozinha em Lisboa, Fernanda, Teresa não conhecia o seu avô, era tema tabu. Pegou no telemóvel, sem dar qualquer explicação, e ligou para a mãe. Começava a imaginar uma história familiar pior que a do livro “Os Maias”, e não gostava nada da sensação de ser uma Maria Eduarda…
- Sim, olá mãe. Como estás? – Teresa falava rápido, demonstrando o seu nervosismo. – Não, está tudo bem. E por aí?... Estou a almoçar.- explicou – Este fim de semana vou aí a Lisboa, tenho saudades tuas, e… uma novidade para te dar, não pode ser por telefone. – sorriu a Rita, que ficara cismada com a mudança de disposição de Teresa – Também quero tirar umas coisas a limpo, sim…, não, é sobre a avó e aqui a vida dela antes de ir para Lisboa. – disse, tentando não revelar muito das suas suspeitas – Mas amanhã falamos melhor. Sim…- olhou Rita e perguntou-lhe se queria ir também, ela acenou afirmativamente, já não ia a Lisboa desde que visitara o Jardim Zoológico – Olha, vou levar uma amiga minha comigo…Ok, beijinhos, quando chegar à estação do Oriente ligo-te. Até amanhã.
- Mas que raio de viagem relâmpago foi esta? – Rita estava entusiasmada com a ideia de sair de Safara por dois dias e ver coisas novas.
- Rita, reza para que aquilo que eu estou a pensar não seja verdade, - engoliu em seco – porque se for… eu e o Manuel… somos primos. – disse, colocando a cabeça nas mãos, e sentindo-se desfalecer. 
- Primos? – berrou, engasgando-se com a maça – Teresa, não penses numa coisa dessas, isso é altamente improvável. Como podes pensar nisso? – A enfermeira começou a receber informação clínica sobre a hipótese de primos direitos terem filhos, e percebeu a angústia da amiga. 
- Mas será que nesta terra maldita não há um momento de sossego? – gemeu Teresa, que mantinha a cabeça caída nas mãos. – Agora também sou prima do homem com quem ando a dormir e que vai ser pai do meu filho?
- Calma, por favor. Não entres em paranóia, nada disso é verdade. Apenas estás a imaginar uma situação, ainda não tens provas nenhumas.
- Amanhã a minha mãe tem de me explicar muito bem explicadinha toda essa história da fuga da minha avó para Lisboa. Ó Deus do Céu, mas será que agora eu é que tenho de pagar pelas quecas da Maria Rosa? – lamentou-se Teresa.
- Bem, quanto mais prima, mais se lhe arrima! – brincou Rita, tentado desanuviar o ambiente. – Já dizia a minha tia Miquelina, sabes, aquela sem dentes.
- Rita! – ralhou Teresa, que esboçou um sorriso pouco convencido.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

segunda-feira, 29 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 14

 


Francisco sentia-se pesado e dorido, recuperando a pouco e pouco a sensibilidade do corpo. Ouvia sons de máquinas e algumas vozes que murmuravam ao longe, como se estivessem por detrás de paredes. Não sentia o cheiro da arena, nem dos cavalos… a última recordação que tinha era do corredor escuro, a bandarilha de Rita, Teresa salva e… abriu os olhos, sobressaltado, respirando com dificuldade, onde estaria o touro? O peito contorceu-se com uma dor aguda e o seu baixo ventre estava quente e arrepanhado, nunca se sentira tão mal. Olhou em volta, habituando a visão à pouca claridade do espaço, estava no hospital, concluiu mais calmo, não tinha morrido…Um pequeno movimento ao seu lado denunciou que não estava sozinho, tentou esticar a cabeça para ver quem ali estava. Parecia dormir, tapada com uma manta, cheirava a flores do campo… era Rita…relaxou na almofada satisfeito com a descoberta. Estaria ali há muito tempo? Não sabia que deixavam acompanhantes dormir nos quartos dos doentes… mas fosse o que fosse que tinha ali acontecido, sentia-se estupidamente feliz e aliviado por não estar sozinho. Fechou os olhos, levando a ponta dos dedos ao cabelo dela que pendia para fora da poltrona e adormeceu.

- Mas porque é que ele não acorda? – Rita conversava com alguém que também ali estava no quarto. – Isso é normal? Não é melhor fazerem novamente uma TAC? – insistia.
- Acalme-se, é um milagre ele já estar a respirar sem ajuda, agora temos de ter paciência e dar tempo ao tempo. Volto à hora de almoço para medir a pressão arterial e verificar as doses de analgésico. Já sabe, se algum destes sacos estiver para terminar é só pedir mais.
A porta fechou delicadamente e Francisco sentia Rita bem perto de si, a sua respiração, o vento que fazia ao se deslocar de um lado para o outro.
- Acalmo-me… - bufou falando sozinha – Se fosse o namorado dela não estava tão relaxada! – reclamou analisando todos os tubos e maquinarias.
- Mas o que é que se passou com esse teu tal namorado? – perguntou Francisco, mantendo-se de olhos fechados.
Rita sobressaltou-se com a voz arrastada e fraca.
- Francisco! Acordaste! – guinchou excitada, passando-lhe as mãos pela cara e cabelo, avaliando a veracidade do que dizia.
- Não me respondeste. – disse, olhando-a de esguelha – Mas afinal tens namorado? 
- Estás vivo! E totalmente recuperado… - não conseguia acreditar.
- Agora que eu ia pedir-te em casamento. – lamentou-se fazendo beicinho.
- Ooo cala-te. – fungou Rita beijando-lhe a testa.
- O que aconteceu?
- O touro ia-te matando… - recordou com dificuldade – foste operado, estiveste em coma, os médicos não sabiam se irias recuperar-te…
- A Teresa? Está bem?
- Sim, sim, já voltou para casa há alguns dias. Mas agora descansa, não te canses a falar. Queres que te traga alguma coisa? Tens sede? Fome? Comichão? – perguntou ansiosa por exercer a sua profissão de enfermeira.
- Não, Não, Não e… Comichão? – sorriu. - Também está nos teus serviços coçares os doentes?
- Bem, uma enfermeira deve minimizar o mal estar do paciente. E tu, como és famoso, tens uma enfermeira privativa 24 horas por dia. – disse-lhe sorrindo ao mesmo tempo que lhe ajeitava o ângulo da cabeça na almofada.
- Mas não tens de voltar ao teu trabalho? – esperava que não…
- Não, tenho centenas de dias de folga e férias para gozar. Já avisei toda a gente que não saio daqui enquanto não estiveres bom. – corou com o som decidido da sua voz. Não era nada a Francisco oficialmente, apenas estava apaixonada por ele e tinha andado a dar umas voltas na sua lambreta, como diria Julieta… mas sentia-se responsável por ele. Não havia mais nenhum sítio onde quisesse estar.
- Ainda bem. – confessou aliviado. – Se não ficasses começava a sentir-me ligeiramente usado. – brincou, pegando-lhe na mão. – Pensaria que só me querias pelo meu corpo e cara laroca. Mas sendo assim, posso dormir mais um bocado, estou cansado. Quando acordar acho que vou querer comer qualquer coisa, Srª Enfermeira. – disse petulantemente ao mesmo tempo que fechava os olhos.
- Talvez uma sopa? Acho que não podes comer nada sólido ainda. – esclareceu, sorrindo de orelha a orelha e sentindo-se nas nuvens. Ele também a queria ali.
- Pode ser. – sorriu e deixou-se cair no sono leve que o puxava.


- Mas tens a certeza de que já te sentes bem? – Manuel resistia à decisão de Teresa de voltar ao trabalho.
- Claro que estou. Preciso de ir trabalhar Manuel, a Rita não está no Centro de Saúde e agora é a minha vez de a substituir. É o mínimo que posso fazer por ela neste momento, por ela e pelos utentes, coitados. – Justificava-se, terminando de se arranjar.
- Eu acho que ainda estás muito pálida… - temia ficar sozinho acima de tudo, não queria voltar tão depressa ao trabalho da herdade, dar de caras com Sofia e toda a realidade sufocante da sua vida atual. 
- Podes levar-me agora e ir-me buscar logo à tarde? – Teresa sabia que ele se sentia mais perdido que ela. Já o conhecia um bocadinho, e afinal de contas ela agora nunca se sentia só. Ainda não tinha confessado o seu estado de graça, mas todos os dias acordava mais conformada e feliz. Abraçou-o carinhosamente, sentindo o seu desconforto nos músculos tensos.
- Claro, acho que a tua bicicleta vai ter de ficar estacionada durante uns tempos. – beijou-lhe o alto da cabeça, feliz por ter alguma utilidade nos próximos dias. Um objetivo concreto, nem que fosse ser motorista.
- Vou levar qualquer coisa para comer durante o almoço, devo ter toneladas de papéis para pôr em ordem. – arrastou-o para a cozinha, amuado. – Tomamos o café na esplanada? – Viu em cima da mesa o embrulho antigo que descobrira nas escadas antes do acidente e colocou-o na carteira, se tivesse tempo começaria a sua leitura histórica. Iria saber-lhe bem distrair a cabeça durante a pausa do almoço, se conseguisse organizar os processos.
Saíram de casa abraçados em direção ao café, seria um longo dia de conversas sobre a tragédia que assolara a tourada, e Teresa tinha preparado todo um discurso prático e conciso para esclarecer os curiosos, já que Manuel não dava corda às tentativas de diálogo com estranhos. Era-lhe doloroso falar sobre o assunto.
Manuel fez questão de levar Teresa até ao gabinete, parecia um pai neurótico com dificuldade na separação à porta da escola, pensava ela com compaixão. Fingiu que precisava mesmo da sua ajuda com o transporte do pequeno saco com o almoço e deixou-o resolver devagar a questão do medo de voltar à normalidade depois do trauma. Despediram-se, e Teresa sugeriu-lhe que visitasse Rita e Francisco no Hospital de Moura, a amiga já lhe mandara uma mensagem cheia de smilles a informar da melhoria do toureiro. Aqueles dois precisavam de conversar e acabar com o desentendimento antigo que, à face do que tinha acontecido, era completamente supérfluo. Manuel preferia que ela o acompanhasse mais tarde depois do trabalho, mas deixou-se convencer com os argumentos sabiamente  expostos por Teresa. Conversas de homens, aceitara por fim.


- Ora então, vamos lá endireitar a cama e tentar comer a sopa. 
Rita parecia completamente enquadrada naquele ambiente hospitalar, como se sempre ali tivesse trabalhado ou vivido. Sabia mexer em todos os aparelhos e máquinas, desde o dispensador de soro à cama articulada. Francisco admirava a sua energia e boa disposição, com um tratamento daqueles até valia a pena levar umas marradas, pensava satisfeito.
- Também tenho direito a sopinha na boca? – brincou.
- Claro, tens de fazer o mínimo de esforço possível, se não conseguirmos que comas assim vou buscar-te uma palhinha. – explicava Rita, inclinando a colher com graciosidade para evitar sujar o paciente.
- Acho que não mereço isto tudo, - disse, depois de engolir a primeira colherada que lhe sabia divinalmente – acho que vou mesmo casar contigo mulher! – sorriu-lhe, apreciando vê-la corar como um tomate.
- Agora está calado e concentra-te. – ralhou, tentando disfarçar o embaraço. – E não sei se te quero, ainda não confirmei com o médico de serviço se estás de facto todo recuperado. – provocou-o, ela também sabia brincar, pensou orgulhosa ao ver os seus olhos esbugalharem-se de espanto.
- Sua interesseira…- fingiu escândalo. Seria normal que apenas vinte e quatro horas depois de sair do coma já sentisse um formigueiro nas pernas só de lhe olhar para a blusa mal abotoada?, devia ser dos remédios, concluiu. - Mas quando terminares de me dar o almoço podes dar-me banho e logo vês, - gozou, levando um dedo ao início do decote de Rita que se encontrava demasiado perto da sua cara – e pensando melhor, talvez não seja preciso, - exclamou satisfeito – olha! – acenou-lhe na direção das pernas e Rita deu um salto elevando-se automaticamente da cama.
- Jesus! Francisco! – admoestou-o ficando escarlate – Mas tu estás doido? E se entra aqui alguém, e vê isso… assim!? - continuava com a sopa nas mãos, horrorizada com a ideia de que o vissem com aquela alteração física.
- Digo a verdade, que tu me estavas a molestar. – gozou – Vens para aqui com esses decotes, a esfregares-te toda num desgraçado de um acamado que não se pode mexer, sinceramente mulher! – continuava divertido com o ar de virgem escandalizada que Rita não conseguia disfarçar.
- E agora? Como é que isso volta ao normal? Pára de rir.- ralhou, aflita.
- Eu só conheço uma maneira… - Olhou-a de alto a baixo.
- És louco. E não tens graça nenhuma, se entra aqui alguém é uma vergonha. – disse, pousando a sopa e procurando uma manta para tentar disfarçar o relevo que se notava debaixo da colcha fina que o cobria. Investigava o armário, que continha algumas almofadas, quando ouviu a voz de Manuel no corredor. Correu em direção à cama, em pânico e conseguiu lançar uma almofada que aterrou precisamente no local necessário, voltando-se rapidamente para a porta, vermelha até às orelhas.
- Posso? – Manuel entrou sem jeito no quarto, era a primeira vez que via Francisco acordado depois de tudo o que tinham passado os dois.
- Claro, - disse-lhe o toureiro demasiado sorridente – entra, a Rita estava aqui a ajudar-me a comer a sopa.
Manuel olhou para a estranha posição da almofada que se mantinha equilibrada em cima de Francisco e sorriu. Seria aquilo o que estava a pensar?
- Sim, fiquei demasiado entusiasmado com o tratamento da Srª Enfermeira, e ainda nem sequer me deu banho… - confessou divertido.
- Eu… acho que vou até ao bar! – olhou Francisco duramente, não estava ali para ser gozada. – Pode ser que com o Manuel consigas comer tudo sem ficares incomodado. Aliás, o melhor é o Manuel me substituir a tempo inteiro. – saiu batendo a porta. 
- Acho que ela não gostou da brincadeira…- comentou Manuel pegando no prato da sopa que ainda estava cheio. – Vamos lá então ver se também és sensível na presença de machos. – quebrou a formalidade, ajudando-o a comer, e descontraindo o ambiente, dando-lhe dicas de como tornar a amansar Rita, técnicas infalíveis que tinha aprendido em Coimbra.

Teresa teve uma manhã exaustiva de tudo e mais alguma coisa, menos de atendimento clínico. Parecia que os safarenhos apenas sofriam do mal de curiosidade, para o qual era necessário um tratamento ainda mais difícil e cansativo. Olhava frequentemente o relógio de parede, já não aguentava mais ouvir-se relatar os poucos factos que podia contar. Manuel insistira que era necessário encontrar o culpado de todo o acidente e Teresa já tinha dado um depoimento exaustivo na Guarda Nacional Republicana. Não estava muito convencida de que quereria saber que havia alguém que a detestava ao ponto de a tentar matar daquela forma fria, mas duvidava que alguma vez conseguissem encontrar o culpado. Ela não vira ninguém, não havia nenhum som que pudesse identificar uma pessoa em concreto. Era um absoluto mistério.
Finalmente o último paciente da manhã saiu e Teresa deitou a cabeça nas mãos, tentando recuperar alguma serenidade no silêncio do gabinete. Fazia-lhe muita falta a presença viva e fresca de Rita, que enchia o local de sons, mas que conseguia de alguma forma regenerar o ambiente, transformando todas aquelas más energias em cenas cómicas. Pegou no seu almoço, no embrulho misterioso e saiu em direção ao pátio solarengo que havia nas traseiras do edifício. Ficaria aí escondida durante toda a hora de pausa, não conseguia manter nem mais um minuto de conversa da treta.
O sol estava forte, mas a pequena mesa de esplanada do canto ainda tinha uma sombra, e curiosamente Teresa já tinha percebido que numa terra quente todos fugiam da temperatura escaldante da hora de almoço. Ninguém aproveitava o sol por ali, era bastante fácil ter lugar para se sentar porque ninguém deixava o fresco do interior do prédio, só ela, e ingleses e alemães, se por ali vivessem, sorriu ao pensar no que não pagariam os povos do norte por aquela hora de luz e calor…
Concentrou-se no velho embrulho amarelento, rasgou o cordel que prendia todas aquelas cartas poeirentas e reconheceu a morada da sua casa e o destinatário, a sua avó, Maria Rosa. O remetente era uma tal de Maria Eugénia, de Coimbra. Estranhou aquele facto, nunca ouvira falar daquela pessoa, nem sabia que a sua avó conhecia alguém de Coimbra a ponto de receber dezenas de cartas da mesma pessoa durante meses. Escreveria ela de volta? Questionava-se, Maria tinha aprendido a ler e escrever, ao contrário de muitas raparigas pobres da época, por isso talvez conseguisse fazê-lo. Procurou pelo envelope com a data de envio dos CTT mais antigo, para começar cronologicamente a meter o nariz nos assuntos daquelas duas. 
A letra era maravilhosa, parecia uma impressão a computador, de facto o ensino atual era medíocre comparando com o nível de exigência do tempo da “outra Senhora”, pensou.


“Salvé 20 de Outubro de 1942,

Cara amiga Maria Rosa,
Espero que te encontres bem de saúde, tu e a tua mãe.
Recebi com tristeza a notícia da morte do teu querido pai, que sei que tanto amavas. 
Aguardo com expectativa a tua resposta para a minha morada, como combinado. Prometo que na próxima carta te falarei do que tenho feito, te contarei mais sobre a casa onde estou a viver.
Despeço-me por agora com saudade.
A tua eterna
Maria Eugénia”

A “tua eterna”… Maria Eugénia?! Mas que raio de despedida era aquela? Seria alguém de Safara que fora viver para Coimbra? E porque não contava ela naquela carta os tais pormenores sobre a sua chegada à cidade? Aquilo era no mínimo excêntrico. Agarrou no segundo envelope, visivelmente mais manuseado que o anterior, tinha bastante mais conteúdo também, reparou entusiasmada.

“Salvé 30 de Outubro de 1942,

Querida,
Fiquei feliz por saber que o que combinámos resultou. A distância que nos foi imposta pode ser assim mais fácil de suportar. As tuas palavras consolaram a minha alma vazia e angustiada. Espero que também possas encontrar algum alento nas minhas.
A tua doce companhia tem invadido os meus sonhos, e adormeço todos os dias a recordar a nossa despedida. Vou sentir muita falta dos nossos momentos, ainda não consegui conhecer ninguém que possa considerar um futuro amigo, é tudo muito diferente em Coimbra. É uma cidade bonita, muito maior que Moura, da minha casa à Universidade são pelo menos vinte minutos de caminho. Quando me vieres visitar vou levar-te a passear em todos os jardins que por aqui há. Também irás gostar de ver a bela Igreja de Santa Cruz, a Sé Velha, são tantas as igrejas e capelas que ainda não consegui conhecer todas.
As aulas já começaram e estou muito empenhado nos estudos, ocupam-me a mente durante o dia.
Peço-te que não ouças nada do que a minha mãe te disser sobre mim. Ela ama-me, mas irá tentar fazer com que te decepciones comigo. Garanto-te que as promessas que fiz antes de partir serão cumpridas, casaremos quando eu voltar formado, nada nem ninguém o conseguirá evitar.
Aguardo notícias tuas e dos teus, com grande saudade,
O teu eterno,
J. S.”

Teresa inspirou finalmente, não se apercebeu de que tinha deixado de respirar com a surpresa. Como ela suspeitara, quem lhe escrevia não era nenhuma Maria Eugénia, mas um namorado secreto. Sentiu algum carinho por aquela novidade, Maria Rosa era uma mulher como todas as outras e também vivera os seus momentos de romance. A relação parecia um pouco à margem da legalidade, mas a carta denunciava grande intimidade entre os dois. Quem seria o tal J.S.?, perguntava-se excitada. Uma coisa era certa, não era nenhum agricultor ou homem da mesma classe social que ela. Era um estudante universitário, nos anos 40, que tinha posses para viver em Coimbra e tirar uma formação superior. Com essa descrição não seria muito difícil para Teresa descobrir rapidamente de quem se tratava. 
Ainda tinha tempo para ler mais algumas cartas e durante o restante tempo de pausa de almoço deliciou-se com as palavras de consolo e romance que J. S. dedicava à sua avó. Para a época eram palavras ousadas, e imaginou que Maria Rosa deveria ter bastante medo que alguém interceptasse um daqueles sobrescritos, e isso provava que o tal J. deveria ser merecedor desse perigo. Pensou em Manuel, ele também a levaria a fazer algumas loucuras, e receber cartas apaixonadas de um amor proibido em 1942 andava ao nível do crime público. Nunca duvidara de que a sua avó era uma mulher corajosa e bem resolvida, mas o seu lado vulnerável e apaixonado era uma doce novidade. Guardou cuidadosamente todos os envelopes, mais tarde iria questionar Manuel sobre o tal de J.S. de Safara, ele facilmente iria adivinhar a sua identidade, concluiu. Ainda lhe sobraram algumas cartas por ler, mas o dever chamava-a na voz estridente e irritante da administrativa chefe do Centro de Saúde. 


- Acho que já não consigo engolir mais sopa…
- Já comeste metade, talvez já chegue, e também já me dói o braço… Isto de ser enfermeiro não é fácil. – Gracejou Manuel. – Como te sentes?
- Meio tonto, mas deve ser dos remédios. A Rita anda sempre aqui de volta destes aparelhómetros, não percebo nada disto. Se calhar é melhor chamá-la.
- Eu vou procura-la, se quiseres. – Manuel sentia-se embaraçado por estarem os dois sozinhos, há muitos anos que não conversavam sem ser para discutir. – No caminho para cá estive a pensar no que tinha para te dizer… e quero pedir-te desculpa por… tu sabes, bem, nunca falámos sobre o nosso problema… Eu devia ter… enfim, Obrigado por teres salvo a Teresa. Nunca vou esquecer o que fizeste.
- Por favor, não me agradeças, não fiz nada de especial. Qualquer um se mandaria para o corredor do curral e seria esmigalhado pelo touro para salvar a mulher do “inimigo” – gozou, tentando aligeirar o clima.
- Eu sei, tu sempre foste muito altruísta. – brincou – Mas mesmo assim, tenho uma dívida de gratidão para contigo.
- Cala-te pá, não penses mais nisso. O teu azar é que eu não morri, boa tentativa! – continuou Francisco bem-humorado.
- Então e agora, mudando completamente de assunto, o que é que se passa aqui contigo e com a Enfermeira Rita? – perguntou, curioso e desejoso de ultrapassar o tema tabu.
- Bem, é gira a miúda não é? Acho que está caídinha por mim. – disse orgulhoso.
- E tu? Estavas muito entusiasmado com a “miúda” quando eu cheguei… Também estás caidinho ou vais fazer-lhe o mesmo que às outras todas?
- Credo, mas eu sou algum monstro? – brincou, fingindo-se ofendido. – Ela tem sido uma boa amiga, ficou aqui para me ajudar. Talvez a recompense. – piscou o olho, sem adiantar os sentimentos que começavam a fazê-lo ficar mole.
- Vê lá o que fazes. A Teresa adora a Rita, é uma boa miúda, não a magoes. – olhou-o com censura. – Ela pode não ser a tal, mas não te largou um segundo para cuidar de ti. Se não gostas dela não te ponhas com parvoíces.
- Tu sabes perfeitamente que a tal nunca vai ser a Rita, já ouve uma e bastou. – Francisco bufou, incomodado.
- Bem, eu tenho de ir. Ainda vou passar na herdade, o meu pai anda parece um zombie, acho que o ias matando do coração. – deu-lhe uma palmada carinhosa no ombro em jeito de despedida – E pensa nisto Francisco, a Helena não está aqui a dormir ao teu lado há duas semanas. – saiu, fechando a porta, o velho amigo continuava a insistir numa ideia ilusória de uma Helena que nunca tinha existido, e se continuasse a ser parvo perderia a oportunidade de ter alguém que o conseguia aturar, e pelos vistos gostava.
Francisco praguejou, lamentando estar ali preso a uma cama a ter de ouvir tudo e todos, sem poder levantar-se e virar costas… E por muito que lhe custasse aceitar, Manuel tinha razão. A Helena que ele amara nunca tinha existido, e Rita andava a mexer-lhe demasiado com o juízo. Esse era o grande problema, levara alguns anos a ultrapassar o desgosto de ter sido renegado e tinha prometido a si mesmo que nunca mais ficaria naquele estado por mulher nenhuma. Enquanto pudesse brincar com a enfermeira estava na sua zona de conforto, se ela começava a querer mais que isso já era um problema. 
- Posso? – Rita entrou de cara fechada, ainda estava um pouco chateada com as piadolas que os dois tinham feito às suas custas. – Precisas de alguma coisa?
- Um beijinho? – gozou.
- Acredito que sim, mas não tenho grande vontade de beijar um acamado malcheiroso, com a barba por fazer e sem lavar os dentes há séculos. – respondeu numa tirada só.
- Podias fazer-me a barba, lavar-me os dentes e dar-me banho. Também me iria saber bem. – pediu, entusiasmado com a ideia de tirar de cima aquela sensação de hospital e suor.
- Mas que exigentes que nós estamos! Acho que preferia o Francisco em coma. – disse secamente – Mas vamos lá então tirar essa barba, vou buscar as coisas à casa de banho. – disse, saindo decidida do quarto e trazendo o material necessário que já tinha providenciado dias antes, segura de que ele iria querer tirar aquele excesso de pelos da cara.
- Mas já não estás zangada comigo, pois não? – perguntou, brincando. – É que não é muito boa ideia fazeres isso furiosa e com uma lâmina na mão…
- Eu não estava zangada, Francisco. – mentiu, começando o trabalho.
- Ok, então depois dás-me o beijinho? – sorriu-lhe, com cara de garoto.
- Não sei, vamos ver. – sem perceber bem porquê, o ambiente mudara desde que Manuel saiu do quarto, o toureiro parecia-lhe novamente gozão e altivo, como antes de se terem embrulhado um com o outro. Sentia o peito apertado, angustiada, mas também não iria dar parte de fraca, decidiu. “Quanto mais te baixas mais te vêm as cuecas” – diria a sua mãe. Se ele queria ser novamente o Francisco parvalhão, ela seria apenas a Rita enfermeira.

Manuel passou pela herdade, estava preocupado com António, que se tinha ido abaixo com aquele episódio dramático na tourada. Um dos seus touros quase tinha matado o seu “aprendiz”, de quem gostava como a um filho de sangue. Manuel sabia que o pai tinha transferido parte da culpa do acontecido à escolha do bicho que tinha seleccionado para a lide de Francisco. Ainda não tinha voltado a montar, e mantinha-se afastado dos currais e cavalariças, como se fizesse algum tipo de luto, num processo doloroso de introspeção, que deixava Maria dos Prazeres com os nervos em franja. 
Lanchou com os pais e Sofia, apressando a refeição, e tratou de sair o mais rápido possível de perto dela. Felizmente António da Silva parecia partilhar com ele a ideia de que Sofia era uma mulher em quem não se podia confiar, e este não o obrigava a manter temas de conversa com a ex-namorada. O facto de ela se ter instalado de mala e cunha na herdade era excêntrico o suficiente para o tradicional António não gostar dela. Manuel não sabia como resolver a situação que se tinha ali criado, mas a mãe também não permitia que a rapariga fosse embora, o que deixava os dois homens desconfortáveis, mas resignados. Elas que se entendessem as duas.


Teresa saiu do Centro de Saúde já bastante atrasada, o trabalho acumulado parecia não ter fim, e os casos mais urgentes de cuidados de enfermagem não podiam ficar em lista de espera. Rita fazia muito mais falta que uma médica, lamentava-se Teresa, que passara o dia a fazer pensos e curativos. Precisava de um bom banho, uma açordinha e cama. Saiu do prédio mais animada com a ideia da açorda, quando viu Manuel encostado na pick-up, à conversa com um homem da terra, distraído. Aquilo sim era uma visão… Que brasa, pensava, sorrindo de orelha a orelha, parecia um modelo da Guess, cheio de estilo. Qual J.S., qual carapuça, pensava, encaminhando-se para o seu adónis, aquilo sim era um homem… Abraçou-o, surpreendendo-o, não havia nada melhor que se encostar naquele peito e deixar tudo para trás das costas… Manuel ficou embaraçado e o safarenho despediu-se rapidamente, saindo de mansinho e deixando-os nas suas demonstrações públicas de afetos.
- Bem, estou a ver que tiveste saudades minhas! – brincou, abraçando-a de volta.
- Ah, estava mesmo a precisar disto, mais uma ferida com pus para desinfetar e acho que cortava os pulsos…- gozou Teresa, ainda de olhos fechados e caída nos seus braços.
- Que nojo… - lamentou-se Manuel – Andaste a mexer nessas porcarias e agora vens agarrar-te a mim? – gozou, tentando libertar-se dela.
- Não sejas cruel, eu lavei as mãos. Dá-me um beijinho… - esticou-se na sua direção sorrindo. – Juro que não trago nada que se pegue.
- Atendeste alguém com papeira? – perguntou mantendo-a afastada. – É que eu nunca tive isso! – brincou.
- Manuel da Silva, ou me dás agora um beijo ou… - Teresa começava a ameaçar, quando ele a arrebatou com paixão, levantando-a do chão uns bons palmos.
- Pronto, agora se me começar a inchar o pescoço já sabemos quem é a culpada. – resmungou, brincando.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

sexta-feira, 26 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 13




O som da corneta soava forte e enérgico, aplaudindo a vitória do grupo de Forcados Amadores de Safara, que tinham lutado heroicamente com o possante touro lidado por Francisco momentos antes. O animal tinha resistido teimosamente, obrigando os homens a repetir a pega que acabou por ser feita de forma perfeita, como mandava a tradição. O rabejador rodara durante bastante tempo, com medo de largar o animal, e Manuel temera o pior a dada altura. Finalmente todos suspiravam de alívio, mais uma festa terminava e nenhum homem sofrera.

- Maldito, filho de uma…cabrão do inteligente…- Francisco deu um murro de punho fechado na porta, bem perto da cabeça de Rita, libertando a frustração do momento. O tocador de trompete continuava a sua chamada para o desfile final de agradecimento.
- Ahm…, o que foi? – murmurou Rita, ofegante e aturdida. 
- Tenho de ir… - dizia-lhe, respirando com dificuldade, retomando a consciência.
- Quê?! –soltou ela esganiçada.– Agora? Não… - lamentou-se, sentia-se prestes a explodir, mas que péssimo timing, pensava.
- Não digas nada… Não saias daqui, eu volto. – Francisco obrigava-se a descer à Terra.
- Mas… tenho de ir, a minha mãe vai…
- Mas nada, não sais daqui. Depois vou contigo a tua casa e explico tudo, peço-lhe desculpa, digo que fui eu culpado, peço-lhe para namorar contigo, casar, o que quiseres, só não saias daqui. – Implorava-lhe o toureiro, arranjando a roupa. – Prometes? 
- Sim… bem, pode ser…- respondia, ainda dormente e aparvalhada.
- Volto já. – Beijou-a e saiu apressado, fechando a porta e amaldiçoando os compromissos com o público. 
Caminhava meio aturdido, a sentir-se  a ferver, obrigando o corpo a respirar calmamente, consciente de que deveria estar com ar de louco desvairado, quando subitamente  viu uma mancha cor de pele caída no chão ao fundo do corredor, numa esquina que dava para o curral.
- Mas… que raio é aquilo? – hesitou na sua marcha, já estava atrasado, mas algo o obrigou a dar uma corrida no sentido contrário à arena e certificar-se de que não era nada de mais, talvez um trapo velho que alguém tivesse deixado por ali. À medida que se aproximava sentia um medo a crescer dentro do peito, a forma de um braço pequeno que saía por uma das grades do portão que trancava a passagem dos touros para a arena ficava cada vez mais nítida naquele corredor escurecido. Correu com mais rapidez, seria uma criança?, pensava aflito, sentindo o coração na boca. Quando alcançou a porta trepou pela grade que lhe dava pelos ombros e viu-a caída, sem se mover.
- Teresa!! – berrou, enquanto apanhava balanço para se lançar até ao outro lado, a grade tinha sido fechada por fora, coisa que nunca acontecia, e esse pormenor deixava-o cada vez mais horrorizado. – Teresa!! – Francisco tentava perceber se estava morta ou viva, ou simplesmente magoada, mas apenas se via um golpe na testa que sangrava. Teria caído para ali? O peso morto do corpo, mesmo pequeno e delgado era difícil de levantar, e os nervos faziam-lhe suar as mãos. Não sabia se os touros tinham aquele acesso vedado. Gritava por socorro, colocando a médica em posição de a lançar pela fresta superior da grade. O pânico começava a tomar conta dos seus sentidos.

- Socorro!! Ajudem!! – berrava, começando a subir Teresa, aflito com a possibilidade de não ter força suficiente de a conseguir tirar dali sozinho.
Manuel perguntava por Teresa, mas ninguém a tinha visto e começava a ficar preocupado. Estaria bem disposta? Francisco também não aparecia e a música não parava de convocar para o desfile final. Encaminhou-se para o interior da arena, perdendo momentaneamente a visibilidade naquele contraste de escuridão profunda. Seria possível que ela se tivesse perdido nos corredores?, perguntava-se. Era bem provável, o seu sentido de orientação era péssimo. Já se tinha afastado bastante da entrada da arena e começava a retomar o caminho de volta quando ouviu Francisco gritar por socorro. O seu sangue gelou, gritou de volta, tentando perceber onde é que ele se encontrava.
- Francisco! – berrou, correndo desvairado em direção ao curral.
Francisco ouviu-o e continuou a chamar, cada vez com mais força, estavam salvos, pensou sentindo-se abençoado.
- Aqui Manuel! Rápido!
Quando Manuel se voltou para o corredor que dava para o curral sentiu-se praticamente desfalecer, viu-a morta, a ser içada por Francisco, os dois encurralados por detrás de uma grade fechada. Tentou abrir a porta, decontrolado, mas nada se movia.
- Não dá! Tenta puxá-la desse lado! –berrou-lhe Francisco, chamando-o à realidade e içando o corpo mole.
Manuel sentia o peito a explodir e o som do seu coração a bater ruidosamente nas têmporas, como um tambor. Conseguiram passar Teresa por cima da grade, e Francisco sorriu-lhe, aliviado, recuperando o fôlego.
Um estrondo forte percorreu o corredor e Francisco lançou-se para saltar de volta, trepando a grade, com os braços a fraquejarem. Tinha pontadas fortes nos músculos pela descarga de adrenalina que sofrera momentos antes. Manuel pousou Teresa no chão e esticou-se para o ajudar a subir, quando o touro em passo de corrida apareceu e se lançou contra Francisco. Embateu com violência na porta, marrando contra o abdómen do toureiro e retrocedeu alguns metros, encarando-o com aparente calma.
Francisco voltou a cabeça aparentemente sem estar magoado e olhou-o, sem sentir medo. Ali estava ela, a bandarilha de Rita pendia em cima de um caminho de sangue que abraçava todo o peito musculado do touro. Olharam-se fixamente, toureiro e touro, e Francisco sentiu medo, do mais visceral e humano, e não se conseguiu mover mais. O touro investiu repetidamente contra a porta, com o toureiro a absorver as pancadas alternadas, sem emitir um som.
Manuel berrava, em prantos, dando socos na porta, sem sentir qualquer dor, Francisco mantinha um braço apoiado na grade, sem se mover. António apareceu com outros homens, correndo desalmadamente e ao se aproximar do local foi sacudido com violência por Manuel que lhe tirou a arma do coldre que trazia escondido por debaixo do colete de pele. O filho disparou todas as balas no animal, que saiu de cima do toureiro, cambaleando de volta para o curral, vingado.
Curiosa com a algazarra que se ouvia pelos corredores fora, Rita apareceu esbaforida, tentando entender o que se passava, mas nada a poderia ter preparado para a cena de pânico, sangue e gritos no corredor do curral. Um dos homens partia a fechadura da grade, e Rita viu Teresa caída, com Manuel a chorar sobre ela e ajoelhou-se com violência, procurando os seus sinais vitais.
- Está viva! – disse a Manuel – Chamem uma ambulância! Manuel, ela está viva! – agarrou-lhe na cabeça, tentando trazê-lo para a realidade. Parecia possuído, em transe, sem a ouvir.
- Mas ele não… - sussurrou, com o olhar no vazio, chorando.
- Quem? – estremeceu e furou por entre os homens que retiravam um corpo ensanguentado do túnel. Quando viu a casaca de Francisco caiu de joelhos, procurando chegar até ele, sem que as pernas correspondessem. – Poisem-no no chão! – ordenou, nunca se podia mover assim alguém ferido, a não ser que já não houvesse salvação, dizia a si própria, caindo num buraco de desespero e angústia. Encostou a cabeça de Francisco nas suas coxas, fazendo um apoio para a coluna e tomou-lhe o pulso. Estava vivo… As lágrimas começaram a cair descontroladas, e Rita rasgou com violência as mangas da sua blusa, fazendo uma compressa para estancar o sangue que saía de um dos buracos negros que Francisco tinha nos abdominais. – Abram espaço, por favor, tragam a ambulância depressa! – chorava aos gritos, aqueles ferimentos pareciam-lhe demasiado graves para que ele sobrevivesse até ao hospital. Baixou-se em direção à sua cara, era tão bonito, pensava tentando não se descontrolar e limpando gentilmente com a mão livre as lágrimas que caíam na testa de Francisco. Teriam de esperar. 
– Não te atrevas a morrer hoje… - soluçou baixinho – Prometeste que me ias pedir em namoro à minha mãe… e ainda temos de terminar aquela nossa conversa… por isso, não me deixes, por favor. – A garganta ardia-lhe, com o esforço que fazia para não gritar toda a dor que sentia no momento, reprimindo os sons guturais que teimavam em querer sair. Em vez disso implorava ao ouvido de Francisco, obrigava-o a ficar com ela, a lutar. Falava-lhe de sonhos que tinha para os dois, imaginava a casa onde viveriam, descrevia o jardim, os filhos, fazendo com que todos os homens esperassem sem se mexer, em silêncio, chorando sem vergonha. A música parou, finalmente, todos na arena já sabiam que Francisco não iria desfilar. O silêncio caiu como um véu sobre todos, apenas a voz pequena e cadenciada de Rita se mantinha no ar, como uma reza.
A ambulância  que se mantinha sempre nas imediações das arenas em dias de festa saiu disparada pelo meio da multidão que se mantinha em transe sem conseguir reagir aos acontecimentos dramáticos e inexplicáveis daquele fim de festa. Ninguém conseguia compreender como tinham Teresa e Francisco ficado fechados no corredor dos touros, e as teorias começavam a surgir, dando largas à imaginação. Sofia ouvia-os, mostrando-se consternada, principalmente porque acabara por matar a pessoa errada. Quem iria prever que surgisse um herói no último momento? Pelo menos sentia-se revoltada e isso não precisava de fingir.


Manuel e Rita mantinham-se de mão dada, sem conseguir falar. Teresa estava a ser observada, teria de fazer alguns exames, mas continuava sob vigilância, já que recuperara momentaneamente a consciência, mas tornara a desmaiar. Os médicos atribuíam a reação ao choque e à contusão na cabeça.
Francisco entrara na sala de operações horas antes, sem prognósticos, mantendo-se no limbo entre a vida e a morte. Nada mais poderia ser feito, restava-lhes apenas esperar. Manuel limpava uma lágrima ocasional, sentindo-se a morrer por dentro, de cara virada, fixando o olhar na parede vazia quando foi chamado para resolver questões burocráticas sobre a paciente que acompanhava. Levantou-se como um autómato e deixou Rita na cadeira, depois de lhe fazer uma festa no ombro, prometendo voltar rapidamente. A enfermeira aproveitou a solidão para chorar compulsivamente agarrada aos joelhos, com a cara escondida, libertando parte da sua fúria e dor, quando um abraço forte e familiar a puxou para o colo. Julieta embalou a filha, com carinho, deixando-a chorar como uma criança desesperada. 
- Filha, ouve… - começou a falar, baixinho.
- Não vou embora daqui mãe. – gemeu.
- Não é nada disso. Trouxe-te roupa limpa, estás com péssimo aspeto e toda cheia de sangue… - engoliu em seco, imaginando o que teria a filha vivido nas últimas horas. – Também te trouxe algumas coisas para comeres, quando conseguires, e a tua carteira. 
- Obrigada… - fungou, abraçando a mãe. Afinal ela compreendia.
Mãe e filha mantiveram-se na posição até Manuel chegar, e Julieta conseguiu convencer Rita a se ir limpar e trocar, ficando Manuel de vigia à porta que dava acesso à ala de cirurgia.
Ao regressarem da casa de banho das visitas, Julieta obrigou os dois a comer meia sandes de presunto e a beber um café que fizera fresquinho e fumegava no termo que conseguira passar na segurança, facto que os fez sorrir. Era compreensível que o funcionário não se opusesse a Julieta, afinal, ao contrário da filha, ela era uma grande mulher alentejana, que raramente se deixava contrariar.
Depois de conseguir cumprir com o seu propósito de manter os vivos e saudáveis alimentados, despediu-se, deixando Manuel e Rita um pouco mais otimistas e prontos para uma noite de vigília.
Passava pouco da meia-noite quando um médico apareceu junto dos dois no corredor. Francisco resistira à operação, mas estava em coma induzido, enquanto as graves lesões internas não começassem a dar sinal de melhoria. Não podiam correr o risco de ele se mexer. Quase tudo tinha sido atingido, mas felizmente apenas o baço tinha sido retirado. O destino do toureiro estava nas mãos de Deus, e da sua capacidade de recuperação. Rita e Manuel abraçaram-se, com uma ponta de esperança a renascer e a trazer algum alívio aos seus corações que se mantinham em compasso de espera entre a realidade de vida ou morte eminente. Podiam respirar um pouco, para já, dizia o médico, sem dar muitas garantias de total sucesso na operação. Era tudo uma roleta russa, ele já tinha visto de tudo, mas garantia-lhes que Francisco parecia querer viver. 


Dias depois da tragédia, todos em Safara continuavam à espera de notícias de Francisco Carriço. O toureiro mantinha-se em coma, aparentemente na mesma e enquanto não respirasse por iniciativa própria e abrisse os olhos, ninguém conseguia respirar fundo de alívio. A famosa procissão de S. Sebastião pelas ruas enfeitadas e cobertas de alecrim tinha sido desconvocada pelo Padre da Paróquia, que decidira montar uma vigília de oração pelo famoso safarenho, esperando assim conseguir minimizar o sofrimento que se tinha generalizado e dar alguma esperança a quem atribuía todo o destino dos mortais às demandas e decisões Divinas. Sofia acompanhara Maria dos Prazeres e António a um dos Terços noturnos, passando pelas brasas momentaneamente, aquilo era pior que um velório, lamentava-se entediada. O seu futuro sogro quase não comia desde o acidente e Maria dos Prazeres tinha desviado momentaneamente o seu foco de preocupação de Sofia para António, o que ela aceitou de bom agrado. Poderia estar em segundo plano durante alguns dias, agradeceu aos Céus, já não tinha paciência para tantos salamaleques. A gravidez por aquelas bandas era pior que uma doença má que corroía o corpo. Que pacóvios supersticiosos, dizia mentalmente. Cada vez sentia mais saudades de Coimbra, talvez fugisse dali mais depressa que o que tinha imaginado, se as coisas não corressem como esperava.


- Drª Teresa, posso? – o médico responsável por Teresa entrou no quarto, precisava de fazer um último check-up antes de lhe dar alta e conversar sobre algumas revelações que os seus exames exaustivos tinham apurado.
- Claro Dr, entre por favor. – Já se sentia muito melhor, embora ainda sofresse de enjoos ocasionais, que tinham prolongado a sua estadia no hospital. Depois de uma contusão na cabeça era essencial vigiar alterações desse tipo nos pacientes. Teresa sabia disso, mas estava saturada. Precisava de ir ver Rita, de a abraçar e dar algum apoio, para variar. Sentia-se culpada com a tragédia, confusa sobre o que tinha acontecido, mas naquele momento a sua amiga era uma prioridade. – Então, vai-me dar finalmente alta?
- Penso que sim, já não há motivos para continuar aqui retida. – disse sorrindo, olhando incomodado para Manuel que lhe analisava o tom de voz e não conseguia relaxar, preocupado com a possibilidade de Teresa piorar novamente.- Será que podemos conversar a sós? – olhou Teresa com amabilidade, esperando que Manuel percebesse a deixa.
- Bem, acha que é mesmo necessário? – respondeu desconfortável. Sabia que Manuel não iria gostar de ser expulso do quarto.
- É só uma questão rotineira, quando dou alta a um paciente gosto de estar sozinho com ele, para me sentir mais à vontade. – sorriu para Manuel, que se levantou contrariado.
- Estejam à vontade, volto daqui a pouco. – beijou Teresa e saiu sem se queixar.
- Bem, nunca ouvir falar dessa de dar alta em privado… - disse Teresa desconfiada – passa-se alguma coisa?
- Teresa, felizmente está tudo bem, e os seus enjoos não são preocupantes, pelo menos do ponto de vista clínico. – acrescentou, sentando-se na beira da cama. – Mas não sei se do ponto de vista humano ficará assim tão satisfeita. Como não sou mulher não consigo nunca perceber se isto é uma boa ou má notícia. – concluiu sorrindo.
- Por favor… não me diga…esta azia, os enjoos, o vómito na arena… - Teresa sentou-se direita, tentando respirar .
- Sim, está grávida, mas precisava de lhe fazer uma ecografia para determinar de quanto tempo e se está tudo bem, depois de tudo o que aconteceu.
- Mas… eu… tomo a pílula, há anos, sem falhar um dia. É das poucas coisas que consigo fazer sem me esquecer. – lamentou-se a sentir um aperto na garganta. Tentou rever mentalmente as suas tomas e talvez não estivesse assim tão certa da sua eficácia.
- Bem, não é 99% infalível, como sabe… - interrompeu – Não tomou nenhum medicamento forte que pudesse ter anulado o efeito? Um antibiótico, não teve uma pneumonia recentemente? – questionou-a, tentando compreender.
- Ohhh… - tapou os olhos com as mãos – sim… tomei durante uma semana… que estupidez, não me lembrei dessa possibilidade. – sentia-se envergonhada por ser médica e tão imprudente.
- Não faça disto um drama desnecessário. Tenha calma, uma gravidez é sempre uma surpresa, uma novidade a que as pessoas têm de se adaptar. Mas a vida é mesmo assim, uns morrem, outros nascem. E a Drª é nova, tem uma boa profissão, um namorado que a adora, pelo que dá para entender… Vai ver que daqui a uns dias já se sentirá mais feliz com a ideia.- concluiu, tentando conforta-la. – Agora, vamos fazer a tal eco?
- Claro, obrigada. Só lhe peço um favor, não diga nada a ninguém, nem ao Manuel. – pediu, corando. – Quero adaptar-me primeiro à ideia e depois então dar a notícia. – mentiu. A ideia de Manuel ser pai de duas mulheres ao mesmo tempo não a fazia sentir-se confortável, parecia-lhe errado e estranho. Com que cara lhe iria dizer que estava grávida, também!?

Manuel aproveitou o momento para ir espreitar Francisco e arrastar Rita até ao bar do hospital. Sobreviviam os dois a café e folhados há vários dias, mas era melhor que nada.
Rita obedeceu à ordem de Manuel, seguindo-o até ao bar, estava toda torta da posição em que dormia de noite na poltrona junto do toureiro e a fome começava lentamente a voltar durante o dia. Precisava de esticar a coluna e recompor o estômago. Francisco continuava em coma, mas só depois de o resultado dos exames que fizera de manhã cedo saírem, saberiam se era possível ele começar a respirar sozinho. Queria estar presente no momento em que acordasse. Ao contrário dela, que teria um acampamento à porta do hospital se lhe sucedesse algo parecido, Francisco não tinha familiares vivos e as visitas resumiam-se a alguns curiosos e amigos, para além de ela, Manuel e António, que o vigiavam constantemente.

- Está tudo bem aparentemente, - disse o médico obstetra, sorrindo a Teresa – nada com que se preocupar. A gravidez é muito recente, talvez nem uma semana, mas sim, confirma-se. Vou receitar-lhe os medicamentos normais para esta fase, ácido fólico, iodo, já sabe, correto? – gracejou, completamente alheio ao facto de Teresa não conseguir pensar, nem como mulher que iria ser mãe, muito menos como médica.
- Hum, hum… - acenou, tentando parecer convicta. – Obrigada.
- Quer marcar uma nova consulta para daqui a um mês, aqui no hospital, ou tem preferência em algum privado? – perguntou-lhe o médico prático e eficiente.
- Marco aqui, não conheço ninguém por estas bandas. – confessou naturalmente .
- Ok, combinado, basta passar na secretaria antes de ir embora e deixar este pedido de marcação. – estendeu-lhe um requerimento, solicitando a data aos serviços administrativos. – Então até daqui a um mês. E Parabéns! – sorriu, dando um aperto de mão enérgico e otimista.
- Obrigada Dr. – retribuiu o cumprimento e saiu em direção ao quarto. Não havia mais nada para lhe acontecer?, lamentava-se incrédula. Quase morrera de pneumonia, dão-lhe uma paulada na cabeça para a deixar estendida num corredor com touros - e estremeceu ao pensar na realidade que andava a evitar confrontar, o terem tentado matá-la - e agora estava grávida…Seria o Alentejo um local assim tão calmo e pacífico? Desde que ali chegara que a sua vida tinha virado uma novela mexicana…E Manuel, o belo alentejano que a tinha engravidado… o que diria ele quando soubesse que era o garanhão mais fértil da região? Sorriu com os seus pensamentos. Sim, o melhor era rir, para não chorar, disse a si mesma. Dava tudo para ter a mãe por ali perto… pensou, sentindo as lágrimas nos olhos. Ainda precisava tanto do colo da mãe e agora ia ser uma? Entrou no quarto, começou a preparar-se para o banho e escolheu uma roupa possível de se vestir, já que Manuel tinha trazido de sua casa alguns conjuntos à toa, nada combinava e iria sair dali mascarada de multi-estações do ano… Largou uma gargalhada histérica e não conseguiu conter-se mais, chorando como um bebé em cima da cama, com a cara enfiada na almofada.
- Teresa! O que foi? – Manuel que entrava no quarto naquele momento correu para ela, assustado com o comportamento descontrolado da médica. Nunca a tinha visto perder o controlo, não daquela maneira.
Teresa não conseguia falar, agarrou-se-lhe ao pescoço e chorou, sem dar explicações, só queria libertar aqueles medos todos.
- Manuel… eu… - soluçava, tentando ganhar coragem para lhe dar a notícia sobre a gravidez, mas a garganta contorcia-se em espasmos, sem obedecer. Acabou por desistir, deixando-se ficar aninhada nele, mais tarde conversariam.
- Calma, agora já passou tudo. O Francisco vai ser retirado hoje do coma, - começou por dizer, tentando animá-la – tu vais para casa, já estás boa, felizmente nada de mal te aconteceu, tudo vai voltar a ser como antes.
Teresa encolheu-se ao ouvir aqueles presságios, sabia que ele tentava animá-la, mas nada seria como dantes. Nada poderia voltar a ser, ele ia ter dois filhos, um de cada mulher e o dela ainda era incógnito. O dela seria recebido com estranheza por toda a gente, diriam que era golpe, para o agarrar…lamentava-se, deixando-se levar por teorias de aldeia, tão pouco próprias da sua forma de ser e pensar. Ele próprio pensaria que Teresa tinha engravidado de propósito, impondo-lhe um papel de pai para o qual não tinha sido consultado. Não era assim que ela imaginara que teria filhos, daquela forma angustiante e culpada. Queria casar, ser amada, viver alguns anos de paixão e depois começar a montar um enxoval, fazer um quarto bonito para o bebé, enquanto esperaria sonhadora, olhando a barriga a crescer gradualmente. Mas a sua consciência moral não lhe permitia sequer considerar tirar o bebé, pensava. A sua avó tinha conseguido parir uma filha sozinha, naqueles tempos tão difíceis, sem marido nem família, entregue a si mesma em Lisboa… Quem era ela para se armar em egoísta e adiar aquele filho até estar mais calma e ter vivido o que lhe apetecia? Teria de ganhar coragem, pensou, acalmando o choro. Até ser visível, aquela gravidez era apenas assunto seu, e teria alguns meses para pensar no futuro. Para já precisava de um banho, de se vestir, ir abraçar Rita e ir para casa. “Uma coisa de cada vez”, seria o que Maria Rosa lhe diria.

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