sexta-feira, 26 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 13




O som da corneta soava forte e enérgico, aplaudindo a vitória do grupo de Forcados Amadores de Safara, que tinham lutado heroicamente com o possante touro lidado por Francisco momentos antes. O animal tinha resistido teimosamente, obrigando os homens a repetir a pega que acabou por ser feita de forma perfeita, como mandava a tradição. O rabejador rodara durante bastante tempo, com medo de largar o animal, e Manuel temera o pior a dada altura. Finalmente todos suspiravam de alívio, mais uma festa terminava e nenhum homem sofrera.

- Maldito, filho de uma…cabrão do inteligente…- Francisco deu um murro de punho fechado na porta, bem perto da cabeça de Rita, libertando a frustração do momento. O tocador de trompete continuava a sua chamada para o desfile final de agradecimento.
- Ahm…, o que foi? – murmurou Rita, ofegante e aturdida. 
- Tenho de ir… - dizia-lhe, respirando com dificuldade, retomando a consciência.
- Quê?! –soltou ela esganiçada.– Agora? Não… - lamentou-se, sentia-se prestes a explodir, mas que péssimo timing, pensava.
- Não digas nada… Não saias daqui, eu volto. – Francisco obrigava-se a descer à Terra.
- Mas… tenho de ir, a minha mãe vai…
- Mas nada, não sais daqui. Depois vou contigo a tua casa e explico tudo, peço-lhe desculpa, digo que fui eu culpado, peço-lhe para namorar contigo, casar, o que quiseres, só não saias daqui. – Implorava-lhe o toureiro, arranjando a roupa. – Prometes? 
- Sim… bem, pode ser…- respondia, ainda dormente e aparvalhada.
- Volto já. – Beijou-a e saiu apressado, fechando a porta e amaldiçoando os compromissos com o público. 
Caminhava meio aturdido, a sentir-se  a ferver, obrigando o corpo a respirar calmamente, consciente de que deveria estar com ar de louco desvairado, quando subitamente  viu uma mancha cor de pele caída no chão ao fundo do corredor, numa esquina que dava para o curral.
- Mas… que raio é aquilo? – hesitou na sua marcha, já estava atrasado, mas algo o obrigou a dar uma corrida no sentido contrário à arena e certificar-se de que não era nada de mais, talvez um trapo velho que alguém tivesse deixado por ali. À medida que se aproximava sentia um medo a crescer dentro do peito, a forma de um braço pequeno que saía por uma das grades do portão que trancava a passagem dos touros para a arena ficava cada vez mais nítida naquele corredor escurecido. Correu com mais rapidez, seria uma criança?, pensava aflito, sentindo o coração na boca. Quando alcançou a porta trepou pela grade que lhe dava pelos ombros e viu-a caída, sem se mover.
- Teresa!! – berrou, enquanto apanhava balanço para se lançar até ao outro lado, a grade tinha sido fechada por fora, coisa que nunca acontecia, e esse pormenor deixava-o cada vez mais horrorizado. – Teresa!! – Francisco tentava perceber se estava morta ou viva, ou simplesmente magoada, mas apenas se via um golpe na testa que sangrava. Teria caído para ali? O peso morto do corpo, mesmo pequeno e delgado era difícil de levantar, e os nervos faziam-lhe suar as mãos. Não sabia se os touros tinham aquele acesso vedado. Gritava por socorro, colocando a médica em posição de a lançar pela fresta superior da grade. O pânico começava a tomar conta dos seus sentidos.

- Socorro!! Ajudem!! – berrava, começando a subir Teresa, aflito com a possibilidade de não ter força suficiente de a conseguir tirar dali sozinho.
Manuel perguntava por Teresa, mas ninguém a tinha visto e começava a ficar preocupado. Estaria bem disposta? Francisco também não aparecia e a música não parava de convocar para o desfile final. Encaminhou-se para o interior da arena, perdendo momentaneamente a visibilidade naquele contraste de escuridão profunda. Seria possível que ela se tivesse perdido nos corredores?, perguntava-se. Era bem provável, o seu sentido de orientação era péssimo. Já se tinha afastado bastante da entrada da arena e começava a retomar o caminho de volta quando ouviu Francisco gritar por socorro. O seu sangue gelou, gritou de volta, tentando perceber onde é que ele se encontrava.
- Francisco! – berrou, correndo desvairado em direção ao curral.
Francisco ouviu-o e continuou a chamar, cada vez com mais força, estavam salvos, pensou sentindo-se abençoado.
- Aqui Manuel! Rápido!
Quando Manuel se voltou para o corredor que dava para o curral sentiu-se praticamente desfalecer, viu-a morta, a ser içada por Francisco, os dois encurralados por detrás de uma grade fechada. Tentou abrir a porta, decontrolado, mas nada se movia.
- Não dá! Tenta puxá-la desse lado! –berrou-lhe Francisco, chamando-o à realidade e içando o corpo mole.
Manuel sentia o peito a explodir e o som do seu coração a bater ruidosamente nas têmporas, como um tambor. Conseguiram passar Teresa por cima da grade, e Francisco sorriu-lhe, aliviado, recuperando o fôlego.
Um estrondo forte percorreu o corredor e Francisco lançou-se para saltar de volta, trepando a grade, com os braços a fraquejarem. Tinha pontadas fortes nos músculos pela descarga de adrenalina que sofrera momentos antes. Manuel pousou Teresa no chão e esticou-se para o ajudar a subir, quando o touro em passo de corrida apareceu e se lançou contra Francisco. Embateu com violência na porta, marrando contra o abdómen do toureiro e retrocedeu alguns metros, encarando-o com aparente calma.
Francisco voltou a cabeça aparentemente sem estar magoado e olhou-o, sem sentir medo. Ali estava ela, a bandarilha de Rita pendia em cima de um caminho de sangue que abraçava todo o peito musculado do touro. Olharam-se fixamente, toureiro e touro, e Francisco sentiu medo, do mais visceral e humano, e não se conseguiu mover mais. O touro investiu repetidamente contra a porta, com o toureiro a absorver as pancadas alternadas, sem emitir um som.
Manuel berrava, em prantos, dando socos na porta, sem sentir qualquer dor, Francisco mantinha um braço apoiado na grade, sem se mover. António apareceu com outros homens, correndo desalmadamente e ao se aproximar do local foi sacudido com violência por Manuel que lhe tirou a arma do coldre que trazia escondido por debaixo do colete de pele. O filho disparou todas as balas no animal, que saiu de cima do toureiro, cambaleando de volta para o curral, vingado.
Curiosa com a algazarra que se ouvia pelos corredores fora, Rita apareceu esbaforida, tentando entender o que se passava, mas nada a poderia ter preparado para a cena de pânico, sangue e gritos no corredor do curral. Um dos homens partia a fechadura da grade, e Rita viu Teresa caída, com Manuel a chorar sobre ela e ajoelhou-se com violência, procurando os seus sinais vitais.
- Está viva! – disse a Manuel – Chamem uma ambulância! Manuel, ela está viva! – agarrou-lhe na cabeça, tentando trazê-lo para a realidade. Parecia possuído, em transe, sem a ouvir.
- Mas ele não… - sussurrou, com o olhar no vazio, chorando.
- Quem? – estremeceu e furou por entre os homens que retiravam um corpo ensanguentado do túnel. Quando viu a casaca de Francisco caiu de joelhos, procurando chegar até ele, sem que as pernas correspondessem. – Poisem-no no chão! – ordenou, nunca se podia mover assim alguém ferido, a não ser que já não houvesse salvação, dizia a si própria, caindo num buraco de desespero e angústia. Encostou a cabeça de Francisco nas suas coxas, fazendo um apoio para a coluna e tomou-lhe o pulso. Estava vivo… As lágrimas começaram a cair descontroladas, e Rita rasgou com violência as mangas da sua blusa, fazendo uma compressa para estancar o sangue que saía de um dos buracos negros que Francisco tinha nos abdominais. – Abram espaço, por favor, tragam a ambulância depressa! – chorava aos gritos, aqueles ferimentos pareciam-lhe demasiado graves para que ele sobrevivesse até ao hospital. Baixou-se em direção à sua cara, era tão bonito, pensava tentando não se descontrolar e limpando gentilmente com a mão livre as lágrimas que caíam na testa de Francisco. Teriam de esperar. 
– Não te atrevas a morrer hoje… - soluçou baixinho – Prometeste que me ias pedir em namoro à minha mãe… e ainda temos de terminar aquela nossa conversa… por isso, não me deixes, por favor. – A garganta ardia-lhe, com o esforço que fazia para não gritar toda a dor que sentia no momento, reprimindo os sons guturais que teimavam em querer sair. Em vez disso implorava ao ouvido de Francisco, obrigava-o a ficar com ela, a lutar. Falava-lhe de sonhos que tinha para os dois, imaginava a casa onde viveriam, descrevia o jardim, os filhos, fazendo com que todos os homens esperassem sem se mexer, em silêncio, chorando sem vergonha. A música parou, finalmente, todos na arena já sabiam que Francisco não iria desfilar. O silêncio caiu como um véu sobre todos, apenas a voz pequena e cadenciada de Rita se mantinha no ar, como uma reza.
A ambulância  que se mantinha sempre nas imediações das arenas em dias de festa saiu disparada pelo meio da multidão que se mantinha em transe sem conseguir reagir aos acontecimentos dramáticos e inexplicáveis daquele fim de festa. Ninguém conseguia compreender como tinham Teresa e Francisco ficado fechados no corredor dos touros, e as teorias começavam a surgir, dando largas à imaginação. Sofia ouvia-os, mostrando-se consternada, principalmente porque acabara por matar a pessoa errada. Quem iria prever que surgisse um herói no último momento? Pelo menos sentia-se revoltada e isso não precisava de fingir.


Manuel e Rita mantinham-se de mão dada, sem conseguir falar. Teresa estava a ser observada, teria de fazer alguns exames, mas continuava sob vigilância, já que recuperara momentaneamente a consciência, mas tornara a desmaiar. Os médicos atribuíam a reação ao choque e à contusão na cabeça.
Francisco entrara na sala de operações horas antes, sem prognósticos, mantendo-se no limbo entre a vida e a morte. Nada mais poderia ser feito, restava-lhes apenas esperar. Manuel limpava uma lágrima ocasional, sentindo-se a morrer por dentro, de cara virada, fixando o olhar na parede vazia quando foi chamado para resolver questões burocráticas sobre a paciente que acompanhava. Levantou-se como um autómato e deixou Rita na cadeira, depois de lhe fazer uma festa no ombro, prometendo voltar rapidamente. A enfermeira aproveitou a solidão para chorar compulsivamente agarrada aos joelhos, com a cara escondida, libertando parte da sua fúria e dor, quando um abraço forte e familiar a puxou para o colo. Julieta embalou a filha, com carinho, deixando-a chorar como uma criança desesperada. 
- Filha, ouve… - começou a falar, baixinho.
- Não vou embora daqui mãe. – gemeu.
- Não é nada disso. Trouxe-te roupa limpa, estás com péssimo aspeto e toda cheia de sangue… - engoliu em seco, imaginando o que teria a filha vivido nas últimas horas. – Também te trouxe algumas coisas para comeres, quando conseguires, e a tua carteira. 
- Obrigada… - fungou, abraçando a mãe. Afinal ela compreendia.
Mãe e filha mantiveram-se na posição até Manuel chegar, e Julieta conseguiu convencer Rita a se ir limpar e trocar, ficando Manuel de vigia à porta que dava acesso à ala de cirurgia.
Ao regressarem da casa de banho das visitas, Julieta obrigou os dois a comer meia sandes de presunto e a beber um café que fizera fresquinho e fumegava no termo que conseguira passar na segurança, facto que os fez sorrir. Era compreensível que o funcionário não se opusesse a Julieta, afinal, ao contrário da filha, ela era uma grande mulher alentejana, que raramente se deixava contrariar.
Depois de conseguir cumprir com o seu propósito de manter os vivos e saudáveis alimentados, despediu-se, deixando Manuel e Rita um pouco mais otimistas e prontos para uma noite de vigília.
Passava pouco da meia-noite quando um médico apareceu junto dos dois no corredor. Francisco resistira à operação, mas estava em coma induzido, enquanto as graves lesões internas não começassem a dar sinal de melhoria. Não podiam correr o risco de ele se mexer. Quase tudo tinha sido atingido, mas felizmente apenas o baço tinha sido retirado. O destino do toureiro estava nas mãos de Deus, e da sua capacidade de recuperação. Rita e Manuel abraçaram-se, com uma ponta de esperança a renascer e a trazer algum alívio aos seus corações que se mantinham em compasso de espera entre a realidade de vida ou morte eminente. Podiam respirar um pouco, para já, dizia o médico, sem dar muitas garantias de total sucesso na operação. Era tudo uma roleta russa, ele já tinha visto de tudo, mas garantia-lhes que Francisco parecia querer viver. 


Dias depois da tragédia, todos em Safara continuavam à espera de notícias de Francisco Carriço. O toureiro mantinha-se em coma, aparentemente na mesma e enquanto não respirasse por iniciativa própria e abrisse os olhos, ninguém conseguia respirar fundo de alívio. A famosa procissão de S. Sebastião pelas ruas enfeitadas e cobertas de alecrim tinha sido desconvocada pelo Padre da Paróquia, que decidira montar uma vigília de oração pelo famoso safarenho, esperando assim conseguir minimizar o sofrimento que se tinha generalizado e dar alguma esperança a quem atribuía todo o destino dos mortais às demandas e decisões Divinas. Sofia acompanhara Maria dos Prazeres e António a um dos Terços noturnos, passando pelas brasas momentaneamente, aquilo era pior que um velório, lamentava-se entediada. O seu futuro sogro quase não comia desde o acidente e Maria dos Prazeres tinha desviado momentaneamente o seu foco de preocupação de Sofia para António, o que ela aceitou de bom agrado. Poderia estar em segundo plano durante alguns dias, agradeceu aos Céus, já não tinha paciência para tantos salamaleques. A gravidez por aquelas bandas era pior que uma doença má que corroía o corpo. Que pacóvios supersticiosos, dizia mentalmente. Cada vez sentia mais saudades de Coimbra, talvez fugisse dali mais depressa que o que tinha imaginado, se as coisas não corressem como esperava.


- Drª Teresa, posso? – o médico responsável por Teresa entrou no quarto, precisava de fazer um último check-up antes de lhe dar alta e conversar sobre algumas revelações que os seus exames exaustivos tinham apurado.
- Claro Dr, entre por favor. – Já se sentia muito melhor, embora ainda sofresse de enjoos ocasionais, que tinham prolongado a sua estadia no hospital. Depois de uma contusão na cabeça era essencial vigiar alterações desse tipo nos pacientes. Teresa sabia disso, mas estava saturada. Precisava de ir ver Rita, de a abraçar e dar algum apoio, para variar. Sentia-se culpada com a tragédia, confusa sobre o que tinha acontecido, mas naquele momento a sua amiga era uma prioridade. – Então, vai-me dar finalmente alta?
- Penso que sim, já não há motivos para continuar aqui retida. – disse sorrindo, olhando incomodado para Manuel que lhe analisava o tom de voz e não conseguia relaxar, preocupado com a possibilidade de Teresa piorar novamente.- Será que podemos conversar a sós? – olhou Teresa com amabilidade, esperando que Manuel percebesse a deixa.
- Bem, acha que é mesmo necessário? – respondeu desconfortável. Sabia que Manuel não iria gostar de ser expulso do quarto.
- É só uma questão rotineira, quando dou alta a um paciente gosto de estar sozinho com ele, para me sentir mais à vontade. – sorriu para Manuel, que se levantou contrariado.
- Estejam à vontade, volto daqui a pouco. – beijou Teresa e saiu sem se queixar.
- Bem, nunca ouvir falar dessa de dar alta em privado… - disse Teresa desconfiada – passa-se alguma coisa?
- Teresa, felizmente está tudo bem, e os seus enjoos não são preocupantes, pelo menos do ponto de vista clínico. – acrescentou, sentando-se na beira da cama. – Mas não sei se do ponto de vista humano ficará assim tão satisfeita. Como não sou mulher não consigo nunca perceber se isto é uma boa ou má notícia. – concluiu sorrindo.
- Por favor… não me diga…esta azia, os enjoos, o vómito na arena… - Teresa sentou-se direita, tentando respirar .
- Sim, está grávida, mas precisava de lhe fazer uma ecografia para determinar de quanto tempo e se está tudo bem, depois de tudo o que aconteceu.
- Mas… eu… tomo a pílula, há anos, sem falhar um dia. É das poucas coisas que consigo fazer sem me esquecer. – lamentou-se a sentir um aperto na garganta. Tentou rever mentalmente as suas tomas e talvez não estivesse assim tão certa da sua eficácia.
- Bem, não é 99% infalível, como sabe… - interrompeu – Não tomou nenhum medicamento forte que pudesse ter anulado o efeito? Um antibiótico, não teve uma pneumonia recentemente? – questionou-a, tentando compreender.
- Ohhh… - tapou os olhos com as mãos – sim… tomei durante uma semana… que estupidez, não me lembrei dessa possibilidade. – sentia-se envergonhada por ser médica e tão imprudente.
- Não faça disto um drama desnecessário. Tenha calma, uma gravidez é sempre uma surpresa, uma novidade a que as pessoas têm de se adaptar. Mas a vida é mesmo assim, uns morrem, outros nascem. E a Drª é nova, tem uma boa profissão, um namorado que a adora, pelo que dá para entender… Vai ver que daqui a uns dias já se sentirá mais feliz com a ideia.- concluiu, tentando conforta-la. – Agora, vamos fazer a tal eco?
- Claro, obrigada. Só lhe peço um favor, não diga nada a ninguém, nem ao Manuel. – pediu, corando. – Quero adaptar-me primeiro à ideia e depois então dar a notícia. – mentiu. A ideia de Manuel ser pai de duas mulheres ao mesmo tempo não a fazia sentir-se confortável, parecia-lhe errado e estranho. Com que cara lhe iria dizer que estava grávida, também!?

Manuel aproveitou o momento para ir espreitar Francisco e arrastar Rita até ao bar do hospital. Sobreviviam os dois a café e folhados há vários dias, mas era melhor que nada.
Rita obedeceu à ordem de Manuel, seguindo-o até ao bar, estava toda torta da posição em que dormia de noite na poltrona junto do toureiro e a fome começava lentamente a voltar durante o dia. Precisava de esticar a coluna e recompor o estômago. Francisco continuava em coma, mas só depois de o resultado dos exames que fizera de manhã cedo saírem, saberiam se era possível ele começar a respirar sozinho. Queria estar presente no momento em que acordasse. Ao contrário dela, que teria um acampamento à porta do hospital se lhe sucedesse algo parecido, Francisco não tinha familiares vivos e as visitas resumiam-se a alguns curiosos e amigos, para além de ela, Manuel e António, que o vigiavam constantemente.

- Está tudo bem aparentemente, - disse o médico obstetra, sorrindo a Teresa – nada com que se preocupar. A gravidez é muito recente, talvez nem uma semana, mas sim, confirma-se. Vou receitar-lhe os medicamentos normais para esta fase, ácido fólico, iodo, já sabe, correto? – gracejou, completamente alheio ao facto de Teresa não conseguir pensar, nem como mulher que iria ser mãe, muito menos como médica.
- Hum, hum… - acenou, tentando parecer convicta. – Obrigada.
- Quer marcar uma nova consulta para daqui a um mês, aqui no hospital, ou tem preferência em algum privado? – perguntou-lhe o médico prático e eficiente.
- Marco aqui, não conheço ninguém por estas bandas. – confessou naturalmente .
- Ok, combinado, basta passar na secretaria antes de ir embora e deixar este pedido de marcação. – estendeu-lhe um requerimento, solicitando a data aos serviços administrativos. – Então até daqui a um mês. E Parabéns! – sorriu, dando um aperto de mão enérgico e otimista.
- Obrigada Dr. – retribuiu o cumprimento e saiu em direção ao quarto. Não havia mais nada para lhe acontecer?, lamentava-se incrédula. Quase morrera de pneumonia, dão-lhe uma paulada na cabeça para a deixar estendida num corredor com touros - e estremeceu ao pensar na realidade que andava a evitar confrontar, o terem tentado matá-la - e agora estava grávida…Seria o Alentejo um local assim tão calmo e pacífico? Desde que ali chegara que a sua vida tinha virado uma novela mexicana…E Manuel, o belo alentejano que a tinha engravidado… o que diria ele quando soubesse que era o garanhão mais fértil da região? Sorriu com os seus pensamentos. Sim, o melhor era rir, para não chorar, disse a si mesma. Dava tudo para ter a mãe por ali perto… pensou, sentindo as lágrimas nos olhos. Ainda precisava tanto do colo da mãe e agora ia ser uma? Entrou no quarto, começou a preparar-se para o banho e escolheu uma roupa possível de se vestir, já que Manuel tinha trazido de sua casa alguns conjuntos à toa, nada combinava e iria sair dali mascarada de multi-estações do ano… Largou uma gargalhada histérica e não conseguiu conter-se mais, chorando como um bebé em cima da cama, com a cara enfiada na almofada.
- Teresa! O que foi? – Manuel que entrava no quarto naquele momento correu para ela, assustado com o comportamento descontrolado da médica. Nunca a tinha visto perder o controlo, não daquela maneira.
Teresa não conseguia falar, agarrou-se-lhe ao pescoço e chorou, sem dar explicações, só queria libertar aqueles medos todos.
- Manuel… eu… - soluçava, tentando ganhar coragem para lhe dar a notícia sobre a gravidez, mas a garganta contorcia-se em espasmos, sem obedecer. Acabou por desistir, deixando-se ficar aninhada nele, mais tarde conversariam.
- Calma, agora já passou tudo. O Francisco vai ser retirado hoje do coma, - começou por dizer, tentando animá-la – tu vais para casa, já estás boa, felizmente nada de mal te aconteceu, tudo vai voltar a ser como antes.
Teresa encolheu-se ao ouvir aqueles presságios, sabia que ele tentava animá-la, mas nada seria como dantes. Nada poderia voltar a ser, ele ia ter dois filhos, um de cada mulher e o dela ainda era incógnito. O dela seria recebido com estranheza por toda a gente, diriam que era golpe, para o agarrar…lamentava-se, deixando-se levar por teorias de aldeia, tão pouco próprias da sua forma de ser e pensar. Ele próprio pensaria que Teresa tinha engravidado de propósito, impondo-lhe um papel de pai para o qual não tinha sido consultado. Não era assim que ela imaginara que teria filhos, daquela forma angustiante e culpada. Queria casar, ser amada, viver alguns anos de paixão e depois começar a montar um enxoval, fazer um quarto bonito para o bebé, enquanto esperaria sonhadora, olhando a barriga a crescer gradualmente. Mas a sua consciência moral não lhe permitia sequer considerar tirar o bebé, pensava. A sua avó tinha conseguido parir uma filha sozinha, naqueles tempos tão difíceis, sem marido nem família, entregue a si mesma em Lisboa… Quem era ela para se armar em egoísta e adiar aquele filho até estar mais calma e ter vivido o que lhe apetecia? Teria de ganhar coragem, pensou, acalmando o choro. Até ser visível, aquela gravidez era apenas assunto seu, e teria alguns meses para pensar no futuro. Para já precisava de um banho, de se vestir, ir abraçar Rita e ir para casa. “Uma coisa de cada vez”, seria o que Maria Rosa lhe diria.

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(imagem, internet)

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