segunda-feira, 22 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 9



Rita esforçava-se por se manter calma, enquanto Francisco pedia dois cafés ao balcão com uma presença dominante e ligeiramente assustadora... mas que pedaço de homem, confessava a si própria, irradiava um magnetismo animal, talvez conquistado em anos de confrontos na arena, matutava. Se não temia enfrentar um touro, o que não faria com uma simples rapariga de 1,60… pensava, arrepiando-se com as imagens que lhe vinham à cabeça. Para piorar a sua situação, todos no café a olhavam de esguelha, como uma criminosa, e não os podia censurar, concluía. Afinal Francisco Carriço era, ao jeito de Manuel, de poucas conversas e inatingível para a maioria dos pobres comuns mortais, como ela. Mantinha por isso os olhos na mesa, rodando os anéis maquinalmente, desejosa que aquela tortura terminasse rapidamente.
- Então a Dra. Teresa apanhou uma pneumonia? – perguntou curioso sentando-se demasiado perto da enfermeira em agonia.
- Ah… Sim, veja bem, estamos todos sujeitos. As temperaturas daqui podem ser perigosas para quem não está habituado. Demasiado calor durante o dia e frio de noite… Parece que tomou banho ao relento na piscina e foi o suficiente para a adoecer. – falava como uma matraca, despejando informações sem controlar os pensamentos.
- Ah pois, estou a ver. – disse num tom irónico, sorrindo como se falassem de algo muito agradável.
- Mas não se preocupe, para a semana com certeza conseguirá a sua consulta! – reagiu, desagradada com o tom gozão do toureiro. – O namorado tem cuidado muito bem dela, é só cuidados e preocupações. O Amor correspondido é uma coisa muito bonita, não acha? – espetou o queixo na direção de Francisco, que se surpreendeu com a mudança de atitude da enfermeira.
- Bem, claro, afinal ele não tem mesmo mais nada que fazer. Ouvi dizer que nem o curso terminou lá em Coimbra… tantos anos fora, devia estar com medo de voltar. – Deu um gole no café, demorando-se eternidades, com um sorriso maldoso no olhar.
- Não me sinto propriamente à vontade aqui a desdenhar dos meus amigos sentada à mesa do café consigo. Como deve compreender, nós não somos íntimos, quanto muito conheço-o de vista, a si e ao seu cavalo, talvez ele consiga ser mais agradável de conversa. Obrigada pelo café, mas agora tenho de ir, se me dá licença. – levantou-se, sorrindo, sentindo-se triunfante e poderosa. Enfrentara Francisco Carriço, marrara com toda a força e ele nem tivera tempo de se desviar elegantemente, como nas arenas.
O toureiro engasgou-se com o insulto e agarrou no braço de Rita, prendendo-a a uma distância pouco educada. Mas quem é que ela pensava que era para o destratar assim?
- Talvez se montasse um dia o meu cavalo tiraria as suas dúvidas. Estamos os dois disponíveis para lhe ensinar. – largou-a subitamente e levantou-se, encarando-a de pé, numa tentativa de se impor.
- Não gosto de bestas, prefiro uma bicicleta! –  silvou, cuspindo ódio pelo olhar. Abandonou a arena, e deixou-o de boca aberta, a pensar numa resposta à altura, ouvindo uns risinhos nas mesas do lado. Sentia as pernas a tremer, depois da descarga de adrenalina que aquele 1,90 lhe tinha provocado. Homenzinho arrogante e bruto, remoía na direção de casa. Sempre fora uma pessoa de brandos costumes e temperamento dócil, sem coragem para bate bocas, porque viria agora aquele estúpido perturbar-lhe o seu dia a dia? Precisava urgentemente de tomar um duche, pensou recriminando-se, odiava cada vez mais Francisco Carriço, mas o seu baixo ventre não parecia compreender que aquele não era o homem indicado. Esquece-o!, berrou-lhe autoritária. “Nem com mil bandarilhas espetadas no cachaço”.


Manuel chegou à herdade em poucos minutos, tinha pressa, queria resolver fosse o que fosse o mais rápido possível e voltar para casa de Teresa, de onde nunca deveria ter saído se tivesse juízo, dizia a si mesmo.
- Onde está a Sofia? – perguntou furioso sem dar a salvação a ninguém.
- Está com os seus paizinhos lá para cima, perto do campo. – respondeu um funcionário assustado com os modos de Manuel.
- Obrigado, …e desculpe, estou nervoso. – disse em jeito de remissão. Precisava de se acalmar, aquela situação estava a deixá-lo com os nervos em franja. Qualquer coisa de muito agoirento lhe dizia que o pior ainda estava para vir. Sentia a garganta seca só de pensar na triste realidade que o tinha atropelado. Acelerou na pick-up até ao local indicado e ficou agoniado com a cena patética dos pais agachados à volta de Sofia, que se esforçava por fazer cara de sofrimento. Conheci-a bem, os seus dotes de atriz eram famosos, mas o bebé não tinha culpa, pensou, respirando fundo. Por ele iria engolir as “fitas” de Sofia na gravidez, e se um dia mais tarde ela o aborrecesse demasiado, simplesmente pediria a guarda da criança e pagaria uma mensalidade para ela o deixar em paz. Duvidava que a maternidade a modificasse.
- O que se passa afinal? – perguntou saindo da pick-up de mãos na cintura, arrogante.
- Manuel, a Sofia e eu estávamos a caminhar e de repente deu-lhe uma dor muito forte no abdómen. – choramingou Maria dos Prazeres.
- Bem, o melhor é levá-la ao médico. Vamos a Moura às urgências e logo se vê. – Ajudou Sofia a levantar-se e a sentar-se na carrinha, tentando ser o mais simpático possível para os pais não o recriminarem. Faria a sua parte.
- Sim querido, estas dores no início da gravidez não são nada bom sinal!! – pressagiou Maria, que vivera alguns abortos espontâneos durante os primeiros anos de casada e temia agora que o mesmo se estivesse a suceder com o primeiro neto. António percebeu a dor da mulher e colocou-lhe o braço por cima do ombro, mostrando-lhe solidariedade. Também se recordava dos tempos difíceis em que tinham perdido vários filhos.
Manuel deixou os pais com alguns remorsos, tinha arrastado para a herdade uma série de problemas que os “velhotes” não tinham necessidade de passar. Parecia que nada do que fazia corria bem, estudos, mulheres, filhos, estava tudo baralhado e confuso. Uma trapalhada, bufava.

Conduzia cuidadoso para não piorar o estado de Sofia, prolongando involuntariamente a sua passagem pelo centro de Safara. Queria voar dali para fora, mas Sofia gemia e lamentava-se sempre que passavam por um local da estrada menos suave. Circundavam a praça principal, passando rente ao café central e Sofia agarrou-se ao seu braço, encostando a cabeça no seu ombro, premeditadamente.
Olhou em pânico para a esplanada e cruzou o olhar com Francisco Carriço que o saudou sorridente:
- Bingo! – sibilou o toureiro satisfeito.


Teresa acordou depois de algumas horas, esfomeada, sentindo-se cada vez melhor. Vestiu uma roupa confortável, afastou a roupa da cama para arejar, abriu a janela e espreitou as paredes com a cabeça do lado de fora, certificando-se de que não havia rastejantes prestes a entrar no seu quarto. Decidiu deixar as portadas abertas enquanto iria preparar alguma coisa para o seu almoço. Precisava mesmo de comida a sério! Por momentos desejou ainda estar na herdade, perto da cozinha de Maria dos Prazeres, de onde saíam maravilhosos aromas de café e ervas aromáticas. O que lhe apetecia mesmo era uma açorda…lamentou-se por ser tão pouco prendada e não fazer a mínima ideia de como se preparava aquele prato. Fernanda saberia com certeza fazer uma! Animou-se com a esperança de concretizar o seu desejo culinário e telefonou à mãe, que devia estar raladíssima com o seu estado de saúde. Em breves orientações, Fernanda explicou como todo o mistério da açorda era um disparate, afinal, a lógica e a necessidade de poupar tinham inventado aquela iguaria, e Teresa depressa percebeu como bastava ter puxado pelos neurónios para descobrir que o pão rijo era a solução e no Alentejo rapidamente o pão secava com o calor, logo, estava salva! Esmerou-se ao máximo, aguentando estoicamente a fome, precisava de se sentar numa mesa bem-posta, com direito a guardanapo e talheres completos. A doença tinha-a privado de muitas coisas, mas comer na horizontal era um suplício pior que a falta de garfo e faca…A comida nem sabia ao mesmo quando engolida numa cama. 
Deleitou-se com a sua primeira açorda, ligeiramente adaptada à falta de alguns ingredientes sagrados para os alentejanos, como o alho e os coentros, mas perfeita para quem andava a torradas e chá há mais de uma semana. Sentia-se nas nuvens, revigorada como um bebé depois da “papinha”! Arrumou a confusão que a sua inexperiência provocou na cozinha e sentiu-se cansada, a necessitar de medir a febre e descansar depois de tomar o antibiótico. Subia as escadas para o primeiro andar com um copo lavado e um pequeno jarro de vidro com água fresca para manter à cabeceira da cama, quando viu a osga que a visitara antes de passar o fim-de-semana romântico na herdade com Manuel. Mas onde estava ele naquele momento tão crítico? Precisava da sua calma e eficácia mais que nunca… Tremia que nem varas verdes, congelada pelo pânico…Fugir? Atacar? Como se matava um bicho nojento daqueles? Num ímpeto irrefletido lançou o copo na direção da osga, falhando o alvo em vários metros, fazendo com que o animal se movesse ligeiramente para o teto, ficando mais inacessível, e estilhaçando o copo nas escadas. Mas o que foi que fizeste, Teresa? Berrou a si própria. Correu na direção da cozinha, para poisar o jarro e procurar uma vassoura ou algo comprido o suficiente para conseguir alcançar o bicho que caminhava lentamente e despreocupado. Encontrou uma esfregona e lançou-se frenética em saltos tentando derrubar o animal da sua posição conveniente. Pisou alguns cacos, fazendo pequenos cortes nos pés, mas que no momento lhe pareciam secundários perante a missão de esmagar a osga invasora do seu lar. Acabou por ceder à dor na sola dos pés, sentando-se nos degraus de madeira com demasiada força, chorando com toda aquela confusão e desesperando com o sangue que se espalhava pelas escadas e que transformava a sua casa num cenário dantesco e assustador. Daria tudo para ter Manuel ali consigo, sentia-se cansada, estranhamente deprimida e não tinha conseguido compreender até ao momento porque a tinham abandonado ali na Vila… Chorou ruidosamente, soltando toda a fúria que sentia no momento, uma simples sardanisca tinha-a levado ao fundo do poço, pensava derrotada e caída nos degraus. Recompôs-se, limpando a cara à manga do pijama, olhou em volta à procura do bicho rastejante e não pôde deixar de soltar uma gargalhada ao ver a osga a observar toda a cena patética com uma expressão de horror que não sabia ser possível a um animal tão pequeno. Levantou-se depois de retirar os pequenos pedaços de vidro da sola dos pés, e começou a limpar toda aquela confusão quando a vassoura bateu na esquina de um degrau e este se soltou, caindo escada abaixo. Teresa revirou os olhos, lamentando a sequência de acontecimentos catastróficos que pareciam não terminar, e espreitou para o buraco enorme que certamente teria uma família de ratazanas a procriar, pensou, angustiada. Não havia sinais de mais bichos, suspirou aliviada, no entanto tinha bastante lixo, papéis velhos, cotão, pó e um pequeno volume bem escondido no seu interior. Teria de enfiar a mão pelo orifício escuro, constatou horrorizada, se quisesse satisfazer a curiosidade descontrolada que aquela descoberta lhe provocava. Porque haveria uma tábua solta num degrau de casa da sua avó, que no seu interior continha papéis e um embrulho?... Tinha de ser algo importante, ou valioso, pelo menos para quem se tinha dado a todo aquele trabalho. Respirou fundo, deitou mais um olhar à osga, que parecia impaciente a esbugalhar os olhos periféricos e acenou positivamente à sua companhia improvável.
- Sim, tens razão. Não vou conseguir viver sem ler estes papéis. – confidenciou em voz alta. – E pior que tu, não pode haver aqui dentro. – Retirou todo o conteúdo do buraco, colocou novamente a tábua no sítio e levou todo o lixo para a cozinha. Preparava-se para limpar o sangue das escadas quando gritos vindos da rua a surpreenderam, mas que mais lhe poderia acontecer? Espreitou pela pequena janela da porta, mas apenas conseguia ver algumas cabeças a correr, que pareciam fugir de algo muito perigoso. Olhou-se ao espelho da entrada para se certificar de que a sua aparência lhe permitia enfrentar a vizinhança e deitou a mão à maçaneta, quando de repente a porta levou um estrondo forte, como uma pancada seca que a fez estacar de susto. Mas que raio… Abriu energicamente a porta, preparada para desancar os brincalhões que andavam a tentar destruir a sua casa, quando todo o sangue que possuía no corpo lhe desceu até aos pés, que colaram ao chão, pesando toneladas. Um touro gigante olhava-a de frente, bufando furiosamente, de língua pendente e cornos afiados. Teresa ficou hipnotizada, em transe, a boca seca, uma mão na porta, outra caída, sem vida. O seu cérebro não funcionava, estando completamente em branco, sem sequer comandar as funções mais básicas do corpo humano, como a respiração ou os batimentos cardíacos. Olhavam-se há alguns segundos, mulher e besta, sem nenhum dos dois se decidir a mover um músculo, quando um homem apareceu do nada, espantando o touro, que continuou a sua corrida rua abaixo, deixando Teresa em estado de choque, na mesma posição lunática, de mão agarrada à porta e corpo hirto. Ficou tudo escuro e uma forte dor na cabeça acordou a médica, que recuperou a consciência com a pancada provocada pelo desmaio desamparado no corredor da entrada. Dois braços ampararam-na, fechando a porta de casa, e Teresa foi ajudada a subir até ao quarto, sem perceber o que se passava, ainda tonta com a queda.
- Deite-se, por favor, vou buscar gelo para colocar na cabeça, foi uma pancada e tanto! – disse uma voz familiar, mas que a médica não conseguia definir.
Aos poucos, o sangue voltava a preencher todas as suas artérias e canais, e Teresa recuperava a sensibilidade em todo o corpo, principalmente na cabeça, que latejava fortemente e onde nascia rapidamente um hematoma assustador.
- Esta casa parece um cenário de um crime! – gozou o homem, que subia as escadas tentando evitar as poças de sangue nos degraus. – Pronto, aqui está um saco com gelo, tem de colocar isto depressa antes que a cabeça… ah… já aí tem um belo galo! – acrescentou de forma prática, sorrindo preocupado.
- Francisco… mas… o que foi que aconteceu? Porque é que eu caí? Porque é que aqui está em minha casa? – balbuciou sem compreender como é que aquele homem ali tinha entrado, e porque raio estava a cuidar dela…
- Calma, não se assuste Dra., a Senhora abriu a porta de casa quando a largada de touros estava a passar… foi realmente estúpido, e teve muita sorte de o bicho não ter investido por aqui a dentro! – disse sorridente.
- Quê? Largada de touros? E ninguém avisa a população? Ai… - a dor de cabeça não lhe permitia berrar com muita força.
- Não se enerve, olhe que a pancada foi muito feia. – disse Francisco, obrigando Teresa a deitar-se – Toda a gente sabe quando estas coisas acontecem, e há editais espalhados por aí. Ninguém a avisou porque esteve na Herdade e não sabíamos que já tinha voltado. O Manuel não lhe disse? – interrogou curioso.
- Não…- confessou Teresa envergonhada. Ainda não tinha percebido o que se estava a passar, porque é que Manuel tinha desaparecido desde cedo e não dava sinais de vida.
- Bem, agora não vale a pena falar mais nisso. Mas… o que é que lhe aconteceu? – disse horrorizado com a visão dos cortes ensanguentados nas solas dos pés de Teresa.
- Ah…parti um copo nas escadas por causa daquela osga nojenta que tornou a aparecer cá em casa e estava a tentar matá-la, pisei alguns cacos… - ruborizava ao mesmo tempo que se ouvia a descrever o seu ataque de histerismo e Francisco Carriço disfarçava um sorriso de gozo.
- Estou a ver, deve ter sido terrível. – brincou ele, levantando-se e dirigindo-se à casa de banho, de onde trouxe um kit de primeiros socorros improvisado, sentando-se perto da cama e iniciando a limpeza dos ferimentos, sem dar a Teresa possibilidade de se recusar a receber o tratamento.
- Não é preciso, por favor, eu depois faço isso. – Teresa sentia-se escarlate, aquela intimidade forçada era desconfortável, e a ideia de que Manuel pudesse surgir a qualquer momento deixava-a em pânico.
- Não me custa nada. E se está preocupada com medo de que o Manuel apareça, não vale a pena. Ele passou de manhã por mim na pick-up e ia em direção a Moura, parecia bastante ocupado. – ironizou, arrependendo-se logo de seguida. Antes de atacar com aquele trunfo precisava de saber quem era a mulher que o acompanhava na carrinha. Se fosse uma familiar ou houvesse uma explicação lógica para tudo aquilo, ele é que ficava mal visto. 
- Ai sim? Au!....- afinal ele tinha a Moura, e não lhe disse nada, constatou ofendida. – Pois, ele disse que ia lá. – mentiu, escondendo a surpresa.
- Hum, bem, acho que já não tem mais vidros espetados. Agora vamos desinfetar isto e já está.- concluiu sorrindo.
- Obrigada. Por tudo, pelo touro, o desmaio, isto… Foi um dia difícil. – confessou, agradecida. Afinal o toureiro parecia não ser assim tão mau carácter, pensou, arrependida.
- De nada, foi tudo um grande susto, mas pode-se dizer que teve muita sorte por eu estar a passar no momento certo! Agora descanse, tenho de voltar à festa e contar aos curiosos o que estivemos a fazer aqui em sua casa. Já deve haver boatos a circular! – piscou-lhe o olho e despediu-se formalmente.- Se precisar de alguma coisa telefone-me, quer dizer, se o Manuel não aparecer entretanto… e… a Ri.. a enfermeira sua amiga não estiver disponível. – corou ligeiramente, sem perceber porquê, recompondo-se de seguida e saindo do quarto, espantado com as sensações que lhe surgiam ao pensar na pequena desafiadora.
- Claro, obrigada uma vez mais. – Teresa fingiu não perceber o tom do toureiro e relaxou no conforto da sua cama depois de ouvir a porta bater. Sentia-se cansada, precisava de dormir, mas um aperto no peito não a deixava desligar-se da realidade. Pegou no telemóvel e ligou a Manuel, tinha de saber o que se passava, e avisá-lo de que a sua rua estava interdita. Não revelaria os últimos acontecimentos e omitiria o facto de Francisco Carriço a ter carregado para a cama e feito curativos nos pés. Já bastava de sangue por um dia, concluiu. Repetiu a chamada várias vezes, mas ia sempre parar ao voice mail, que a informava numa voz seca de que “Agora não posso atender, ligo mais tarde!” Deu por si a telefonar variadas vezes, só para ouvir a sua voz, sentia-se patética e desesperada como uma adolescente neurótica. Mas que raio de poder tinha aquele homem, e por onde andava? Carregava no botão de ligar sem pensar, quando uma voz feminina falou, mas…que mensagem de voice mail era aquela?
- Estou?, Sim?, Quem fala? – a voz dizia, como se falasse para ela.
- Estou? Manuel? – Teresa não pensava, sentia-se aparvalhada sem entender de onde aparecera aquela mulher.
- Quem deseja falar com ele? – a mulher resmungou impertinente.
Teresa acordou do transe bruscamente. Sentando-se de repente na cama e sentindo uma azia a queimá-la toda por dentro.
- Quem é que está ao telefone? – uivou a médica deitando fogo pela boca.
- A namorada! E quem é que quer falar com o Manuel? – silvou a outra.
- A quem? Como? – olhou o telefone incrédula, para se certificar de que estava a ligar para o contacto correto. Sim, era o número do Manuel, mas…a namorada era ela… a forte dor na cabeça espalhava-se pelo pescoço, testa, envenenando o resto do corpo. Desligou abruptamente o telefonema, olhando o aparelho a ofegar. Duas grossas lágrimas ameaçavam cair, tudo aquilo era demais para um dia só. Queria desesperadamente racionalizar aquela sucessão de acontecimentos, mas a cada hora que passava sentia-se cada vez mais perdida e desamparada. A imagem do touro na soleira da sua porta de casa parecia-lhe cada vez menos assustadora que o telefonema para Manuel, levar umas marradas seria certamente menos letal que um par de cornos… 
A angústia subiu-lhe pelo esófago, queimando-lhe as entranhas, implacável. Enterrou a cabeça na almofada e berrou, chorou, esperneou, acabando por se acalmar depois de decidir dar a Manuel uma hipótese de se explicar convenientemente. Tudo poderia ser um mal-entendido, e a sua reação exagerada era claramente o resultado de fraqueza física e convalescença da pneumonia. E ainda havia o embrulho misterioso… quando acordasse iria investigar aquelas folhas velhas e escondidas durante tanto anos… Sim, isso seria excitante… Manuel também o era, excitante, misterioso…um adónis…secreto…seu, delirou, segundos antes de adormecer profundamente.


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(imagem, internet)

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