sexta-feira, 19 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 8



Sofia acordou preguiçosa da sua primeira noite na herdade. Demorara bastante tempo a adormecer, excitada com os últimos acontecimentos, deixando-se perder em teorias e especulações sobre tudo o que vira naquela casa na noite anterior. António e Maria dos Prazeres pareciam-lhe bastante genuínos, pessoas com quem lidaria facilmente, assim que tivesse tempo de os conhecer, Manuel tinha-o preso a um compromisso de honra, agora que “iam ser pais” de uma criança, só lhe faltava perceber quem era a visita do jantar e a hóspede acamada que pelos vistos fora levada dali às pressas no meio de tanto secretismo. Sofia não era nenhuma parva, sabia que a sua chegada tinha levado a algumas reestruturações familiares, só não compreendia como em tão pouco tempo Manuel tinha arranjado outra mulher, que pelos vistos tinha intimidade para ali viver. Seria uma relação antiga? O seu estômago ficou momentaneamente apertado, com aquela ideia. Nunca duvidara da fidelidade do namorado… Sabia das reticências que este tinha relativamente ao futuro em conjunto, não era um homem garantido nem apaixonado, mas isso pouco importava, dizia a si mesma. Quem é que na vida real ainda esperava encontrar um “Mr. Darcy”? Só as palermas perdiam os melhores anos das suas vidas a queimar pestanas com romances, encafuadas em casa, à espera que um homem ideal lhes surgisse no caminho, cumprindo as regras do destino. Manuel não era um herói de romances, muito pelo contrário. Era um homem egoísta, egocêntrico, que raramente se entusiasmava com ela. Tinha um temperamento seco e ligeiramente bruto, quando contrariado, pouquíssimo sentido de humor, um chato, resumia. Mas um chato rico e atraente como poucos homens que conhecera, e surpreendentemente indiferente a outras mulheres, deixando-se ficar pela casa de Coimbra, quando não havia convívios masculinos de bilhar e parvoíces do género. Era garantido que não a amava, mas dificilmente encontraria outro partido igual ou melhor, por isso, estava determinada a fazer com que ele se mantivesse por perto, chato ou não, sempre cumpria satisfatoriamente com algumas funções e era agradável à vista. Sofia temia terminar casada com um alegre bairradense, que gradualmente se transformaria num porco de pescoço grosso, sobrancelhas unidas e faces rosadas, ganhando dez quilos por ano. Outro igual ao pai não, já lhe chegavam as vergonhas que passava quando tinha de conviver com a família. Odiava aqueles alarves sugadores de vinho tinto e devoradores de chouriços. Queria distância dessa realidade e arrepiava-se quando revia mentalmente os “pretendentes” que lhe eram sugeridos, sempre que voltava a casa nas férias. Os pais viviam a ilusão de ela casaria com um abastado filho da “terra”, e ela alimentava-lhes essa esperança, mantendo a relação com Manuel secreta. O que o coração não vê, não sente, sentenciava. 
Agora estava cada vez mais próxima de resolver o seu futuro, que não passava propriamente por se tornar numa latifundiária dedicada, mas por gozar prazeirosamente dos lucros da herdade alentejana numa cidade moderna, com todo o conforto e mordomias a que estava destinada.  

- Não gostei do ar dela Maria, escusas de me tentar convencer. Nem o “Fiel” a olhou direito e tu sabes que o cão tem faro para gente torcida. – justificava António à mesa do pequeno-almoço. Já se tinha mentalizado que o filho casaria um dia com a médica, era-lhe quase doloroso agora refazer todos os sonhos que o distraíam enquanto trabalhava. Manuel e Teresa viveriam ali com eles, encheriam a casa de netos, e o filho nunca mais o abandonaria, tomando o seu lugar na herdade. De repente surgia-lhe à porta uma trigueira de faces demasiado rosadas, com um olhar indiscreto que mirava tudo de forma nervosa, declarando-se “namorada” de Manuel e lançando-lhes uma bomba daquelas… estava grávida. Mas que raio de sina tinham os homens daquela família, pensava angustiado… Mas será que eram tão viris que engravidavam moças à distância? Já o seu pai tinha passado pela vergonha de uma acusação daquelas, agora era o seu filho… Ao menos antigamente batia-se a porta e o assunto ficava ali arrumado, pensava sem culpa. Joaquim nem vivia em Safara quando “engravidou” a moça em causa, quanto mais! Agora vinha uma de Coimbra com a mesma história da prenha por correspondência… Só podia ser marração do destino.
- E se queres saber mais, a mim não me engana ela. Até pode nascer aqui a criança, mas assim que isso acontecer, não te vás apegando muito, porque agarro nela e vou a Beja fazer um desses testes que agora há para saber se é ou não meu neto. E se não for, ai Maria, vai corrida daqui à frente dos touros, com o filho ao colo e tu estás proibida de a ajudar!! – rosnou António, de olhos inflamados e carregados de ódio.
- És louco homem, alguma vez a rapariga vinha para aqui contar uma mentira dessas? É claro que engravidou quando o Manuel ainda lá vivia com ela e nenhum dos dois sabia que isso tinha acontecido. Agora que se descobriu, ele tem de assumir o filho… e casar, claro. É o que está correto, por muito que tu esperneies. – disse Maria corajosa, enquanto levantava a mesa, arrumando a loiça suja. – Também pensava que esta história com a Dra Teresa ia ser de outra forma, gosto muito dela, como uma filha que nunca tive… - fungou – mas a gente não manda no futuro, como bem sabes.
- Eu não o vou obrigar a casar com ela, ficas já avisada. Quero bem saber se no café vão comentar, ou não. Já o perdi uma vez, não perco de novo. O teu filho ama a Teresa, como nunca amou outra, te garanto. Nem vai nunca amar esta – olhava furtivamente a porta, receando que a visita inesperada aparecesse – que eu sei! Queres agora desgraçar-lhe a vida e fazer com que fuja daqui? – levantou-se nervoso e saiu em direção às cavalariças, tudo o que queria era ocupar a cabeça, e não pensar mais no assunto.
Maria fungava junto ao lava loiças, o marido não a compreendia, era óbvio que a felicidade do filho estava acima de qualquer coisa, mas a ideia de um neto era tão doce… Se Manuel não casasse com a rapariga nunca veria aquele bebé. Teria um neto perdido pelo mundo, não o veria crescer, não lhe faria papinhas de maizena, nem a primeira açorda… O seu coração de avó traía-lhe o bom senso, queria aquele anjinho por perto, nada mais.

Manuel acordou sobressaltado com calor, lamentando de imediato a sua incompetência como enfermeiro. Tinha deixado passar a hora do remédio da febre e Teresa ardia novamente, suando em bica, com leves tremores. Medicou-a de imediato e preparou-lhe um chá quente com mel para lhe restituir algum açúcar no sangue. Lembrou-se que a cozinha de Teresa estava praticamente vazia e preparou-se para fazer algumas compras. Tinha algum receio de a deixar sozinha, mas o remédio não tardaria a fazer efeito, e para continuar a tomar antibiótico era necessário comer qualquer coisa. Beijou-lhe a testa e saiu em direção à mercearia mais perto dali. 
A casa estava bafienta, e Manuel tratou de a arejar um pouco, abrindo janelas e portadas, para o sol entrar. Teresa mantinha tudo selado, com medo da bicharada rastejante, lembrava-se ele divertido com a recordação do episódio da osga no quarto da médica. Mas meio caminho andado para a cura era limpar o ar da casa, pensou, certo de que já ouvira Maria dos Prazeres “rezar” qualquer coisa do género. Seria bastante improvável que as sardaniscas preferissem o cheiro a sono e mofo a uma parede quente e soalheira da rua. Arrumou as compras, limpou a cozinha e admirou-se com o seu jeito doméstico, nunca antes visto. O que o amor fazia a um homem, comentava consigo próprio animado, admirando a sua destreza com o pano e a esfregona. Terminava as limpezas no rés-do-chão, quando a campainha da porta tocou, devia ser Rita, que vinha certificar-se de que ele tinha mantido a médica viva durante a noite.
- Bom dia Manuel! – disse a enfermeira de olhos sorridentes ao vê-lo de pano ao ombro e esfregona na mão.
- Bom dia Rita, ainda bem que chegaste. Fui fazer umas compras e estive a arrumar a cozinha. A Teresa está sem febre agora e passou muito bem a noite. Comeu torradas e esteve bastante tempo acordada, bem disposta. - Que bom, vou lá acima espreita-la. Estás bem? Pareces estranho. – perguntou preocupada, lamentando logo de seguida ser tão precipitada a falar. Era óbvio que ele estava estranho, tinha uma “namorada” grávida na herdade à espera de uma aliança e tinha passado a noite com outra mulher a dar-lhe remédios e torradas. – Desculpa, eu sou mesmo uma parva. Não ligues, vou mas é medir a febre à Teresa e ver se precisa de alguma coisa. – subiu as escadas repreendendo-se mentalmente, envergonhada com aquilo tudo. Sentia-se uma intrusa naquela novela, testemunhando factos e segredos que não tinha intenção nenhuma de saber… Estava angustiada com a ideia de que Teresa lhe podia fazer perguntas sobre o porquê de a terem trazido para a Vila, Rita não sabia mentir e iria espalhar-se ao comprido tentando evitar o tema.
- Olá Rita! – disse-lhe Teresa sorridente, sentada na cama. – Ainda bem que chegaste. Tenho ouvido barulhos lá em baixo, andavas a arrumar a casa ou quê?
- Ah, não era eu, só cheguei agora, é o Manuel que anda em limpezas! – confessou sorrindo de orelha a orelha. – Já viste algum safarenho de esfregona na mão? Pois eu não! – gracejou a enfermeira. – É a primeira vez!
- Oh, que querido… Não era preciso, podia vir deitar-se aqui comigo, que eu depois arrumava tudo, já me sinto muito melhor.
- Mas ainda não deves fazer esforços, nem apanhar correntes de ar. Fica pelo menos mais um dia na cama sossegada. Quando já não tiveres mais febre podes começar a pensar em tomar banho, comer coisas mais consistentes, levantares-te um bocado, para ganhares forças.
- Hum… tomar banho… acho que estou mesmo a precisar, já não aguento o meu próprio cheiro, nem sei como é que o Manuel ontem conseguiu dormir aqui comigo.  
Rita invejou momentaneamente aquele namorado, que cozinhava, limpava e ainda se encarregava dos cuidados médicos. Havia pessoas destinadas a serem felizes, ou não, corrigiu-se rapidamente, imaginando o que poderia fazer Teresa assim que soubesse dos últimos acontecimentos. Começava a odiar aquela sensação angustiante de quando uma novela começa a chegar a metade da emissão, e não há nada de mal e terrível que não aconteça à heroína. A sua mãe estaria agora a lamentar-se de forma audível e praguejando contra o televisor, prometendo a si própria que aquela seria a última vez que seguiria uma novela, suspirando fortemente, frustrada. Rita também queria secretamente ter a possibilidade de carregar no botão e apagar a fonte da sua angústia… Mas estava demasiado envolvida com um dos protagonistas, teria de aguentar!
- Rita! O que se passa?, pareces tão preocupada… - Teresa estranhava aquele silêncio pouco característico da enfermeira.
- Ham? Nada, nada, ando meia atoleimada, não sei. – subitamente corou com a recordação do encontro de primeiro grau que tivera com o toureiro estuporado no centro de saúde, que desde então a consumia um pouco todas as noites. – É só um magano que me olhou tempo demais nos olhos e agora ando feita parva a sonhar acordada…- sorriu envergonhada com a confissão, mas satisfeita por ter inventado uma desculpa bastante convincente, principalmente para si própria.
- Ai sim? E quem foi o atrevido? – brincou Teresa, curiosa.
- A… bem, não conheces …chama-se Tiago, acho que nunca o viste… - mentiu, dirigindo-se ao quarto de banho para encher a banheira, Teresa precisava de tirar o cheiro da doença do corpo e ela queria ocupar-se com qualquer coisa para não falar demais.- Vou chamar o Manuel para nos vir ajudar, acho que ele vai gostar desta tarefa doméstica em particular! – piscou o olho a sentir-se atrevida.
Manuel e Teresa olhavam-se sugestivamente, sem pudores, enquanto a enferma era ajudada a entrar na banheira, e Rita percebeu que ali era um elemento estranho. Já tinha orientado as próximas doses de antibiótico e a médica já lhe parecia consideravelmente recuperada! Deixou o casal sozinho no quarto, saindo e fechando a porta, tudo o que mais temia agora era ser testemunha das provas sonoras do “pecado”, pensou afogueada.
- Meninos, vou sair, lembrei-me de repente que prometi à minha mãe levá-la de manhã a Moura. Até logo! – saiu apressada, fugindo da sua própria vergonha. Alguém precisava de ter algum tino naquela casa…
Mal fechou a porta da casa deu de caras com Francisco Carriço que por ali passava, o que a fez franzir o sobrolho. Fingiu estar distraída com o telefone e caminhou de olhos no chão enquanto rezava para que ele a ignorasse, como nos últimos vinte e seis anos.
- Bom dia, Senhora enfermeira! – zombou o toureiro cheio de si. – Então agora mora para estas bandas?
- Bom dia, não, vim visitar a Dra. Teresa. – justificou apressadamente, continuando a caminhada na direção contrária à casa.
- Espere lá! Onde vai com tanta pressa? Deixe-me pagar-lhe um café. – sugeriu com um leve sorriso nos olhos.
- Obrigada, mas tenho alguma pressa. Fica para um outro dia. – não podia acreditar naquilo. Tantos anos a vê-lo passar testerónico em cima do seu cavalo, sem nunca se dignar olhar para baixo, e agora de repente queria café? Desconfiava fortemente das intenções do tipo, e se bem se conhecia, se lhe abrisse a guarda estava desgraçadamente a traçar o seu “fado”.
- Ok, vou então fazer uma visitinha à Dra., agora que pelos vistos voltou para casa. Seria estranho fazê-lo na herdade, ou no mínimo irónico. 
- Não! Não pode. – girou nos calcanhares e lançou-se em direção ao braço do toureiro que se dirigia à campainha. – Deixei a Dra. a dormir, ela precisa de descansar. Bebemos antes o tal café, pode ser? – Manuel faria uma pega de caras se abrisse a porta e se se deparasse com aquele “animal”.

Teresa agradeceu aos deuses pela invenção dos sais de banho, a mistura de aromas, bolhinhas e quente era tão relaxante…Manuel olhava-a satisfeito, ela era tão bela que nunca se cansava de a admirar.
- Não entendo o que ainda fazes aí fora! A banheira é antiga mas cabemos aqui os dois perfeitamente! Anda, a água está maravilhosa! – sugeriu Teresa piscando os olhos.
- Não queria atrapalhar o teu banho relaxante, pareces tão feliz.
- Ah, mas contigo fico ainda mais feliz! – confessou, chegando-se para a frente, enquanto Manuel despia as roupas, animado.
De costas sobre o peito dele, Teresa fechou os olhos, deixando-se dormitar, enquanto Manuel lhe dava pequenos beijos nos ombros e cabelo, aparentemente descontraído.
- Precisava de conversar contigo sobre um assunto. – disse ganhando coragem, agora que ela não o podia ver, nem teria de enfrentar o desapontamento, ou raiva, ou tristeza, ou fosse qual fosse o sentimento que lhe iria surgir no olhar.
- Hum…. Agora? Está-se tão bem aqui… É algo aborrecido? – perguntou.
- Sim, pode-se dizer que é aborrecido.
- Então por favor não estragues este momento… - implorou. – Se há coisas que quero um dia mais tarde recordar, definitivamente será esta banheira cheia de Manuel, água quente e sais de banho…
- Ok, falamos mais tarde. – suspirou de alívio, conseguira adiar um pouco mais o problema, sem se sentir culpado.
- Ah, se eu soubesse que a vida em Safara seria tão boa, teria pedido para fazer o estágio aqui. – brincou, tentando aliviar o ambiente que estava pesado e misterioso.
- Teresa, acho que te amo. – confessou Manuel inesperadamente.
- Quê? – Abriu os olhos com o choque, sem coragem de olhar para trás.
- É isso que ouviste, acho que te amo, acho não, tenho a certeza. E preciso que o saibas, antes de tudo mais. Promete-me que nunca vais duvidar disso. – a sua voz era grave.
- Manuel, eu não duvido. Nunca pensei que isto nos acontecesse tão repentinamente, mas sinto o mesmo. Também te amo.- Pensou em tirar a limpo o motivo daquela confissão, mas algo lhe dizia que não ia gostar. Ainda se sentia bastante fraca, deixaria as conversas difíceis para outra hora. Um bocadinho de egoísmo não lhe parecia descabido, afinal de contas estava a recuperar de uma pneumonia. - Agora relaxa, por favor. Daqui a pouco a água esfria e acabou-se o banho. Virou-se para trás e beijou-lhe a face, deixando a cabeça cair no ombro dele, que a abraçou, aceitando o seu conselho. A vida não podia ser mais doce que aquilo…


- Bom dia Dona Maria. – Sofia surgiu timidamente à porta da cozinha, pedindo licença para entrar com um olhar submisso.
- Bom dia menina Sofia, dormiu bem? – Maria dos Prazeres era a anfitriã perfeita, resultado de anos de uma educação rígida e cuidada.
- Maravilhosamente! O silêncio daqui é milagroso, dormimos completamente relaxados.
- Ainda bem, por favor sente-se, deve estar com fome. O António e eu já tomámos o pequeno-almoço, mas o café ainda está quente. Sirva-se à vontade, vou só dar umas orientações aos empregados e volto já.
Maria deixou Sofia regalada em frente a uma mesa farta, satisfeita por estar a cumprir o seu papel de futura avó. Afinal, o seu primeiro neto não tardaria e era urgente convencer a mãe da criança de que ali era bem recebida e estimada. Voltou rapidamente para a cozinha, ansiosa por saber mais pormenores sobre a gravidez, queria inteirar-se de tudo.
- E o Manuel? Está cá? – Sofia sabia perfeitamente que ele não tinha ali passado a noite, esperara horas, distraída com os seus pensamentos, e ele não voltara para casa.
- Não querida, teve de resolver uns assuntos na Vila, mas deve estar para chegar. O pai está à sua espera para tirar uns touros do campo de cima. – inventou Maria no momento. Sentiu-se ruborizar ligeiramente, mas depressa se recompôs.
- Já não bebia um café tão bom há anos! – sorriu satisfeita. – E este Pão de Ló está divinal! Foi a Senhora que o fez? – Esmerava-se em simpatias, afinal estava em desvantagem naquela corrida ao “Manuel em estafetas” e precisava galgar algumas etapas, se queria acabar no pódio!
- Gostava de conhecer a quinta? Podíamos ir dar um passeio, enquanto o Manuel não chega. – Maria batia as pestanas, admirada com os modos agradáveis da futura mãe do seu neto.
- Adorava! Sou apaixonada por cavalos e touros! Lá na minha zona também temos algumas touradas. Acho linda a nossa tradição tauromáquica!
- Que bom! Então, quando estiver pronta, vamos a isso. Gosto de dar uma caminhada logo pela manhã, com companhia ainda sabe melhor.
Saíram na direção oposta à de António, dirigidas por Maria, que sabia que o marido não disfarçaria o descontentamento ao vê-las como duas amigas de braço dado a dar passeios. Pelo menos a rapariga também gostava da vida do campo, e parecia conhecer alguma coisa da lide dos animais, o que poderia ser o caminho para chegar ao Engenheiro teimoso, suspirava Maria.
Sofia tentava perceber o que se tinha passado no dia anterior, fazendo algumas perguntas discretas sobre a sua chegada, mas Maria não se calava com os sintomas das grávidas e as mezinhas que aprendera com a sua mãe e que curavam qualquer enjoo ou dor abdominal. Frustrada com aquela conversa pouco útil, decidiu que já esperara demasiado por Manuel. Ele não iria voltar para casa tão cedo e já duvidava mesmo que aquela fosse de momento a “sua casa”. A gravidez teria de servir para alguma coisa, e depois de caminhar umas boas centenas de metros simulou um mal estar que a impedia de caminhar, levando Maria dos Prazeres ao histerismo. Era urgente que Manuel chegasse e a levasse ao Centro de Saúde, ou outro ponto de urgências. 
Maria deixou Sofia recostada numa sombra e correu a chamar por ajuda, sentindo-se desfalecer de tanta preocupação. Depressa alcançou o marido, que não teve outra hipótese senão telefonar a Manuel, afinal ele era o namorado e o principal responsável por toda aquela trapalhada.

Manuel e Teresa dormitavam embalados pela água quente que lhes beijava a pele suavemente, apreciando o silêncio da casa e a companhia um do outro. A calma aparente começava a ser substituída por aquela sensação tão familiar que os seus corpos viviam, quando estavam demasiado perto. Manuel fingia que não percebia os apelos da sua mente, tentando pensar no estado ainda frágil da médica, mas Teresa conseguia ser bastante envolvente e sedutora, mesmo calada e de costas. Seria possível que fizesse de propósito? Tinha a sensação de que ela sorria de gozo consciente dos seus poderes, fazendo-o sofrer em silêncio, na indecisão.
- Podes parar de pensar nisso? – Manuel ralhou, remexendo-se e cortando o fio condutor dos seus pensamentos.
- Pensar? – ronronou ela – Eu não estava a pensar em nada…
- Se calhar é melhor saíres agora do banho, não podes arrefecer muito e a água já não está assim tão quente. – disse, levantando-se e secando-se com uma toalha, desesperado.
- Ok, desmancha-prazeres, passa-me o robe, por favor, e ajuda-me a levantar daqui, ainda me sinto um pouco tonta. 
- Vamos, o quarto está aquecido, secas-te lá, é melhor. – agarrou-a pelos cotovelos, içando-a com facilidade, como a uma criança, estava assustadoramente leve, constatou preocupado.
Teresa abraçou-o com força, assim que os seus pés tocaram o chão. Adorava abraços, eram tão reconfortantes e catárticos… Manuel já conhecia bem este estranho mas delicioso hábito da médica. Nunca tinha abraçado tanta vez uma mulher, como desde que a conhecera. Era uma necessidade bem vinda, pensava, recebê-la nos braços e enfiar a cara nos seus cabelos. 
Ficaram algum tempo naquela posição, ganhando coragem para se separarem, e Manuel não conseguia mais esconder a necessidade urgente de a amar, empurrando-a devagar até à cama, sem a soltar e beijando-a apaixonadamente. Caíram no colchão fofo, já totalmente despidos e noutra dimensão, quando o telefone de Manuel começou a tocar insistentemente, parando ao fim de vários toques e recomeçando novamente.
- Merda! – bufou no pescoço de Teresa, levantando-se contrariado. – Não te mexas nem um centímetro! – ameaçou ele, olhando-a de esguelha e sorrindo maldoso.
Pegou no telefone, como suspeitava, era da herdade. Pela insistência dos toques não devia ser boa coisa. Suspirou e atendeu, rezando para que fosse um problema possível de resolver mais tarde.
- Sim, estou! – não conseguia disfarçar a frustração do momento interrompido.
- Manuel, onde estás? – perguntou o pai zangado.
- Em casa da Teresa, onde é que acham que eu poderia estar? – lançou furioso.
- Volta depressa, a Tua Namorada Grávida – e reforçou as três palavras de forma sonora – não se sente bem e é melhor ires com ela ao médico!
Manuel desligou o telefonema com vontade de esmigalhar o aparelho contra a parede do quarto. Teria de deixar Teresa e ir tratar de Sofia…
- O que foi? – perguntou a médica assustada com o olhar de Manuel.
- Tenho de ir resolver um assunto na herdade, é urgente. – não a olhava enquanto se vestia, cobardemente. A vontade que tinha era deixar Sofia a morrer devagar, se esse fosse o problema, mas o bom senso teria de prevalecer e poderia voltar mais tarde para os braços de Teresa.
- Bem, se é assim tão grave, vai. – disse, receosa do que poderia estar a acontecer. – Voltas mais tarde? – perguntou a medo.
- Claro amor. Ligo-te daqui a pouco para saber se estás bem e volto assim que puder. Não te preocupes, descansa. – beijou-a, deixando-a aconchegada no edredão, remoído de culpa e ressentimento.
Arrastou-se para fora da casa, e fechou a porta em câmara lenta, prolongando a sua estadia ao máximo.
- Começa…

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(imagem, internet)

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