quarta-feira, 17 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 6




 Ainda não tinha terminado o fim-de-semana romântico de Teresa e Manuel e já toda a Vila comentava a lua-de-mel que se vivia na herdade. Vozes de escândalo misturavam-se com elogios ao amor, fazendo com que velhas histórias de Safara fossem relembradas. Amores proibidos, traições, paixões improváveis, havia de tudo um pouco nas memórias dos safarenhos que discutiam a moral e os bons costumes na esplanada do café. 
Francisco Carriço ouvia atentamente uma conversa sobre os avós de Teresa e Manuel, Maria Rosa e Joaquim, que o interessava de forma particular; a empregada e o filho do patrão tinham vivido um tórrido caso de amor, segundo alguns antigos que os conheciam, e que comparavam os dois casais de forma dramática, como o destino a que as duas famílias não conseguiam fugir. Nunca perdera tempo com histórias de alcoviteiras, mas Teresa interessava-o ao ponto de se colocar à escuta, vibrando com aqueles segredos. A recém-chegada fora arrematada por Manuel sem hipótese de luta e Francisco odiava perder, muito menos para aquele homem que lhe roubara o coração da sua única paixão. 
Helena, Francisco e Manuel tinham crescido juntos, inseparáveis durante a infância, mas o amor e a devoção que o toureiro sentia pela doce amiga não eram correspondidos, como mais tarde descobriu quando a pediu em namoro e ela o renegou, admitindo que sofria por Manuel. Este testemunhara toda a angústia amorosa de Francisco e fora fiel à sua amizade, mas Helena amava-o, e só isso foi o suficiente para fazer crescer em Francisco um ódio irracional pelo amigo. Sem se dar conta, de ano para ano, a presença ocasional de Manuel em Safara tornava-os cada vez mais distantes um do outro. Francisco debatia-se internamente em dilemas emocionais, mas Helena cravara-lhe um desgosto profundo, e Manuel era o espelho do seu fracasso e solidão. Não conseguia olhá-lo sem a ver, o que o perturbava fisicamente, obrigando-o a repelir o amigo. Passaram a evitar-se, como dois inimigos e os pequenos encontros que surgiam terminavam quase sempre em luta, como se a ligação entre os dois fosse de tal forma forte que não permitisse que se ignorassem. Quando esbarravam um no outro, reagiam.
Mas ali estava uma história interessante, uma fatalidade a que Manuel não conseguira fugir, matutava Francisco, Teresa era a Helena do ex-amigo. A oportunidade de se vingar surgiu-lhe na mente, animando-o de forma soturna. Uma Helena só aparecia uma vez na vida, pensava Francisco, era agora ou nunca!
Montou o seu cavalo e decidiu ir ver com os próprios olhos o que de tão extraordinário se passava pela herdade de Manuel. A curiosidade mórbida que sentia era maior que o bom senso, levando-o a expor-se de forma perigosa, sem medir as consequências do que lhe poderia acontecer se o descobrissem no local sem ser convidado.


Já não entrava naqueles terrenos há vários anos, mas tudo parecia igual, os mesmos sobreiros, a mesma beleza que lhe trouxe uma nostalgia profunda, uma saudade de tempos mais fáceis e felizes. Por momentos perdeu a certeza de que deveria invadir a privacidade do casal, mas a memória de Helena surgia-lhe sempre na mente quando se sentia vacilar perante Manuel. 
Perdia-se nos seus pensamentos quando os ouviu rir, descontraídos na piscina que se situava atrás da casa.
- Agora esticas os braços, isso, inclina-te, assim, isso mesmo… - Manuel orientava Teresa em qualquer coisa, animado.
- Não consigo, isto é contranatura, ninguém no seu perfeito juízo se manda de cabeça, desprotegido. – resmungava Teresa.
- Não estás desprotegida, a água não magoa! Anda lá, os teus mergulhos são dolorosos de ver, pareces uma sapa a lançares-te à água! – disse Manuel a perder a paciência. – Não, quer dizer… desculpa, eu não queria dizer isso. É claro que não pareces uma sapa… querida, por favor… Não me faças ir atrás de ti, olha que vais direta para a água! – ameaçava Manuel.
- Mas… que… boa tarde! – Teresa surpreendeu Francisco que os escutava escondido na lateral da casa.
- Olá, boa tarde Dr.ª Teresa! Vejo que já fez excelentes amizades em Safara! – ironizou o toureiro, sem perder a compostura, mesmo depois de ter sido apanhado na sua indiscrição.
- Quem é que aí está, Teresa? – Manuel ouvira vozes e ficara curioso com a chegada de alguém, não esperava visitas.
- Não é ninguém Manuel, já vou! – Teresa percebeu a intenção de Francisco, que procurava incomodar o casal e decidiu despachá-lo por si própria.
- É uma querida a Dr.ª, sabia? – Francisco encarava-a, do alto do seu cavalo, imponente e ameaçador.
- Desculpe, mas alguém o convidou a entrar na herdade? Não, pois não, então faça o favor de se retirar. – Rugiu sem piedade, aquele toureiro irritava-a, havia nele qualquer coisa que a incomodava mais que o normal.
- Estou a ver que vim interromper o casalinho, peço desculpa. Enganei-me claramente no caminho, devia ter seguido em frente na estrada principal e meti-me por este caminho de cabras, sem me aperceber. – mentiu - Mas foi bom revê-la, principalmente assim toda molhada e de bikini, um desperdício… - sorriu provocadoramente, o que fez Teresa corar de vergonha, ao se sentir nua e violada na sua intimidade.
- Desapareça, agora. – sussurrou ansiosa, para que Manuel não percebesse quem ali estava, o resto de domingo que ainda dispunham na companhia um do outro iria ser comprometido se ele visse o toureiro em sua casa sem ter sido convidado.
- Adeus querida, até um dia destes. – gozou Francisco, colocando o cavalo a galope e saindo apressado das terras do ex-amigo. Fora uma bênção ter sido Teresa a descobri-lo, pensou, Manuel era mais forte que ele e não admitiria uma intromissão daquelas. A sua imprudência quase corria mal, dizia a si mesmo, aliviado.

Manuel colocou-se estrategicamente à espera de Teresa, ao voltar da esquina, aguardando o momento em que ela iria aparecer inocente e desprevenida, para a lançar à água sem dó nem piedade. Ela demorava-se, e Manuel ficava ansioso com a espera, sem compreender o que a detinha. Sentiu um empurrão forte, desequilibrou-se e Teresa aplicou-lhe uma rasteira eficaz que o fez cair de chapa na piscina, sem reação. Teresa ria vitoriosa, enquanto se lançava numa fuga histérica na direção oposta à que Francisco tomara, desviando qualquer possibilidade de encontro entre os dois.
- Sua… nem sabes o que te espera… - dizia Manuel entre dentes, excitado com a surpresa daquele golpe tão bem aplicado. Aquela mulher era destemida, pensava animado enquanto saía da piscina e se preparava para o sprint. Apanhou-a em poucas passadas, em meio de gritos e risos que lhe furavam os tímpanos, levando-a à força empoleirada num dos ombros.
- Não fui eu! – gritava Teresa divertida - Por favor não me afogues!! – suplicava deliciada com as brincadeiras parvas a que dois adultos se podiam permitir junto a uma piscina.
- Sua sapa mentirosa. Tens de aprender uma lição. – colocou-a no chão, correu com ela suspensa à sua frente e lançou-se para a água, caindo com violência com Teresa por baixo do seu corpo, que não teve tempo de fechar o nariz, como costumava fazer sempre que mergulhava a cabeça na água, ficando submersa sem ar.
Teresa lutou dentro da piscina em pânico, sem conseguir respirar, mas Manuel não a deixava ir à superfície, o que a congelou de medo, a água era um dos elementos que a assustavam bastante. Ele olhava-a com gozo, percebendo o seu medo e aflição e deixou-a regressar devagar até à tona da água, recuperando a falta de ar do mergulho abrupto. 
- Já te disse que és um parvalhão? – perguntou Teresa, cada vez mais louca por aquele homem.
- Hoje ainda não… - Manuel sorriu, satisfeito com o insulto, que dito daquela forma era irresistível.

Deixaram-se ficar na piscina até o sol desaparecer, prolongando até ao último minuto o fim-de-semana maravilhoso que tinham vivido os dois. Seria difícil voltar à realidade, Teresa regressar à Vila, dormirem separados, afastarem-se alguns quilómetros, mesmo que por apenas algumas horas.
Manuel arrastou Teresa para fora da piscina, encaminhando-a dificilmente para dentro de casa, onde teriam de se preparar para a despedida. Teresa entrou no quarto de banho e olhou-se no espelho do lavatório, enquanto arrumava os seus artigos de higiene. Manuel seguiu-a e abraçou-a olhando o seu reflexo. Fitaram-se durante um tempo, encarando os rostos belos e molhados que os olhavam do espelho, como se refletissem pessoas diferentes. Teresa sentiu o seu coração encher-se de emoção, ficando insuflado de energia, lendo nos olhos de Manuel que ele a amava. Aquele rosto perfeito dizia-lhe que a queria para sempre, e ela sentia o mesmo. Ele beijou-lhe a face, abraçando-a com força, prolongando o momento.
- És linda, sabias? – perguntou-lhe com sinceridade.
- Vista daqui até que sou. – brincou, inclinando-se sobre o peito escultural de Manuel que emoldurava o seu rosto sorridente.
- Não quero que vás embora. – confessou Manuel, apertando o abraço como uma criança que faz um pedido impossível.
- Faz uma mala e vem comigo. – sugeriu Teresa a medo, sem saber se ele gostaria da ideia de ir viver com ela.
- A sério? – disse exultante. – Tens a certeza? – virou-a para si, beijando-a animado.
- Claro, não consigo imaginar-me sozinha em casa depois destes dois dias. – confessou – Para além de que há osgas no meu quarto… - gozou, recordando o episódio cómico com o réptil.



- Grávida? – guinchou Sofia demasiado alto na esplanada.
- Sim, não é maravilhoso? – a amiga vibrava com aquela novidade, ainda era estudante, mas a condição de futura mãe não a embaraçava minimamente.
- Bem, se tu estás contente, eu também. Parabéns. – Sofia não compreendia como as raparigas da idade delas podiam aceitar uma reviravolta daquelas do destino sem desesperar. Imaginou-se na mesma situação, ainda desempregada, sem casa, nem marido, à espera de uma criança que dificultaria tudo. Fraldas, chupetas, noites perdidas, sentiu um arrepio na coluna ao olhar a pequena ecografia que Margarida lhe estendia emocionada.
- Não é lindo? – perguntou a amiga de lágrimas nos olhos.
- Não se percebe nada. – resmungou virando a foto de um lado para o outro.
- Claro que não se percebe, só estou de 8 semanas. Ainda é muito pequenino. – justificava Margarida. – É este pontinho aqui! – sorriu animada.
Sofia observou com atenção o futuro bebé, sem saber o que pensar, tentando fingir alegria, quando lhe surgiu uma ideia de génio. 
- Posso fotografar com o telemóvel? – pediu. Aquele bebé era a sua salvação, concluiu excitada.
- Claro querida, vais ser a madrinha! – Margarida vibrou com o interesse da melhor amiga. 
Sofia fotografou várias vezes o pedaço de papel, de diferentes ângulos e agradeceu o convite. Esperava sair de Coimbra o mais rápido possível, depois do que tinha em mente, mas a amiga não precisava de o saber. 


Teresa despediu-se com dificuldade de Manuel à porta de casa. O trabalho esperava-a, mas a sua vontade era arrumar a bicicleta e voltar para a cama fofa, beijá-lo dos pés à cabeça e dormitar mais algumas horas abraçada à sua estátua grega. Porque tinha a vida que ser tão cínica? Quando nos apetecia fazer uma coisa era obrigatório fazer outra….
- Logo vou-te buscar ao Centro de Saúde… - Manuel esforçava-se por lhe soltar a cara, beijando-a em volta da boca.
- Ok… mas não te atrases… - sussurrava, em apneia – vou despachar os doentes o mais depressa possível, alguém que se livre de lá aparecer gravemente ferido. – brincava Teresa sem abrir os olhos.
- Vá, pira-te daqui antes que eu me arrependa. – Manuel soltou-a e empurrou a bicicleta, dando-lhe balanço. 
Teresa pedalou com esforço, as pernas pesavam-lhe toneladas, como se uma força a impedisse de ganhar velocidade. Arrastou-se todo o caminho lamentando para si mesma ser adulta e ter responsabilidades. Dava tudo para ainda estar a estudar e poder faltar às aulas toda a manhã… Seria a primeira vez que o faria, se pudesse voltar no tempo, mas só agora o destino lhe trouxera Manuel. Passou distraída pelo café, levantando frouxamente o braço em saudação, resmungando a sua pouca sorte. 
A ideia de ir encontrar Rita animava-a ligeiramente, poderia estender aquele fim-de-semana em pensamentos, teria um dia inteiro para relatar à recente amiga todos os pormenores que eram passíveis de serem contados. Outros ficariam apenas para si mesma, como jóias fechadas a sete chaves, segredos do seu coração. 


- Bom dia! – Rita sorria de orelha a orelha, com uma animação excessiva que só podia significar que já ouvira boatos sobre o fim-de-semana da colega de trabalho.
- Bom dia, Rita. – disse Teresa com algum esforço. Deveria sentir-se nas nuvens, depois de tudo o que tinha vivido nos últimos dias, mas ironicamente sentia-se a morrer por dentro. De casa ao Centro de Saúde o corpo começara a dar sinais de um cansaço fora do comum, doía-lhe tudo, articulações, músculos, cabeça, como se tivesse doente. 
- Que aspeto terrível, Teresa. Tens febre? – A enfermeira espantou-se com a cor pálida da médica. – Senta-te por favor, vou buscar o termómetro. – indicou-lhe de forma prática, a sua experiência dizia-lhe que a amiga não estava bem fisicamente.
- Não tenho nada, é só cansaço… - não terminou a frase, caindo desmaiada, amparada por Rita.
- Acudam aqui! – gritou a enfermeira, sustendo dificilmente o corpo morto à beira do chão.
Acorreram alguns colegas e utentes, uns por pura curiosidade, outros auxiliando Rita a colocar Teresa na maca de observação do consultório. A palidez da médica estendia-se pelo corpo todo, e a temperatura subia visivelmente, provocando-lhe suores e espasmos involuntários.
- Está a arder em febre, tragam-me um copo de água, por favor. – Rita correu ao armário dos medicamentos procurando um Paracetamol forte, compressas para refrescar os pontos corretos e despachou a plateia curiosa para fora do gabinete, era necessário arejar o ambiente da sala e dar-lhe privacidade. 
Teresa recuperou os sentidos lentamente, sem perceber onde estava, sentia-se a morrer por dentro, a cabeça parecia uma bomba prestes a explodir de dor. Viu Rita a olhá-la carinhosamente e deixou-se ficar naquele limbo de inconsciência, fechando os olhos. 
- Mas que susto, Teresa… - reclamou Rita, colocando mais uma compressa gelada na testa da médica. – 39,5º de febre, como é que conseguiste pedalar até aqui? – perguntou espantada.
- Pensava que as dores do corpo eram psicológicas… estava deprimida por ter de deixar o Manuel… - sorriu-se, mantendo os olhos fechados. A luz incomodava-a e piorava as dores de cabeça.
- Ah, então já estão assim? A acordar juntos… - Rita vibrou com aquela informação, adorava um bom romance. Ainda não tinha vivido essas experiências, lamentava para si mesma, e tinha algum receio de que os anos passassem e nada de extraordinário viesse a acontecer consigo. Na sua juventude dedicara-se na formação para conseguir ser enfermeira, profissão que adorava desde criança e muita coisa tinha ficado para trás. O seu coração tinha algumas contas a acertar, mas como uma boa romântica, se não era Ele, então não valia a pena o esforço. A história de Teresa e Manuel consolava-a, um verdadeiro conto de fadas, nem nos filmes se via coisa igual, pensava feliz. Havia pessoas destinadas à felicidade, concluía orgulhosa, e eles os dois estavam fadados. – Que romântico… - suspirou sonhadora.
- Sim… ele é muito romântico… acho que a piscina à noite me pôs doente… já me sinto melhor… - tentou levantar-se, mas a febre ainda estava demasiado alta, obrigando-a a deitar-se novamente. Não sairia dali pelo seu próprio pé, concluiu angustiada, pensando na bicicleta.


Manuel comprou o bilhete de ida para Lisboa para o dia seguinte, logo de manhã. Tinha de ir até Coimbra o mais rápido possível, não queria estender por muito mais tempo aquele problema. Sofia era demasiado esperta e instável  para se ficar sem uma explicação do que estava a acontecer há alguns dias. 
Meteu-se na pickup e conduziu até ao café para tomar o pequeno-almoço, mais aliviado por já ter dado o primeiro passo na resolução do seu mal-estar. No dia seguinte tudo ficaria esclarecido, pensou animado, quando, ao passar pelo Centro de Saúde viu um reboliço estranho à entrada. Mas o que se teria passado? Um dos seus companheiros de café acenou-lhe vigorosamente, chamando-o.
- Dr. Manuel, venha cá, a Dra. Teresa desmaiou! – gritou o velho preocupado.
- A Teresa? – parou bruscamente a carrinha e dirigiu-se apressado ao consultório. Parecia tão bem quando a deixou à porta de casa, pensava ansioso.

- O que aconteceu? – Manuel entrou no gabinete intempestivamente, onde Teresa continuava deitada a arder em febre, perdendo e recuperando a consciência, assistida por Rita.
- Dr. Manuel, ainda bem que apareceu. A Teresa chegou aqui muito pálida e desmaiou-me nos braços. Reparei que estava a arder em febre, já a mediquei, mas a temperatura ainda não baixou. Ela tem estado a falar coisas sem nexo, não recuperou totalmente a consciência. – relatou a enfermeira que tentava todas as técnicas conhecidas de baixar a febre.
- Teresa, querida, estás a ouvir-me? – disse ao ouvido de Teresa. – Vou levar-te para casa, achas que consegues levantar-te?
- Vá-se embora daqui… - balbuciou ela iniciando mais um delírio febril – toureiro estúpido… Manuel, ele está aqui a espiar-nos…
- Ela tem estado a praguejar contra o Francisco Carriço… - confessou Rita envergonhada – no meio de muita coisa que já disse. A febre está muito alta e por vezes as pessoas têm esta reação, não se preocupe. – justificou a enfermeira, tentando descontrair.
- Pode praguejar à vontade, o gajo merece. – brincou Manuel, que ficou curioso com o detalhe de que o toureiro os estava a espiar. Seria tudo imaginação, perguntava-se preocupado, pegando em Teresa ao colo. Rita abria caminho por entre os utentes, espantados com o cavalheirismo romântico do Dr. Manuel, e cochichavam à sua passagem. Mais uma para me gozarem no café, constatava Manuel resignado. 


- Pai, a mãe está aí? – António lia o jornal, sentado na sua cadeira de palha preferida, aproveitando o fresco da sombra.
- Foi ao mercado, mas porquê? O que é que se passa? – conhecia bem o filho para saber quando ele estava aflito.
- Tenho aqui na carrinha a Teresa, - António largou o jornal e levantou-se preocupado por não a ver dentro da pickup, - ela desmaiou no trabalho, - explicou - tem muita febre e achei que seria melhor trazê-la para cá, na aldeia não tem ninguém para cuidar dela.
- Claro, fizeste bem. – disse António paternalmente – Vamos levá-la para o quarto de hóspedes… ou para onde tu quiseres – acrescentou, ao ver a cara de desagrado do filho. Aquelas modernices antes do casamento eram difíceis de compreender. – A tua mãe de certeza que conhece algum chá que a vai ajudar. 
Deitou-a na sua cama, e deixou António a vigiar a enferma, saindo em direção a casa de Teresa para recolher algumas roupas que seriam necessárias enquanto ela estivesse doente. Aquela febre podia durar alguns dias, segundo a explicação de Rita. 
Lembrou-se repentinamente da viagem a Coimbra que tinha programado para o dia seguinte e concluiu que teria de a adiar, uma vez mais. Sofia que o perdoasse, mas não ia deixar a Teresa sozinha naquele momento.


A enfermeira desmarcava as consultas dos primeiros dias da semana, mantendo as marcações que necessitavam apenas de serviços de enfermagem, que ela mesmo pudesse assegurar. Estivera alguns dias sozinha antes da chegada de Teresa a Safara, e não era assim tão invulgar os utentes da aldeia terem de se deslocar a povoações vizinhas em caso de urgência. Enquanto não se soubesse a gravidade do estado de Teresa, teriam todos de esperar, afinal, os médicos também adoeciam, dizia Rita a si mesma e às pessoas que reclamavam o contratempo.
- Devem pensar que os médicos são máquinas… - resmungava ao desligar o telefonema.
- Bom dia, peço desculpa, posso entrar? – Francisco Carriço surgiu-lhe à porta do consultório, sorridente.
- Bom dia… - disse espantada e um pouco perturbada com a presença intensa do toureiro.
- Ouvi dizer que a Dr.ª Teresa se sentiu mal, alguma coisa grave? – perguntou humildemente.
- Não, bem… penso que não, tinha febre alta, teve de ir para casa, não conseguia trabalhar. – explicou atabalhoadamente Rita, que corava sempre na presença de homens bonitos.
- Ah, mas que chatice, ainda agora começou a trabalhar, já está doente… acho que lhe vou fazer uma visita, levar-lhe uma canja, afinal, os amigos são para essas coisas, certo? – Francisco falava arrastando-se na direção de Rita, que estremecia com a aproximação física, o que lhe provocava um gozo tremendo. A miúda está mesmo enervada, é cómico!
- Não sei se será muito boa ideia, - ripostou ela em desafio, tentando recompor-se – A Dr.ª Teresa já está a receber cuidados do namorado. – olhou-o de forma superior e sugeriu-lhe que saísse, apontando com a mão a direção da porta do consultório.
Afinal é brava, interessante…
- Muito bem, desejo-lhe as melhoras, então. Assim que voltar ao trabalho preciso de marcar uma consulta, será que me pode avisar? – estendeu-lhe um cartão de visitas, com os seus contactos pessoais.
- Com certeza, ligarei assim que a Dr.ª estiver melhor. – esforçou-se por não lhe tocar, pegando no pequeno pedaço de papel com a ponta dos dedos. Sabe-se lá se não dá choque? , perguntou-se Rita divertida.
Francisco estendeu a mão, esperando um aperto em despedida, desafiando-a, tinha achado imensa graça à manobra patética de agarrar no cartão com a ponta dos dedos.
Oh merda…o gajo percebeu que tenho medo de lhe tocar…, pensou nervosa. Respirou fundo e apertou a mão do toureiro com firmeza, encarando-o do alto dos seus 1,60m.
Francisco nunca tinha perdido tempo a reparar na enfermeira, não o entusiasmavam nada as songamongas envergonhadas, mas talvez Rita não fosse assim tão apagada como lhe parecera sempre. Tinha reagido à sua presença e o aperto de mão denunciava alguma personalidade. Talvez apenas fosse corajosa quando se tratasse de defender as amigas, matutou interessado.
Montou o seu puro-sangue e afastou-se do Centro de Saúde distraído com as suas reflexões sobre a enfermeira Rita.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário