sexta-feira, 5 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 3




- Bom dia, Doutora Teresa, bem-vinda!
- Bom dia! – Teresa estava animadíssima para conhecer o seu novo local de trabalho. O pequeno Centro de Saúde era um edifício antigo, mas bem cuidado, com paredes caiadas de branco, parecia uma autêntica casa de bonecas, com pessoas simpáticas e sorridentes, o que a deixou feliz, adorava bom ambiente. Beijou toda a gente de forma amistosa, o que agradou os funcionários em geral, e encaminhou-se para o seu consultório, ávida de começar o trabalho.
- Olá bom dia, Doutora! Sou a Rita, a enfermeira que vai trabalhar consigo. – apresentou-se uma pequena rapariga sorridente, a quem Teresa abraçou automaticamente, deixando-a espantada com aquela médica tão pouco snob.
- Bom dia Rita, chama-me apenas de Teresa. O “doutora” faz-me sentir velha, e somos quase da mesma idade. – esclareceu. Era bom conhecer alguém ainda na casa dos vinte, mesmo que no limite.
- Estava tão entusiasmada com a sua chegada! O último médico era um velho insuportável! – confessou, ficando envergonhada logo de seguida com a sua boca de trapos.
- Espero ser melhor companhia! E trata-me por tu, por favor!
Começaram a preparar as primeiras consultas da manhã, e Rita trouxe os processos, que por ali ainda andavam em papel, para que Teresa se fosse ambientando com os utentes que Rita conhecia desde sempre. 
- Para começar temos a Dona Efigénia, é muito boa senhora, mas uma chatinha. – declarou Rita, conhecedora. – Vai-te dizer que tem todos os sintomas que ouviu no programa da TVI de ontem à tarde. Não ligues muito. Precisa de atenção, vive muito sozinha, por isso passa a vida a visitar-nos. Vou mandá-la entrar! - e saiu alegremente da sala, chegando logo de seguida com uma senhora pequena e de ar curioso, deserta por ver a nova médica.
- Bom dia, Senhora Doutora! – disse cerimoniosamente, sentando-se na cadeira.
- Bom dia, Dona Efigénia. Chamo-me Teresa, então o que a traz por cá?
- Olhe doutora, estou muito mal. Sofro de hemorróidas desde nova e desde o início da semana que tenho tido dores horríveis, nem queira imaginar. – lamentou-se.
Hemorróidas logo para começar o dia, pensou Teresa desanimada, provocando um sorriso em Rita que a “ouviu” pensar.
- Vamos lá então dar uma vista de olhos nisso! – disse ganhando coragem e encaminhando a paciente para a maca de observação.

A manhã correu sem sobressaltos, e só faltava um utente para a pausa do almoço. Teresa e Rita entendiam-se às mil maravilhas, completando as frases uma da outra, e tornando o trabalho numa doce obrigação.
- Já só falta um! – exclamou Rita satisfeita com a colega que o destino lhe tinha trazido, depois de alguns anos a aturar um velho maldisposto e a cheirar a aftershave manhoso. – Ah, que estranho, deve estar para cair um Santo do Altar! – disse surpreendida com o processo vazio de conteúdo médico – É o Engenheiro.
- Engenheiro? Quem? – perguntou Teresa curiosa com aquele título tão raro por aquelas bandas.
- O Engenheiro António Silva! Ele nunca aqui veio. Deve estar muito doente. – acrescentou.
- Ah, manda-o entrar, por favor! Eu já o conheço. – Teresa animou-se com aquela visita inesperada, afinal ele cumprira o prometido.
Rita deslocou-se à sala de espera e encaminhou o “Sr Engº” para o consultório.
- Entre por favor, Senhor Engenheiro. – disse cheia de deferências. Por ali era vital demonstrar respeito ao senhor manda-chuva.
- Bom dia Doutora! – disse António, sorrindo.
- Bom dia Senhor António! – exclamou Teresa num tom familiar que fez Rita corar. – Então sempre me deu ouvidos! – levantou-se e cumprimentou-o com dois beijos, voltando animada para o seu posto.
A enfermeira observava a cena incrédula, aquela médica só podia ser doida, a tratar o Engenheiro pelo nome próprio.
- A Maria moeu-me o juízo para aqui vir hoje, está com pressa de ficar viúva, com certeza, e quer que a Doutora trate disso o quanto antes. – gracejou, confortavelmente instalado na cadeira.
- Que disparate, a sua mulher gosta muito de si e está preocupada. – esclareceu Teresa.
“Toc-Toc”
Bateram na porta interrompendo a conversa e Rita apressou-se por ir ver quem era.
- Bom dia – disse Manuel – O meu pai está aí?
- Estou, chamaram-me e fui entrando. – esclareceu António mudando o tom descontraído.
- Com licença. – dirigiu-se para a cadeira ao lado do pai, sentando-se. – Bom dia Dr.ª Teresa. – disse, sem simpatia.
- Bom dia. – bufou. Teresa ainda estava chateada com ele. Tinha sido um brutamontes no dia anterior, quando viajaram até Moura para ela fazer compras.
Rita ficou curiosa com aqueles conhecimentos que a médica fizera em apenas dois dias de Safara e pretendia tirar tudo aquilo a limpo com ela assim que pudesse. Talvez almoçassem juntas, como duas amigas, pensou animada.
- A minha mãe pediu-me para acompanhar o meu pai. – disse, para que não houvesse dúvidas do motivo porque ali estava.
Teresa ignorou-o propositadamente e concentrou-se em António, que era de fácil conversa, ao contrário do filho.
Passaram toda a consulta em discursos paralelos sobre coração, pressão arterial, cavalos, touros, e António fê-la prometer que o visitaria ainda naquela semana para a sua primeira aula de montar. Teresa aceitou, apenas por educação, e por gostar muito da energia que aquele homem mais velho lhe transmitia, como um pai dedicado que nunca tivera.
- Bem, já me convenceu a fazer estes exames todos, agora tem de retribuir e ir lá à herdade. Pode ser hoje, se quiser, ao final do dia fica fresco, ótimo para andar a cavalo, e janta connosco! – disse autoritariamente.
Teresa não esperava que a sua provação em cima de uma besta fosse assim tão cedo, mas não conseguiu negar o pedido a António. Era um homem decidido que não lidava bem com a frustração. Teria de tomar um calmante antes de ir, andar a cavalo e encarar Manuel durante um jantar era demasiada emoção para uma noite só.
Despediram-se e os dois homens saíram do consultório, deixando Rita em pulgas para saber pormenores sobre o que presenciara.

Manuel desconfiava das intenções dos pais, aqueles dois queriam a médica por perto, e ele sabia bem porquê. A Natureza era bem simples, e tal como no campo com os animais, um homem e uma mulher juntos, tempo suficiente, dariam sempre que falar. Sentiu-se irritado com aquelas manobras pouco discretas e decidiu que iria jantar fora, mas só os informaria mais tarde, para não haver hipótese de discussão.


As novas colegas almoçaram juntas, como Rita desejara, e Teresa matou-lhe a curiosidade, descrevendo com humor e alguma mímica todos os seus passos desde que entrara no comboio, dois dias antes.
A enfermeira vibrou com todas as falas amacacadas de Teresa, e gozou com ela o tempo todo, insinuando que aquilo ia dar um tórrido caso de amor!
Riram como duas adolescentes despreocupadas, voltando ao consultório quase em cima da hora. O tempo parecia passar demasiado rápido quando a conversa era fácil e a companhia agradável.
Teresa terminou as consultas do primeiro dia sentindo-se realizada, e despediu-se de Rita, não sem antes trocarem os números de telemóvel. A nova amiga suplicou por notícias, não aguentaria até de manhã para saber se Teresa caíra nos braços do maldisposto! 
- Não contes muito com isso, Rita! – preveniu Teresa – O tipo não vai com a minha cara, já te disse. E também não gosto lá muito dos modos dele. Mais facilmente apanho o pai! – gracejou, montando na bicicleta e rumando a casa. Tinha de trocar de roupa e procurar o calmante que levaria por precaução na carteira.
Escolher o que vestir era uma cerimónia que implicava muita concentração e análise. Era preciso acertar na roupa ideal, acessórios certos, sem esquecer que o seu meio de transporte era uma bicicleta, e já tinha dado demasiado nas vistas no dia anterior.
Decidiu-se por umas calças justas, de ganga clara, uma blusa de alças, umas botas meia-estação, e uma carteira de tiracolo, prática para o ato de “bicicletar”. Prendeu o cabelo num rabo de cavalo, maquilhou-se suavemente e saiu montada na sua besta de ferro.
Aproveitou aquele caminho longo até à Herdade para descontrair, saboreando a brisa agradável que lhe batia na cara, distraindo a mente do medo que tinha de se aproximar de animais maiores que ela. Tentaria chegar  perto de um cavalo, mais que isso, não prometia nada a si mesma. 

O caminho de terra batida dentro da herdade era doloroso para um “biciclista”, e Teresa não conseguia acelerar muito, sendo obrigada a pedalar devagar e demasiado perto dos touros, que bufavam à sua passagem. Esforçava-se por não lhes olhar diretamente nos olhos, concentrando-se na casa ao longe, mas o cheiro era agoniante. O suor começou a invadir-lhe as zonas mais quentes, e sentia-se a querer desmaiar. As mãos perdiam a firmeza no volante e enfiou a roda da frente num buraco demasiado fundo, obrigando a bicicleta a parar de repente, batendo com o selim na zona do assento com tanta força que soltou um grito. O touro que estava por perto levantou a cabeça, encarou-a e começou a caminhar lenta e ferozmente, como nas touradas antes do forcado ser atacado, pensava ela desesperada. Retomou a marcha, em pânico, temendo que a frágil cerca cedesse ao ataque eminente da besta e a casa ainda estava longe e parecia cada vez mais distante. O suor escorria-lhe pela cara abaixo, aquilo não podia estar a acontecer… Pedalava com toda a força, perdendo por vezes os pedais debaixo de toda a sua fúria “biciclista”, desviando-se atabalhoadamente dos buracos da estrada, para não ter que parar de novo. Era uma situação de vida ou morte, e ainda não tinha vivido tudo o que queria.

Manuel ria descontroladamente com a cena da estrada, apreciando o pânico da médica e a sua figura esbelta que se desmontava de um lado para o outro em cima da bicicleta. Ouvira um grito que o distraiu no momento em que se preparava para dizer à mãe que ia jantar a Moura, e resolveu espreitar o que se passava.
Teresa aproximava-se da casa, a alta velocidade, vinha desesperada, pensou divertido com a cena cómica. Se não travasse ia bater de frente nas escadas e temeu o pior. Deu um salto da porta e lançou-se para a frente dela, estacando a ciclista descontrolada, que saiu da bicicleta a tremer, sem fala, branca, como se fosse desmaiar a qualquer momento.
- Então? Vinha com pressa! – exclamou divertido.
Teresa não conseguia falar, ainda estava em choque com a fuga ao touro enraivecido, precisava de se deitar e levantar as pernas.
Caminhou em transe para o pátio fresco, deitou-se e encostou as pernas ao alto na parede, sem dar nenhuma explicação da sua posição estranha.
Manuel não aguentava o riso, limpando as pequenas lágrimas dos olhos, quando Maria dos Prazeres chegou e os surpreendeu aos dois à porta de casa, sem perceber o que se tinha passado.
- Doutora! O que é que aconteceu? – gritou assustada ao ver Teresa caída na tijoleira. – Manuel! Queres parar de rir? Não vês que a doutora não se sente bem? – repreendeu-o.
- Desculpe mãe, mas foi tão cómico. – desculpou-se, ajudando Teresa a levantar-se.
- Ele… queria… matar-me. – balbuciou Teresa, provocando mais um ataque de riso em Manuel, que a deixou cair novamente no chão, perdendo as forças com as gargalhadas.
- Mas tu estás parvo, rapaz? – Maria não percebia nada do que se estava a passar.
- Doutora! Então, caiu? – António aproximava-se montado a cavalo, preocupado ao ver Teresa estatelada no chão enquanto o filho ria que nem um perdido.
- Está tudo bem. – Teresa levantou-se devagar, para não ter novamente uma tontura e chegou-se à parede, evitando qualquer proximidade com o garanhão suado que a fitava desconfiado. – Por favor, leve-o daqui... – suplicou com o sangue a gelar, o cheiro do bicho era demasiado forte e ainda não tinha recuperado do primeiro susto.
- Quem? – perguntou desorientado.
- O cavalo, ele está a olhar para mim! – ganiu.
Manuel não conseguia controlar-se, a mulher era demasiado cómica. Soltava risos sufocados enquanto a mãe o olhava com censura, o que ainda provocava mais a histeria.
- Vamos entrar, querida. Vou dar-lhe uma água com açúcar. Manuel, vai pôr a mesa! – ordenou bruscamente ao filho, que a obedeceu sem reclamar, divertido. Talvez fosse melhor ficar para o jantar, pensou, já não se ria assim há muito tempo.


António não conseguiu demover a médica, e a primeira aula de cavalo teria de ficar para uma outra altura. Levara todo o jantar a tentar convencê-la e a explicar a reação do touro como algo perfeitamente natural. Tinha ficado curioso com ela, dizia calmamente, não a ia atacar, só queria cheirá-la!
- Cheirar-me? – soltou Teresa, levando Manuel às lágrimas, novamente.
- Vá, não vai montar, mas pelo menos vem comigo conhecer as cavalariças, só para quebrar o gelo e ver que não há motivo para ter medo. – declarou – tem de se apresentar aos bichos, para eles começarem a conhecê-la.
- Não preciso de os conhecer, obrigada. – gemeu Teresa, pouco convencida de que aquilo seria boa ideia.
- Ah, que disparate, os animais estão presos, não há nada a temer. Vamos. – levantou-se e encaminhou Teresa para fora de casa, que o seguiu receosa.
Manuel não podia perder aquilo e apressou-se a terminar o comer, sendo observado pela mãe.
- O que foi? – disse quando enfiava a última garfada na boca – Vai ser cómico, tenho de ver.
- Pois sim, já me tinhas dito. – rematou ela sorrindo.



À entrada das cavalariças Teresa receou entrar, sendo gentilmente empurrada por António para começarem as apresentações, como ele lhes chamava.
- Então, Teresa, este aqui é o “Beleza” – o cavalo relinchou e deu uma patada forte na boxe, provocando um arrepio na médica apavorada.
- Acho que não gosta lá muito de mim. – disse entre dentes.
- Gosta é demais! Está espantado por ver aqui uma mulher tão bonita! – e piscou-lhe o olho desanuviando o ambiente.
- Este é o “Malhado”. Diz boa noite à Senhora! – ordenou carinhosamente ao animal.
Teresa não olhava diretamente nos olhos deles, receava transmitir alguma má energia. Sentiu Manuel a chegar e conseguia ouvir os cavalos a saudá-lo de forma bem mais simpática do que a ela. Devia ser automático, os bichos sentiam as pessoas conhecidas e demonstravam.
Percorreram o estábulo calmamente, enquanto António se deliciava por poder explicar de onde tinham vindo, quanto custaram, as vezes que caíra de cada um deles e todos aqueles pormenores que o deixavam feliz.
Teresa aguentava ansiosa o momento em que poderiam voltar para a segurança da casa, transpirando das mãos, quando António se afastou um pouco e entrou para uma boxe para analisar um problema qualquer que detetara numa pata do seu melhor “garanhão”.
Manuel continuou a visita guiada, sorrindo pela primeira vez, e Teresa não pôde deixar de notar que aquela versão mais simpática lhe caía bem melhor que o antipático que ele lhe apresentara.
- Os animais põem-me um pouco nervosa. – confessou.
- Já tinha notado. Desculpa a risota de há pouco, mas se eu tivesse gravado a cena quando vinhas a chegar de bicicleta fazia um sucesso no youtube. – disse soltando mais uma gargalhada induzida pela recordação do momento.
- Pois, nunca senti tanto medo na vida, não consegues imaginar. Quando vi aquele bicho medonho a vir contra mim… - Arrepiou-se, mas acabou por se juntar à risada, descontraindo e caminhando até ao fundo do estábulo, distraída com a descrição que Manuel fazia do seu momento de pânico. António retirou-se estrategicamente de cena, deixando-os sozinhos, a conhecerem-se, agora que finalmente o filho deixava de ser casmurro e olhava para Teresa.

Conheceu todos os animais da cavalariça e gostou especialmente de um cavalo castrado, calmo e de cor “Isabel”, nome que Manuel lhe explicou derivar de uma lenda que vinha dos tempos das Cruzadas. Um Cavaleiro partira até Jerusalém, deixando a sua amada em Portugal, que lhe prometeu fidelidade, e como prova disso, nunca tiraria a sua combinação branca para nenhum outro homem. O Cavaleiro levou vários meses a regressar, e quando chegou, Isabel ainda tinha a combinação vestida, só que em vez de ser branca, era cor bege, por nunca ter sido lavada. Teresa adorou aquela referência romântica que dera origem ao nome da cor do cavalo da sua eleição e prometeu um dia tentar dar uma cenoura ao animal.

A noite estava estrelada e Teresa recuperara totalmente do encontro de primeiro grau com o touro. Maria preparou uma mesinha no pátio com bebidas e António obrigou Teresa a experimentar todos os licores caseiros que a mulher fazia. Conversaram animadamente os quatro durante bastante tempo. Manuel permitia-se olhar demoradamente para Teresa que fazia caretas sempre que bebia um novo sabor e sentia-se cada vez mais confortável com a presença dela, o que o surpreendeu.
- Não posso beber mais, António. Daqui a nada já nem acerto nos pedais da bicicleta e ainda tenho muito que “bicicletar”! – disse preocupada por saber da pouca resistência que tinha para o álcool.
- O Manuel vai-te levar, querida! Não há luz nenhuma até Safara, não conseguias encontrar o caminho. – descansou-a Maria.
- Só se ele prometer não ficar amuado, como ontem em Moura!... – soltou Teresa, demasiado descontraída com o efeito das dezenas de licores que já beberricara.
- Vá, se calhar é melhor ir levar a “doutora”. Já está tarde e amanhã tenho de acordar cedo. – rematou Manuel envergonhado com a sua atitude do dia anterior. Não tinha sido o melhor dos cavalheiros, e se a mãe soubesse iria chateá-lo durante semanas.
- Sim, amanhã trabalho. Acho eu… Que dia é hoje? – Teresa sentia-se a começar a variar do juízo. Bebera demais.
- Hoje é quinta-feira, querida. – disse carinhosamente Maria, ajudando-a a levantar-se.
- Obrigada pelo jantar maravilhoso, adoro-vos! – beijou o casal e agarrou-se ao braço de Manuel que a encaminhou até à carrinha, colocando a bicicleta na caixa. Partiram em direção a Safara, e Teresa olhava-o divertida.
- Então, já és meu amigo? – perguntou Teresa sorrindo.
- Claro que sim. Agora tens de ir dormir, senão, amanhã ainda matas alguém no centro de saúde. – brincou Manuel, descontraído.
- Mas agora não tenho sono. Não podemos ir até Espanha conhecer os tais sítios onde se pode dançar? – suplicou ela.
- Agora? – Manuel não queria estar muito mais tempo com ela, e o bom senso mandava-o dirigir até ao número 3 da Rua das Poças e ficar no carro.
- Por favor! Só uma dança pequenina. – pediu batendo as pestanas.
- Ok, mas só uma dança. Ficas a ver onde é e depois vais lá outro dia quando tiveres mais tempo. – o bom senso que se tramasse, pensou. Também não tinha sono.


A discoteca era pequenina e barulhenta, como todas em Espanha, cheia de gente animada que dançava e cantava aquelas músicas pop em castelhano, e Teresa saiu disparada em direção à pista, deixando-o sozinho com a mala dela na mão. A bebida descontraía-a ao ponto de cantar tudo aquilo em uníssono com os espanhóis, que a tomaram como uma conterrânea e a rodeavam satisfeitos. Manuel não estava muito certo de a deixar sozinha na pista, mas dirigiu-se ao bar para ir buscar uma cerveja antes de se aventurar nas danças. Quando voltava procurou-a por toda a parte e foi dar com ela no fundo da discoteca a tentar soltar-se de um tipo que a envolvia com os braços, aproveitando-se do seu estado de embriaguez. 
- Solta a rapariga ó estúpido! – gritou-lhe aos ouvidos.
- Manuel! Ainda bem que não te foste embora! – agarrou-se ao pescoço dele e caminharam até ao meio da pista. Teresa obrigou-o a parar e a dançar, pegando-lhe na cerveja e oferecendo-a a um rapaz que passava por ali.
- Eu tinha sede! – resmungou ele.
- Tinhas! Bem dito, agora queres dançar comigo! – envolveu o pescoço dele com os braços, sem ter noção do que fazia, e dançaram juntos algum tempo. Manuel ficava cada vez menos confortável com aquela aproximação tão descontraída mas deixou-se levar pela música, e pelo cheiro do seu perfume que o enfeitiçava sem dó nem piedade.
- Vais ficar apaixonadinho por mim! – brincou ela provocando-o e soltando gargalhadas.
- Hum, hum – disse ele afirmativamente com a cabeça, era bem possível, pensou.
Teresa surpreendeu-se com aquela resposta e esticou-se para o beijar. Era demasiado bonito quando não a tratava mal, pensou com a visão pouco definida.
Manuel conseguiu resistir à oferta tão repentina, desde que a vira a passar de bicicleta pelo café que a desejara, mas qualquer coisa dentro dele o impedia de avançar. Não queria que ela estivesse bêbeda.
Teresa recuperou parte da sua consciência no mesmo instante, afinal ainda tinha percebido que ele lhe tinha dado uma tampa. Quem é que o saloio pensava que era? Algum George Clooney? Olhou-o duramente e arrancou-lhe a carteira das mãos. – Acho que chega de noitada por hoje! Vamos? – lançou, deixando-o no meio da pista, aparvalhado com a sequência frenética de atitudes e comportamentos em tão poucos minutos.
- Hei! Podes esperar por favor? – berrou-lhe, seguindo-a até à carrinha. 
- Leva-me a casa, e peço-te, não digas mais nada. Já me sinto péssima o suficiente. – Pediu-lhe envergonhada. As demasiadas misturas alcoólicas começavam a surtir efeito no seu estômago frágil, e somando à humilhação de se sentir uma idiota adolescente, estava certa de que iria rebentar em breve num choro pouco digno. Queria dormir, berrar um pouco na almofada e fingir que nada daquilo se tinha passado.
Manuel sentia-se completamente confuso e perdido. Não sabia como resolver aquele mal entendido. Precisava de lhe explicar algumas coisas antes de se permitir avançar fosse como fosse. Especialmente porque aquela médica o fazia sentir coisas. Não sabia bem porquê, mas desde a primeira vez que tinham estado bem perto um do outro que as mãos lhe suavam e a barriga se contorcia agradavelmente. 
- hum… - pigarreou desconfortável com o silêncio da viagem de volta. – Teresa, é preciso esclarecer aqui algumas coisas. – conseguiu dizer após alguns momentos. – Eu não sou descomprometido, tenho uma namorada em Coimbra, com quem vivia até há algum tempo. – confessou – Embora já não andasse muito contente com a relação, o que é certo é que ela está lá à espera que eu volte. O que vai ser impossível, porque o meu pai está decidido… e eu também já não quero voltar…essa é a verdade, e… talvez o motivo sejas tu…Por favor diz alguma coisa! – implorou, a perder a paciência com o silêncio da médica, que continuava de cara virada para a janela. –Teresa! Podes por favor parar com isso? O que é que queres? Um pedido de desculpas de joelhos porque não te agarrei na discoteca?? – deu uma guinada no volante com mais força e Teresa caiu-lhe inanimada no ombro direito. 
- Lindo! Eu aqui a falar e o raça da mulher adormeceu… - ajeitou-a no banco, colocou-lhe o casaco por cima e deixou-se ir o mais devagar que conseguia, sem empatar na estrada. Aquele cheiro doce que vinha do seu cabelo era como uma droga. Quanto mais cheirava, mais queria. 


Manuel parou a pickup perto da rua de Teresa e acordou-a suavemente.
- Chegámos. Vamos, eu ajudo-te a levar a bicicleta até casa.
Teresa arrastou-se até à porta de casa, sentindo-se miserável, queria conseguir dizer qualquer coisa para quebrar o mau ambiente entre os dois. Com um bocado de sorte já não teria de o ver mais até ele voltar para Coimbra e tudo ficaria resolvido, pensou esperançosa.
- Bem, não penses que sou assim fácil todos os dias. – brincou Teresa, envergonhada com o seu comportamento – deve ter sido do ar de Espanha. – disse sorrindo e voltando-se para abrir a porta.
- Que pena, gosto bastante da Teresa espanhola – confessou. 
- Gostas?! – não compreendia. 
- Ah, ok, adormeceste no caminho e não ouviste nada…- concluiu – Mas como não havia de gostar?
- Como assim? Mas eu pensei que… esquece. – resignou-se, metendo a chave na porta – Tu vais voltar para Coimbra mesmo e isto já está a ficar estranho demais. Amanhã tenho de trabalhar cedo. Desculpa, mas tenho de ir. Obrigada pela boleia.
- Para médica és bastante burra. – gozou – Acho que já chega de conversa fiada.
Virou-a para si, e não evitou os seus olhos castanhos e sedutores. Queria deixar-lhe claro aquilo que estava a sentir e beijou-a com a intenção de se despedir, mas, a proximidade entre os dois depressa transformou o momento e Manuel empurrou-a para dentro de casa, fechando a porta e encostando-a à parede sem hipótese de fuga. Como no sonho, pensava ela, em êxtase.


Dormiam abraçados quando um barulho forte na rua acordou Manuel,
- Mas que raio?! – levantou-se e correu pelas escadas abaixo, agarrando numa almofada para se tapar. Abriu a porta, já raiava o dia e deu de caras com uma vizinha, que passava vinda da padaria e que soltou um grito ao ver aquele homem enorme todo nu com uma almofada a tapar a zona púbica.
- Bom dia! – disse Manuel provocador, enquanto a senhora fugia a correr, soltando lamentos. 
Procurou pela origem do som que o acordara e viu a bicicleta de Teresa com os pneus furados, vandalizada. Aquilo era muito estranho, pensou, não aconteciam aquelas coisas por ali. Meteu a bicicleta dentro de casa e voltou para junto de Teresa, que dormia profundamente. 
Era ainda mais bonita assim, constatava, enquanto se aconchegada abraçando-a. O seu corpo era estranhamente compatível com o seu, pensou feliz. Seria impossível deixá-la a partir daquele dia, Teresa “lidara” com ele e cravara bem fundo todas as bandarilhas do destino, pensava sem se reconhecer. Aquela mulher tinha nascido para ser sua, tinha a certeza disso. 
Enterrou o nariz nos seus cabelos e deixou-se ficar a aproveitar o momento. Antes que adormecesse novamente, e ela chegasse tarde ao trabalho, colocou despertador no telemóvel e verificou incomodado que tinha seis chamadas de Sofia da noite anterior.
- Merda… 

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(imagem, internet)

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