segunda-feira, 8 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 4




Teresa acordou estranhamente revigorada depois de uma noite de excessos, bebera demasiado e só adormecera já o sol ameaçava aparecer. Manuel já tinha saído, ficando apenas o seu lugar ainda morno na cama, a testemunhar que não passara a noite sozinha. Afinal daquela vez não tinha sido tudo um sonho, Teresa sentia ainda no corpo o seu toque mágico. Perguntava-se se algum dia conseguiria fazer amor com outro homem que não Manuel. Sentiu-se angustiada com aquela súbita sensação de dependência que crescia dentro dela relativamente ao “homem do comboio”. Não tinha intenção de se apaixonar tão cedo, precisava da mente livre para se dedicar ao trabalho, mas Manuel aparecera-lhe como uma fatalidade do destino, como nos filmes românticos que assistia com as amigas. Sempre pensara que não existiam amores assim, aqueles delírios cinematográficos eram resultado de imaginação fértil e criados com o propósito de vender bilhetes, cientificamente também não havia provas de que o corpo humano pudesse reagir de forma tão diferente a outra pessoa, mas no entanto, ali estava ela, completamente abalada e exultante. 
Precisava de se apressar se não quisesse chegar tarde ao segundo dia de trabalho. Deu graças por já não estar em casa dos pais naquele momento, Pedro não a pouparia a um sermão por se levantar quinze minutos antes da hora marcada, e seguir-se-iam dias de sermões e olhares de censura. Lamentava interiormente o facto de o pai ser tão intransigente no que tocava a responsabilidades profissionais, desleixando-se noutros aspetos da vida, como a família, a mulher e ela, a única filha, a quem exigia tudo, mais e melhor. Durante vários anos cumprira fielmente todas as metas do progenitor, na vã esperança de que este a abraçasse orgulhoso, mas o máximo que conseguia era um jantar comemorativo e impessoal, num local de luxo, onde todos mantinham a compostura, e o Sr. Dr. enchia o Ego com os salamaleques dos empregados bem instruídos na arte de bajular a classe alta. Safara tinha-lhe surgido na vida como um escape, a princípio, uma solução menos má, para a sua vida frustrante, mas o destino sabia o que fazia, e como diria a sua avó Maria Rosa “Não há coincidências, minha querida, e o que é nosso, por Deus está guardado!”, pensava Teresa, feliz e otimista naquela manhã. 
Encontrou a sua bicicleta polida e com ótimo aspeto, junto à entrada de casa, e sentiu-se enternecida com Manuel, que certamente ficara com remorsos por ter sujado o seu veículo novo no dia anterior, quando colocara a sua linda bicicleta na caixa da pickup que tresandava a vacas e bicharada. Montou nela e pedalou energicamente, apressada para chegar ao Centro de Saúde, onde Rita estaria curiosa por pormenores da noite anterior. Aquele seria um ótimo dia de trabalho, pensava Teresa feliz da vida.



Manuel tomava café no local habitual, quando a viu passar de bicicleta, era uma miragem, pensava orgulhoso por aquela mulher cobiçada ter sido sua. Todos os homens a olhavam com devoção, Teresa chegara há dois dias, mas dominava o inconsciente da população masculina, que vibrava pelo momento em que a médica ia e vinha do trabalho, passando fresca e sedutora no seu veículo cor-de-rosa. O facto de ela não se saber tão famosa por aquelas bandas era o seu maior trunfo. Acenava alegremente aos recentes conhecidos que encontrava pela rua e corava de uma forma irresistível quando passava pela esplanada do café onde todos os clientes habituais lhe viram, dias antes, as pernas esguias e bem definidas e pelas quais tinham dissertado durante horas.
- O raio da cachopa é igualzinha à avó! – introduziu um velho safarenho que a observava curioso. – Parece que estou a ver a Maria Rosa a pedalar pela aldeia fora.
- Ah, eu sabia que a conhecia de algum lado! – rematou outro satisfeito – Afinal tinha razão, aquela cara não me era estranha.
- Alembram-se dela? – perguntou o primeiro à plateia masculina mais velha – A Maria que vivia ali em baixo e fugiu do Dr. para Lisboa? – calou-se instantaneamente, envergonhado por se encontrar perto de Manuel, que ficou curioso com aquela indiscrição e se posicionou de frente, mostrando-se ávido pelo desenrolar da conversa.
- Deves estar a confundir, Zé, - disse outro homem, nervoso com a presença de Manuel – essa foi outra, a Maria foi trabalhar para Lisboa. Era minha vizinha, boa rapariga. – concluiu de forma pouco convincente.
- Ah, pois… - disse o homem corado – Bem, até logo senhores, vou até aos Correios ver da pensão. Bom dia! – saiu apressado, fugindo da conversa que iniciara, deixando no café um ambiente de suspeita que Manuel fingiu não entender.
- O tio Zé está muito estranho hoje, - disse Manuel, na esperança de continuar o tema que o estava a intrigar e que dizia respeito à vida da avó de Teresa – afinal, o que aconteceu à tal Maria Rosa? – sentou-se na mesa do grupo mais velho, sorrindo.
- O Zé anda a ficar chéché, coitado, já troca tudo e baralha as pessoas. – rematou um, limpando o suor que se acumulava debaixo do boné com um lenço encardido.
- Hum, então a Dr.ª Teresa é parecida com a avó? Vocês conheceram-na? – havia alguma coisa sobre a vida de Maria Rosa que parecia incomodar os homens, matutava Manuel, curioso.
- Ah, sim, muito parecida, a Maria também adorava andar de bicicleta. – disse um.
- E quando ela aqui passava a cavalo? – suspirava outro sonhador – Aquilo é que era uma cachopa destemida, galopava e tudo, até diziam lá na herdade que lidava touros como os homens. – confessou outro, corando.
- Na herdade? Ela andava por lá? – Manuel surpreendeu-se com aquela revelação de que a avó de Teresa visitava a sua casa, já tinha ouvido boatos sobre a fuga de Maria, mas não fazia ideia de que a sua família a conhecia tão bem ao ponto de ela montar e lidar touros em sua casa.
- Ham? – o homem falara demais, e arrependia-se a cada instante da sua boca de trapos. – Não, bem, acho que sim, mas isso foi há muitos anos, todos montávamos os vossos cavalos, agora é que a juventude se deixou disso, já ninguém quer sujar as botas. – concluiu aliviado por conseguir responder sem piorar a situação.
- Bem, tenho muito trabalho à minha espera, até logo senhores! –Manuel despediu-se e deixou o café em silêncio, matutando naqueles factos e numa Maria Rosa que montava os cavalos dos seus bisavós. Pensou em Joaquim, o avô cruel que conhecera na infância, teriam sido amigos? Duvidava que o Engenheiro descesse do seu pedestal para sequer dar a Salvação a uma garota da aldeia. Aquele homem era a pessoa mais fria e bruta que tinha conhecido na vida, bem parecido consigo quando lhe chegava a mostarda ao nariz, como lamentava Maria dos Prazeres em algumas discussões entre mãe e filho. Antes de regressar a casa e ter de se explicar por não ter dormido na herdade ainda iria dar uma vista de olhos a Teresa e convidá-la para jantar, tinha uma ideia a matutar-lhe na cabeça. 
Sofia surgiu-lhe na mente, revolvendo-lhe o estômago e ligou-lhe para o telemóvel que estava desligado. Deixou mensagem, dizendo que precisava de lhe falar urgentemente. Decidiu que na segunda-feira iria a Coimbra resolver tudo e terminar aquela relação convenientemente. Desejou que ela não lhe devolvesse a chamada, preferia conversar pessoalmente com Sofia, a sua instabilidade emocional era mais fácil de controlar frente a frente e Teresa ficaria magoada se soubesse que ele mantinha pendente uma namorada noutro local, afinal ela não tinha ouvido nada na noite anterior quando adormecera na carrinha.
Conduziu até ao Centro de Saúde enervado com a sua situação, esperava que Teresa ainda não tivesse começado as consultas e a pudesse abraçar por instantes. Parou a carrinha e viu a montada de Francisco Carriço a fazer as delícias dos utentes que chegavam para a visita ao médico. Foi percorrido por uma raiva infantil, aquele convencido continuava o mesmo exibicionista de sempre, concluía furioso com aquele encontro imprevisto. Ainda nem tinha desfeito a mala que trouxera de Coimbra e o parvalhão já se colocava no seu caminho, pensava, desligando a pickup.
Dirigiu-se ao gabinete de Teresa, ignorando a fila de espera, e ciente de que ninguém se atreveria a chamá-lo à atenção por estar a invadir a zona de consultas, tentando evitar ter de olhar Francisco e resolver ali mesmo aquele problema antigo. Bateu à porta do consultório e Rita surgiu-lhe afogueada e aos risinhos, como uma adolescente, recuperando a compostura assim que o viu com cara de poucos amigos.
- Bom dia Dr. Manuel! – disse aflita, percebendo que o dia não iria começar tão harmonioso como prometia.
- Bom dia, e eu não sou Dr. – rematou friamente, dando de caras com Francisco sentado em frente a Teresa que sorria bem disposta.
- Ah, afinal eu sempre tinha razão! Não tens competência nem para tourear nem para estudar! – gozou o seu eterno rival que esticava as pernas de forma familiar e sorria satisfeito com o encontro.
- Cala a boca seu lérias, se não mostro-te aqui mesmo a minha competência. – rosnou Manuel, que fervia de ódio ao vê-lo sorrir para Teresa.
- Manuel, mas o que vem a ser isto? – perguntou-lhe duramente Teresa, incomodada com aquela invasão no seu local de trabalho.
- Aqui o Manelito é assim, sempre o mesmo brutamontes, acho que vou pedir o livro de reclamações e denunciar este centro de saúde por falta de privacidade dos utentes. – gozou Francisco provocando-o.
- Peço desculpa, Sr. Francisco, dê-me dois minutos para resolver a questão. – levantou-se rígida da cadeira e puxou Manuel por um braço, para evitar um confronto físico que se adivinhava, levando-o com dificuldade até ao exterior do edifício. Várias cabeças espreitavam pela janela a cena, curiosos com a nova médica que empurrava o Dr. Manuel e desejosos de ver o que tinham aqueles dois em comum.
- Desculpa Teresa, não sabia que era ele que estava lá dentro. Pensava que ainda não tinhas começado as consultas. – confessou, tentando acalmá-la.
- Não percebo o que te passou pela cabeça, mas não tornes a invadir o meu consultório sem seres anunciado. Se ele quiser pode fazer queixa e fico em maus lençóis. – disse bruscamente.
- Tens razão, mas quando aqui cheguei e vi o cavalo desta besta fiquei cego. Não o queria encontrar pelos corredores, só queria perguntar-te uma coisa e ir-me embora rapidamente. – resumiu, tentando desculpar-se.
- E afinal o que é que me querias perguntar que não podia esperar pela hora de almoço? – rematou friamente Teresa ainda chateada.
- Bem, agora dito assim, de facto podia ter esperado, mas como tenho de ir trabalhar e não podia vir cá durante o dia… - Manuel embrulhava-se nos seus próprios pensamentos e sentia-se ridículo. – É só que queria jantar contigo, mais logo, tinha uma ideia e queria fazer-te um convite. – disse.
- Ok, podemos jantar, claro. – ainda se sentia colérica com ele, mas os seus modos encavacados enterneciam-na – E onde queres comer? – estava a ficar curiosa com o tal convite, seria difícil passar todo o dia na expectativa, pensava.
- Em minha casa, se não te importares. Os meus pais vão hoje para Santarém passar o fim-de-semana e… pensei que… talvez quisesses ficar por lá comigo. – Tinha ensaiado um pedido mais digno, mas metera a pata na poça e já não havia volta a dar.
- Hum… sozinhos? – sorriu divertida – Não parece um pouco mal ficarmos lá os dois sem os teus pais, afinal, eu cheguei esta semana a Safara, não somos nada um ao outro. Vou ficar cá com uma fama… - ironizou.
- Bem, acho que podemos experimentar isso do namoro. – confessou atrapalhado.
- Então assim a história é outra. Se já somos namorados parece-me muito bem passar o fim-de-semana contigo à beira da piscina. – sorriu satisfeita por ver materializados os seus desejos de compromisso com Manuel, deixando-se cair indolentemente na sua direção. 
Manuel abraçou-a e beijou-a, deixando toda a população testemunhar aquela união improvável e repentina. O orgulho e alívio que sentia por Teresa ser dele era inexplicável. Nunca se expusera daquela forma na aldeia e no dia seguinte teria de ouvir poucas e boas no café, por ali os homens não andavam aos beijos às namoradas no meio da rua. 
- Vou buscar-te a casa ao final da tarde. – disse beijando-lhe a testa e libertando-a. – Estou perdoado? – perguntou sorrindo, enquanto Teresa corria para dentro do edifício.
- Não sei… - respondeu Teresa provocadora – Logo se vê se mereces o meu perdão, ou não! – entrou apressada em direção ao consultório, tentando não reagir aos sorrisos cúmplices dos utentes que presenciavam da janela toda a cena doméstica, envergonhada e corada até às orelhas. Ainda não se habituara à condição de habitante de uma Vila, onde todos pareciam demasiado atentos à vida alheia. Respirou fundo e entrou no gabinete para continuar a consulta ao homem que misteriosamente mexia com os nervos de Manuel. Iria ser discreta e aguentar a curiosidade sobre aquele toureiro convencido até poder conversar com Manuel, afinal teriam dois dias e algumas horas para preencher e tagarelar era um dos seus passatempos preferidos.


- Pode-se saber onde dormiu ontem o senhor? – Maria dos Prazeres suspeitava que o filho tinha passado a noite com uma mulher, trazia um sorriso demasiado parecido com o que António ficava depois de ela ceder aos seus avanços românticos. – Ao menos podia avisar cá em casa, para eu não ficar a noite toda acordada em cuidados. 
- Bem, eu não disse nada porque… não sabia que ia dormir fora. – Manuel não sabia se a mãe entenderia o que se tinha passado depois da discoteca, afinal era uma mulher de uma geração em que tudo era mais lento e dois estranhos simplesmente não se embrulhavam nos lençóis, muito menos num vão de escadas. Também não queria difamar Teresa nem modificar a ideia positiva que os pais tinham da médica que os conquistara com a sua simpatia irresistível. – Acabei por adormecer na carrinha, bebi um bocado demais depois de deixar a Dr.ª Teresa em casa. – mentiu, mergulhando a cara no café da manhã.
- Adormeceste na carrinha bêbedo? – silvou a mãe, desconsolada pelo comportamento irresponsável do filho. – Tu estás a ouvir isto, António? – suplicava ajuda ao marido que não olhava diretamente para Manuel, fingindo estar distraído com a comida.
- Ham? O quê? Ó Maria, deixa o rapaz, ele fez bem em não vir a conduzir com os copos. Assim não teve problemas com a polícia e evitou um acidente. – concluiu sabiamente, enchendo novamente a caneca de café.
- Tu realmente, és muito estranho, ainda ontem quase que o deserdavas por ser um estroina, hoje, achas muito lindo teres um filho que bebe até cair inconsciente no carro! – Maria berrava furiosa com a calma do marido e saiu derrotada da cozinha em direção aos seus canteiros, bufando.
- Mentes pior que eu! – disse António, olhando Manuel pela primeira vez. – Mas como escolheste bem a companhia ontem, desculpo-te as lérias que contaste à tua mãe. Só espero que não tenhas estragado tudo com as pressas que vocês hoje em dia têm uns com os outros, e que a Dr.ª Teresa não deixe de cá vir a casa. Gosto muito da moça, mesmo sendo neta de quem é. – concluiu num tom mais sério.
- Nós namoramos. – confessou Manuel – só não disse à mãe porque ela iria perceber o que se passou ontem e não quero que pense mal da Teresa.
- Ah sim? – António vibrou com aquela revelação – Que maravilha! Então temos de fazer um jantar para comemorar isto! – Cortou mais um pedaço de bolo para festejar, olhando por cima do ombro não fosse a mulher descobrir que já comera mais duas que o permitido.
- Ok, fazemos o jantar quando quiserem. Mas, afinal, quem era a avó da Teresa? – Manuel estava cada vez mais curioso com aquela história que surgia sempre que a médica vinha à baila nas conversas.
- A Maria Rosa era uma moça que na juventude serviu cá em casa, no tempo dos teus bisavós. Acho que foi acusada pela minha avó Perpétua de um roubo qualquer e fugiu para Lisboa, embora as más línguas digam que andava enrabichada pelo meu pai, mas duvido que ele olhasse para uma maltrapilha e ainda por cima, pobre. Aquele homem era uma pedra de gelo, toda a vida foi inacessível, até para a tua avó, uma mártir que penou cinquenta anos nas suas mãos. – resumiu friamente. – Mas não percas tempo com estas histórias, o que interessa é que voltaste de Coimbra e estás aqui connosco. Temos muito trabalho à nossa espera e depois do almoço eu e a tua mãe temos de abalar para Santarém. Vamos? – António deu uma palmada carinhosa no filho, sentia orgulho de Manuel pela primeira vez em muitos anos e estava profundamente aliviado por saber que aquele namoro salvara a sua família e a sua Herdade. Teresa tinha caído do céu, como uma bênção e António ficar-lhe-ia eternamente grato. 
- Vamos. – Manuel obedeceu prontamente, quanto mais ocupasse a cabeça, mais rapidamente o dia passaria e não via a hora dos pais partirem para Santarém e deixarem a herdade para ele e Teresa.


- Deste fim de semana a oito vamos ter a largada de touros aqui em Safara, a Dr.ª tem de assistir, é muito emocionante! Posso fazer-lhe companhia, se quiser. – Francisco esforçava-se por impressionar a médica, era um pedaço de mulher, constatava e melhor de tudo, parecia andar enrolada com o Manuel. A mistura perfeita, pensava vingativo.
- Ah, não obrigada… - arrepiou-se dos pés à cabeça com a ideia de aqueles bichos de língua negra andarem à solta pelas ruas da aldeia, abalroando tudo pela frente, vivo ou morto. – não aprecio essas tradições, mas agradeço o convite. Talvez vá a Lisboa passar o fim-de-semana prolongado. – parecia-lhe ser o mais sensato, desaparecer de Safara e não se sujeitar a encontrar-se numa esquina com um touro perdido.
- É perfeitamente seguro, se é esse o problema, e comigo, nenhum touro se atreveria a enfrentá-la! – arrastava a conversa com esperança que a médica cedesse e abrisse uma brecha para um convite mais concreto, mas Teresa ignorava os avanços e preparava a consulta seguinte descontraída, o que o começava a enervar. Francisco Carriço não fazia a corte todos os dias e aquela mulher desdenhava nas suas intenções.
- Acredito que sim, mas não estarei cá nesses dias, como já lhe expliquei. Obrigada na mesma. – resumia as suas explicações da forma mais educada possível.
- E que tal amanhã? Podíamos ir até Moura jantar e ver uma tourada, apresento-lhe todos os toureiros famosos e mostro-lhe a praça por dentro. Há muito pouca gente com esse privilégio. – Uma última tentativa, pensava, certo de que aquele programa seria irresistível, até para uma lisboeta.
- Não posso, Sr. Francisco, tenho a certeza de que deve ser muito interessante, mas já tenho compromissos. – explicou cordialmente, o homem era persistente e começava a incomodá-la. – Rita, a Dona Manuela já chegou? Podes chamá-la, por favor? – rematou em jeito de despedida ao toureiro teimoso que se recusava a perceber que ela não queria nada com ele.
- Sim, vou já, com licença Sr. Francisco. – saiu atrapalhada com o clima que se criava no consultório, e abalada pela presença atraente do toureiro que Teresa conseguia ignorar e inexplicavelmente, desdenhar.
- Quando o Manuel a desiludir torno a convidá-la, combinado? – lançou Francisco arrogantemente, cravando uma estaca no orgulho de Teresa – Muito bom dia, foi um prazer conhecê-la! – sorriu e saiu arrastando-se elegantemente, abandonando a fera ferida na Praça, consciente de que lhe semeara a dúvida relativamente ao namorado.
Teresa perdeu a fala por momentos, recostando-se na cadeira, perplexa com o descaramento do sujeito. Compreendia agora o desdém que Manuel tinha por aquela personagem. Fora ofendida da forma mais educada possível, o toureiro tinha um estilo muito próprio, concluía, um perfeito parvalhão.

O dia de trabalho prolongou-se cansativamente e Teresa não conseguia esquecer a afronta matinal de Francisco Carriço. Tentava pensar em Manuel, na piscina, no fim-de-semana maravilhoso que se adivinhava, mas a dúvida de que iria ser desiludida não lhe saía da cabeça. Era um disparate, pensava para si própria, aquele homem não poderia saber o futuro, nem prever a relação dos dois, mas a verdade é que o seu inconsciente lhe dizia que não conhecia minimamente Manuel e se continuasse a deixar o seu coração envolver-se com ele de forma tão rápida, poderia sair magoada. A razão e o bom senso diziam-lhe que abrandasse, colocando um balde de água fria nas emoções excitantes que sentira ao aceitar o convite para ficar sozinha com Manuel na herdade.
Despediu-se de Rita, montando a bicicleta, deprimida por já não estar certa de que queria ir ter com Manuel, e angustiada por não conseguir resistir a essa tentação. Pedalou vagarosamente até casa, demorando-se estrategicamente, na esperança de que aquelas sombras desaparecessem da sua cabeça, e animou-se um pouco ao ver a esplanada de homens sorrindo na sua direção, acenando em uníssono à sua passagem. Chegou a casa divertida com a imagem dos seus admiradores séniores do café da aldeia quando viu Manuel encostado à soleira da sua porta, mais bonito que nunca, como uma foto de revista. Alto, sexy e masculino, imanava uma vibração irresistível, lamentava Teresa. Seria impossível dizer que não a uma figura daquelas, trazia no olhar um desejo intenso, que a fazia perder a estabilidade na condução. Tentou abrandar a bicicleta, mas os travões pareciam de pedra debaixo das suas mãos amolecidas e frouxas, lançando-a em direção à porta. Manuel desviou-se do choque frontal e segurou-a facilmente, içando o seu tronco da bicicleta, que embateu com estrondo na casa.
- Acho que precisas de outro meio de transporte mais seguro. – gozou Manuel, que a segurava no ar pela cintura.
- Vinha distraída, desculpa, quase que te atropelava… - confessou envergonhada.
- Estás desculpada, a pobre bicicleta é que não vai durar muito se a continuas a tratar assim. – brincou, relembrando o episódio na estrada da herdade.
- Já estavas à minha espera há muito tempo? – Teresa regressava ao chão, recompondo-se. – Atrasei-me um pouco, mas prometo que sou rápida a fazer uma mala. Ainda queria dar um mergulho hoje! – informou animada com a ideia de se refrescar na piscina.
- Não precisas ter pressa, nesta terra está calor suficiente para mergulhar pela noite dentro. – disse Manuel, entusiasmado com a ideia.
- Nunca estive numa piscina de noite! – confessou excitada, enquanto entrava em casa. Largou a carteira no cabide e apressou-se a subir ao primeiro andar, deixando-o a endireitar o volante da bicicleta. Recolhia os artigos de higiene na sua mala pequena quando olhou para a cómoda do quarto, ficando petrificada.
- SOCORRO!! – gritou, depois de uns segundos de choque.
Manuel correu até ao quarto, segurando Teresa que desfalecia escorregando pela parede, branca e sem reação.
- O que foi? Sentes-te mal? – perguntou aflito sem compreender o motivo do grito.
Teresa esticou um braço e apontou frouxamente para uma parede onde passeava uma osga, que os olhava curiosa.
- É por causa disto que te assustaste? – Manuel sentou-a suavemente no chão e apanhou o bicho com facilidade, soltando-o para fora da janela. – Era uma osga, aqui há muito disto, tens de te habituar. – ajudou-a a levantar-se e abraçou-a, sentindo ainda o seu batimento cardíaco acelerado com o susto. – Pronto, já passou, não é preciso teres assim tanto medo, és bem maior que ela. – brincou, desanuviando o ambiente.
- Diz-me por favor que não há disto em tua casa… - Teresa combatia o pânico, respirando com calma, abraçada a ele.
- Bem, osgas nunca apanhei no meu quarto, mas uma vez… - ia contar um episódio com uma cobra, mas retraiu-se, temendo que ela se recusasse a ir com ele para a herdade. – …vi uma nas cavalariças. – mentiu, concluindo rapidamente a história.
- Vamos sair daqui, por favor. Só me falta o pijama e o bikini. – apressou-se a arrumar as roupas necessárias, sem prestar atenção ao que enfiava na mala. – Pronto, já está.
- Vamos então. Agora tem cuidado ao descer as escadas, as osgas adoram degraus, locais frescos onde podem desovar. – gozou Manuel.
- O quê?? – Teresa saltou-lhe para as costas num pulo rápido, em pânico com a ideia de ter bichos rastejantes pela escada abaixo.
Manuel tentou explicar a brincadeira, mas Teresa recusou-se a sair das suas cavalitas enquanto estivessem dentro de casa. Saíam para a rua naquela posição, Manuel com a mala na mão e a médica da aldeia às costas, quando novamente a velha vizinha passava distraída. Olhou-os com censura, benzendo-se e bufando.
- Boa tarde! – saudou Manuel divertido com o segundo encontro escandaloso. Fechou a porta de casa e caminhou descontraído para a pickup.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário