quinta-feira, 4 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 2




- Manuel, tens de ser razoável! Dez anos para tirar um curso custa uma fortuna! Daqui a nada não havia dinheiro para a palha das vacas! – berrava António à mesa do pequeno almoço. 
- O pai sabe lá as razões porque ainda não terminei o curso! – gritou Manuel, batendo com o punho na mesa. Tinha esticado a vida académica ao limite, deixando cadeiras estrategicamente para trás, só para ter um motivo para voltar para Coimbra todos os anos. Saíra de Safara muito novo, imberbe e inocente, encontrara uma cidade recheada de tentações, vinho, festas e mulheres, muitas mulheres. Nos primeiros anos de estudante perdera-se de amores por todas, vivendo faustosamente, sem remorsos, livre e no auge da juventude. Inteligência e capacidade nunca lhe faltaram, mas para quê terminar um curso em quatro ou cinco anos, se podia prolongar aquelas maravilhas pelo dobro do tempo? 
Sofia, a mais recente namorada, quando soube que Manuel iria para casa de vez, chorara durante uma semana, desesperada por ficar sozinha em Coimbra, sem ele. 
Manuel revoltava-se agora com o pai ditador, ainda tinha esperança de conseguir voltar, mas lá no fundo sabia que nada demoveria António Silva de o devolver aos campos, à vida dura e quente de Safara. 
Crescera no meio dos tratores, dos touros e dos cavalos, no melhor sítio do mundo para um rapaz enérgico e destemido, e durante vários anos quis ser como o pai, aquele homem pujante que galopava pela extensa propriedade da família, Manuel saía de casa de manhã e só voltava para comer e dormir. Havia tanta emoção naqueles campos de perder de vista quando era miúdo, pensava saudoso. Agora só via o fim da sua vida, e Sofia longe.

- Por favor, parem de discutir. – implorava a mãe, chorosa – Será que não há forma de chegarmos a um consenso? – Maria dos Prazeres adorava o filho, mas recriminava secretamente o seu desprezo pelo negócio da família. Havia ali tanto que fazer, tanto trabalho, e o marido já não dava conta de tudo sozinho. Já não era o homem forte de antigamente. Lamentava que o filho não percebesse que aquilo era um pedido de ajuda.
- Não há nada para conversar, Maria. O teu filho sugou-nos muito dinheiro com a paródia dele em Coimbra. Agora vai-nos devolver o mau investimento, e com juros! – levantou-se furioso e saiu, terminando assim qualquer hipótese de negociação. Era um homem justo, mas inflexível quando decidia qualquer coisa.
- Eu não vou aqui ficar! – ameaçou Manuel frustrado – Vou viver para Coimbra. A minha vida já não tem nada a ver com isto tudo. – justificou, mas não pôde deixar de se sentir cruel, adorava a família, mas o corte com Coimbra tinha sido demasiado rápido e falava a quente, sem refletir.
- Querido, tem calma, não faças nada precipitado. Fica connosco uns dias, deixa-o acalmar-se, depois conversamos melhor. – pediu docemente, procurando o olhar do filho.
- Vou sair, tenho de ir a Moura comprar uma pen de internet. Só me faltava agora ficar sem net! – tudo ali o irritava, o sol quente, o silêncio, a solidão.
- Vai querido, mas vem almoçar. Temos de conversar sobre um assunto importante quando estiveres mais calmo. – deu um beijo no filho e saiu para se certificar de que António estava bem.



Teresa acordou tarde, depois daquela noite agitada e lamentou-se por não ter colocado despertador no telefone, tinha tanto que fazer para se instalar completamente, compras, telefonemas, e sem carro. Precisava resolver rapidamente a questão do transporte. Não sabia onde ficava o Centro de Saúde da terra, mas viver sem independência de movimentos era pior que não ter gás canalizado!
Foi ao café da esquina tomar o pequeno-almoço, ainda não tinha nada na “nova” cozinha e necessitava de se alimentar minimamente antes de percorrer a Vila a pé sob o sol escaldante que já se fazia sentir a meio da manhã. Ao entrar, todos se viraram na sua direção de maneira pouco discreta, interrogando-se de quem seria aquela rapariga. Como era comunicativa por natureza, tratou de começar o seu ritual de apresentação.
- Bom dia! – disse sorrindo. – Um café e uma torrada, por favor! – sentou-se numa mesa perto de um grupo de senhoras mais velhas que a olhavam curiosas. – Chamo-me Teresa, sou a neta da Maria que vivia aqui em frente! – lançou imediatamente ao grupo de alentejanas sorridentes.
- Bom dia menina – responderam quase em uníssono.
- Venho trabalhar para o Centro de Saúde, sou médica. Talvez nos vejamos por lá! – e concentrou-se na sua refeição, satisfeita por notar que as mulheres acenavam afirmativamente com a cabeça, contentes por ficarem esclarecidas.
- Ah, que bom. – disse a mais velha – A Doutora vai gostar de Safara, é tudo boa gente! – concluiu, resumindo as qualidades da população local.
- Podiam dizer-me por favor onde posso comprar um carro? Vim de comboio ontem, mas preciso de um transporte. – questionou de forma prática, mantendo a conversa.
- Carro? Ó menina, aqui nesta rua não cabe um carro. O melhor era arranjar uma bicicleta. Vai a todo o lado e é económica. – respondeu prontamente uma outra senhora.
- Não ando de bicicleta há anos, acho que já nem sei como se faz, – rematou Teresa, sorrindo - mas obrigada pela dica. – Enquanto tomava o seu café da manhã continuou entretida com as sugestões e curiosidades do grupo de mulheres simpáticas, que como ela, não desperdiçavam um bom momento de confraternização social.
- Bem, tenho de ir, foi um prazer conhecê-las. Não se esqueça de marcar consulta, Dona Prudência, é sempre bom dar uma olhadela a essas coisas! – disse carinhosamente à senhora mais idosa com quem discutia problemas femininos - Um bom dia para todos! – Pagou a conta e acenou adeus, convicta de que tinha feito mais meia dúzia de amigas para juntar ao rol de milhares que deixara em Lisboa. 
- Bom dia! – saudou o café em peso.
- Simpática a nova médica! – sentenciaram as mulheres.


Olhou atentamente a rua e percebeu que a senhora tinha razão. Ali não cabia um carro. Mas andar de bicicleta não lhe parecia a opção mais razoável, para além de que adorava usar vestidos, e as duas coisas não eram compatíveis. Ou mantinha a sua figura elegante ou pedalava.
Tinha bastante em que pensar e ponderar, enquanto procurava uma loja com mais que um tipo de arroz. Por ali a escolha resumia-se a: ou carolino, ou agulha. Teria de haver algures um Basmati, um Risotto, não poderia abdicar de tudo, concluía.
Passava distraída pela rua mais movimentada de Safara onde havia de tudo o que possuísse duas rodas, bicicletas, motorizadas, mas nada de carros. O que teria aquela gente contra o automóvel? Parou em frente da montra de uma pequena loja e ficou instantaneamente apaixonada. Daqueles arrebatamentos que nunca a deixavam com dúvidas, tinha de a ter! Lá dentro reluzia uma bicicleta cor-de-rosa, de um tom claro, linhas suaves, selim bege, cromados brilhantes e cesto em vime. A coisa mais bonita que vira desde que chegara a Safara. Não era tão cara como imaginava e para as primeiras voltas pela Vila serviria perfeitamente! Comprou-a na hora, agora era rezar para que ainda soubesse pedalar!

Voou pelas ruas estreitas, feliz com a liberdade que se sentia a “bicicletar” como dizia a sua avó. Já não se recordava de como era bom sentir a brisa nos cabelos, cantarolar ao ritmo dos pedais, ser criança novamente. 
Passou por uma esplanada cheia de homens, que assobiaram piropos lisonjeadores à menina do vestido esvoaçante, quando reparou que talvez tivesse mostrado um pouco mais de perna do que devia. Olhou constrangida para a plateia animada, e viu o homem do comboio a tirar-lhe as medidas. Nervosa com as recordações do sonho da noite anterior, pedalou com força e fugiu o mais rápido que conseguia, corada até às orelhas. Teresa sabia que os sonhos não estavam estampados na cara das pessoas, mas não era muito boa a disfarçar quando se sentia culpada. Era urgente comprar jeggins ou calções. Não iria desistir de “bicicletar”, os vestidos perdiam aquela batalha.


Manuel sentiu a sua disposição melhorar substancialmente depois de ver as cuecas da nova médica. Tinha sido engraçada a cena. Tratou de informar os homens que estavam no café da identidade da “menina” e riram juntos durante um bom bocado com as súbitas dores de costas e maleitas que cada um descrevia. Aquele Centro de Saúde ia andar animado por uns tempos, pensou divertido. Reconsiderou e talvez fosse a Moura só da parte da tarde, a mãe gostava de cozinhar para ele, e já sentia saudades de uma Açorda. Despediu-se dos velhos conhecidos e todos o saudaram educadamente, - Adeus Doutor Manuel! - o que o fez sentir-se envergonhado. Em Safara toda a gente sabia que tinha ido estudar, e agora que voltara, só podia ser “doutor”. O pai tinha uma alguma razão, lamentou.
Dirigia-se à pickup quando subitamente telemóvel tocou.
- Sim, mãe. 
- Manuel, o teu pai não se sente bem! Caiu-me aqui desmaiado, Ai valha-me Deus!– gritou Maria dos Prazeres em pânico.
- Calma mãe, estou a ir. Vou chamar uma ambulância. – desligou o telemóvel e lembrou-se da última vez que precisaram de assistência médica na herdade. Ficaram horas a estancar o sangue a um funcionário que se magoara num trator e que quase morrera de fraqueza. Se o pai estava a ter um ataque ou qualquer coisa do género não sobreviveria tanto tempo. Lembrou-se da médica do vestido esvoaçante e acelerou na direção em que ela tinha ido.
Encontrou-a ao virar de duas esquinas, a comprar fruta na mercearia da praça.
- Doutora! Preciso da sua ajuda! – gritou de dentro da pickup.
- O quê? – Teresa não podia crer que a tinha seguido. Ainda estava envergonhada com o sonho e o facto de ter escandalizado a esplanada do café.
- O meu pai não se sente bem, tem de vir comigo. – Saiu da carrinha e arrumou a bicicleta na caixa, sob o olhar horrorizado de Teresa que via o seu lindo veículo a ser enterrado na palha.
- Mas, a minha bicicleta nova… - estupidamente não conseguia pensar no homem que precisava de assistência, estava chocada com aquela abordagem. – Desculpe, não era isso que queria dizer. É claro que o ajudo, vamos. – entrou na pickup e foi todo o caminho a lamentar para si mesma os solavancos dos buracos da estrada de terra batida que iriam amolgar a sua linda bicicleta cor-de-rosa. Manuel conduzia fixado no destino, parecia bastante abalado, pensava ela. Afinal não era assim tão brutamontes, estava preocupado com o pai, o que demonstrava bom coração, ou culpa, matutou.

Chegaram rapidamente ao local, uma herdade com campos a perder de vista, variadas árvores de fruto e muitos sobreiros, decorados com aqueles bichos medonhos que nunca vira tão de perto… Compreendia ligeiramente a obsessão do ser humano em lidar com touros, era uma relação “Matar ou Morrer”. Ela morreria definitivamente. Centenas de quilos, músculos, força, cornos pontiagudos e uma língua negra pendente que pingava raiva. Arrepiou-se e fechou ligeiramente o vidro, protegendo-se daqueles olhos negros que a “marcavam” como a próxima vítima a ser abalroada pelos ares.

Encaminhavam-se para a casa principal, uma construção antiga mas bem cuidada, que representava uma família com centenas de anos de tradição. À porta esperava-os uma senhora de meia-idade, que Teresa percebeu ser a mãe do “homem do comboio”, nervosa e expectante.
- Manuel, ele não está nada bem! – correu na direção do filho.
- Calma, a Doutora veio comigo, onde está o pai? – Manuel fez sinal para Teresa os seguir, entrando apressado para casa.
- Ah, ainda bem! Por aqui Sra. Dra.! – Maria dos Prazeres suspirava de alívio por ali estar alguém capaz de ajudar o seu marido.

António estava deitado na cama, vestido, com a camisa aberta até ao umbigo, de olhos fechados, respirando com alguma dificuldade. Teresa pediu que se retirassem do quarto, para conseguir analisar com calma o homem que já parecia restabelecido de algum princípio de enfarte. A pulsação ainda estava acelerada, mas todos os sinais indicavam que o pior já tinha passado. 
- Como se sente, senhor António? Chamo-me Teresa, sou médica e o seu filho trouxe-me para o ajudar. – tinha a mania de resumir em poucas palavras aquilo que achava essencial que o paciente soubesse. Parecera-lhe que mencionar o facto de que o filho se preocupara iria ajudar, e estava certa.
- Um pouco melhor… - balbuciou meio emocionado.
- Tenha calma, o pior já passou. – encheu um copo de água que se encontrava na mesa de cabeceira e ajudou-o a beber um pouco enquanto o acalmava - O seu coração deve ter apanhado um susto qualquer, ficou meio perdido, sem saber como reagir, mas agora já percebeu o que tem de fazer, novamente. – Gracejou, deixando o paciente mais descansado. – Tem calmantes em casa, senhor António? – perguntou carinhosamente.
- Acho que a Maria tem aí disso na primeira gaveta, mas eu não gosto de tomar dessas coisas. – respondeu meio incomodado com a ideia de tomar remédios de chiliques.
- Às vezes temos de enganar o nosso corpo. Eu também evito ao máximo o uso deles, mas quando a cabeça não consegue comandar o físico, temos de usá-la da melhor maneira, e foi para isso que inventaram os calmantes. Para mandarmos o corpo relaxar tempo suficiente para que fique normalizado outra vez. Como não está habituado a tomar este tipo de remédios, basta metade deste, que já é fraquinho. Vai ver que não sente diferença nenhuma, apenas ficará mais calmo o resto do dia. – entregou o pequeno pedaço de comprimido e tornou a encher o copo, olhando o paciente de modo firme e confiante. António não questionou Teresa, e pela primeira vez na vida obedeceu a um médico.
- Obrigado Doutora. – agradeceu.
- Muito bem, agora diga-me por favor, já se tinha sentido assim antes? – sentou-se para a segunda parte da pequena consulta domiciliária, a psicologia caseira.
- Não. Tenho andando mais cansado nos últimos meses, mas hoje enervei-me – olhou instintivamente para a porta do quarto, como que a indicar que o motivo estava do outro lado, à espera para entrar – e quando estava a aparelhar um cavalo, fiz força e desmaiei. – confessou com algum desconforto. Para um homem daqueles não era fácil assumir que perdera os sentidos.
- Isso é muito natural, senhor António, quando estamos nervosos a pulsação aumenta, e se fazemos força podemos bloquear a entrada de oxigénio no cérebro e desmaiamos. Eu própria senti-me  meia tonta quando aqui cheguei e vi aqueles touros enormes a olharem para mim… - gracejou – Que bichos medonhos!
- Ah ah, não me diga que tem medo de umas vacas! – António recuperava as cores e a disposição, sendo distraído por Teresa e o seu bom humor.
- Foi de tal forma que estive prestes a ligar ao 112 para nos atender aos dois! – continuou divertida.
Partilharam vários episódios de vacas e bois, rindo e descontraindo o ambiente do quarto enquanto Teresa conquistava inconscientemente o coração de António, que sempre desejara ter uma filha tal como ela.
Teresa convenceu o engenheiro a visitá-la no consultório na semana seguinte, para continuarem a conversa sobre a “bicharada”, como ela lhes chamava, e ele acedeu, apenas porque a Doutora precisava de esclarecimentos sobre a vida no campo e mais concretamente da vida em Safara. Despediram-se, e Teresa recomendou que António descansasse o resto do dia por casa. 
Saiu do quarto e encontrou-se sozinha na zona mais íntima da casa. Era uma habitação fantástica, reparava Teresa, que apreciava o bom gosto e a classe como ninguém. A decoração não era forçada, mas o resultado de uma vida familiar preenchida, emocionante e de trabalho. Mobiliário com história, fotografias de gente elegante e rústica, de ar saudável e feliz. Trigueiros, mas que irradiavam estilo. Percorria o corredor distraída, quando o “homem do comboio” surgiu vindo de um dos quartos, ligeiramente encavacado com o encontro acidental num sítio isolado e pouco iluminado.
- Ah, já terminou? Então, como está o meu pai? – perguntou, com as mãos irrequietas nos bolsos.
- Está melhor. Foi apenas um pequeno susto. Nada de mais. – respondeu curiosa com o nervosismo dele. Estava certa de que ele sabia bem porque António tinha sofrido um princípio de enfarte.
- Hum… Ainda bem. – disse aliviado. – Acho que não me apresentei ainda, chamo-me Manuel. – esclareceu, estendendo a mão.
- Teresa. – retribuiu o cumprimento, oferecendo a mão.
- Então doutora? Como está ele? – perguntou ansiosa Maria dos Prazeres, que apareceu repentinamente no corredor e fixou os dois com algum interesse.
Teresa largou a mão de Manuel e concentrou-se na mulher do Engenheiro, dando-lhe o braço num gesto de amizade e relatando-lhe o seu diagnóstico. Caminharam para a cozinha, deixando Manuel para trás, que não se sentia particularmente à vontade com demonstrações de afeto repentinas. Aquela médica era demasiado descontraída para o seu gosto, uma lisboeta com a mania, matutava.

- Agora está tudo bem, tomou metade de um calmante e ficou a descansar. – informou Teresa que se sentou à mesa com Maria. 
- Tomou? – disse surpreendida. – Isso é muito estranho, minha querida. Tem a certeza de que não o cuspiu logo de seguida? Nunca consegui fazer com que aquele homem tomasse uma aspirina! – Maria estava curiosa com a habilidade da médica em “mandar” o António Silva fazer fosse o que fosse.
- Claro que não! – disse Teresa, orgulhosa dos seus poderes de persuasão. Conhecia as pessoas, sabia lidar com todo o tipo de gente, essa era uma das suas grandes capacidades terapêuticas. Analisar e moldar-se. – O seu marido é uma jóia. Quer convencer-me a aprender a montar e tudo! Para a semana combinámos que iria visitar-me ao consultório para continuarmos a conversa! – e piscou o olho a Maria, dando-lhe a entender que iria fazer de tudo para que o engenheiro fosse seguido e vigiado convenientemente. Era necessário fazer análises, exames, mas iria com calma, ele ainda era um homem saudável, não queria ferir-lhe o orgulho, comparando-o com um velhote em decadência.
- Ah, que maravilha, minha querida! Não sabe o peso que me tira de cima. Ele sempre foi inflexível com médicos. É capaz de gastar fortunas com os animais, em remédios, veterinários, vitaminas, mas esquece-se de que também está a envelhecer. – lamentou-se preocupada.
- Não se preocupe, vou fazer-lhe um raio-x dos pés à cabeça! – gracejou.
- Fica para almoçar! Por favor! – ordenou carinhosamente a mulher agradecida.
- Não posso, mas obrigada. Cheguei ontem e não tenho nada em casa. Preciso de fazer algumas compras, arrumar o resto das minhas coisas… - o cheirinho da cozinha era apelativo, mas Teresa não queria abusar.
- Por favor, não me faça uma desfeita dessas! O Manuel depois leva-a a Moura e ajuda-a. Aqui em Safara não há hipermercado, nem nada. – concluiu sem dar hipótese a Teresa em recusar. 
- Ok, se não for abusar… - não sabia muito bem se o “Manuel” ia gostar daquela missão que a mãe lhe atribuíra, mas tinha muita fome, cheirava bem a ervas aromáticas e estava ávida de uma boa conversa! Maria dos Prazeres era simpática, prestativa e fazia-a lembrar Fernanda, a mãe que deixara em Lisboa, sozinha com um marido distante.
- Que bom! Acabei de fazer açorda. A Doutora gosta? – perguntou animada com a companhia de outra mulher. Vivia isolada na herdade, rodeada de homens e ansiava por uma amiga, mesmo que tivesse menos trinta anos.
- Adoro! Mas por favor trate-me por Teresa, senão não fico! – ameaçou a brincar, quebrando a formalidade. 


O almoço era tudo e mais que Teresa poderia ter imaginado. Aquela mulher era uma fada da culinária! Repetiu o prato, sem vergonha, e consolou Maria dos Prazeres com um apetite saudável e simpatia.
Manuel ficou surpreendido com a repentina amizade das duas, e olhava desconfiado quando davam a mão uma à outra, como se se conhecessem há vários anos.
A mãe era comunicativa, alegre e generosa, como Teresa, pensava. Talvez fosse bom para Maria ter uma amiga por aquelas bandas, concluía pensativo, assim poderia distrair-se com outras coisas que não ele.
- E onde está a morar? – Maria queria saber pormenores sobre Teresa, e como era uma mulher experiente, sabia que o filho fingia não ouvir, concentrado no telemóvel, mas alguma coisa lá lhe iria chegar!
- Na antiga casa da minha família. Sou neta da Maria Rosa, conheceu-a? Talvez não, ela foi para Lisboa muito nova. – esclareceu Teresa, ansiosa por conhecer um pouco da vida da avó e das suas origens.
Maria dos Prazeres olhou-a surpresa, como o filho no dia em que lhe deu boleia e percebeu onde ela iria morar.
- Não… - respondeu de forma pouco convincente.
- Conheceu quem? – António surgiu alegre na cozinha, mais restabelecido e curioso com a algazarra que ouvia no quarto.
- A minha avó! Era a Maria Rosa e nasceu cá em Safara. – disse Teresa.
O ambiente mudou repentinamente, como se Teresa tivesse cometido alguma indiscrição, o que a deixou intrigada. Numa terra tão pequena todos deviam saber quem era a avó. 
- Não sei, - mentiu ele – e que tal está essa açorda? – desviou o tema que os punha desconfortáveis e sentou-se desejoso de provar o almoço. 
- Bem, Manuel, a Dra. Teresa precisa de fazer umas compras para casa, podias levá-la a Moura agora de tarde. Não tinhas de lá ir comprar não sei quê da internet? – perguntou Maria ao filho, que se sobressaltou com a novidade.
- Ham? – não lhe apetecia nada fazer de motorista – Desisti de lá ir hoje, não me dá jeito, tenho de ir visitar um antigo amigo. – disse de forma indelicada tentando escapar à repentina missão.
- Não há problema, eu vou lá outro dia… – Teresa não percebia porque o homem era tão malcriado, mas não se queria impor.
- Disparate! – António elevou a voz – Vais lá com a Doutora sim senhor! Era só o que faltava. Veio aqui ajudar-nos e agora tu pões-te com as tuas parvoíces? – fitou-o duramente, ordenando-lhe que fizesse o que a mãe pedira, como se falasse com uma criança. 
- Por favor, senhor António, não se enerve, não vale a pena. Eu tenho mesmo de ir para casa, arrumar a minha mala, orientar as coisas por lá. Não faz mal. – Teresa queria um buraco onde se enfiar, de tão envergonhada que estava com aquela discussão sobre ela, queria sair dali depressa. 
- O Manuel vai consigo. Ponto final. – e não havia discussão, António falara.

Despediram-se como velhos amigos, Teresa abraçou os dois com carinho, enquanto Manuel esperava na pickup, contrariado com aquele passeio até Moura com uma mulher que não se calava um minuto e já era íntima dos pais em poucas horas. Teresa entrou na carrinha, desconfortável com os modos do homem, decidida a pedir-lhe que a deixasse sair, assim que chegassem à entrada da povoação. Não queria encontrar um touro pelo caminho deserto, montada na bicicleta, indefesa, sem esporas nem espada.
- Desculpe a cena ao almoço, não tem que me levar a lado nenhum, eu fico em Safara. – informou-o sem jeito.
- E acha que vou correr o risco de me chatear novamente com ele? Agora vai a Moura e ponto final! – rematou duramente, arrancando bruscamente com a pickup.
Teresa não lidava bem com brutos - Era necessário tornar as coisas assim tão difíceis?, pensava olhando amuada pela janela. Que raio de feitio tinha aquele homem. Faria um esforço por se manter calada a viagem toda, já tinha percebido que conversar não era o passatempo preferido dele, mas havia tanta coisa que gostava de saber sobre aquela terra, costumes, locais a visitar, a evitar, que não levou cinco minutos a lançar-se num interrogatório.
- Então, e onde se pode sair à noite por aqui? – perguntou animada, tentando quebrar o gelo.
- Aqui em lado nenhum. Só em Espanha. – respondeu.
- Ok… e costuma lá ir? Tem bom ambiente? – estava desejosa de beber umas imperiais e dançar.
- Não. – respondeu de forma seca.
- Em Moura há shopping? – outra informação essencial que precisava de saber.
- Não. – repetiu no mesmo tom.
Desistiu de tentar arranjar mais um amigo. O homem não queria conversas, e ela sentia-se cada vez mais irritada. Se continuasse a responder-lhe daquela forma ainda saltava da carrinha em andamento.
Fizeram o resto da viagem em silêncio, chateados. Teresa lamentava não poder tagarelar, mas não valia a pena insistir com aquela pedra. 
Estacionaram a pickup no centro de Moura e Manuel deu a entender que não a iria acompanhar nas compras. Teresa saiu frustrada, teria de se apressar no hipermercado. Fazer compras sob stress era terrível, mas pior seria aumentar-lhe o mau humor.


Manuel dormitava na carrinha, quando Teresa finalmente apareceu, carregada de sacos, exausta com o peso das compras e a escorrer suor por todos os poros do seu corpo. Via-a a caminhar dificilmente, com os cabelos à frente dos olhos, sem ver bem o caminho, o vestido estava colado ao corpo do calor que se fazia sentir, era uma mulher demasiado bonita para não se notar. Precisava de se manter afastado dela o mais possível, pensou. Não queria desnortear, deixaria Safara dentro de dias e Sofia esperava por ele em Coimbra, concluiu de forma prática. Não era loucamente apaixonado por ela, mas devia-lhe lealdade, pensou angustiado ao se recordar que a tinha deixado sozinha em Coimbra. A facilidade com que se podia habituar de novo ao Alentejo apertava-lhe o estômago e aumentava-lhe a culpa.
Ajudou Teresa a colocar os sacos na caixa, junto à bicicleta horrível cor-de-rosa e suspirou de alívio por estar quase a terminar aquela viagem desconfortável.


Conduziu o caminho todo em esforço, para não lhe olhar para as pernas, concentrando-se na fúria que sentira no dia anterior e que seria o motor para tomar a difícil decisão de abandonar os pais e Safara.
Quando parou perto da pequena casa amarela deu graças por estar quase a terminar a sua provação. Aquela mulher calada e zangada ao seu lado, de cabelos ao vento e pernas esguias, fazia-o esmorecer nas suas intenções.
Deixou-a em casa e fugiu.

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

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