quarta-feira, 9 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Final




 - De quarentena?! - Salvador explodiu a rir com os lamentos de João, que lhe confidenciava as exigências de Isabel depois de ele ter voltado do Gerês e terem reatado a relação interrompida pelos acontecimentos dramáticos.

- Mais alto, que ali ao fundo ainda não perceberam... - resmungou, meio dividido entre a vontade de rir e o amuo. - Há uma semana que me anda a pôr doido... e não desiste dessa ideia. Estou aqui, estou a ser preso por violação consumada ao mais alto nível! - engoliu o resto do fino de um trago, sorrindo no final, induzido pelas gargalhadas do amigo que já limpava os cantos dos olhos de chorar a rir.

- E a louraça? Nunca mais a viste? - perguntou respirando fundo e tentando acalmar a risota.

- Claro que vi, foi um escândalo... apareceu-me lá no apartamento, histérica e pronta a matar. - explicou - A minha sorte é que a Isabel tinha ido dar aulas e não estava, senão, em vez de quarentena era ano sabático! - comentou, com um ar genuinamente preocupado. - Fui levá-la a casa da tia, a Rosário, que ficou destroçada, coitada da mulher. Tem ali muito com que se preocupar. Eu devia era ter ido à polícia fazer queixa da tipa, mas a Isabel pediu-me para não o fazer. Assim acabou de vez a história e pronto. - resumiu, pedindo mais um fino num gesto.

- Ah pois, nunca mais te livravas desse fantasma, a Isabel tem razão. - comentou entregando a bebida a João. - Agora não afogues as carências físicas no álcool!, bebe devagar que já vais no quarto. 

- Não é nada disso... - bufou constrangido - Estou a ganhar coragem para fazer uma coisa mais logo, quando a Isabel chegar. - confessou, tirando do bolso uma caixa pequena.

- E vais pedi-la em casamento aqui no bar? Isso não é nada romântico, pá! - insurgiu-se Salvador, chocado com aquela insensibilidade.

- Achas? Eu tinha preparado um discurso e tudo... - gozou - Claro que não vai ser aqui!, já tenho tudo pensado. Durante a festa de anos vou fingir que tenho a prenda dela em casa, o que na realidade é verdade, só que não é uma prenda física, é o pedido. A Lisa está a ajudar-me e já lá deve estar a preparar o cenário romântico. Eu disse-lhe para não se poupar, queria mesmo uma coisa exagerada, já não aguento mais dormir com uma almofada entre nós os dois...

- Portanto, a prenda és tu que a recebes?, Está certo, isso é tão romântico que até eu já me estou a apaixonar por ti! - gozou.

- Menino, vou-lhe dar presentes a noite toda, se ela aceitar o pedido, claro. - acrescentou, já a duvidar do seu esquema infalível. - Salvador, pára de me colocar macaquinhos na cabeça. Tu não a conheces. Tenho de a surpreender de forma excêntrica, para ela ceder da sua teimosia. Eu sei que anda a esforçar-se por não quebrar o “celibato pascal”, também tem sofrido, mas quer marcar uma posição. E eu acho sinceramente que está à espera do pedido, ela não liga nenhuma a prendas, das que as mulheres normalmente gostam. Tem de ser “tchanam!” - exibiu um sorriso orgulhoso nas suas intenções.

- Bem, tu lá sabes. Mas eu, no teu lugar, arranjava uma mala ou uma echarpe só em caso de o plano A não funcionar. - opinou sabedor.

- Olha, ela vem aí. Agora cala-te. - João ficou sentado a admirá-la, enquanto Isabel cumprimentava Janota, e uma ponta de ciúmes abrasou-o, terminando o fino fresco de uma assentada. O segurança parecia conformado com a amizade que ela lhe reservava, mas João conseguia ver nos olhos do gigante a mágoa de um homem não correspondido. Era notória a frustração, mesmo que bastante dissimulada. Era a sua pequena vingança pessoal, nunca lhe conseguiria bater a ponto de o magoar, bem pelo contrário, por isso gozava secretamente da vantagem que tinha em ser o escolhido dela. Levantou-se quando ela chegou perto dele e Janota desapareceu dos seus pensamentos. Toda aquela energia sexual reprimida subia-lhe à cabeça como fogo de artifício e cegava-o. João sabia que Isabel fazia de propósito, para o ter na mão, mas ele adorava ser o seu fantoche. Agarrou-a e beijou-a de tal forma que se fosse necessário iria com ela para os lavabos, como dois adolescentes no pico das hormonas.

- Ó Isabel, por favor, olha que o homem rebenta! - gozou Salvador, expondo as confidências do amigo.

- Olá, então, somos os primeiros? - perguntou, libertando-se dele e sentindo a cabeça à roda. Sexo tântrico era uma disciplina exigente e difícil, que apenas com muita prática se conseguia dominar. Iria aguentar aquilo só enquanto João não lhe parecesse magoado. Mas estranhamente ele parecia andar entusiasmado com os travões que ela lhe punha, o que a intrigava durante horas, enquanto não conseguia adormecer a senti-lo em alerta à espera de um movimento em falso que denunciasse o fim da lei seca. Não queria ser cruel, apenas dar uns dias para que estabilizassem e recomeçassem tudo sem a lembrança de Nélia ainda fresca na memória. 

- O César e a Lisa devem estar mesmo a chegar. - respondeu, olhando-a apaixonado - Estás muito bonita. - sussurrou-lhe ao ouvido.

- Obrigada, também estás muito bonito. - respondeu-lhe de volta, na mesma moeda, certa de que ele ficaria muito mais incomodado com um bafo quente junto ao ouvido.

- Olhem, até eu já estou a ficar com os calores, por favor, não nos martirizem mais. Acabem lá com isso e voltem a ser pessoas normais, pode ser? - rugiu Salvador, afastando-se do casal que se espremia um no outro junto ao balcão.

- 30 anos... estás oficialmente a ficar no ponto! - brincou, sentando-se e puxando-a para perto de si.

- Velha, queres tu dizer!, - resmungou, afastando-se e sentando-se no banco ao lado - Mas ok, ainda me falta 10 para ficar acabada, ainda há tempo. - sorriu-lhe feliz como já não se sentia há muito tempo. João estava com um brilho nos olhos diferente, misterioso. - O que foi? Porque é que me estás a olhar assim?

- Amo-te, sabias?

- Sim. - conseguiu dizer, depois de alguns segundos de paralisia vocal. Ele desmontava-a com uma facilidade que a deixava incapaz de pensar.

César e Elisabete chegaram interrompendo o momento e transformando-o na festa de aniversário que realmente deveria estar a acontecer, acalmando os ânimos com a serenidade madura que os caracterizava. Só Elisabete transparecia uma leve excitação quando João cruzava o olhar com o dela, garantindo-lhe em linguagem muda que tudo estava pronto para a surpresa final.

- Permitam-me que diga umas palavrinhas, enquanto todos estamos sóbrios e capazes de testemunhar no futuro, se necessário! - gracejou, colocando-se de pé e abraçando Isabel, ligeiramente desconfortável com declarações públicas. - O ano que passou foi um dos melhores e piores da minha vida, encontrei o amor da minha vida e perdi-o, e os pormenores vocês todos já sabem. - despachou, com pressa para chegar à parte importante - Mas o mais incrível de tudo o que vivi foi a descoberta de que o João não existia na realidade. Nunca fui psiquiatra, nem mulherengo, muito menos um ricalhaço cheio de mordomias. O meu nome é João, mas sou jardineiro a aprender agricultura, só amo a Isabel e gosto de casas pequenas e de madeira. Desculpa, querida, se te desiludi. - brincou, olhando-a - Nunca foi minha intenção enganar-te. E agora que já me confessei, queria agradecer-vos a todos o que fizeram por mim e pela Isabel, nunca vos vou conseguir pagar a amizade que nos dedicaram. - levantou a cerveja em gesto de brinde - Mas, e agora vem o mais importante, - disse, com um tom misterioso que deixou Isabel ligeiramente ansiosa. Tinha a sensação de que ele andava a tramar alguma, e secretamente desejava que fosse um pedido de casamento para acabarem de vez com o celibato - A minha Isabel faz hoje anos, e é a ela que devemos fazer o verdadeiro brinde! Parabéns amor! - beijou-a, deixando-a ligeiramente frustrada. Tinha sido a altura ideal, ali junta de todos os amigos, para lhe fazer a proposta romântica, pensou abatida. Porque deixava ele arrastar aquele sofrimento físico?

A noite já ia longa, quando João se decidiu a ir para casa com Isabel, que desfalecia de sono. Dançaram quase até já não sentirem os pés, num frenesim de festejo que não combinava com aquilo que Isabel sentia, depois do brinde. Não podia dizer que estava triste, João dedicara-se toda a noite a adorá-la de todas as formas e feitios, mas o corpo pedia cama e descanso, para conseguir absorver a frustração de ter pensado que ele não queria casar. Talvez esse fosse o limite dele, depois de tudo o que tinha vivido com a morte do irmão, da mãe e depois da primeira mulher. Isabel era uma romântica, no fundo imaginava-se a vestir-se de branco e casar com um príncipe, para apagar finalmente da memória o seu casamento com o demónio. Dizer que sim a João era o seu desejo mais profundo, mas nunca lho diria. No caminho para casa pouco falou, fingindo-se dormitar, mas os seus pensamentos giravam e traziam-lhe dúvidas que não facilitariam o resto da noite. Estava implícito que acabaria naquele dia o celibato, mas Isabel não se sentia propriamente excitada com isso, o que a deixava receosa de o magoar. O carro parou e João saiu, pensando que ela dormia, abriu a porta do lado de Isabel devagar e chamou-a, ajudando-a a sair, com um abraço que a fez amolecer ainda mais.

- Estás muito cansada? - perguntou-lhe, ansioso com o que tinha ainda por fazer. Sabia que ela estava desiludida com o seu discurso, conhecia-a bem, e custara-lhe não revelar a surpresa que a esperava.

- Hum, hum... - Isabel abriu os olhos, caminhando abraçada a João, quando este parou à entrada da casa, e ligou as luzes do alpendre, que abriram uma fiada de gambiarras que iluminaram o espaço, transformando-o num local idílico.

- Isabel... ainda falta a minha prenda. - sussurrou-lhe ao ouvido de forma sensual, acordando todas as células do corpo dela. - Precisas de estar acordada... - respirou-lhe desde o ouvido até à boca, beijando-a com intenção e sentindo-a a desfalecer, pronta. Olhou-a. - Nunca tive tanta vontade de fazer isto, e tenho aguentado até hoje, para que este fosse o teu momento. - tirou a caixa do bolso e mostrou-lhe um anel simples, com uma beleza igual à dela, verdadeira - Isabel, queres casar comigo? Ter filhos comigo? Ou cães, ou o que gostares mais?

Isabel olhava-o sem falar, completamente rendida ao romantismo delicioso dele, do qual duvidara horas antes, a sentir um calor que subia e descia do chakra Muladhara ao Anahata, numa espiral de prazer quase idêntico ao orgasmo. Seria quilo possível? 

- Isabel... não dizes nada? - perguntou confuso com o ar de prazer dela e o silêncio. Percebeu que algo se passava dentro dela, algo estranho, e abriu a porta, puxando-a levemente para dentro de casa, orientando-a em transe até à sala de prática. Fechou a porta, num impulso, selando-os naquele local espiritual, colocou as luzes em modo baixo e levou-a até ao centro da sala. Os olhos de Isabel emitiam um brilho que já tinha visto antes, e como ela parecia noutra dimensão, decidiu ouvir a sua intuição e não esperar por ordens. Despiu-se totalmente, despiu-a a seguir, sem pressas, beijando-a em todos os locais possíveis e imaginários, e deitou-a, ficando a pairar por cima dela, que continuava em transe, como se apenas ali estivesse o corpo, que o reclamava cada vez mais. João esperou que Isabel voltasse, e assim que percebeu nos olhos dela que chegara o momento, consumou a união entre os dois.

Milhares de estrelas rodopiavam à volta dos dois, soprando cânticos de louvor e êxtase, enquanto Isabel atingia o clímax e o chakra Sahastrara abria um feixe de várias cores em direção ao céu. Chegara, finalmente, pensou, sentindo-se ainda a levitar, com a respiração violenta a normalizar. Recuperou a visão, e João olhava-a divertido, com um sorriso vitorioso, como se sentisse orgulhoso de qualquer coisa. 

- Isto foi um sim? 


(direitos reservados, AFSR)

(imagem, internet)

terça-feira, 8 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 26




 - João, eu amo-te... - Isabel beijou-o, depois de o olhar profundamente, cravando-lhe uma angústia quente e funda no esterno, que o sufocou. A garganta seca dificultava a respiração e levantou-se, fingindo um mal estar repentino provocado pelo jantar sumptuoso que tomaram no quarto do hotel. Ela queria privacidade, intimidade, cumplicidade, e João tentou até não aguentar mais. “Amo-te...” era o limite da sua capacidade, pensou, molhando a cara com água fria na casa de banho, onde se refugiou. O pânico começava a alastrar-se na sua mente, e o corpo reagia como uma bomba. Recordava-se daquilo, pensou, obrigando-se a respirar fundo. Picadas leves percorriam-lhe os braços lentamente em direção às mãos, uma sensação de leveza nos joelhos parecia retirar-lhe as forças das pernas, o que disparou o pânico. Tinha de sair daquele quarto rapidamente, apanhar ar, já não suportava o perfume dela, que o estrangulava desde que fechara a porta do quarto mais cedo. Todo o corpo de Isabel estava envenenado com o cheiro agressivo a flores, e tinha-o beijado durante horas, lembrou-se assustado, estava contaminado, iria morrer. Abriu a porta da casa de banho e precipitou-se à procura do telemóvel, vestiu uma t-shirt, calçou-se e disse-lhe que ia tentar comprar champanhe. Foi o que lhe surgiu no momento. Precisava de se afastar dela, sem levantar suspeitas. Correu pelo corredor até encontrar a porta que dava acesso à zona exterior da piscina. Respirou como se estivesse submerso há alguns minutos, com os pulmões a exigir oxigénio furiosamente. Colocou-se de cócoras, para poupar as pernas que pareciam ceder com o peso da sua angústia. Precisava de a ouvir, de ouvir aquele mantra que só ela sabia, pensou, carregando no número dela, tinha de a gravar a cantar aquilo, acalmava-o. - Estou, Isabel? - João?, o que aconteceu? O que se passa? João?... - Desculpa. - João?... 



De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus.


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… quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…


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Com mais força! – gritava-lhe o irmão mais novo, a pedir que João lhe empurrasse o baloiço. – Daqui a nada sais a voar! – respondeu, dando um impulso ainda maior e rindo com o espírito corajoso de Filipe. – Meninos! Venham jantar! – chamou a mãe naquele tom melodioso característico das horas de comer. Correram os dois para ver quem chegava primeiro. Filipe detinha o recorde, orgulhoso e fazia sempre uma festa quando atingia a porta mais depressa que o irmão mais velho. A casa cheirava a assado, o prato preferido dos dois. Continuaram a corrida para ver quem lavava as mãos mais depressa, mas o pequeno Filipe sorria-lhe esticando-se a pedir ajuda para chegar ao sabonete. – Dá cá esses dedinhos marotos!


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- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...

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Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e figiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apodereou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.


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- Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho… - disse o pai que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe? Gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe.”



- Senhor!!!!, o funcionário do hotel gritou, descalçando-se rapidamente e lançando-se à água completamente vestido. Mergulhou para o alcançar, mas o corpo parecia fazer força na direção do fundo da piscina, obrigando-o a vir à tona ganhar ar para outra tentativa. 


Sempre que a via sentia-se assim, parvinho de todo, sem saber como lhe dizer todas aquelas coisas inteligentes que pensara no dia anterior. Era impossível ser natural e descontraído quando ela estava por perto, lamentava-se. Naquele dia combinaram ir beber um café ao Samambaia, sentaram-se um em frente ao outro, pediram café, depois água, um bolo, uma torrada, dois finos, tremoços, e acabaram a tarde a serem repreendidos pelo empregado de mesa para pararem com os beijos, havia clientes incomodados. Invejosos, dissera ela divertida. 


.....


Agora que já somos namorados oficialmente, temos de pensar num assunto de extrema importância, João! – disse muito séria, deixando-o alarmado. Sentou-se para a olhar melhor, ali deitada na relva de braços atrás da cabeça parecia-lhe a coisa mais bonita que já vira.

- Diz lá, então. – sorriu-lhe acendendo um cigarro.

- De que cor é que compro a minha mala? – continuou séria, a esforçar-se para não se rir – É que vamos andar sempre juntos, e preciso de saber qual a cor que vai ficar melhor com as tuas roupas!

- Estás a brincar, ou a falar a sério? – perguntou meio aparvalhado.

- Palerma! – disse-lhe rindo agarrada à barriga – Achas mesmo que ia querer combinar a carteira contigo? Adoro esta, só me separo dela quando uma de nós morrer! – profetizou, continuando a rir do ar apalermado com que João tinha ficado.


.....


- Não sejas teimosa, isso não combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de palermices. 


.....


   A casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la. Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois. Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele, a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso. Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro “filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado afogar-se… 


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- A Eduarda vai ser mãe. – comentou Isabel, animada com a notícia de que a melhor amiga conseguira finalmente realizar o seu sonho de engravidar, depois de alguns anos de dificuldade e sofrimento. – Ai sim?, que bom. – disse sem sequer a olhar. Aquele tema surgia de tempos a tempos como uma sombra a pairar sobre os dois, dissipando-se depois com as distrações do dia-a-dia das suas carreiras absorventes. – João, podíamos pensar nisso também. Não para já, que estás a iniciar o trabalho na Clínica e precisas de te dedicar a isso, mas daqui a um, dois anos. – sugeriu Isabel a medo. Sabia que o marido fugia do assunto, mostrando-se muito pouco interessado em ser pai, mas ela adorava um dia engravidar, ser mãe, cuidar de um bebé, e se para isso, tivesse que deixar a carreira, não pensaria duas vezes. – Isabel, ainda é cedo, e não tenho a certeza de que isso seja uma boa ideia. - tentou desculpar-se, sem conseguir ser honesto com a mulher, que o olhara magoada. Depois da morte de Filipe, o seu primeiro “filho”, não teria capacidade emocional para passar por tudo de novo. A cara do irmão a desaparecer na água do rio ainda o assombrava em algumas noites. Não, ser pai nunca.


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- Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… - perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa? Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? – perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.

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-Odeio-te, deixa-me em paz! – gritou Isabel, fechando a porta do quarto na cara de João. – Deixa-te de histerismos! – berrou-lhe de volta, dando uma palmada na porta. Aquele casamento estava a ir por água abaixo, pensou, farto de tudo aquilo. – Eu só queria um filho, egoísta de merda! – exclamou descontrolada de dentro do quarto. João sabia que um dia ela lhe iria atirar aquilo à cara. Agora era tarde demais, Isabel não poderia engravidar nos próximos anos, teria de tratar o cancro primeiro. Era óbvio que ela temia morrer, sabia-o, e ele não lhe tinha concretizado o sonho antes disso. Engoliu em seco, pegou nas chaves e saiu. Se ela morresse não teria hipótese de se redimir. Mais uma culpa para juntar ao rol.”



......


Filipe olhou-o amuado, a fazer aquele beicinho adorável, pensou, divertido. Sempre que não lhe faziam as vontades ficava impossível, até conseguir o que pretendia. Não percebia bem o que mais queria o irmão, já tinha cedido e entrado na água com ele, mesmo com frio e pouca vontade de brincar. Mandou-lhe água para a cara em provocação, rindo descontraído, e Filipe desatou a chorar ruidosamente. Tentou alcançá-lo, não gostava de o ver magoado, mas tinha sido só uma brincadeira. O menino agarrou-se com força num abraço, como se nunca mais o quisesse largar. João comoveu-se e deixou-se ficar a sentir a pele quente e fofa de Filipe, dando-lhe colo. “Desculpa mano...”, disse o menino, dando-lhe um beijinho no ombro, mas sem o olhar, envergonhado. “A mãe disse-me que tinha de te vir pedir desculpa... Ela está muito zangada, só me dá mais chocolates se eu te abraçar com muita força!”, explicou, apertando-o ainda mais, o que surpreendeu João. Como podia o irmão ter tanta força... “Agora já passou, e eu quero voltar para o colo da mãe, ela tem chocolates, ok?”, disse, olhando-o e segurando a cabeça de João com as mãos. “Tudo bem, mas tu não sabes nadar...”, respondeu preocupado, olhando em volta e vendo a distância a que ainda estavam da terra. “Não é preciso, ela leva-me, mas tens de me largar.”, explicou, apontando para cima. João olhou e viu a tona da água, como se estivessem os dois submersos de repente. Algas altas e largas ladeavam-nos escurecendo a água, e João agarrou Filipe com força, batendo os pés furiosamente, na tentativa de os salvar aos dois do afogamento eminente. “João!, não ouviste?, a Mãe tem chocolates, deixa-me ir!”, pediu Filipe obrigando-o a olhar nos seus olhos. “Vem para a toalha, já acabou, está frio. Eu quero que vás secar-te, ainda não podes vir connosco, e não há chocolates suficientes para os dois.” João parou bruscamente, e sentiu o irmão soltar-se devagar e subir sem esforço, a rir na sua direção, dizendo-lhe adeus. A sua mão gordinha girava e desapareceu sem que isso o angustiasse. Uma sensação de paz invadiu-o, fazendo-o boiar calmamente até à tona da água, estava livre, pensou, e tossiu violentamente, cuspindo a água que lhe bloqueava a respiração e deixando o oxigénio entrar.


- Senhor!!! Está a ouvir-me? - disse aliviado ao vê-lo tossir a água que engolira e respirar de novo. - Que susto... se não chegasse neste momento tinha morrido... - arfou do esforço de o içar da água. 

- Obrigado... - João sorriu agradecido ao rapaz da receção, que o tinha salvo do afogamento, percebeu, olhando em volta, ainda em choque. Levantou o tronco e tentou compreender como tinha caído na piscina, não se recordava de cair ou tropeçar, apenas se recordava de estar a falar ao telefone com a Isabel. - O meu telemóvel?

- Acho que ficou na água... - respondeu, olhando o fundo da piscina e vendo o aparelho preto.

- Ajuda-me a levantar? Tenho de voltar para Coimbra, depressa. Tenho de ir ter com ela, é urgente. - A ideia de que Tiago a pudesse ter atacado enquanto ele estivera ausente no internamento e a sofrer de amnésia invadia-lhe a mente. - Não vou voltar ao quarto, e preciso que empate a mulher que veio comigo. - explicou, enquanto tentava organizar os pensamentos. Teria de trocar de roupa, e tinha todos os seus pertences no quarto onde estava a Nélia. Odiava-a de uma forma que não conseguia controlar, e temia fazer um disparate. Como tinha sido ela capaz daquela loucura toda... de o enganar...

- Tenha calma, acabou de passar por uma experiência traumática!, Pode precisar de ser visto por um médico... - tentou racionalizar o rapaz, confuso com aquele discurso.

- Ouça, não posso explicar, mas preciso mesmo de sair daqui hoje, vá ao meu quarto e arranque a mulher de lá, não sei como..., diga-lhe que há uma simulação de incêndio... sei lá!, tenho de ir buscar as minhas coisas sem que ela me veja. - agarrou na lapela encharcada do casaco do rapaz, olhando-o desesperado.

- Calma, eu vou lá. Mas primeiro deixe-me trocar de roupa... - olhou-se nervoso.

- Claro, claro, tem razão... 

- Fazemos assim, vem comigo até ao balneário dos funcionários, eu visto-me e vou lá ao quarto chamá-la... e depois pode ir ao quarto buscar as suas coisas... - o desespero nos olhos do homem convenceram-no de que tinha de o ajudar, mesmo achando tudo aquilo de loucos. 

- Obrigado..., como se chama mesmo? - perguntou João agradecido pela ajuda.

- Filipe.

João sorriu e abraçou-o, num ímpeto. Sim, aquele podia ser o seu irmão mais novo, se fosse vivo. Um Filipe corajoso que salvaria um desconhecido.

- Obrigado, Filipe.




- César, estou-lhe a dizer... ele telefonou-me e chamou-me pelo meu nome verdadeiro... depois pediu-me desculpa e calou-se! Ficou tudo em silêncio! Aconteceu alguma coisa, eu sei! - bradou Isabel desesperada ao telefone, já a imaginar o pior. - Já liguei centenas de vezes e vai sempre para a caixa de correio. Ele está no Gerês, enviou-me hoje cedo uma foto do hotel onde tínhamos estado os três no verão... - gemeu, deitando uma lágrima que desencadeou um choro compulsivo que tentava segurar há muito tempo. 

- Isabel, tem calma. Não podemos pensar em desgraças. Pode haver uma explicação lógica para isto tudo. Como se chamava o hotel onde estiveram?, recordas-te? Telefonamos para lá e tiramos a limpo se aconteceu alguma coisa. - disse o psiquiatra pragmaticamente.

- Sim, tem razão... - soluçou com força, tentando estacar o choro, e procurando na memória o nome do hotel - ...era qualquer coisa “amigo dos patudinhos”... não sei bem mais o quê...

- Vou desligar e tentar descobrir onde é esse hotel. Calma... tenta beber um chá e acalmar-te. Já torno a ligar para te dar mais informação. - suspirou alto, largando parte da preocupação que o começava a invadir. Lisa olhava-o de lágrimas nos olhos, visivelmente emocionada com a teoria que todos pensavam mas não verbalizavam. João poderia ter cometido o suicídio, e isso era impossível de aceitar. Pegou no pc e começou à procura no google de hotéis no Gerês onde houvesse alguma indicação de aceitarem animais de companhia ou alguma descrição parecida com o que Isabel tinha dito. Era preciso manter a sanidade mental antes de qualquer atitude drástica ou desespero, disse a si mesmo em auto-controle. A mulher mantinha-se nas suas costas, agarrada a si, em tensão, dando-lhe inconscientemente algum apoio físico. Colocou a mão por cima da dela e Lisa gelava. Pegou nela e deu-lhe um beijo, agradecendo-lhe. Rapidamente encontrou meia dúzia de números de possíveis hotéis que cabiam na descrição e ligaram para todos, acabando por acertar no último, tinha lá estado de facto um cliente chamado João Marques, mas saíra há pouco mais de meia hora. O rapaz que atendeu César parecia desconfiado com as perguntas, e não deu muita informação adicional, mas algo se tinha passado. O importante era que ele estava vivo, e de volta. Recompuseram-se do susto e telefonaram a Isabel, descansando-a. Nada de grave acontecera, teriam de aguardar até que João contactasse um deles, pois o telemóvel não funcionava por algum motivo.


Isabel chorou de alívio até o cansaço a derrotar. Coisas horríveis tinham-lhe passado pela cabeça, cenários de tragédias às quais não saberia sobreviver. Um breve momento de terror, que felizmente não tinha passado de imaginação, disse a si mesma, lavando a cara com água fria. Sentia-se miserável, cansada e com sono. De manhã cedo teria de ir dar aulas e já devia algumas horas à cama, precisava de descansar. Deitou-se por cima das cobertas, tapando-se com uma manta, sem forças para desfazer a cama. Parecia-lhe que um trator a tinha atropelado, tudo lhe doía, da cabeça aos pés. Filipe Jr enroscou-se timidamente nela, ainda amedrontado com a cena dramática, cheio de sono e frio, obrigando-a a levantar um dos braços para ele se colocar por baixo à procura do calor. Finalmente a respiração de Isabel permitia ao pequeno cão acalmar-se e render-se ao cansaço, adormecendo quase em simultâneo, cão e dona, como se um feitiço os tivesse tocado. Nenhum dos dois acordou, quando a meio da noite João entrou em casa usando a chave guardada no vaso e se deitou junto deles, adormecendo também instantaneamente, sem pensar.


Ouviu o despertador ao longe, com grande dificuldade, e durante alguns minutos não conseguiu levantar-se e desligar o aparelho. Sentia-se ainda derrotada e com sono, precisava de mais umas horas de descanso, pensou, abrindo os olhos pesados e procurando com a mão pelo cachorro, que estranhamente não se encontrava na cama. Levantou-se, vestiu o robe, foi à casa de banho e ficou horrorizada com o seu aspecto. Olheiras fundas e negras faziam um contraste ainda maior aos olhos inchados. Como poderia encarar a aula de yoga e as suas alunas com aquele aspecto?, perguntou-se desanimada. Teria de colocar maquilhagem, o que detestava, para parecer humana. Saiu do quarto, dirigiu-se à cozinha para fazer café, procurando com o olhar pelo cão, que parecia ter desaparecido. Encheu a cafeteira com água e procurou pelo pacote do café no armário, quando um vulto a fez virar-se repentinamente. A cafeteira caiu ao chão com estrondo, quando as mãos ficaram amolecidas com a visão de João com Filipe ao colo, que se debatia a tentar lambê-lo, histérico.

- Não te quis acordar antes, cheguei durante a noite.

- Como assim, chegaste durante a noite? - conseguiu dizer, com a garganta seca.

- Ontem lembrei-me de tudo, Isabel. - largou o cão e tentou puxá-la para si, mas Isabel cruzou os braços, fugindo-lhe. Em vez disso apanhou a cafeteira do chão e deu-lhe algum espaço. Já tinha imaginado que ela fosse reagir mal e não queria magoá-la mais.

- O que aconteceu ontem? Tentei ligar-te centenas de vezes... não imaginas as coisas que me passaram pela cabeça... - o choro rebentou-lhe atrapalhando-lhe as palavras - ... pensei que tinhas morrido... Disseste o meu nome. - João tentou abraçá-la novamente, mas ainda era cedo, não queria que ele lhe tocasse.

- Desculpa Isabel, é uma longa história, - não queria perturbá-la com o afogamento evitado pelo Filipe, o rapaz da receção - O telemóvel caiu e estragou-se e não tinha forma de te ligar de volta. Por isso vim embora.

- E a Nélia? Veio também? Levaste-a a casa, antes de aqui vires arrombar a minha porta? - bradou a sentir-se colérica, continuando a chorar sem parar. Agarrou num maço de guardanapos e limpou-se furiosamente, evitando novamente as mãos dele.

- Não... ela ficou lá. Deixei-a lá... mas não quero falar sobre essa tipa. Isabel, por favor, eu quero saber de ti. O que aconteceu contigo depois da morte do Filipe? - perguntou emocionado ao relembrar momentaneamente o dia em que encontrou o cão pendurado na sala de yoga, como um animal de abate, e que o levou a um esgotamento. - O Tiago? Ele atacou-te? O que aconteceu depois?

- Eu matei-o. - disse friamente, enquanto algumas lágrimas lhe desciam pela cara e pescoço. - Não é preciso ficares preocupado. Está tudo resolvido.

- Mataste-o? - bradou, agarrando-a à força. Sabia que ela nunca iria correr-lhe para os braços, estava demasiado magoada com ele. - Desculpa, eu devia ter feito isso, devia ter sido eu a acabar com ele... 

- Fiquei louca quando acordaste na clínica e não me conheceste... - gemeu, agarrando-se finalmente a João, que a apertou com força contra si - , atraí-o para aqui e espetei-lhe uma faca da cozinha no peito...- concluiu, chorando o que restava para chorar.

- Isabel... vamos sair da cozinha... - conseguiu dizer, depois de alguns minutos de silêncio e lágrimas - Aqui há muitas facas... - sorriu-se com a piada que lhe surgia inesperadamente.

- Parvo... - Isabel soltou uma gargalhada, sem conseguir largar o abraço apertado. Limpou a cara à t-shirt dele, escondendo-se no seu peito, sentia-se com pouca coragem para o olhar. Estava feia, inchada e ranhosa.

- Anda, vamos sentar-nos aqui na poltrona. - arrastou-a suavemente para o cadeirão fofo e sentou-a ao seu colo. Amava-a tanto que só lhe apetecia gritar de euforia. Finalmente sentia a sua respiração acalmar, mesmo sem a olhar nos olhos sabia que sorria. Beijou-lhe o alto da cabeça, repetidamente, e esperou que Isabel o quisesse enfrentar. Ela foi gradualmente inclinando a cabeça até os olhos dos dois se encontrarem. João beijou-a e todo o seu mundo voltou a girar na rotação certa. Queria amá-la ali mesmo, mas Isabel separou-se do beijo olhando-o duramente por uns segundos.

- Quando foi a última vez que estiveste com ela? - perguntou-lhe secamente. - Não mintas.

- Isabel... o que interessa isso? - aquilo não ia dar bom resultado, pensou, engolindo em seco.

- Responde. 

- Ontem. - disse envergonhado.

- Vou fazer o café, queres torradas? - perguntou sem denunciar qualquer tipo de emoção negativa, o que o confundiu.

- Sim..., pode ser... mas, não estás zangada? - perguntou a medo a sentir-se desorientado.

- Não posso estar zangada, não eras tu. Mas vais ficar de quarentena. 

- Como? - sorriu-lhe, divertido com a piada.

- É isso mesmo... ainda ontem aquela... pessoa esteve contigo. Não esperas que me vá deitar hoje contigo, pois não? 

- Isabel... Isabel... - olhou-a divertido. - Não me provoques que eu vingo-me.


(direitos reservados, AFSR)

(imagem, internet)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 25

 



Quando lhe disseram que a sobrinha estava a viver com um médico em Coimbra nunca lhe passou pela cabeça que Nélia pudesse traí-la daquela forma. Rosário tinha as mãos e as pernas a tremer, e tentava equilibrar-se atrás da carrinha estacionada do outro lado da rua do prédio do Dr João. Esperava que um dos dois aparecesse na rua, ou na varanda, só para confirmar as informações que lhe tinha dado uma antiga amiga que conhecera enquanto trabalhara exclusivamente para o “Dr”, também ela empregada de longos anos de uma família do primeiro andar. Partilhavam histórias que animavam os seus dias, sempre que não se gostava de alguém do prédio ou de uma pessoa que frequentava a casa onde trabalhavam. Fátima telefonava-lhe desde que Rosário fora dispensada do seu trabalho, e semanalmente lá conversavam sobre o que se passava no prédio, como se ainda se encontrassem a meio do dia nas escadas comuns, enquanto gozavam da pausa de almoço e da ausência dos patrões. Uma amiga que estimava, e por isso, tinha em grande conta, nunca duvidaria da sua palavra. Falava-lhe numa Isabel de nariz empinado, mas Rosário só tinha conhecido a Isabel simpática e sorridente, que tinha feito um milagre e entrado naquela casa. Tinha poucas, mas boas memórias dela, mesmo ligeiramente magoada por ter sido demitida, porque sabia que a culpa da desgraça que assolara aquela casa tinha sido sua. Quando abriu a porta ao homem bem falante e ele lhe disse que ia levar o cão dali para fora, Rosário nem pensara duas vezes, ficara tão aliviada por se ver livre do bicho que nem refletira ou confirmara com o “Dr”. Ainda sentia uma leve azia todas as vezes que recordava a voz aflita do patrão ao telefone a perguntar-lhe pelo cão. Tinha muitos remorsos do que fizera, mas se aquilo que ali tinha ido confirmar fosse verdade, a sobrinha ia aprender uma lição, e não havia “Dr” nenhum que a fosse segurar. Encostou-se à carrinha, para descansar a coluna da posição em que estava há algumas horas a espreitar, mas nem precisou de se esconder, o carro do seu antigo patrão aparecia ao virar da esquina, e Rosário conseguiu vê-los aos dois, que nem a olharam, enquanto a viatura passava por ela devagar em direção à porta da garagem. Nélia estava sentada no lugar do “morto”, toda sorridente e bonita. Sempre fora uma estampa, concluiu tristemente, como se sempre tivesse previsto que a beleza da sobrinha fosse a sua maior maldição. Nunca se esforçara em nada, na escola, em casa, na vida, pensava que bastava vestir-se bem e arranjar-se e tudo surgia caído do céu. Ali estava a prova, de como uma rapariga tonta podia viver enganada, e como Rosário falhara com ela e com a irmã. Nélia podia estar iludida com a vida, mas não ia enganar o Dr João, pensou decidida. Contornou a carrinha e dirigiu-se à porta do prédio, tocando para a casa onde Fátima trabalhava, ganhando assim tempo para chegar primeiro ao apartamento e surpreender a sobrinha, já que o Dr João nem sequer se lembraria dela.




- Olá César... - cumprimentou Isabel, sem grande entusiasmo ao ver chegar o psiquiatra. Nunca mais acabava aquela novela na sua vida, remoeu, guardando no jipe as caixas de frutas e legumes metodicamente ordenados com um sentido estético que a deixava enternecida. - Vou vender isto ao Botânico, há lá uma feira de produtos biológicos... - explicou.

- Curioso... - sorriu na direção das caixas - Ele é mesmo artista, não é? E mais curioso, sabes que ele deu-se a este trabalho todo para ir a essa mesma feira?

- Onde queres chegar com essas “curiosidades”? - lançou a sentir-se enfurecer com aquelas insinuações. - Eu sei perfeitamente quais são as qualidade dele! Mas caso seja necessário lembrar-te, ele vive com a “Isabel”! Está mais feliz que nunca, segundo o Comandante Santos, aquele baboso com quem tive de falar. Ele estava particularmente enfeitiçado pela “mulheraça” do João! - bateu a porta da mala do jipe com força.

- Isabel, não fiques zangada, por favor. O Santos é um tolo, - explicou paternalmente - e o João ficou cheio de medo de se encontrar preso, está momentaneamente esperançoso com a segunda oportunidade que a vida lhe deu. - ironizou.

- Então que faça bom proveito. - rematou - Eu estou momentaneamente em Coimbra, e só aqui vou ficar hoje porque tenho pena de deitar tudo isto para o caixote do lixo, que era o que devia fazer, se tivesse juízo. - encarou-o, continuando os seus lamentos catárticos - Mas sou uma parva, cada vez mais me convenço disso. Devia estar furiosa porque o João me sujou a casa toda e desarrumou mais que trinta miúdos deixados à solta num quarto de brinquedos. Tenho tudo de pantanas, a cama revoltada, é preciso lavar os lençóis, tirar a presença dele ali de dentro, aspirar, limpar o pó, e em vez de ir formalizar a queixa na PSP para ele aprender, só quero enfiar-me ali dentro e chorar agarrada à almofada! - berrou.

- É por isso que te vou pedir um último favor. - agarrou-lhe nas mãos frias - Não vás já embora para Castelo Branco. Ele vai voltar, garanto-te. Eu conheço-o, não vai aguentar a rapariga muito tempo. Até acho que é agora, quando ele baixar a guarda com ela que tudo vai terminar. - sentia-se ligeiramente carrasco a dizer aquilo, mas era o que sentia verdadeiramente.

- Então devo aqui ficar à espera que ele ande às cambalhotas com ela e se recorde de mim? - gemeu incrédula.

- Não... - mentiu - Aguarda só uns dias. Ele fugiu para aqui porque só se sentia bem neste local, sem saber porquê. A vida no seu apartamento era-lhe insuportável. Inconscientemente ele recorda-se do que passou aqui contigo, entendes? Quando descobri que era aqui que ele fazia a jardinagem secreta de que nos falou a mim e à Lisa fiquei felicíssimo. - explicou carinhosamente.

- César... eu sei que gostas dele como um filho, e por um filho fazemos coisas impensáveis. O que me estás a pedir é mais que isso, é cruel e impossível. Não vou sacrificar a minha felicidade por ele, por muito que me custe, desta vez vou pensar primeiro em mim. - entrou dentro do jipe e despediu-se com vontade de lhe passar com o carro por cima dos pés. Os homens conseguiam ser brutais, mesmo sem lhe bater.



- Tia? - Nélia engoliu em seco ao ver Rosário plantada à porta de casa de João, com ar de quem ali tinha ido tirar satisfações. Finalmente tinha descoberto onde vivia, lamentou-se a sentir-se entrar em pânico. João ficara na garagem à procura das malas de viagem e teria de a conseguir despachar antes de ele subir, ou lá se ia a sua viagem ao Gerês, e a promessa de uns dias de paixão.

- Nélia...., eu não queria acreditar quando a Fátima me começou a descrever a mulher que vivia com o Dr João... tinha de vir ver com os meus próprios olhos!! - começou, agarrando-a pelo braço, mas com vontade de lhe bater ali mesmo - O que é que tu fazes aqui?! E desde quando é que te chamas Isabel? Ham?! - elevou a voz enervada, sacudindo-a com força.

- Tia... por favor, eu posso explicar tudo. - olhava nervosa a porta do elevador - Mas vamos até às escadas do prédio, aqui podem-nos ouvir. - suplicou, já com as lágrimas a romper.

- Anda lá! - resignou-se Rosário, também pouco confortável com a discussão ali no hall dos apartamentos. Seguiu a sobrinha e notou como a rapariga estava sofisticada, chique, certamente vivia sustentada pelo Dr, nem trabalho devia ter, não saberia fazer nada que pagasse aquelas roupas. Entraram no sector das escadas e Nélia fechou a porta depois de espreitar e se certificar de que João ainda não tinha chegado a casa.

- Por favor, não estrague a minha vida!, o João acha que sou a Isabel, sim, e eu menti. - admitiu - Não lhe disse o meu nome verdadeiro porque sempre fui apaixonada por ele, essa é a verdade. - agarrou as mãos da tia carinhosamente - Desde o tempo em que a tia me contava histórias do seu patrão, sempre o quis conhecer, e foi o que aconteceu num bar aqui em Coimbra, há uns meses atrás. - explicou, com as lágrimas já a correr - Já nos deitávamos antes de ele conhecer a tal Isabel! - desviou o olhar da cara chocada com que a tia recebia as informações íntimas - Sim, eu vinha cá a casa de noite, mas saía antes de amanhecer, porque não me queria encontrar consigo, sabia que não ia entender esta relação. Mas juro-lhe que sempre gostámos um do outro, ele pedia-me para ficar, - mentiu, sem remorsos, teria de justificar a sua presença ali - eu é que nunca quis. Mas eu amo-o muito, nunca fiz nada com más intenções.

Rosário estendeu-lhe um lenço, sem saber o que dizer. Tinha ali ido para a desancar, e agora que ouvia uma explicação sincera ficava desarmada. - E ele também gosta de ti? - questionou-a meio incrédula, como se isso fosse impossível.

- Claro, hoje vamos sair, vamos passar uns dias ao Gerês. - confidenciou fungando. - Ele ainda está muito baralhado, coitadinho. O médico mandou-o espairecer. - sorriu, satisfeita com a reação da tia, que parecia mais calma e resignada. 

- Bem, Nélia, Deus me livre de estragar a tua vida, e se realmente gostam um do outro... - entrelaçou os dedos uns nos outros, envergonhada. 

- Obrigada tia, não se preocupe comigo. - devolveu-lhe o lenço sujo - Só preciso que me faça um favor, - bateu as pestanas húmidas com as lágrimas - saia por aqui, não deixe que a vejam. O João não se lembra de si, mas não quero perturbá-lo, vou fingir que nada se passou. - concluiu com alguma frieza na voz. Sentia Rosário novamente submissa e era imperativo despachá-la sem que ninguém a visse.

- Sim, claro, querida. - o olhar da sobrinha mandava-a descer imediatamente as escadas - Façam boa viagem, e telefona-me de vez em quando, a dar notícias do Dr... - pediu, já a descer obedientemente. Talvez houvesse alguma esperança para a rapariga, pensou respirando fundo. Não conseguia perceber como um Dr daqueles tão distinto podia engraçar-se pela sobrinha, mas se estavam felizes, era o principal. - Adeus!

Nélia respirou de alivio, quase que o seu dia acabava mal, mesmo antes de começar. Pensou rapidamente no que poderia dizer a João, se ele percebesse que tinha estado a chorar, ou andasse à sua procura. Um leve tremor nas mãos não a deixava pensar claramente, passou as mãos pelo cabelo, respirou fundo algumas vezes e saiu do vão das escadas, apressando-se a entrar no apartamento. Constatou que ainda estava escuro e sem sinais de João, e relaxou, tratando de se ir recompor na casa de banho. Ele deveria estar a chegar, e queria muito que a beijasse novamente como de manhã cedo quando o foi ver à esquadra. Passou uma base leve na zona dos olhos, eliminando qualquer vestígio de vermelhidão e passou um gloss nos lábios, ganhando instantaneamente coragem para o seduzir. Ajeitou o peito generoso na blusa e saiu para a zona comum da casa, onde já ouvia barulhos. Quando entrou na sala sentiu as mãos frouxas e um formigueiro na barriga, João olhava-a como nunca tinha sido olhada, estacou confusa, dominada pela intensidade com que ele a observava.

- O que foi?... - perguntou ansiosa, com a respiração acelerada.

- Temos perdido tanto tempo, querida... - disse, caminhando na direção dela, e largando tudo o que trazia nas mãos. Sempre ali estivera aquela mulher e só agora a via. Isabel deu alguns passos atrás, o que o excitou, gostava particularmente de a ver desarmada, sem aquela arrogância que a caracterizava. Assim que a alcançou tirou a t-shirt e encostou-a a si, se Isabel continuasse assim, com o olhar perdido, talvez a conseguisse amar. Beijou-a devagar, em adoração, queria muito amá-la, sentia saudades daquilo, de fazer amor. Lembrava-se todos os dias do beijo que tinha dado a Marta, de como fora doce e forte, e queria conseguir fazê-lo com Isabel. Precisava disso. Conduziu-a ao quarto, cada vez mais convencido de que ia esquecer a pele quente e macia que sentira debaixo do roupão de Marta, a suavidade da sua boca e o cheiro a flores. O perfume de Isabel sobrepunha-se às suas memórias, e toda a voluptuosidade da namorada lhe quebrava a ideia da forma do corpo de Marta, trazendo-o forçosamente para aquele quarto cinzento. Olhou-a uns segundos, parando para assimilar tudo aquilo, mas Isabel era impetuosa, e parecia precisar ainda mais dele, o que o reconduziu ao momento. Despiram o que restava das roupas, e João decidiu não abrir mais os olhos, permitindo-se senti-la sem imagens, limitando assim um dos sentidos e concentrando-se no sexo. Sabia que não seria difícil terminar o que ele mesmo começara, e esforçou-se por corresponder, para não ser demasiado rápido e satisfazê-la convenientemente. Perguntava-se porque continuava a teorizar aquele momento, e racionalizar o que não era racional, abriu ligeiramente os olhos mas fechou-os logo de seguida, ligeiramente incomodado com a cara de prazer de Isabel. Aquilo não o excitava como devia, lamentou-se, mudando de posição pois estava quase lá e ainda era cedo. Tinha-a levado para o quarto, não a podia desiludir, pensou, retomando o ritmo. Isabel estremeceu debaixo de si e João suspirou de alívio, terminando também a sua prestação. Deixou-se ficar alguns segundos a prolongar a união dos dois, permitindo que ela se acalmasse e aproveitando o momento em que não tinha de fingir nada.

- João, abraça-me com força... - pediu, enternecida com tudo o que tinha acontecido. Fora sem dúvida um ato de amor, como nunca experimentara antes. - Estás bem? - perguntou-lhe, preocupada com o silêncio dele.

- Sim, querida. - beijou-a na testa, da forma mais carinhosa que conseguiu, a sentir-se um traste. - Queres almoçar aqui em casa, ou comemos pelo caminho? - lançou, a tentar despachar a conversa melosa que antevia. - Ainda vai demorar um bocadito até chegarmos ao Gerês... posso preparar-te qualquer coisa...

- Eu faço! - respondeu decidida e animada. - Mas antes vamos tomar banho? - sorriu-lhe provocadoramente. Agora que experimentara aquele tipo de sexo com sentimentos queria mais, muito mais. E ele também parecia querer, percebeu pela reação física instantânea que aquela pergunta lhe causara.

- Sim, claro. Vai andando que vou procurar toalhas para nós. - balbuciou com a garganta a secar. Não sabia bem porquê, mas o seu corpo parecia não corresponder à cabeça, racionalmente fugiria daquela proposta, mas a falta de intimidade dos últimos tempos pareciam dominar o seu sexo. Limpou a palma das mãos às coxas, enquanto Isabel desaparecia em direção à casa de banho, engoliu em seco e procurou as toalhas, enquanto respirava profunda e compassadamente. “Om... Shanti...” disse a si mesmo, surpreendendo-se com aquelas palavras. Mas pareciam funcionar, “Om...Shanti...Om...”, repetiu, já a caminho do duche. Entrou e a visão daquela mulher toda só o fez ficar mais ansioso. Isabel agarrou-se-lhe ao pescoço e calou as vozes estranhas, reclamando-o de forma demasiado intensa. Fez-lhe a vontade, esforçando-se por ser convincente e despachou o sexo. Queria mesmo comer qualquer coisa e conduzir durante umas horas. Certamente que Isabel não o iria perturbar pelo caminho, com um bocado de sorte adormecia e ele podia ouvir música e pensar. A ideia de ir ao Gerês passar uns dias surgira-lhe do nada, mas a cada minuto que passava tornava-se mais penosa. Já não tinha bem a certeza de que queria ficar longe de Coimbra com uma namorada apaixonada, e sem conseguir sentir nada por ela.


  

- Olá João! Então?, ainda és vivo? - perguntou Salvador animado com o telefonema surpresa do amigo. - Por onde andas?

- Tudo bem, Salvador?, olha, estou a arrumar as malas no carro para ir ao Gerês passar uns dias...- explicou.

- Ah, fazes bem, mudar de ares. Se pudesse ia contigo, estou farto desta merda toda! - ralhou, dramatizando com as folhas em cima da secretária onde fazia a contabilidade do bar.

- Pois... desta vez não vai dar... vou em passeio “romântico”, fica para a próxima, mas estou a ligar-te por outro motivo. - adiantou engolindo em seco.

- Então? Diz lá!, Desculpa, só um aparte, ainda namoras aquela bomba loira? - perguntou curioso.

- Sim, ainda, e o nome dela é Isabel. 

- São todas, não é? - gozou - Mas diz lá, porque é que me estás a ligar?

- Bem, eu sei que andaste comigo na faculdade, a tirar psiquiatria. E estou a precisar de um conselho, porque não me recordo de nada. - começou por explicar meio encavacado com o assunto.

- Eu não estou autorizado a dar consultas, desisti do curso, mas se for só um conselho, sou homem para te resolver já a questão.

- Não é conselho desses, é que... bem, tenho-me sentido mais alterado, já tomo medicação diária, mas acho que preciso de mais. Isto não está a funcionar. Pensei que pudesses dizer-me até quantos comprimidos de ansiolítico posso tomar por dia.

- Há uns muito bons, chamados sexo!, comigo funcionam, já experimentaste esses? - disse brincalhão, e desejoso de saber se a bomba realmente era assim tão explosiva como visualmente parecia.

- Sim, já tomei dois desses hoje e não funcionou. - rosnou, a perder a paciência com as parvoíces do amigo. - Anda lá, posso tomar mais ou não?

- Bem, com duas doses de orgastriticum e ainda estás nervoso... não sei... - gozou, ficando no entanto surpreendido com aquilo. - Olha, manda-me por sms o nome do que tomas, e eu vou ver. Depois ligo-te a dizer, assim de cor tenho medo de estar a inventar e depois morres e eu fico a sentir-me uma merda. Mas, dizias tu, vais de lua-de-mel para o Gerês? Muito bem... vê lá se não tens uma overdose de mulher e te ficas lá numa cama de hotel com um sorriso de orelha a orelha. - provocou-o, sentindo uma ponta de inveja da sorte do amigo. 

- Duvido... - disse secamente, nada disposto a pensar na cama de hotel. - Vou mandar-te então o sms, e despacha-te a responder, estou mesmo mal. Obrigado Salvador, agora tenho de desligar, a Isabel está a chegar ao carro. Tchau. - desligou o telefonema e colocou o melhor sorriso quando lhe abriu a porta cerimoniosamente. Sabia que ela gostava daqueles salamaleques, já tinha percebido, e estava decidido a apaixonar-se por ela, e para isso era importante mantê-la de bom humor.

- Vamos? - perguntou-lhe enquanto colocava o cinto.

- Sim, vamos. - Isabel esticou-se e exigiu-lhe silenciosamente um beijo apaixonado carregado de luxúria.

João recompôs-se do beijo e desejou que Salvador se despachasse a enviar a resposta. “Om Shanti...Om....”, mentalizou, e limpou a palma das mãos às calças.



- Tu, o quê? - surpreendeu-se Elisabete ao ouvir as confissões do marido enquanto almoçavam.

- Lisa, não sei o que me deu...- balbuciou nervoso com o semblante zangado da mulher - Mas ela ainda gosta tanto dele, dá para perceber... se aguentasse por aqui mais uns diazitos... ele de certeza que vai “acordar” para a vida entretanto! - tratou de argumentar, tentando redimir-se - Sabes perfeitamente que ele vai procurá-la quando isso acontecer. Só queria garantir que ela não desaparecia sem deixar rasto.

- Francamente César! Isso nem parecem coisas tuas. Manipular situações e forçar acontecimentos... Sabes tão bem quanto eu que ele namora com aquela tipa, e não devem andar só de mãos dadas! E queres que a Isabel fique tipo freira no convento, à espera que o milagre se dê?, enquanto o João vive com outra? - berrou - Eu nem te reconheço... Sinceramente, nem sei como tiveste coragem de lhe dizer uma coisa dessas... - acrescentou já com um tom de desilusão que sabia que perturbaria o marido.

- Agora já está... - redimiu-se, constrangido.

- Pois está, está! - levantou-se e pegou no telemóvel, procurando o número de Isabel, e estendendo o aparelho ao marido, que ficou de olhos arregalados atónito de surpresa. - Vamos! Pede-lhe desculpa e diz-lhe o que sabes ser o mais acertado. César, a Isabel é uma mulher boa, não merece nada disto, diz-lhe isso. Diz-lhe para seguir com a vida dela, ela precisa disso. Não deixes que o amor que tens pelo João te ponha cego. - esticou mais a mão e o marido pegou no aparelho relutantemente, carregando no botão de chamada.

- Estou?, Isabel?, Olá, é o César... Sim, este telefone é o da Lisa... - levantou-se da cadeira, a sentir-se corar, desajeitado e comprometido. - Bem, estou a ligar-te para... lamentar o que te disse hoje cedo... sabes, falei sem pensar... e fiquei incomodado com isso, não ficava bem comigo próprio se não te dissesse que... sim, eu gosto muito do João, é um facto... mas também gosto muito de ti... e bem, deves seguir com a tua vida, mereces ser feliz... é claro que não deves ficar com esperanças de que o João volte a correr... e se recorde de tudo, pois claro. - atrapalhava-se cada vez mais, a sentir-se observado pela mulher.- E pronto, basicamente era isto que te queria dizer... espero que sejas muito feliz... e pronto... Serão entregues... claro, beijinhos também da Lisa para ti... e felicidades... adeus, adeus... até um dia.- desligou o telefonema encarando a mulher que sorria com malícia. - Então? Que mudança brusca é essa? Porque sorris assim?.... Lisa? O que foi? - sentia-se confuso.

- Ai, que anjinho que tu és... homem de Deus... - soltou uma gargalhada sonora, satisfeita com o sucesso que tinha sido aquele telefonema. - Desculpa César, mas eu não sei como podes ser um psiquiatra tão aclamado... às vezes és um bocadinho lento, não? - deu-lhe um beijo na bochecha - Queres café?

- Lisa, tu fizeste de propósito, não foi? Não ficaste nada zangada comigo, querias é que eu manipulasse a Isabel mas de outra forma, do modo reactivo... - foi pensando em voz alta, incrédulo com a mulher - Porque agora ela vai querer ficar... porque eu lhe sugeri que fosse ser feliz! - concluiu espantado - Lisa, tu és um génio.





Isabel parecia não querer ceder à monotonia da viagem, colocando o rádio na MegaFM, estação que João descobriu odiar, e cantando a plenos pulmões músicas agressivas, com batidas excessivas e letras de pouco conteúdo. Um pouco à sua própria imagem, concluiu resignado, enquanto se tentava abstrair de toda aquela energia cansativa. Estaria a ficar velho demais para aquela animação toda?, perguntou-se, quando o aviso de posto de gasolina próximo lhe trouxe uma alegria súbita. - Vamos parar agora a seguir, ok? Preciso de ir à casa de banho e beber uma água. - informou, sorrindo-lhe a contragosto.

- Fixe! Estou mesmo a precisar de um café! - exclamou animada.

João nem queria imaginar o que seria Isabel com mais cafeína..., suspirou, enquanto entrava na zona da restauração e procurava um lugar de estacionamento. Parou o carro e Isabel saiu disparada, deixando-o ligeiramente para trás, o que se mostrou útil, pois o seu telemóvel apitou em sinal de nova mensagem e João aproveitou a solidão para ver com calma o que diria Salvador sobre a dosagem dos comprimidos. Para seu espanto não era o amigo que o contactava, mas “Ganesha”, o que lhe provocou um estremecimento involuntário das pernas. Olhou nervoso em volta, para se certificar de que Isabel não estava por perto e limpou as palmas das mãos nas calças, sentindo um sorriso a florescer no rosto, pela primeira vez no dia. Abriu a mensagem e ficou alguns segundos a assimilar tudo o que sentia. Nunca uma foto de caixas de courgetes, tomates e alfaces lhe parecera tão entusiasmante. Ela tinha ido substituí-lo na feira, voluntariamente, e sem sequer terem combinado nada. O que significaria aquilo? Era ela, a Isabel Fontes Pereira e Castro, a Ganesha. Um barulho no vidro sobressaltou-o, e Isabel olhava-o amuada, aborrecida por estar à espera.

- Então? Vens ou não vens? - perguntou impacientemente.

- Sim, sim... - saiu do carro, colocou o telefone no bolso e caminhou obedientemente atrás dela, cheia de atitude.

- Pede um café para mim, vou à casa de banho! - mandou, dando-lhe um beijo em remissão pela rispidez e deixando-o só.

- Um café, uma água... e pode ser uma queijada daquelas, mas a mais queimada que tiver, por favor. - despachou a compra e tornou a olhar a foto que Ganesha lhe tinha enviado. Nesse momento recebeu outra, e abriu-a rapidamente, tornando a olhar em volta para se certificar de que Isabel ainda não estava por perto. Desta vez as caixas estavam vazias, e um boneco de smile simbolizava o sucesso das vendas, traduziu. Ficou estupidamente feliz, orgulhoso da jardinagem que andara a fazer e que produzira aquilo tudo. Aquele contacto dela só podia significar uma reviravolta na situação entre os dois. Não sabia bem o que deveria dizer em resposta, e num ímpeto, fotografou a queijada e escreveu “a celebrar” como legenda, adicionando um smile. Carregou no enviar e escondeu o telefone imediatamente, ao ver Isabel a aparecer ao longe. Comeu a queijada que lhe pareceu uma delícia, como nunca tinha provado na vida. A sua disposição melhorou significativamente, mas não durou muito tempo, depois de Isabel lhe dar a mão e o olhar apaixonada, cravando-lhe uma culpa funda que o acompanhou durante o resto da viagem.



Um hotel despertou-lhe a atenção, e decidiu ir saber informações sobre condições e vagas, estacionando o carro e deixando Isabel a retocar a maquilhagem que parecia nunca ser suficiente. Entrou na receção e um funcionário animado cumprimentou-o com algum à vontade, como se já se conhecessem antes.

- Bom dia! Em que posso ajudar? - perguntou o rapaz alegre.

- Olá bom dia, tem vagas? Queria ficar uns dias aqui pelo Gerês, precisava de um quarto com cama de casal. - explicou, sem perceber o sorriso demasiado franco do outro.

- Ah, sim, claro. Penso que temos um excelente quarto ainda disponível, deixe-me só confirmar. - disse, concentrando-se no computador. - Sim, temos, também vai precisar da cama extra para o “Filipe”? - perguntou, satisfeito consigo mesmo e a sua memória prodigiosa.

- Não... - balbuciou - Desculpe, eu já aqui estive antes? - perguntou confuso.

- Sim, não se recorda? Veio com uma senhora bonita e um cão. O Filipe. - explicou, a sentir-se baralhado. Teria feito confusão e estaria a cometer uma indiscrição?

- Ok, não interessa. - concluiu, tentando concentrar-se no que ali tinha ido fazer. - Vou ao carro buscar as malas, reserve então esse quarto. - Tirou da carteira o cartão de cidadão e estendeu-lho para formalizar a reserva. Isabel entrou nesse momento na receção e agarrou-se à cintura de João possessivamente, olhando depois em volta e dirigindo-se ao WC sem sequer dar os bons dias. - Não era esta a senhora bonita da outra vez, pois não? - perguntou ao rapaz corado.

- Não...

- E como era a outra senhora bonita?

- Morena, mais pequena, não tão... - pigarreou desconfortável - Bem, mais magra, mais sorridente, assim um tanto, vá, digamos, excêntrica.

- Excêntrica? - perguntou divertido com a descrição de Ganesha.

- Sim, sabe, roupas largas, tipo hippie, mas não da forma maltrapilha, se é que me entende.

- Claro, compreendo. Completamente diferente desta senhora que veio hoje comigo. - acrescentou.

- Sim, completamente diferente... - confirmou, corando violentamente assim que Isabel reapareceu na receção.

- Então? Ficamos aqui? - perguntou, tornando a enlaçá-lo e deixando-o embaraçado.

- Sim querida, estamos só a terminar o pagamento, podes ir até ao bar, se quiseres, tomar qualquer coisa. Eu trato de tudo. - disse-lhe, fingindo-se descontraído com aquelas demonstrações de afecto..

- É só assinar aqui, senhor. - pediu profissionalmente o rapaz. - Precisa de ajuda com as malas?

- Não, obrigado. E diga-me uma coisa, esse tal cão, como era? Pequenino? - continuou o questionário assim que Isabel se retirou.

- Não! Era enorme! Mas muito bem comportado. Coitadinho, depois daquele acidente lá nas piscinas naturais só queria comer e dormir. E recuperou bem? A pata ficou boa?

- Não me recordo. Fiquei amnésico há uns tempos atrás. - confessou, sem complexos. - E por falar nisso, confirme-me só o nome da minha companhia nessa altura. Deve ter aí registado, não?

- Sim, claro. - disse prestativo - Mas não se recorda de nada? Extraordinário... nunca tinha ouvido falar de uma coisa assim... - percorria os registos do verão enquanto falava - Aqui está!, Dr João Marques e Marta, mais extra de cama de cão “Filipe”, obrigou-me a menina Marta a acrescentar. Ela não queria que o tratassem por cão. - sorriu divertido.

- Vou então ao carro, obrigado pela ajuda. - caminhou pensativo, meio perdido nos seus quebra-cabeças, cabisbaixo, de volta ao carro. Seria assim tão complicado perceber o que tinha acontecido a Marta? Se ali tinha estado no verão com ela, e com o cão, onde encaixava Isabel naquilo tudo? Fechou a mala e olhou o hotel que parecia mais familiar, agora que descobrira que não era a primeira vez que o visitava. Parecia que o seu subconsciente o levava pela mão e direcionava a locais e pessoas que já tinham feito parte da sua vida. Tirou uma foto à fachada do hotel e enviou-lhe sem legenda. Não sabia o que haveria de dizer, ficaria à espera do seu contacto para ir percebendo o que ela queria. Desejava que o quisesse, como Isabel, por quem não conseguia sentir nada. Uma azia subiu-lhe à garganta quando o verbalizou a si mesmo em confirmação. Todo o seu corpo lhe dava alertas sobre o que era certo e errado, e enganar Isabel não iria ser certamente fácil.


(direitos reservados, AFSR)

(imagem, internet)

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 24

 



- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...



 Acordou sobressaltado, com a sensação de culpa, como se tivesse cometido um erro. Que raio de sonho... aquele miúdo aparecia-lhe outra vez, mas agora era seu irmão, vira-o quase perfeitamente, e uma família à beira rio a fazer um piquenique, todos alegres, mas demasiado longe para que os conseguisse analisar. Levantou-se e foi tomar banho, pensando naquele pormenor do avô engenheiro agrónomo, seria aquilo uma recordação ou só imaginação? O que teria acontecido à sua família?, ainda era novo, deveria ter pelo menos os pais vivos, ou tios, primos... Aquelas dúvidas assombravam-no, naturalmente, desde que recuperara a consciência e começara a pensar mais claramente. À medida que os remédios do internamento iam sendo mais espaçados e menos fortes tudo aquilo o perseguia. E mesmo passado bastante tempo desde que tivera alta, ainda não sabia nada sobre si, nem havia resposta em sua casa, álbuns, cartas, postais, nada. Aquele sítio parecia asséptico e alienígena, e isso consumia-o cada vez mais. Precisava de calor, de cores, de um pouco do que o fazia sentir a casa da Ganesha. Acabou o banho e decidiu vestir a roupa mais prática que encontrasse. Ia voltar à jardinagem voluntária, não queria ali ficar nem mais um minuto. Levaria as coisas para fazer o café, pão, fiambre, e algo para almoçar. Tinha visto lá no quintal umas beringelas a passar do ponto, serviriam para assar, só precisava de levar queijo mozzarela e uns orégãos. Tomates maduros também lá havia, e tinha mesmo de os comer, o frio começava a dar cabo de tudo. Depois de muito procurar pelos armários da casa, encontrou um chapéu estranhamente parecido com o do sonho, senão idêntico, com aspecto de ser uma recordação, com bastantes anos e marcas de uso. Colocou-o na cabeça e sentiu-se animado com aquele dia. Reuniu tudo o que precisava para se manter durante o dia na quinta e só por prevenção, e porque poderia ficar muito cansado e dar-lhe o sono, colocou a medicação da noite no saco. Voltou atrás e meteu roupa interior e algumas t-shirts também, e se se sujasse? Teria de ter roupa para depois trocar... Mas se ia lá tomar banho teria de levar o seu gel de banho, e escova de dentes... podia ser necessário... Estava quase a sair de casa quando se lembrou de que tinha deixado a "ganesha" no seu antigo quarto, onde agora dormia a namorada sozinha. Entrou pé ante pé, pegou na estatueta e saiu, satisfeito por se ter lembrado daquele objecto. Seria suficiente aquele café?, perguntou-se, imaginando que tinha ali uns bons dias longos de trabalho e precisaria de se manter bem ativo. Pegou em mais dois pacotes ainda fechados, guardou-os e saiu, fechando a porta devagar, suspirando de alívio. Como é que alguma vez podia ter sido feliz ali? Era impossível... 


- Bom dia! - acenou ao sorridente vizinho que todos os dias passava pelo portão da quinta no que parecia a João ser uma mistura de curiosidade, desconfiança e passeio higiénico. Trazia consigo um cão grande à trela, talvez para não se sentir tão desprotegido, já tinha uma certa idade, e todos os dias se demorava um pouco mais na passada, atrasando-se propositadamente, a ganhar coragem de esticar a conversa com aquele jardineiro empenhado. João sabia que aquilo era de loucos, estar a tratar de um jardim de uma casa abandonada, viver lá dentro como se tudo lhe pertencesse, mas a sua vida não era normal em nenhum sentido, aquele era só mais um pormenor excêntrico. E fazia-lhe bem, não queria voltar para o apartamento, lá aborrecia-se. Ainda não tinha aparecido a polícia, por isso, mantinha-se descansado e internamente absolvido.

- Essas courgetes têm crescido que é uma maravilha! - comentou o velho, sorrindo-lhe e estacando do outro lado da grade à espera de conversa.

- Pois têm! Crescem com uma rapidez, se as regar bem, então... não quer levar umas? Já não sei o que fazer a tanta courgete... - sorriu, esfregando a testa com as costas da mão.

- Também lá tenho, obrigado. Sabe o que podia fazer? Todos os sábados há um mercado livre de agricultura biológica no Jardim Botânico. Porque não vai lá despachar isto tudo? Não deve ser só courgetes que este terreno dá a mais... - sugeriu.

- Isso é uma excelente ideia! - exclamou, poisando as mãos no cabo da enxada e sentindo-se animado com aquela sugestão. Detestava a ideia de deitar fora toda aquela abundância. - Talvez vá lá amanhã, há aqui tanta coisa que se vai estragar daqui a uns dias... - pensou em voz alta, olhando em redor. - Obrigada pela sugestão.... Sr...?

- Joaquim. - esticou a mão por dentro da grade a formalizar aquela apresentação e à espera de um nome de volta.

- João, prazer. - respondeu, satisfazendo a curiosidade do "seu" vizinho.

- Bem, então bom trabalho! - acenou em despedida – Vamos, Fiel! - continuou a sua caminhada matinal, ligeiramente aliviado por não sentir má impressão do rapaz. Talvez fosse um empregado da menina Isabel, embora achasse difícil que um jardineiro viesse trabalhar de BMW, e não um qualquer, um carrão demasiado vistoso, coisa para custar o valor de uma casa... E mais que as posses do rapaz, o que realmente o intrigava era o facto de que muitas vezes se apercebera de que ele pernoitava ali. Conhecia a casa, só tinha um quarto, dormiria ele no quarto da patroa? Era um mistério cada vez mais complicado. O melhor seria tirar as suas dúvidas diretamente com os Fonte Pereira e Melo, não queria ser cúmplice de nada.



- Isabelinha, o seu pai pediu para avisar de que quer falar consigo, no escritório. - murmurou gravemente Adelaide, como se o local da conversa fosse o presságio de algo muito sério. 

- Obrigada Dazinha. Sabe do que se trata? - perguntou, terminando o café aromático que a consolava daquele frio de fim de outono de Castelo Branco.

- É claro que não! - explicou, retomando as suas tarefas na cozinha, sob o olhar da sua menina que finalmente recuperara o apetite e comia satisfeita o lanche caprichado. - Apenas recebeu um telefonema de Coimbra, eu atendi e passei-lhe a chamada. - olhou-a discretamente, sabia que aquele pormenor a iria incomodar. - Era o seu vizinho, o Sr Joaquim. Deve ser alguma coisa sobre a sua casa. Não se preocupe.

- Afinal sabias qualquer coisita. - gracejou, sorrindo-lhe provocadoramente. - Obrigada, estava maravilhoso o café. - deu-lhe um beijo de fugida e respirou fundo para ir enfrentar a tal conversa. O pai era sempre muito reservado e raramente desperdiçava tempo, se a chamara teria com certeza um bom motivo. Quantas vezes tinha desejado ser filha de alguém mais simples e acessível, menos importante e ocupado. Só lhe sobravam sempre as conversas difíceis ou os raspanetes.



- Estou? João?, posso saber onde andas?!

- Olá Isabel, boa tarde, tudo bem? - ironizou, detestava aquela falta de educação da namorada. - Estou quase a chegar a casa. Já falamos. - desligou sem cerimónias, aborrecido. Isabel interrompia sempre os seus momentos de transe e sonho acordado, enquanto ouvia algumas músicas no carro, parecia que fazia de propósito, só para chatear. Ultimamente deixava-se perder nas suas fantasias, entusiasmado com a satisfação que retirava do trabalho no jardim. Só se sentia mais desanimado quando era inevitável ir dormir ao apartamento. Tinha prometido ao César que jantariam com ele e com a Lisa, e já estava ligeiramente atrasado, perdera imenso tempo a organizar os produtos que levaria no dia seguinte para a tal feira que o vizinho sugerira. Ainda não tinha decidido se ia contar essa sua atividade comercial ao jantar, talvez fosse melhor guardar para si mesmo, a namorada podia estragar-lhe os planos com uma birra qualquer, mas de bom agrado cancelaria todos os planos da noite para dormir na cama dela e continuar a fingir que aquela era a sua casa e que a Marta voltaria de uma breve ausência para visitar familiares. Ele não podia deixar o jardim abandonado, então ficara, mas já estava cheio de saudades, e a casa começava a ficar ligeiramente caótica sem ela, pó nas estantes, roupa para lavar, tinha de ganhar coragem e arrumar tudo antes que ela voltasse. Estacionou o carro e suspirou, desligando o motor do veículo ao mesmo tempo que parava com o sonho agradável. - Vamos lá, Dr João.



- Sim, claro, fico a aguardar então, obrigado Santos. - desligou o telefonema so o olhar curioso da filha e acenou-lhe que se aproximasse. - Senta-te Isabel. Desculpa só ter podido receber-te a esta hora, mas valores mais altos de levantam.

- Boa tarde pai, o que se passa? A Adelaide disse-me que queria falar comigo. - obedeceu à ordem e colocou a sua melhor pose. 

- Sabes quem era ao telefone? - lançou, enquanto endireitava papéis que estavam na sua frente espalhados na secretária, sem a olhar diretamente.

-  Não pai, quem era? - se não a olhava era porque a ia informar de algo que não gostaria de ouvir. Já começava a ficar farta daquele paternalismo do século passado e da postura obediente que tinha de manter. Como sentia saudades da sua casa em Coimbra, quando era obrigada a conviver com o Sr Dr Fontes Pereira e Castro. 

- O Comandante Alberto Santos, na PSP de Coimbra. Um antigo conhecido meu do tempo da faculdade – esclareceu – Ele vai amanhã mesmo ver o que se passa lá no sítio onde moras quando estás em Coimbra. Pelos vistos anda lá um sujeito a apropriar-se da tua casa, usando-a como se fosse dele. Recebi um telefonema do Sr Joaquim preocupado com a situação. - enumerou com autoridade, como se o assunto estivesse arrumado.

- Um sujeito? Mas o Sr Joaquim sabe quem é? Como se chama? - por momentos temeu que o Janota lá andasse a arranjar o jardim e que fosse prejudicado com a impetuosidade do pai.

- João, mas certamente é um nome falso. - rematou.

- Meu Deus... - enlouqueceu de vez, pensou, sentindo as bochechas a aquecer e um remoinho a crescer no estômago. - Mas o que disse exatamente o Sr Joaquim? Como assim, a apropriar-se da minha casa? - gaguejou, a tentar disfarçar o mais possível o seu choque.

- Anda para lá de enxada na mão, de volta do jardim, mas o mais grave é que ele usa a tua casa. Como entrou, não faço ideia, mas o Sr Joaquim garante que ele dorme lá de vez em quando. Deve ser um daqueles parasitas hippies, sem respeito pela propriedade alheia. Mas o Alberto já está ao corrente de tudo, não te preocupes, amanhã cedo acaba a ousadia do tipo. Depois tens de lá ir formalizar a queixa, e ver os prejuízos, mas para já vamos ver se é apanhado em flagrante. - explicou, olhando-a a terminar simbolicamente a conversa.

- Ha... pois, claro, aguardemos então. Obrigada – levantou-se meia dormente e saiu do escritório, sem saber o que fazer. O seu instinto dizia-lhe que telefonasse ao João e esclarecesse aquilo tudo, mas a história parecia-lhe tão excêntrica que lhe custava acreditar que fosse ele a andar de enxada na mão. Podia ser uma grande coincidência, e o maluco ter inventado o nome de João para calar o Sr Joaquim. Faria uma figura de idiota se lhe ligasse e ele se risse daquela sugestão apalermada de que andava a brincar aos jardineiros. Ele nem sequer sabia distinguir uma erva daninha de uma flor... Caminhou sem perceber até ao quarto, fechou a porta e pegou no telemóvel desligado que mantinha na gaveta da mesa de cabeceira. Ligou-o e uma série de notificações sonoras de tentativas de contacto e mensagens escritas caíam sem parar. Janota encabeçava a lista dos mais persistentes, para sua angústia e tinha de admitir, desilusão. Devia-lhe um telefonema, mas João desistira dela, e era só nisso que conseguia pensar.


- Qualquer que seja o motivo que te fez rejuvenescer assim, parabéns!, estás de facto com muito melhor aspecto! - exclamou César, colocando mais vinho no copo – Afinal conta lá, mata-nos a curiosidade, andas a fazer corrida? Pareces mais bronzeado, até mais tonificado! - acrescentou bem disposto.

- Não, nada disso, ando a fazer jardinagem. - respondeu, não adiantando muito mais e continuando a comer.

César e Lisa entreolharam-se perdidos, aquilo era uma novidade. Isabel também parecia espantada e isso ainda os intrigava mais.

- Jardinagem? - exclamou Lisa numa tentativa de continuar o tema e saber mais – Isso é muito interessante. E onde fazes tu jardinagem?

- Bem, isso é segredo, é o meu refúgio, se vos disser também vão querer ir para lá e acaba-se o meu sossego! - gracejou, fugindo à verdade que o fazia sentir-se desconfortável. Ninguém iria achar correto ele estar a invadir a casa da Marta sem autorização.

- E essa jardinagem dura dias e noites inteiras! - acrescentou Isabel, furiosa com as mentiras dele. Só podia andar com outra mulher, não havia outra explicação.

- Não sejas ciumenta, Isabel, - ironizou, ligeiramente picado com o rumo da conversa – sabes que só tenho olhos para ti. - concluiu, não esclarecendo a plateia sobre as noites que passava fora.

- Bem, e que tipo de jardinagem estamos a falar? - interrompeu César – Flores? Canteiros?

- Tudo! Agricultura também. César, acho que me vou virar para este ramo, descobri que tenho bastante jeito para a terra. Mas deixemos de falar de mim, como vão as aulas de yoga Lisa?

- Olha, uma porcaria, para ser sincera! A nova professora não sabe nada, é uma convencida, todos os dias leva um conjunto novo, super colado ao corpo... deve ser para nos fazer sentir bem... - bufou, ofendida.

- Querida, tu estás ótima! Não acredito que essa miúda tenha a tua forma! - elogiou César, sorrindo-lhe.

- A idade está a fazer de ti mentiroso... enfim!, - suspirou – não quero falar dessa "Sandra", que acho que é o nome dela. Já me basta as saudades que tenho da M... - calou-se repentinamente, chocada com a indiscrição que lhe ía saindo. - E sobremesa? Alguém quer? - levantou-se e comelçu a recolher os pratos, irritada consigo mesma.

- Eu vou-te ajudar. - João levantou-se e pegou na travessa do que restava da "Lasanha de 6ª feira à noite", e caminhou atrás de Lisa. Entrou na cozinha e ganhou coragem para continuar a conversa que realmente lhe interessava – Diz-me uma coisa, lá na escola de yoga não estão mesmo à espera que a Marta volte? Ela despediu-se? 

Lisa poisou os pratos na bancada, aproximou-se dele e fez-lhe uma festa na cara, maternalmente. Era tão bonito ver o amor que eles sentiam um pelo outro, e ao mesmo tempo tão triste que o destino os estivesse sempre a boicotar, pensou, enternecida – Querido, não percas a esperança, eu sempre soube que se conhecesses a Marta a irias amar. Ela é adorável e tu também, e desculpa a franqueza, aquela rapariga não faz o teu género, porque continuas a viver com ela?

- Ela não tem família, se a mandar embora de minha casa fica no olho da rua... nós dormimos em quartos separados, não há nada entre nós, nem tenho vontade de que isso aconteça. - esclareceu – Mas então foste tu que nos apresentaste? A mim e à Marta? 

- Bem, o César vai-me matar se souber que estou a contar-te coisas... - encostou ligeiramente a porta – mas não, vocês conheceram-se por casualidade lá na clínica onde tu trabalhavas.

- Ah, porque ela era lá enfermeira, certo?

- Hum... não, porque ela fazia lá voluntariado na altura e cruzaram-se um dia.

- Mais uma mentira na história... - lamentou-se – Então e onde entras tu nisto tudo?

- Eu fiz um jantar aqui em casa e convidei-a, tu já vinhas cá todas as sextas-feiras, e deu logo para perceber que estavam caidinhos um pelo outro. - sorriu sonhadoramente.

- Então e a Isabel? Eu não namorava já com ela? - tudo o que lhe iam dizendo fazia sentido, menos aquela namorada, parecia deslocada na sua história.

- Pois, tu conhecias a "isabel" das tuas noitadas, acho que tinham alguma intimidade, mas isso não interessa nada, não entendes? Tudo é factual, são só factos. Aquilo que a tua amnésia tirou, também pode ser visto como positivo. Concentra-te no que vais sentido e acredita nisso. Se esta rapariga não te diz nada, não tens obrigação nenhuma em viver com ela. Resolve isso, a Marta vai voltar, eu tenho quase a certeza, e se não voltar, metes-te no carro e vais buscá-la! Mas acaba esta farsa primeiro. - deu-lhe as mãos em apoio moral, sentindo-se aliviada e esperançosa. - Agora é melhor pegares nessas taças e ires para a mesa, para não levantarmos suspeitas. - piscou-lhe o olho e tratou de desenformar o pudim de ovos. 

- Obrigada Lisa.

- Porquê?

- Por seres sincera comigo. - acrescentou – Não sei se consigo fazer tudo o que me sugeriste assim de repente... não quero que a Isabel passe dificuldades, mas vou tentar encontrar uma solução para ela. Mal ou bem, tem sido a minha companhia, e não fugiu para lado nenhum quando eu precisei. Há sempre esta dúvida aqui dentro, sabes?, porque fugiu a Marta? Isso não é amor, é cobardia. - saiu da cozinha e Lisa ficou angustiada com aqueles raciocínios. Era óbvio que sem se lembrar de tudo não iria perdoar o abandono súbito da verdadeira Isabel. César tinha razão, meterem-se na memória dele era pior, ou ele se recordava de tudo de repente, ou tinham de respeitar o rumo atual das coisas. 


- Bom dia. Polícia de Segurança Pública, Comandante Santos. Posso entrar?

- Bom dia, claro, entre. - João sentiu as pernas estremecer ao perceber que tinha chegado ao fim a sua fantasia, mas ser logo visitado pelo Comandante é que não estava à espera. - Posso ajudá-lo?

- Deve! Estão lá fora alguns colegas meus a recolher informações para a proprietária desta quinta, mas queria falar consigo em privado, antes de sairmos.

- Ok, faça o favor. - indicou-lhe um lugar no sofá e sentou-se no cadeirão, sem perder a compostura.

- Primeiro, qual é o seu nome? - pegou num bloco e caneta e esperou a resposta de mão em riste. Já não fazia aquilo há muito tempo, temia que o rapaz percebesse.

- João Marques. Sou amigo da proprietária, a Marta, não entendo o que se possa estar a passar.

- Sr João Marques, a proprietária desta casa e terreno é a Sra Isabel Fontes Pereira e Castro, e foi ela quem nos denunciou que havia um homem desconhecido a viver na sua casa, que recentemente abandonou para ir viver com a família. Não sei quem é a Marta, deixemo-nos de mentiras. - olhou-o interrogativamente – Porque é que arrombou a porta desta casa? O que realmente anda aqui a fazer? Tem alguma justificação válida e coerente para estar a invadir propriedade alheia? É que me parece que se meteu em trabalhos.

- Isabel?... - era a segunda pessoa que o desmentia e chamava a Marta de Isabel, mas desta vez com apelido, e pomposo. Mas quantas Isabéis havia na sua vida? A namorada, a da mala de quem se recordara no bar e agora a do roupão e beijo escaldante. Levantou-se do cadeirão, confuso, dirigindo-se às molduras da estante, olhou-a nas várias situações ilustradas, nas aulas de yoga, com um cão enorme, agarrada a uma senhora de idade, pegou numa delas e mostrou-a ao polícia que o observava com alguma desconfiança e cautela. - Esta não é a Marta? 

- Meu Sr, acalme-se, assim não vamos a lado nenhum. Como compreende, eu nunca vi a Sra Isabel Fontes Pereira e Castro, não lhe sei responder. Sente-se, por favor. Porque é que está a viver nesta casa? - começava a suspeitar que dali iam até à urgência da psiquiatria e não para a esquadra.

- Eu ia vender os legumes ao Botânico... - foi o que conseguiu responder, de moldura na mão, atónito. Mas ela tinha feito queixa dele... porquê?

- Bem, acho que não tenho mais perguntas. Por favor acompanhe-me até à esquadra, preciso de recolher o seu depoimento oficial e pedir uma avaliação técnica. - levantou-se e fez-lhe sinal para que saísse da casa, fechando tudo e trancando a porta, guardando a chave no bolso. - Este é o seu carro? - perguntou espantado com a viatura – Quer levá-lo até à esquadra? Talvez seja melhor... empreste-me a chave que faço esse favor. - entrou no bmw satisfeito, adorava um bom carro, sempre desejara comprar um daqueles, mas nunca conseguira convencer a mulher.



- Estou?... Sim, sou eu... Como assim, preso?... Claro, vou aí imediatamente. - César desligou o telefonema furioso. - Preso! Agora foi preso!! - berrou, olhando para Lisa com cara de poucos amigos. - Às vezes pergunto-me porque nunca tivemos filhos, aí está a resposta! Para não passar por coisas destas! É por estas e por outras que um casal decide conscientemente viver sem crianças. Para ter paz de espírito! Mas nem assim, bolas! - deixou a mulher sozinha a tomar o pequeno almoço e saiu disparado para o quarto. - O João está a passar todas as marcas! Ainda o vou internar outra vez, e compulsivamente!! - gritou na direção da sala. - Sinceramente, e dá o meu número de telemóvel para o ir socorrer! Ele vai ver, vai ouví-las! - praguejava enquanto se vestia atabalhoadamente – Quase com 40 anos, caramba, um homem feito. - entrou novamente na sala, deu um beijo à mulher, que o observava com algum humor, pegou nas chaves e saiu, batendo a porta.



Então era assim que se sentiam os presos..., pensou, amargurado com a sensação de não saber o que iria acontecer. Por muito que pensasse, não compreendia porque ela tinha feito queixa de si à polícia. Era óbvio, mesmo na sua cabeça, que o seu comportamento era excêntrico, mas não se sentia criminoso, afinal só tratava do jardim, e da casa... sim, dormira lá um par de vezes, mas sem intenção de invadir nada, apenas se sentia bem ali, e inconscientemente desculpava-se por estar a ocupar a cama dela. Pensara várias vezes na hipótese de ela voltar de repente a Coimbra e o encontrar a babar a sua almofada... mas isso só o divertia, nunca pensou que fosse crime. Imaginara uma mulher que não existia, uma relação e intimidade que não eram a realidade. A realidade era aquela cela, aquele silêncio, o cheiro a bebedeiras mal curadas e cigarros. Estava na altura de aceitar a sua miserável condição de amnésico insatisfeito com a vida e resolver o que era possível resolver. Esquecer a quinta da Marta, talvez pudesse vender o seu apartamento e comprar para si mesmo uma casa com espaço, terreno, as suas próprias enxadas e regadores. Ainda não sabia o que fazer com a namorada, duvidava que ela quisesse viver ao estilo fazendeiro, mas isso seria um ponto de viragem, uma possível solução para aquela vida que não lhe dizia nada.

- João, o que aconteceu? - Nélia apareceu repentinamente, terminando abruptamente as suas teorias, visivelmente preocupada, o que o alegrou.

- Bem, acho que o meu trabalho de jardinagem não era propriamente legal... - explicou encavacado. Levantou-se e aceitou a mão que entrava fraternalmente pelas grades, era boa aquela sensação de que alguém se importava com ele.

- Mas já te disseram mais alguma coisa? Vais ficar aqui muito tempo? O Dr César está a conversar com o Comandante, acho que se conhecem, não te preocupes.

- Obrigada... e desculpa. - confessou, sentindo uma necessidade estranha de a abraçar. 

- Querido, o que importa agora é que saias daqui. - Aquela prisão tinha-a sobressaltado mais do que imaginara. Para além dos problemas logísticos que certamente teria com o namorado longe e apenas contactável em horas e dias determinados, tinha ficado preocupada com ele. Podia ser uma porcaria de homem, mas era tudo o que tinha.

  - Ainda não veio aqui ninguém falar comigo, sinceramente não faço ideia do que se vai passar... - esticou-se o mais que conseguiu e espremeu-se contra as grades, abraçando-a, consolando a sua amargura e medo. Isabel parecia diferente, mais doce e confortável com ele. Seria o facto de estar preso e vulnerável que a amolecia? Talvez, ela era uma mulher difícil, pouco carinhosa e distante, e aquele abraço era uma boa surpresa.

- Se quiseres vou lá falar com o guarda. Alguém tem de nos dizer alguma coisa! - Aquele momento cúmplice tinha de ser fechado com chave de ouro, pensou. Se não aproveitasse a vulnerabilidade dele ali, preso e amedrontado, perderia uma oportunidade brilhante de o conseguir agarrar emocionalmente. Olhou-o bem perto, não seria um sacrifício assim tão grande beijá-lo, passou-lhe a mão nos cabelos carinhosamente e ficou à espera que ele o fizesse. Estava na cara que ele a desejava naquele momento, e tal como ela pensara, João deu-lhe o beijo possível no meio das grades frias. Um beijo que podia amolece-la e transformar as suas intenções, pensou angustiada. Tentou libertar-se gentilmente, mas ele queria mais, sentiu, deixando-se levar. Conseguia perceber porque a outra tonta o amava, ele era irresistível quando estava empenhado em alguma coisa. Seria difícil pará-lo, se não estivessem barrados e talvez fosse isso o que a estivesse a excitar. Um calor começava a invadi-la, amolecendo-lhe os membros, que começavam a pender dormentes, enquanto João assumia a dominância, beijando-a com demasiada vontade. Não podia perder o controlo daquilo, pensou, logo perdendo o raciocínio outra vez. Queria-o preso a si, sem dúvida, mas sem gostar dele. Aquilo é que não podia estar a acontecer... separou-se ligeiramente dele a ofegar, engolindo em seco e fugindo com o olhar. João pegou-lhe gentilmente no queixo e tornou a apertá-la contra si, obrigando-a a esticar o momento. Não queria olhá-lo, era demasiado bonito assim apaixonado por si. Pela primeira vez sentira-se amada e era intenso.

- Então?... porque é que estás a chorar? - limpou-lhe uma lágrima que caía devagar pela cara de Isabel.

- Por nada... - fungou, tentando separar-se e fugir daqueles braços.

- Não te preocupes... não torno a magoar-te, prometo. - sentiu aquelas palavras verdadeiramente, beijando-a novamente. Aquela cumplicidade aquecia-lhe o peito quase tanto como quando abraçara Marta. Podia ser feliz, decidiu.


- É como lhe digo, Santos, o rapaz não é perigoso, apenas anda baralhado, e tem tido alguma dificuldade em recuperar a memória. Não há necessidade de formalizar a queixa, pois não?

- Eu não tenho intenção nenhuma de arrastar isto, já tenho processos que cheguem que nunca vão dar em nada. - confessou – Mas a proprietária fez queixa, só se ela desistir é que posso deixá-lo ir. - mentiu, tentando encontrar argumentos para a detenção.

- Eu acho estranho ela ter telefonado para a polícia, eles conhecem-se, isso não é nada típico da Isabel... - matutava em voz alta – Tens a certeza de que foi ela?

- Bem, não vais abrir a boca sobre isto, mas eu precipitei-me um bocado, digamos. - confessou, coçando a cabeça preocupado - Passei por cima de algumas etapas, para fazer o favor ao Fontes, o pai dela, - acrescentou – foi meu colega. Como não sabia de nada do que se estava a passar, nem conheço o João, pareceu-me apenas um pai preocupado com a integridade fisica da filha. Mas ela não formalizou a queixa, de facto...

- Ah, então está tudo resolvido. Eu falo com ela, não te preocupes. Tens a minha palavra de que ele nunca mais volta ao local do "crime". - disse com humor – Ele precisa é de retomar as consultas e passar uns tempos longe de Coimbra, desanuviar a cabeça. Afinal não fez nada de mal, concretamente.

- Quer dizer, invadiu uma casa sem autorização... - acrescentou com alguma preocupação.

- Pronto, mas já devolveu a chave, não foi? Eu mantenho-o afastado. Tens a minha palavra!

- Só não quero o Fontes a chatear-me porque soltei o rapaz. - confessou preocupado, enquanto eliminava os papéis na destruidora de papel, formalizando o fim do processo.

- A Isabel fala com o pai, eu certifico-me de que o faz. - sorriu, satisfeito com o poder de persuasão que o estatuto de antigos vizinhos de infância lhe dava ali no gabinete do Comandante da PSP. O João tinha muita sorte, pensou, se não fosse o Santos teria sido impossível resolver aquela salganhada sem tribunal nem advogados. - Posso ir lá vê-lo?

- Claro, vamos buscá-lo, sendo assim já não há motivo para ele estar preso... - suspirou, aliviado com menos um suspeito sob a sua alçada.

- Obrigado Santos, - deu-lhe uma leve palmada fraterna nas costas enquanto se encamihavam para o interior da esquadra – agora outra coisa, também recebeste aquele convite para o jantar dos antigos moradores do "Bairro"? Acho que desta vez vou, e levo a Lisa.

- Recebi, sim. Mas não devo levar companhia... - confessou abatido – A Manuela deixou-me.

- Deixou-te? Eh pá, não sabia... lamento. Mas isso foi há pouco tempo? Ainda noutro dia a Lisa me disse que a encontrou não sei onde e estiveram a tomar café. Não comentou nada disso...

- Pois, foi o mês passado... ainda nem acredito que ela teve coragem de cumprir as ameaças. - sorriu envergonhado, assumindo a culpa das suas fraquezas físicas. - As mulheres são tramadas... 

- Pois são... por isso é que eu nem sequer penso certas coisas, a Lisa lia-me logo os pensamentos e matava-me durante a noite. - brincou, desanuviando a conversa, mas agradecendo interiormente ser tão bem casado. Se tivesse vontade de trair a mulher sentir-se-ia um miserável, como o amigo lhe parecia naquele momento. - Pede-lhe desculpa e apanha juízo, já estás a ficar velho, pá! Já viste o que era teres de aturar uma daquelas? - sussurrou apontando para Nélia, que enlaçava o João como uma lapa. Sabia que um dia o João ia acabar por ceder, aquilo era muita mulher para não se reparar.

O Comandante olhou-o com humor, era de facto perigoso haver mulheres daquelas. Devia ser crime usar roupas sugestivas com um físico daqueles. - Já não tinha capacidade para isto... - gozou – Sr João Marques, vai ser solto, afinal houve uma desistência da queixa. - mentiu, abrindo a porta – Está tudo resolvido, mas está proibido de se aproximar da quinta da D. Isabel Fontes Pereira e Castro. 

- Sim, claro. Obrigado. - deu a mão a Isabel, sorrindo-lhe, esperançoso com aquele recomeço e súbita liberdade, depois de algumas horas de medo. Isabel Fontes Pereira e Castro... registou o nome na memória, mais tarde iria pesquisar sobre aquele nome tão pomposo. Mas antes, queria chegar a casa depressa e aproveitar o presente. Acabava de ter uma nova oportunidade de ser amado e amar.


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