quinta-feira, 3 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 23

 



        - Bom dia João, posso entrar?

- Olá bom dia, Dr César, claro, entre. - esforçou-se por sorrir, sentia-se miserável e abatido como nunca tinha sentido, ou pelo menos que se lembrasse.

- Está tudo bem? - questionou-o, desconfiado do semblante carregado. - Estou de saída para ir para a clínica e decidi vir ver-te antes, espero não estar a incomodar assim tão cedo. - Sentou-se familiarmente no sofá, fazendo-lhe sinal para se sentar também.

- Sim, fez bem. Café?

- Se não der muito trabalho, aceito. - sorriu-lhe, mais com vontade de abraçar um filho em sofrimento, que manter aquela conversa de circunstância.

- Não dá trabalho nenhum, acabei agora mesmo de fazer uma chaleira. Descobri que gosto muito de café "brasileiro", daquele que se faz com filtro, sabe? - explicou, enquanto se dirigia à cozinha e preparava duas chávenas e açúcar num tabuleiro. Era estranhamente doméstico, o que não combinava nada com aquela casa tão sofisticada e artificial. Gostava de se distrair na cozinha, ocupava-lhe a cabeça. Tinham passado duas semanas desde que saíra abruptamente  de casa da Ganesha e nunca mais tinha conseguido deixar a sua casa, como se estivesse em isolamento. Escondia-se de si mesmo, talvez. Pegou no tabuleiro pronto e foi ocupar o seu lugar junto do psiquiatra que o visitava regularmente e de quem já gostava como figura paterna, a única que até então surgira na sua breve vida.

- Cheira muito bem! A Lisa também adora o café assim de manhã. - disse, apreciando o primor com que João elaborara o tabuleiro, um perfeccionista, quando gostava do que estava a fazer, acrescentou para si mesmo. - Está ótimo! - confessou, depois de provar.

- Estive a ler aqueles livros que me trouxe, sobre psiquiatria, os do curso, e acho fascinante. Mas... não tenho a certeza se é isso que quero fazer na minha vida. Acho que não tenho saúde mental nem para mim, quanto mais para "vender" aos outros. - recostou-se no sofá, levando o café à boca e apreciando o cheiro. - Gosto muito mais de cozinhar. - riu-se.

- Pois, a psiquiatria nunca foi a tua paixão, era o teu trabalho. - confessou, olhando-o hipnoticamente – Gostavas que te pusesse à prova? Gostavas de fazer hoje o psicodrama? Tenho tempo agora de manhã.

- Preferia sinceramente que me dissesse porque me sinto vazio na minha vida. Custa-me aceitar que vivi esta fantochada e gostava disto. - olhou sugestivamente para a zona dos quartos, onde Isabel ainda dormia. - Já concordámos que iria esperar um tempo para que a memória voltasse naturalmente, mas já não tenho mais paciência, César. - poisou a chávena e desviou o olhar do do médico, que parecia entrar-lhe pela cabeça a dentro.

- Como já falámos anteriormente, isto é uma fase, a tua mente encontrou esta forma de sobrevivência, se assim o podemos chamar, fechou-se ao que a estava a colocar em perigo, mas tudo continua aí. Não te preocupes demasiado, só tens de te proteger do que conversámos. - baixou o tom de voz, de forma cúmplice. - Não podes tomar atitudes definitivas nesta tua nova realidade. - olhou para o corredor em frente – Tem calma, aprende a conhecer-te, vai explorando as tuas capacidades e gostos. - apontou para o café – Como vês, tens mais prazer a fazer café que a ser psiquiatra. Isso é muito importante, porque a vida às vezes impõe-nos carreiras que não são o que deveríamos fazer, mas a que acabamos por nos resignar. Eu por exemplo, adoro ser o espertalhão que sabe tudo sobre os outros, gosto de dar conselhos, de me meter nas cabeças alheias, vou trabalhar com gosto todos os dias. Já a fazer café, sou uma nódoa, e nem vamos falar em refeições quentes, nunca tive capacidade. Distraio-me a pensar num paciente qualquer, e lá se vai o estufado. - sorriu, descontraído. - Nesta vida, que é curta e incerta, temos de fazer o que nos dá prazer. Tu tens agora a oportunidade de escolher algo melhor para o teu futuro. Felizmente não tens problemas de dinheiro, o que já é uma sorte. Vai fazer uns cursos, sai de casa. Se continuares aqui fechado não vais sentir-te nem melhor, nem mais realizado, e um homem tem de fazer, criar, suar, senão morre entupido! Dá uma hipótese a ti mesmo, ouve o que o João tem para te dizer, sai, vai caminhar, ver pessoas, comprar ingredientes ao hipermercado e depois convida-me a mim e à Lisa para jantar um dia destes. - levantou-se e estendeu a mão a João, que se levantou e o abraçou comovido.

- Obrigado. Vou fazer isso. - acompanhou-o à porta e deixou-o sair, respirando fundo. Sim, o César tinha nascido para ser psiquiatra, ele não.



Nélia escutou a conversa dos dois homens atrás da porta, como habitualmente, sempre que César aparecia para ver o namorado. Temia que o médico abrisse a bocarra, mas estranhamente não o fazia. Era um mistério para ela o facto do médico continuar a deixar João na ignorância, mas um alívio. A vida a dois era já penosa o suficiente, sem a  confrontação com a verdade. A única vantagem que tinha ao estar ali a aturar aquele depressivo era o poder económico de que usufruía, mas mesmo isso já a começava a aborrecer. Entusiasmava-se sempre quando percebia que podia comprar fosse o que fosse, mas ainda não tinha saído da loja, já o tédio se instalava, e ao chegar a casa e se deparar com aquele fantasma, mais chateada ficava com a sua vida. Vestiu-se com a roupa de ginástica, como todas as manhãs e rezou para que ele não a quisesse acompanhar. Não o suportava, e isso era cada vez mais notório entre os dois. Felizmente João mudara-se para o quarto de hóspedes, por livre e espontânea vontade, senão, tinha-o feito ela. Era uma situação que começava a pesar-lhe no corpo, parecia que aquele parvo lhe sugava a alegria de viver, sempre de trombas e sorumbático. Calçou as sapatilhas de treino, passou por ele, deu os bons dias e avisou que ia demorar. Só voltava para almoçar, e mesmo isso não sabia se lhe apetecia. Bateu a porta, depois de lhe pedir dinheiro, a derradeira humilhação diária, e uma emoção estranha invadiu-a, trazendo-lhe umas lágrimas de frustração, enquanto premia o botão do elevador. A porta deslizou, e apressou-se a limpar as provas da sua fraqueza, colocando o seu melhor ar, com medo de testemunhas. Um homem enorme saiu do elevador com demasiada pressa e esbarrou nela, e para sua surpresa reconheceu o segurança do bar que frequentava, que a olhou com algum desprezo, como habitualmente acontecia com algumas pessoas. Era invisível, e raramente a olhavam com interesse, a menos que vestisse um decote ou mini saia. Entrou no elevador, sem grande interesse no que faria por ali o homem, carregou no botão do rés do chão e suspirou, quando uma mão estacou a porta de fechar, surpreendendo-a.

- Sente-se bem? 

- Como? - perguntou surpreendida.

- Pareceu-me que estava a chorar. Precisa de alguma coisa?

- Ham?... Não, não, é alergia. - apressou-se a explicar, mentindo. Não estava habituada a baixar a guarda, o que a incomodava bastante.

- Ok, desculpe, então. Bom dia. - largou a porta, que começou a fechar, e Nélia carregou no botão de abrir, como reflexo.

- Obrigada, na mesma. - disse, sem jeito, carregando no botão de fechar logo de seguida.

Janota ficou cismado com aquele semblante da tipa que agora vivia com o João. Devia andar triste, as coisas entre os dois não andavam bem. Isso não era favorável, claro, mas tinha ali ido para descarregar a sua frustração pessoal, e tirar satisfações, não ficar preocupado com uma vigarista. Bateu à porta vigorosamente, tentando recuperar o estímulo negativo que o tinha levado até casa do seu rival, esperando sinceramente que ele fosse arrogante e mal educado, apetecia-lhe muito dar-lhe uns safanões e libertar-se daqueles nervos. Isabel tinha-o abandonado fazia já quase duas semanas, precisava tirar a limpo se continuavam a comunicar ou se também se tinha afastado dele. Era uma questão que o consumia. Deu mais dois murros na porta, que abriu de repente e tal como desejara, João olhava-o com desdém.

- Posso saber o que é que queres daqui? - lançou, genuinamente espantado com aquela visita matinal.

- Queria dizer-te meia dúzia de coisas. Já percebi que estás sozinho, ótimo. - avançou com agressividade na sua direção e João afastou-se para o deixar entrar, fechando a porta.

- Então, como vai a Marta? Tudo bem, ou ela já ganhou juízo e já te deixou? - ironizou João que odiava aquele segurança, a ponto de perder o bom senso e provocá-lo.

- A Marta não conheço, mas a Isabel voltou para Castelo Branco. Pensei que soubesses. - sentou-se descontraidamente no sofá, olhando-o com gozo.

João ficou baralhado com aquela resposta, detestava aqueles enigmas parvos que não conseguia entender. - Despacha-te, tenho que sair. Vieste aqui exatamente para quê?

- Quero saber se depois daquele dia em que estiveste de madrugada em casa dela tornaram a falar ou a ver-se.

- Não é da tua conta, mas não. Nunca mais a vi, tentei ligar-lhe, mas o telemóvel está no voice mail e o fixo ninguém atende. De vez em quando ainda tento ligar, confesso. - sentou-se de frente para o homem enorme, com vontade de o esmurrar, mas ligeiramente satisfeito por saber que ela o tinha deixado.

- Sabes João, eu amo-a. - confessou – Acho que nunca gostei tanto de uma mulher. 

- Acho que não somos assim tão amigos para me vires confessar essas merdas. - disse com rispidez. Era só o que lhe faltava, ouvir declarações de amor daquele troglodita pela mulher que o perseguia nos sonhos. - Não me interessa nada disso. 

- E queres saber quem é que lixou tudo entre mim e ela?

- Não. Estou-me borrifando para ti. - para ela não, acrescentou para si mesmo.

- Pois é, tu, meu merdas. Estava tudo bem, antes de a teres perseguido. - acusou-o, de dedo em riste, já numa posição que qualquer homem entenderia como ameaça.

- O que é que vieste aqui fazer? Bater-me? - perguntou-lhe, enfrentando-o e colocando-se também numa posição agressiva – Levaste uma tampa e agora queres arranjar um bode expiatório. Pois eu acho que ela foi muito inteligente em se pirar. Aquilo não é mulher para ti, amigo. Lamento informar-te... - uma mão alcançou-lhe a cara, esmurrando-o com um pouco mais de força que tinha imaginado, desorientando-o. João recuperou a visão e mediu-o, perdendo a noção do perigo e lançando-se ao segurança, queria matá-lo por ter beijado aquela mulher e sabia lá o que mais tinha feito com ela. Embrulharam-se como dois cães, enraivecidos, rolando pelo chão numa luta passional e crua, como se a vida dos dois dependesse de quem vencesse aquela batalha. João limitava-se a proteger a cara e tentar alcançar alguma zona do corpo de Janota para despejar a sua frustração e ódio. Não sentia nenhum dos murros que o segurança lhe dava, a adrenalina mantinha-o anestesiado e focado na luta, quando a porta de casa abriu e Nélia gritou aflita, chocada com a visão da sala de pantanas e ensanguentada. Os dois homens pararam subitamente e largaram-se ofegantes, com Janota a recuperar mais facilmente, levantando-se meio trémulo do chão, envergonhado com o olhar da namorada de João, que se mantinha no chão a respirar com dificuldade, visivelmente mais ferido.

Janota dirigiu-se à porta e não conseguiu encará-la, saindo rapidamente da casa, tinha dado uma tareia naquele pomposo, mas só lhe souberam bem os primeiros murros, e se soubesse que teriam testemunhas nunca o faria. Não tinha medo de represálias, mas o olhar da mulher incomodara-o, fazendo-o sentir-se culpado. Olhou-se no espelho do elevador e deu graças por estar pouco marcado. O Salvador ia-se passar, se descobrisse.

- Deixa estar, estou bem. - balbuciou João, afastando Isabel de si, não queria ajuda, talvez merecesse aqueles murros, pensou. Uma experiência de que não se recordava, mas certamente que já não seria a primeira vez que andava à porrada. Doíam-lhe as costelas, e o nariz. Colocou-se de joelhos, cuspiu um bocado de sangue para o chão e agarrou-se ao sofá para se levantar.

- Andaram à porrada porquê? - questionou-o, ainda em choque com aquilo tudo – João, responde. Não é melhor irmos ao hospital?

- Não é preciso, estou bem. - Uma dor lancinante nos pulmões obrigou-o a ajoelhar-se novamente. Talvez não estivesse assim tão bem, pensou. - Se calhar é melhor ir às urgências. - deu-lhe um braço para se apoiar e levantou-se o mais devagar que conseguiu, sustendo a respiração. - Acho que tenho alguma costela partida. 

- E chamar a polícia? Foste atacado em casa! - exclamou decidida.

- Não, deixa, ele também levou. E não vai voltar... Ai... - gemeu, agarrando na carteira à entrada e nas chaves.

- Mas porque é que ele veio cá? Chatearam-se? O que é que ele queria?

- Tirar satisfações sobre a Marta. - sussurrou com esforço.

- Eu logo vi... - bufou contrariada. - Sempre essa tipa, e tu humilhas-me assim, andando à porrada por causa de outra mulher? - aquilo era demais, pensava, ofendida. - Olha, chama-a para te ir levar ao hospital. - entrou novamente em casa e fechou a porta com força na cara de João, que cambaleava ligeiramente espantado com a sua reação.

- Isabel... - gemeu. Não queria acreditar que o ia deixar sozinho a conduzir até ao hospital. A porta do elevador abriu e uma senhora soltou um grito ao deparar-se com o jovem médico de cara pisada e ensanguentada. - Não se assuste, tive um pequeno acidente em casa, nada de especial. - apressou-se a explicar, enquanto a mulher deslizava para fora da cabine em pânico. - Adeus, bom dia. - disse-lhe, deixando-a fugir. - Ai...



César correu até à urgência da clínica, desesperado por saber o que se passava agora. Ligaram-lhe para o gabinete dizendo que o seu paciente 5 estrelas tornava a entrar nas urgências, mas desta vez com traumatismos vários. Ainda ficava ali estendido um dia, com um enfarte, se o João não parasse de o surpreender, lamentou-se, arfando pesadamente no seu débil passo de corrida. Tinha de se exercitar, decidiu frustrado. Procurou pelo amigo e foi encontrá-lo sentado numa maca, de tronco nu e faixas enroladas a pressionarem as costelas. Mas que raio teria acontecido naquelas poucas horas em que tinha deixado a casa dele?

- Então, o que se passou? Estás bem?

- Andei à porrada. - esclareceu, fazendo um esgar de dor ao tentar levantar-se.

- À porrada?? - exclamou, ajudando-o a erguer-se. - Mas alguém te atacou?

- O Janota foi lá a casa assim que saíste, detesto aquele gajo. - gemeu, aceitando a ajuda do médico para vestir a camisola.

- Aquele segurança enorme? Tu estás mais doido do que eu imaginei. - ralhou paternalmente. - Mas porque é que se chatearam a este ponto? - fez uma careta de preocupação ao ver os hematomas na cara de João a testemunhar a tareia que este tinha levado.

- Ele não gostou do que ouviu. Foi para lá dizer-me que amava a Marta e eu fui o culpado de ela o ter deixado. - bufou, a recomeçar a sentir a raiva a crescer.

- Quando uma pessoa pensa que já viu tudo, os quarentões decidem lutar por uma miúda... - gozou, achando piada à ideia de ver dois homens adultos engalfinhados por causa do amor. Ajudou-o a calçar-se e deu-lhe uma palmadinha leve nas costas, apoiando-o na sua dor.

- César, um homem é um homem. E não é por ele ter 100 kilos de força que pensa que me vou ficar a ouvi-lo falar dela. Ai... - gemeu, apoiando-se no médico enquanto caminhavam para fora do gabinete – Acreditas que a Isabel não me veio trazer? Deixou-me vir sozinho a conduzir até aqui. - lamentou-se.

  - Tu és mesmo inocente, ou parvo. Andas à porrada com outro homem por causa de uma mulher e queres que a tua namorada te traga ao hospital? Aí estou com ela. - gozou, mesmo não suportanto a tipa, era óbvio que tinha razão. Mas também era bem feito para ela, devia ser humilhante saber que o homem com quem vive ama outra pessoa. - Queres que te leve a casa?

- Não. Tenho o carro no estacionamento. Mas obrigado. - Deu-lhe um aperto de mão e respirou fundo caminhando dificilmente até ao carro. Ainda queria passar em casa dela, confirmar que estava mesmo abandonada, matar um pouco as saudades daquele momento que tiveram. Sempre que a recordava, de roupão e chinelos, fechava os olhos e revivia aquele abraço por dentro da roupa, a sensação maravilhosa de sentir o seu corpo junto do seu. Imaginava como seria pele com pele, sedosa, aquele perfume simples do seu cabelo. Era uma tortura doce, que o consolava sempre que se sentia mais desesperado, sozinho naquele quarto de hóspedes para onde tinha fugido. Conduziu lentamente, percebendo pela primeira vez como seria ter 80 anos e pouca ou nenhuma capacidade de rotação no tronco e pescoço para enfrentar o trânsito de uma cidade. Da próxima vez que um reformado o estivesse a empatar teria mais paciência, decidiu, gemendo com a dor de costas. Era tramada aquela falta de mobilidade, sentia-se um velhote viúvo, a fugir do lar para ir espreitar a antiga casa onde vivera momentos felizes, só que no seu caso tinham sido fugazes minutos de prazer, e não uma vida a dois com milhares de recordações. Encontrou facilmente a rua dela, tão misteriosa como seria de esperar, parou no portão e ergueu-se dificilmente de dentro do carro, resmungando como um idoso rabugento. A dor era uma merda, bufou para si mesmo. Forçou o portão fechado e caminhou arrastando os pés levemente, devagar, aproveitando para apreciar à luz do dia todo o quintal ainda bem arranjado, mas já com sinais de natureza abandonada. Algumas ervas cresciam onde antes ela perdia tempo e energia a cuidar de flores, plantas e vegetais. Pensou que talvez devesse arrancar algumas ervas daninhas, não tinha mesmo nada que fazer. Não conseguiria baixar-se, mas talvez com uma pequena enxada resolvesse o problema. Decidiu procurar ferramentas enquanto ia analisando os locais do jardim onde deveria intervir. Talvez houvesse uma garagem na parte de trás da casa, ou arrecadação, onde ela guardasse os materiais de jardinagem. Passou por um tanque, sorriu ao imaginá-la de roupão a lavar roupa, e logo a sua imaginação erótica dominou os seus pensamentos, possuindo-a ali mesmo, em cima de umas roupas ensaboadas, com água a chapinhar por todo o lado e o cãozito dela a saltitar nervoso em volta deles. Deixou o casal apaixonado para trás e continuou a caminhada dolorosa pelo caminho de pedra em volta da habitação. Um grande monte de lenha cortada e arrumada metodicamente surpreendeu-o, aquilo era trabalho de homem, nunca que ela teria capacidade física para aquele serviço, pensou, ciumento. Certamente tinha sido o parvalhão do troglodita, resmungou chateado, continuando sem parar. Uma pequena casota de madeira parecia ser o local ideal para as ferramentas, e tal como imaginava, ali estava ao fundo. Debateu-se com a fechadura, forçou-a e conseguiu retirar uma pequena enxada para começar o seu trabalho. Sim, aquilo era excêntrico, mas não lhe apetecia nada voltar para aquele apartamento cinzento e aturar a Isabel. Um monte de terra desordenado chamou-lhe a atenção e suscitou-lhe a curiosidade. Parecia uma sepultura caseira, daquelas que se faziam aos animais domésticos, aproximou-se e percebeu que ali devia estar o tal cão falecido de que ela lhe tinha falado. Uma tentativa de cruz a marcar o local pendia torta, e João endireitou-a, utilizando a enxada para reorganizar a terra em volta e deixar a sepultura mais digna. Parecia que tinham ali andado animais a esgravatar, até um pouco de osso se denunciava. João tentou tapar os restos mortais, e um tecido colorido surgiu debaixo da terra, comprovando que ali jazia um cão, era uma coleira, constatou, tirando-a gentilmente. Ajoelhou-se e colocou-a na cruz, tapando e moldando a terra. "Filipe", dizia na coleira, ela tinha dado um nome de pessoa ao cão, pensou curioso. - Bem, Filipe, sempre tiveste mais sorte que eu. Descansa em paz. - levantou-se e começou a sua tarefa auto-imposta de jardineiro voluntário. Não sabia se alguma vez já o tinha feito, mas não deveria ser tão difícil assim, raspar as ervas que não pertenciam à cultura pretendida. Era muito quintal para trabalhar de uma só vez, mas começaria pela frente da casa, a parte mais visível da rua. Parou no tanque e experimentou a torneira, funcionava. Pelo menos se lhe desse a sede não morreria ali. Analisou o jardim e decidiu começar pelas flores, estavam amontoadas com uma certa ordem que lhe conferiam uma beleza que parecia natural e selvagem, mas notava-se que tinham sido plantadas propositadamente. Tirou a camisola mais grossa, mandou-a para o alpendre e lançou-se à velocidade possível por causa das dores nas costelas. Era uma atividade que requeria algum jeito, mas passado uns minutos João já conseguia minimizar o esforço e encontrou formas e técnicas de melhorar os resultados, distraindo-se ao ponto de nem ter percebido há quanto tempo ali estava naquilo. Deu uma olhadela geral ao espaço já limpo e ficou surpreendido com o avanço feito. Ficava de facto muito melhor depois de retiradas as ervas daninhas, pensou orgulhoso de si mesmo. Pôs a mão ao telemóvel no bolso para ver as horas e decidiu que por um dia bastava. A casa estava silenciosa, sem sinais de vida no interior, o que o desiludiu ligeiramente. Para terminar em beleza aquele dia excêntrico só mesmo se ela abrisse a porta e viesse com aquele roupão, sem nada por baixo, obviamente. Como isso não iria acontecer decidiu aventurar-se e tentar espreitar para dentro da casa, só para ter a certeza de que ela tinha abandonado a vida em Coimbra. Subiu os degraus, espreitou pela janela e tentou abrir a porta, que estava obviamente trancada. Uma ideia surgiu-lhe, seria ela daquelas pessoas que tem sempre uma chave de prevenção para o caso de se esquecer da dela? Procurou por cima da moldura de madeira da porta, debaixo do tapete de entrada, e quando levantou o vaso grande com um cacto ali estava ela, a luzir. Rasgou-se-lhe um sorriso pateta, não queria acreditar na sua sorte, abriu a porta e entrou a medo, com uma excitação crescente e irresistível. Havia eletricidade, constatou ao mexer nos interruptores, seria sinal de que voltaria um dia destes?! Caminhou pela casa, admirando tudo com calma e uma certa fascinação. A sala era acolhedora, nem muito vazia nem muito cheia, com uma decoração natural. Uma estante ocupava toda a parede em frente à porta da rua, percorreu-a com os olhos, era tanta literatura diferente, desde os clássicos aos mais esotéricos. Estatuetas daquelas bonecadas hindús decoravam alguns locais fazendo o contraste com as molduras clássicas e antigas de gente com bom ar, e ela. Sempre demasiado enigmática, às vezes até triste. Entrou sem pudores para a zona mais íntima da casa, não teria de se justificar a ninguém por estar a invadir uma casa alheia. Uma sala grande com ar de estúdio de yoga, sem espelhos, e de onde sentia uma vibração estranha e incomodativa. Fechou a porta por instinto, não gostava daquilo. Caminhou em busca do quarto dela, aquele santuário feminino onde a sua imaginação iria certamente explodir de tantos estímulos. Não estava enganado, ainda se sentia o cheiro dela ali, uma cama convidativa, macia, pormenores delicados e de bom gosto. Sentou-se nela e imaginou-a ali a dormir, sozinha, o segurança não encaixava naquele ambiente e nem sequer deveria caber na cama, era demasiado alto. A imagem dele ali a violar aquele espaço deu-lhe dor de barriga e estudou o armário para se distrair. Roupas simples, muitas saias, e um vestido preto que se destacava pelo género e textura. Retirou-o e analisou-o, era bonito, de marca, constatou ao ver a etiqueta, devia ser o que usara naquele dia no bar. Ficava-lhe muito bem, relembrou-se, colocando-o no sítio. Tinha voltado para Castelo Branco sem ele, pensou satisfeito, era sinal de que não ia frequentar bares. Aquela sensação de possessividade relativamente àquela mulher surpreendia-o, não tinha nenhum desses sentimentos pela namorada. Deu mais uma olhadela geral no quarto e voltou para a sala. Estava cansado e ainda mais dorido, procurou um local para descansar um pouco as pernas e escolheu uma poltrona que se lhe adaptou ao corpo de forma extraordinária, aquilo era uma maravilha, constatou descontraindo. Fechou os olhos relaxado, aquilo sim era vida, onde teria ela comprado aquilo? Uma luz acendeu-se na zona do quarto e João estremeceu, teria voltado? Ouviu um murmúrio de uma música familiar, numa voz de mulher, sim, a Marta tinha voltado, finalmente, pensou suspirando e fechando os olhos. Teria reparado na sua obra do jardim? Esperava que ficasse satisfeita e que o Filipe não lhe fizesse xixi nos crisântemos. Um cheiro a legumes salteados invadiu-lhe as narinas, estava cheio de fome, mas demasiado preguiçoso para se levantar e ajudá-la com o jantar. Estava ansioso para que ela lhe contasse como estava a família lá de Castelo Branco, ainda não os tinha ido conhecer, recriminou-se, se calhar estavam ofendidos com a sua falta de atenção, mas ela não o tinha convidado a ir, fugiu sem dizer nada. Marta aproximou-se dele, trazia o vestido preto debaixo do roupão, iria sair? Pegou numa manta e tapou-o, estava a dormir, constantou. Que pena, queria dizer-lhe que voltasse, mas estava a dormir. Ela saiu e fechou a porta, com demasiado barulho.

João acordou sobressaltado com o frio, tinha adormecido e estava sem a camisola mais grossa, e ao contrário do sonho, ninguém o tinha aconchegado com uma manta. Tinha escurecido, quanto tempo teria dormido? Procurou o telemóvel e viu que era perto da meia noite. Como seria aquilo possível? Dormia sempre tão mal, à base de soporíferos, como se tinha deixado ficar ali tanto tempo? Aquele cadeirão era mágico, só podia. A barriga deu um ronco de fome e João decidiu voltar para sua casa. Trancou a porta e guardou a chave no bolso, não queria mais ninguém ali a entrar sorrateiramente como ele. No dia seguinte voltaria para continuar a jardinagem, tinha adorado mexer na terra, descontraíra-o. Mais uma coisa sobre si que descobria. Certificou-se de que tudo ficava arrumado e despediu-se mentalmente do sítio. Gostava muito de ali estar, agora teria de regressar à sua realidade, à casa fria e solitária que lhe diziam ser a sua. Seria possível a amnésia ter-lhe alterado os gostos? De psiquiatra dandy e mulherengo a homem do campo que gostava de estar na cozinha e a tirar ervas daninhas do quintal... Aquilo era demasiado estranho. 


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