segunda-feira, 7 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 25

 



Quando lhe disseram que a sobrinha estava a viver com um médico em Coimbra nunca lhe passou pela cabeça que Nélia pudesse traí-la daquela forma. Rosário tinha as mãos e as pernas a tremer, e tentava equilibrar-se atrás da carrinha estacionada do outro lado da rua do prédio do Dr João. Esperava que um dos dois aparecesse na rua, ou na varanda, só para confirmar as informações que lhe tinha dado uma antiga amiga que conhecera enquanto trabalhara exclusivamente para o “Dr”, também ela empregada de longos anos de uma família do primeiro andar. Partilhavam histórias que animavam os seus dias, sempre que não se gostava de alguém do prédio ou de uma pessoa que frequentava a casa onde trabalhavam. Fátima telefonava-lhe desde que Rosário fora dispensada do seu trabalho, e semanalmente lá conversavam sobre o que se passava no prédio, como se ainda se encontrassem a meio do dia nas escadas comuns, enquanto gozavam da pausa de almoço e da ausência dos patrões. Uma amiga que estimava, e por isso, tinha em grande conta, nunca duvidaria da sua palavra. Falava-lhe numa Isabel de nariz empinado, mas Rosário só tinha conhecido a Isabel simpática e sorridente, que tinha feito um milagre e entrado naquela casa. Tinha poucas, mas boas memórias dela, mesmo ligeiramente magoada por ter sido demitida, porque sabia que a culpa da desgraça que assolara aquela casa tinha sido sua. Quando abriu a porta ao homem bem falante e ele lhe disse que ia levar o cão dali para fora, Rosário nem pensara duas vezes, ficara tão aliviada por se ver livre do bicho que nem refletira ou confirmara com o “Dr”. Ainda sentia uma leve azia todas as vezes que recordava a voz aflita do patrão ao telefone a perguntar-lhe pelo cão. Tinha muitos remorsos do que fizera, mas se aquilo que ali tinha ido confirmar fosse verdade, a sobrinha ia aprender uma lição, e não havia “Dr” nenhum que a fosse segurar. Encostou-se à carrinha, para descansar a coluna da posição em que estava há algumas horas a espreitar, mas nem precisou de se esconder, o carro do seu antigo patrão aparecia ao virar da esquina, e Rosário conseguiu vê-los aos dois, que nem a olharam, enquanto a viatura passava por ela devagar em direção à porta da garagem. Nélia estava sentada no lugar do “morto”, toda sorridente e bonita. Sempre fora uma estampa, concluiu tristemente, como se sempre tivesse previsto que a beleza da sobrinha fosse a sua maior maldição. Nunca se esforçara em nada, na escola, em casa, na vida, pensava que bastava vestir-se bem e arranjar-se e tudo surgia caído do céu. Ali estava a prova, de como uma rapariga tonta podia viver enganada, e como Rosário falhara com ela e com a irmã. Nélia podia estar iludida com a vida, mas não ia enganar o Dr João, pensou decidida. Contornou a carrinha e dirigiu-se à porta do prédio, tocando para a casa onde Fátima trabalhava, ganhando assim tempo para chegar primeiro ao apartamento e surpreender a sobrinha, já que o Dr João nem sequer se lembraria dela.




- Olá César... - cumprimentou Isabel, sem grande entusiasmo ao ver chegar o psiquiatra. Nunca mais acabava aquela novela na sua vida, remoeu, guardando no jipe as caixas de frutas e legumes metodicamente ordenados com um sentido estético que a deixava enternecida. - Vou vender isto ao Botânico, há lá uma feira de produtos biológicos... - explicou.

- Curioso... - sorriu na direção das caixas - Ele é mesmo artista, não é? E mais curioso, sabes que ele deu-se a este trabalho todo para ir a essa mesma feira?

- Onde queres chegar com essas “curiosidades”? - lançou a sentir-se enfurecer com aquelas insinuações. - Eu sei perfeitamente quais são as qualidade dele! Mas caso seja necessário lembrar-te, ele vive com a “Isabel”! Está mais feliz que nunca, segundo o Comandante Santos, aquele baboso com quem tive de falar. Ele estava particularmente enfeitiçado pela “mulheraça” do João! - bateu a porta da mala do jipe com força.

- Isabel, não fiques zangada, por favor. O Santos é um tolo, - explicou paternalmente - e o João ficou cheio de medo de se encontrar preso, está momentaneamente esperançoso com a segunda oportunidade que a vida lhe deu. - ironizou.

- Então que faça bom proveito. - rematou - Eu estou momentaneamente em Coimbra, e só aqui vou ficar hoje porque tenho pena de deitar tudo isto para o caixote do lixo, que era o que devia fazer, se tivesse juízo. - encarou-o, continuando os seus lamentos catárticos - Mas sou uma parva, cada vez mais me convenço disso. Devia estar furiosa porque o João me sujou a casa toda e desarrumou mais que trinta miúdos deixados à solta num quarto de brinquedos. Tenho tudo de pantanas, a cama revoltada, é preciso lavar os lençóis, tirar a presença dele ali de dentro, aspirar, limpar o pó, e em vez de ir formalizar a queixa na PSP para ele aprender, só quero enfiar-me ali dentro e chorar agarrada à almofada! - berrou.

- É por isso que te vou pedir um último favor. - agarrou-lhe nas mãos frias - Não vás já embora para Castelo Branco. Ele vai voltar, garanto-te. Eu conheço-o, não vai aguentar a rapariga muito tempo. Até acho que é agora, quando ele baixar a guarda com ela que tudo vai terminar. - sentia-se ligeiramente carrasco a dizer aquilo, mas era o que sentia verdadeiramente.

- Então devo aqui ficar à espera que ele ande às cambalhotas com ela e se recorde de mim? - gemeu incrédula.

- Não... - mentiu - Aguarda só uns dias. Ele fugiu para aqui porque só se sentia bem neste local, sem saber porquê. A vida no seu apartamento era-lhe insuportável. Inconscientemente ele recorda-se do que passou aqui contigo, entendes? Quando descobri que era aqui que ele fazia a jardinagem secreta de que nos falou a mim e à Lisa fiquei felicíssimo. - explicou carinhosamente.

- César... eu sei que gostas dele como um filho, e por um filho fazemos coisas impensáveis. O que me estás a pedir é mais que isso, é cruel e impossível. Não vou sacrificar a minha felicidade por ele, por muito que me custe, desta vez vou pensar primeiro em mim. - entrou dentro do jipe e despediu-se com vontade de lhe passar com o carro por cima dos pés. Os homens conseguiam ser brutais, mesmo sem lhe bater.



- Tia? - Nélia engoliu em seco ao ver Rosário plantada à porta de casa de João, com ar de quem ali tinha ido tirar satisfações. Finalmente tinha descoberto onde vivia, lamentou-se a sentir-se entrar em pânico. João ficara na garagem à procura das malas de viagem e teria de a conseguir despachar antes de ele subir, ou lá se ia a sua viagem ao Gerês, e a promessa de uns dias de paixão.

- Nélia...., eu não queria acreditar quando a Fátima me começou a descrever a mulher que vivia com o Dr João... tinha de vir ver com os meus próprios olhos!! - começou, agarrando-a pelo braço, mas com vontade de lhe bater ali mesmo - O que é que tu fazes aqui?! E desde quando é que te chamas Isabel? Ham?! - elevou a voz enervada, sacudindo-a com força.

- Tia... por favor, eu posso explicar tudo. - olhava nervosa a porta do elevador - Mas vamos até às escadas do prédio, aqui podem-nos ouvir. - suplicou, já com as lágrimas a romper.

- Anda lá! - resignou-se Rosário, também pouco confortável com a discussão ali no hall dos apartamentos. Seguiu a sobrinha e notou como a rapariga estava sofisticada, chique, certamente vivia sustentada pelo Dr, nem trabalho devia ter, não saberia fazer nada que pagasse aquelas roupas. Entraram no sector das escadas e Nélia fechou a porta depois de espreitar e se certificar de que João ainda não tinha chegado a casa.

- Por favor, não estrague a minha vida!, o João acha que sou a Isabel, sim, e eu menti. - admitiu - Não lhe disse o meu nome verdadeiro porque sempre fui apaixonada por ele, essa é a verdade. - agarrou as mãos da tia carinhosamente - Desde o tempo em que a tia me contava histórias do seu patrão, sempre o quis conhecer, e foi o que aconteceu num bar aqui em Coimbra, há uns meses atrás. - explicou, com as lágrimas já a correr - Já nos deitávamos antes de ele conhecer a tal Isabel! - desviou o olhar da cara chocada com que a tia recebia as informações íntimas - Sim, eu vinha cá a casa de noite, mas saía antes de amanhecer, porque não me queria encontrar consigo, sabia que não ia entender esta relação. Mas juro-lhe que sempre gostámos um do outro, ele pedia-me para ficar, - mentiu, sem remorsos, teria de justificar a sua presença ali - eu é que nunca quis. Mas eu amo-o muito, nunca fiz nada com más intenções.

Rosário estendeu-lhe um lenço, sem saber o que dizer. Tinha ali ido para a desancar, e agora que ouvia uma explicação sincera ficava desarmada. - E ele também gosta de ti? - questionou-a meio incrédula, como se isso fosse impossível.

- Claro, hoje vamos sair, vamos passar uns dias ao Gerês. - confidenciou fungando. - Ele ainda está muito baralhado, coitadinho. O médico mandou-o espairecer. - sorriu, satisfeita com a reação da tia, que parecia mais calma e resignada. 

- Bem, Nélia, Deus me livre de estragar a tua vida, e se realmente gostam um do outro... - entrelaçou os dedos uns nos outros, envergonhada. 

- Obrigada tia, não se preocupe comigo. - devolveu-lhe o lenço sujo - Só preciso que me faça um favor, - bateu as pestanas húmidas com as lágrimas - saia por aqui, não deixe que a vejam. O João não se lembra de si, mas não quero perturbá-lo, vou fingir que nada se passou. - concluiu com alguma frieza na voz. Sentia Rosário novamente submissa e era imperativo despachá-la sem que ninguém a visse.

- Sim, claro, querida. - o olhar da sobrinha mandava-a descer imediatamente as escadas - Façam boa viagem, e telefona-me de vez em quando, a dar notícias do Dr... - pediu, já a descer obedientemente. Talvez houvesse alguma esperança para a rapariga, pensou respirando fundo. Não conseguia perceber como um Dr daqueles tão distinto podia engraçar-se pela sobrinha, mas se estavam felizes, era o principal. - Adeus!

Nélia respirou de alivio, quase que o seu dia acabava mal, mesmo antes de começar. Pensou rapidamente no que poderia dizer a João, se ele percebesse que tinha estado a chorar, ou andasse à sua procura. Um leve tremor nas mãos não a deixava pensar claramente, passou as mãos pelo cabelo, respirou fundo algumas vezes e saiu do vão das escadas, apressando-se a entrar no apartamento. Constatou que ainda estava escuro e sem sinais de João, e relaxou, tratando de se ir recompor na casa de banho. Ele deveria estar a chegar, e queria muito que a beijasse novamente como de manhã cedo quando o foi ver à esquadra. Passou uma base leve na zona dos olhos, eliminando qualquer vestígio de vermelhidão e passou um gloss nos lábios, ganhando instantaneamente coragem para o seduzir. Ajeitou o peito generoso na blusa e saiu para a zona comum da casa, onde já ouvia barulhos. Quando entrou na sala sentiu as mãos frouxas e um formigueiro na barriga, João olhava-a como nunca tinha sido olhada, estacou confusa, dominada pela intensidade com que ele a observava.

- O que foi?... - perguntou ansiosa, com a respiração acelerada.

- Temos perdido tanto tempo, querida... - disse, caminhando na direção dela, e largando tudo o que trazia nas mãos. Sempre ali estivera aquela mulher e só agora a via. Isabel deu alguns passos atrás, o que o excitou, gostava particularmente de a ver desarmada, sem aquela arrogância que a caracterizava. Assim que a alcançou tirou a t-shirt e encostou-a a si, se Isabel continuasse assim, com o olhar perdido, talvez a conseguisse amar. Beijou-a devagar, em adoração, queria muito amá-la, sentia saudades daquilo, de fazer amor. Lembrava-se todos os dias do beijo que tinha dado a Marta, de como fora doce e forte, e queria conseguir fazê-lo com Isabel. Precisava disso. Conduziu-a ao quarto, cada vez mais convencido de que ia esquecer a pele quente e macia que sentira debaixo do roupão de Marta, a suavidade da sua boca e o cheiro a flores. O perfume de Isabel sobrepunha-se às suas memórias, e toda a voluptuosidade da namorada lhe quebrava a ideia da forma do corpo de Marta, trazendo-o forçosamente para aquele quarto cinzento. Olhou-a uns segundos, parando para assimilar tudo aquilo, mas Isabel era impetuosa, e parecia precisar ainda mais dele, o que o reconduziu ao momento. Despiram o que restava das roupas, e João decidiu não abrir mais os olhos, permitindo-se senti-la sem imagens, limitando assim um dos sentidos e concentrando-se no sexo. Sabia que não seria difícil terminar o que ele mesmo começara, e esforçou-se por corresponder, para não ser demasiado rápido e satisfazê-la convenientemente. Perguntava-se porque continuava a teorizar aquele momento, e racionalizar o que não era racional, abriu ligeiramente os olhos mas fechou-os logo de seguida, ligeiramente incomodado com a cara de prazer de Isabel. Aquilo não o excitava como devia, lamentou-se, mudando de posição pois estava quase lá e ainda era cedo. Tinha-a levado para o quarto, não a podia desiludir, pensou, retomando o ritmo. Isabel estremeceu debaixo de si e João suspirou de alívio, terminando também a sua prestação. Deixou-se ficar alguns segundos a prolongar a união dos dois, permitindo que ela se acalmasse e aproveitando o momento em que não tinha de fingir nada.

- João, abraça-me com força... - pediu, enternecida com tudo o que tinha acontecido. Fora sem dúvida um ato de amor, como nunca experimentara antes. - Estás bem? - perguntou-lhe, preocupada com o silêncio dele.

- Sim, querida. - beijou-a na testa, da forma mais carinhosa que conseguiu, a sentir-se um traste. - Queres almoçar aqui em casa, ou comemos pelo caminho? - lançou, a tentar despachar a conversa melosa que antevia. - Ainda vai demorar um bocadito até chegarmos ao Gerês... posso preparar-te qualquer coisa...

- Eu faço! - respondeu decidida e animada. - Mas antes vamos tomar banho? - sorriu-lhe provocadoramente. Agora que experimentara aquele tipo de sexo com sentimentos queria mais, muito mais. E ele também parecia querer, percebeu pela reação física instantânea que aquela pergunta lhe causara.

- Sim, claro. Vai andando que vou procurar toalhas para nós. - balbuciou com a garganta a secar. Não sabia bem porquê, mas o seu corpo parecia não corresponder à cabeça, racionalmente fugiria daquela proposta, mas a falta de intimidade dos últimos tempos pareciam dominar o seu sexo. Limpou a palma das mãos às coxas, enquanto Isabel desaparecia em direção à casa de banho, engoliu em seco e procurou as toalhas, enquanto respirava profunda e compassadamente. “Om... Shanti...” disse a si mesmo, surpreendendo-se com aquelas palavras. Mas pareciam funcionar, “Om...Shanti...Om...”, repetiu, já a caminho do duche. Entrou e a visão daquela mulher toda só o fez ficar mais ansioso. Isabel agarrou-se-lhe ao pescoço e calou as vozes estranhas, reclamando-o de forma demasiado intensa. Fez-lhe a vontade, esforçando-se por ser convincente e despachou o sexo. Queria mesmo comer qualquer coisa e conduzir durante umas horas. Certamente que Isabel não o iria perturbar pelo caminho, com um bocado de sorte adormecia e ele podia ouvir música e pensar. A ideia de ir ao Gerês passar uns dias surgira-lhe do nada, mas a cada minuto que passava tornava-se mais penosa. Já não tinha bem a certeza de que queria ficar longe de Coimbra com uma namorada apaixonada, e sem conseguir sentir nada por ela.


  

- Olá João! Então?, ainda és vivo? - perguntou Salvador animado com o telefonema surpresa do amigo. - Por onde andas?

- Tudo bem, Salvador?, olha, estou a arrumar as malas no carro para ir ao Gerês passar uns dias...- explicou.

- Ah, fazes bem, mudar de ares. Se pudesse ia contigo, estou farto desta merda toda! - ralhou, dramatizando com as folhas em cima da secretária onde fazia a contabilidade do bar.

- Pois... desta vez não vai dar... vou em passeio “romântico”, fica para a próxima, mas estou a ligar-te por outro motivo. - adiantou engolindo em seco.

- Então? Diz lá!, Desculpa, só um aparte, ainda namoras aquela bomba loira? - perguntou curioso.

- Sim, ainda, e o nome dela é Isabel. 

- São todas, não é? - gozou - Mas diz lá, porque é que me estás a ligar?

- Bem, eu sei que andaste comigo na faculdade, a tirar psiquiatria. E estou a precisar de um conselho, porque não me recordo de nada. - começou por explicar meio encavacado com o assunto.

- Eu não estou autorizado a dar consultas, desisti do curso, mas se for só um conselho, sou homem para te resolver já a questão.

- Não é conselho desses, é que... bem, tenho-me sentido mais alterado, já tomo medicação diária, mas acho que preciso de mais. Isto não está a funcionar. Pensei que pudesses dizer-me até quantos comprimidos de ansiolítico posso tomar por dia.

- Há uns muito bons, chamados sexo!, comigo funcionam, já experimentaste esses? - disse brincalhão, e desejoso de saber se a bomba realmente era assim tão explosiva como visualmente parecia.

- Sim, já tomei dois desses hoje e não funcionou. - rosnou, a perder a paciência com as parvoíces do amigo. - Anda lá, posso tomar mais ou não?

- Bem, com duas doses de orgastriticum e ainda estás nervoso... não sei... - gozou, ficando no entanto surpreendido com aquilo. - Olha, manda-me por sms o nome do que tomas, e eu vou ver. Depois ligo-te a dizer, assim de cor tenho medo de estar a inventar e depois morres e eu fico a sentir-me uma merda. Mas, dizias tu, vais de lua-de-mel para o Gerês? Muito bem... vê lá se não tens uma overdose de mulher e te ficas lá numa cama de hotel com um sorriso de orelha a orelha. - provocou-o, sentindo uma ponta de inveja da sorte do amigo. 

- Duvido... - disse secamente, nada disposto a pensar na cama de hotel. - Vou mandar-te então o sms, e despacha-te a responder, estou mesmo mal. Obrigado Salvador, agora tenho de desligar, a Isabel está a chegar ao carro. Tchau. - desligou o telefonema e colocou o melhor sorriso quando lhe abriu a porta cerimoniosamente. Sabia que ela gostava daqueles salamaleques, já tinha percebido, e estava decidido a apaixonar-se por ela, e para isso era importante mantê-la de bom humor.

- Vamos? - perguntou-lhe enquanto colocava o cinto.

- Sim, vamos. - Isabel esticou-se e exigiu-lhe silenciosamente um beijo apaixonado carregado de luxúria.

João recompôs-se do beijo e desejou que Salvador se despachasse a enviar a resposta. “Om Shanti...Om....”, mentalizou, e limpou a palma das mãos às calças.



- Tu, o quê? - surpreendeu-se Elisabete ao ouvir as confissões do marido enquanto almoçavam.

- Lisa, não sei o que me deu...- balbuciou nervoso com o semblante zangado da mulher - Mas ela ainda gosta tanto dele, dá para perceber... se aguentasse por aqui mais uns diazitos... ele de certeza que vai “acordar” para a vida entretanto! - tratou de argumentar, tentando redimir-se - Sabes perfeitamente que ele vai procurá-la quando isso acontecer. Só queria garantir que ela não desaparecia sem deixar rasto.

- Francamente César! Isso nem parecem coisas tuas. Manipular situações e forçar acontecimentos... Sabes tão bem quanto eu que ele namora com aquela tipa, e não devem andar só de mãos dadas! E queres que a Isabel fique tipo freira no convento, à espera que o milagre se dê?, enquanto o João vive com outra? - berrou - Eu nem te reconheço... Sinceramente, nem sei como tiveste coragem de lhe dizer uma coisa dessas... - acrescentou já com um tom de desilusão que sabia que perturbaria o marido.

- Agora já está... - redimiu-se, constrangido.

- Pois está, está! - levantou-se e pegou no telemóvel, procurando o número de Isabel, e estendendo o aparelho ao marido, que ficou de olhos arregalados atónito de surpresa. - Vamos! Pede-lhe desculpa e diz-lhe o que sabes ser o mais acertado. César, a Isabel é uma mulher boa, não merece nada disto, diz-lhe isso. Diz-lhe para seguir com a vida dela, ela precisa disso. Não deixes que o amor que tens pelo João te ponha cego. - esticou mais a mão e o marido pegou no aparelho relutantemente, carregando no botão de chamada.

- Estou?, Isabel?, Olá, é o César... Sim, este telefone é o da Lisa... - levantou-se da cadeira, a sentir-se corar, desajeitado e comprometido. - Bem, estou a ligar-te para... lamentar o que te disse hoje cedo... sabes, falei sem pensar... e fiquei incomodado com isso, não ficava bem comigo próprio se não te dissesse que... sim, eu gosto muito do João, é um facto... mas também gosto muito de ti... e bem, deves seguir com a tua vida, mereces ser feliz... é claro que não deves ficar com esperanças de que o João volte a correr... e se recorde de tudo, pois claro. - atrapalhava-se cada vez mais, a sentir-se observado pela mulher.- E pronto, basicamente era isto que te queria dizer... espero que sejas muito feliz... e pronto... Serão entregues... claro, beijinhos também da Lisa para ti... e felicidades... adeus, adeus... até um dia.- desligou o telefonema encarando a mulher que sorria com malícia. - Então? Que mudança brusca é essa? Porque sorris assim?.... Lisa? O que foi? - sentia-se confuso.

- Ai, que anjinho que tu és... homem de Deus... - soltou uma gargalhada sonora, satisfeita com o sucesso que tinha sido aquele telefonema. - Desculpa César, mas eu não sei como podes ser um psiquiatra tão aclamado... às vezes és um bocadinho lento, não? - deu-lhe um beijo na bochecha - Queres café?

- Lisa, tu fizeste de propósito, não foi? Não ficaste nada zangada comigo, querias é que eu manipulasse a Isabel mas de outra forma, do modo reactivo... - foi pensando em voz alta, incrédulo com a mulher - Porque agora ela vai querer ficar... porque eu lhe sugeri que fosse ser feliz! - concluiu espantado - Lisa, tu és um génio.





Isabel parecia não querer ceder à monotonia da viagem, colocando o rádio na MegaFM, estação que João descobriu odiar, e cantando a plenos pulmões músicas agressivas, com batidas excessivas e letras de pouco conteúdo. Um pouco à sua própria imagem, concluiu resignado, enquanto se tentava abstrair de toda aquela energia cansativa. Estaria a ficar velho demais para aquela animação toda?, perguntou-se, quando o aviso de posto de gasolina próximo lhe trouxe uma alegria súbita. - Vamos parar agora a seguir, ok? Preciso de ir à casa de banho e beber uma água. - informou, sorrindo-lhe a contragosto.

- Fixe! Estou mesmo a precisar de um café! - exclamou animada.

João nem queria imaginar o que seria Isabel com mais cafeína..., suspirou, enquanto entrava na zona da restauração e procurava um lugar de estacionamento. Parou o carro e Isabel saiu disparada, deixando-o ligeiramente para trás, o que se mostrou útil, pois o seu telemóvel apitou em sinal de nova mensagem e João aproveitou a solidão para ver com calma o que diria Salvador sobre a dosagem dos comprimidos. Para seu espanto não era o amigo que o contactava, mas “Ganesha”, o que lhe provocou um estremecimento involuntário das pernas. Olhou nervoso em volta, para se certificar de que Isabel não estava por perto e limpou as palmas das mãos nas calças, sentindo um sorriso a florescer no rosto, pela primeira vez no dia. Abriu a mensagem e ficou alguns segundos a assimilar tudo o que sentia. Nunca uma foto de caixas de courgetes, tomates e alfaces lhe parecera tão entusiasmante. Ela tinha ido substituí-lo na feira, voluntariamente, e sem sequer terem combinado nada. O que significaria aquilo? Era ela, a Isabel Fontes Pereira e Castro, a Ganesha. Um barulho no vidro sobressaltou-o, e Isabel olhava-o amuada, aborrecida por estar à espera.

- Então? Vens ou não vens? - perguntou impacientemente.

- Sim, sim... - saiu do carro, colocou o telefone no bolso e caminhou obedientemente atrás dela, cheia de atitude.

- Pede um café para mim, vou à casa de banho! - mandou, dando-lhe um beijo em remissão pela rispidez e deixando-o só.

- Um café, uma água... e pode ser uma queijada daquelas, mas a mais queimada que tiver, por favor. - despachou a compra e tornou a olhar a foto que Ganesha lhe tinha enviado. Nesse momento recebeu outra, e abriu-a rapidamente, tornando a olhar em volta para se certificar de que Isabel ainda não estava por perto. Desta vez as caixas estavam vazias, e um boneco de smile simbolizava o sucesso das vendas, traduziu. Ficou estupidamente feliz, orgulhoso da jardinagem que andara a fazer e que produzira aquilo tudo. Aquele contacto dela só podia significar uma reviravolta na situação entre os dois. Não sabia bem o que deveria dizer em resposta, e num ímpeto, fotografou a queijada e escreveu “a celebrar” como legenda, adicionando um smile. Carregou no enviar e escondeu o telefone imediatamente, ao ver Isabel a aparecer ao longe. Comeu a queijada que lhe pareceu uma delícia, como nunca tinha provado na vida. A sua disposição melhorou significativamente, mas não durou muito tempo, depois de Isabel lhe dar a mão e o olhar apaixonada, cravando-lhe uma culpa funda que o acompanhou durante o resto da viagem.



Um hotel despertou-lhe a atenção, e decidiu ir saber informações sobre condições e vagas, estacionando o carro e deixando Isabel a retocar a maquilhagem que parecia nunca ser suficiente. Entrou na receção e um funcionário animado cumprimentou-o com algum à vontade, como se já se conhecessem antes.

- Bom dia! Em que posso ajudar? - perguntou o rapaz alegre.

- Olá bom dia, tem vagas? Queria ficar uns dias aqui pelo Gerês, precisava de um quarto com cama de casal. - explicou, sem perceber o sorriso demasiado franco do outro.

- Ah, sim, claro. Penso que temos um excelente quarto ainda disponível, deixe-me só confirmar. - disse, concentrando-se no computador. - Sim, temos, também vai precisar da cama extra para o “Filipe”? - perguntou, satisfeito consigo mesmo e a sua memória prodigiosa.

- Não... - balbuciou - Desculpe, eu já aqui estive antes? - perguntou confuso.

- Sim, não se recorda? Veio com uma senhora bonita e um cão. O Filipe. - explicou, a sentir-se baralhado. Teria feito confusão e estaria a cometer uma indiscrição?

- Ok, não interessa. - concluiu, tentando concentrar-se no que ali tinha ido fazer. - Vou ao carro buscar as malas, reserve então esse quarto. - Tirou da carteira o cartão de cidadão e estendeu-lho para formalizar a reserva. Isabel entrou nesse momento na receção e agarrou-se à cintura de João possessivamente, olhando depois em volta e dirigindo-se ao WC sem sequer dar os bons dias. - Não era esta a senhora bonita da outra vez, pois não? - perguntou ao rapaz corado.

- Não...

- E como era a outra senhora bonita?

- Morena, mais pequena, não tão... - pigarreou desconfortável - Bem, mais magra, mais sorridente, assim um tanto, vá, digamos, excêntrica.

- Excêntrica? - perguntou divertido com a descrição de Ganesha.

- Sim, sabe, roupas largas, tipo hippie, mas não da forma maltrapilha, se é que me entende.

- Claro, compreendo. Completamente diferente desta senhora que veio hoje comigo. - acrescentou.

- Sim, completamente diferente... - confirmou, corando violentamente assim que Isabel reapareceu na receção.

- Então? Ficamos aqui? - perguntou, tornando a enlaçá-lo e deixando-o embaraçado.

- Sim querida, estamos só a terminar o pagamento, podes ir até ao bar, se quiseres, tomar qualquer coisa. Eu trato de tudo. - disse-lhe, fingindo-se descontraído com aquelas demonstrações de afecto..

- É só assinar aqui, senhor. - pediu profissionalmente o rapaz. - Precisa de ajuda com as malas?

- Não, obrigado. E diga-me uma coisa, esse tal cão, como era? Pequenino? - continuou o questionário assim que Isabel se retirou.

- Não! Era enorme! Mas muito bem comportado. Coitadinho, depois daquele acidente lá nas piscinas naturais só queria comer e dormir. E recuperou bem? A pata ficou boa?

- Não me recordo. Fiquei amnésico há uns tempos atrás. - confessou, sem complexos. - E por falar nisso, confirme-me só o nome da minha companhia nessa altura. Deve ter aí registado, não?

- Sim, claro. - disse prestativo - Mas não se recorda de nada? Extraordinário... nunca tinha ouvido falar de uma coisa assim... - percorria os registos do verão enquanto falava - Aqui está!, Dr João Marques e Marta, mais extra de cama de cão “Filipe”, obrigou-me a menina Marta a acrescentar. Ela não queria que o tratassem por cão. - sorriu divertido.

- Vou então ao carro, obrigado pela ajuda. - caminhou pensativo, meio perdido nos seus quebra-cabeças, cabisbaixo, de volta ao carro. Seria assim tão complicado perceber o que tinha acontecido a Marta? Se ali tinha estado no verão com ela, e com o cão, onde encaixava Isabel naquilo tudo? Fechou a mala e olhou o hotel que parecia mais familiar, agora que descobrira que não era a primeira vez que o visitava. Parecia que o seu subconsciente o levava pela mão e direcionava a locais e pessoas que já tinham feito parte da sua vida. Tirou uma foto à fachada do hotel e enviou-lhe sem legenda. Não sabia o que haveria de dizer, ficaria à espera do seu contacto para ir percebendo o que ela queria. Desejava que o quisesse, como Isabel, por quem não conseguia sentir nada. Uma azia subiu-lhe à garganta quando o verbalizou a si mesmo em confirmação. Todo o seu corpo lhe dava alertas sobre o que era certo e errado, e enganar Isabel não iria ser certamente fácil.


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(imagem, internet)

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